“O Rei vai nu.”
"O Rei vai nu" | Hora do Conto
‘"O Rei vai nu" é um conto do famoso autor
dinamarquês Hans Christian Andersen.’
Ver mais em:
https://www.youtube.com/watch?v=n-eoStMliK0
Conversas com o Meio: Augusto de Franco
“De formação, Augusto de Franco é físico. Mas o fascínio
pela compreensão das redes o transformou num especialista em democracias. Você
acha que compreende bem o que é — e como funciona — uma democracia? Talvez não.
O que a experiência de Atenas e a atual têm em comum? Onde estão os problemas
na democracia? E de que forma o novo populismo de direita a ameaça? Estes são
apenas alguns dos temas desta conversa.”
Veja mais em:
https://www.youtube.com/watch?v=eo6_wP7RMzM&feature=youtu.be
Exclusivo: FHC diz que Brasil precisa de
pessoas capazes de unir o país
“Ex-presidente do Brasil e sociólogo de formação, Fernando
Henrique Cardoso deu entrevista para a CNN onde avaliou a situação do país, os
desafios para Bolsonaro e os próximos presidente e trouxe o perfil ao qual acha
que o próximo líder da nação deve ter para que saiamos de uma crise econômico
que perdura há anos. “A polarização cansa, chega um momento em que é preciso
ter juízo. No momento precisamos dar confiança ao Brasil, acreditar em nós
mesmo, e as palavras do presidente são simbólicas para a nação. É preciso
alguém que explique o que quer fazer e que toque o coração das pessoas, alguém
que faça as pessoas sentirem algo, que tenho o espírito aberto, que simboliza o
caminho. A dificuldade maior no momento é encontrar quem seja capaz de
liderar". Debate exibido em 01 de julho no programa CNN 360, apresentado
por Daniela Lima e Carol Nogueira.”
Veja mais em:
https://www.youtube.com/watch?v=n2FQ10sTowg
LULA NA RÁDIO BANDEIRANTES
Veja mais em:
https://www.youtube.com/watch?v=6IiD2lpL-aA
Sem Doutrina: um Curso de
Introdução à Democracia
O desconhecimento da
democracia é tão generalizado e a programação autocrática é tão forte que as
pessoas fazem sempre as mesmas perguntas (o que é uma evidência inconteste de
que existe mesmo uma programação autocrática).
Este programa – baseado
em perguntas recorrentes sobre a democracia – parte da seguinte seguinte ideia
geral. Você pode acreditar no que quiser e ninguém tem nada com isso. Mas
estabelecer como pré-condição para a atuação política correta a adesão a qualquer
credo dificulta ou impede a compreensão – e muitas vezes a prática – da
democracia. Por isso nenhum códex, nenhuma
doutrina – seja realista, marxista, conservadora, liberal-econômica, ou mesmo
anarquista ou libertária – são necessários. Porque a democracia não é um
modo-de-ver ou de conhecer (observar, investigar, explicar – como a ciência) e
sim um modo-de-interagir. Não é baseada em cognitivismo e sim em interativismo.
Por isso este curso sobre democracia se chama Sem Doutrina.
Porque a democracia não precisa mesmo de doutrina.
Ninguém é obrigado a
ser democrata (e sim a não transgredir as leis, o que é outra coisa). A
democracia não é necessária, é uma questão de desejo (o desejo – como dizia
Esquilo (472 a. E. C.), em Os Persas, referindo-se aos atenienses do século 5 –
de não ser escravo nem súdito de ninguém). Quem tem vocação para rebanho, pode
continuar seguindo lideranças, quem gosta de ser fiel pode abraçar doutrinas
que invocam qualquer razão extra-política – seja deus, a natureza ou a história
– para validar suas posições políticas.
O programa Sem Doutrina foi desenvolvido por Augusto de Franco e por pesquisadores
associados à Escola de Redes.
O programa teve sua
primeira oferta em agosto de 2017 e foi feito por e-mails semanais. Agora
abrimos o acesso solicitando uma contribuição. Quem quiser contribuir
voluntariamente com qualquer valor clique neste link: https://pag.ae/7VSSjZ89p
O PROGRAMA É COMPOSTO POR
TRINTA QUESTÕES
1 – Quais os exemplos de
países plenamente democráticos? Existem de fato tais países?
O desconhecimento da
democracia é tão generalizado e a programação autocrática é tão forte que as
pessoas fazem sempre as mesmas perguntas (o que é uma evidência de que existe
mesmo uma programação autocrática).
Esta é uma das
perguntas mais comuns. Em geral a pessoa que faz esta pergunta pode estar
querendo dizer várias coisas:
a) Que não existem
países plenamente democráticos (e que, portanto, a democracia é uma espécie de
utopia, sem aplicação satisfatória no mundo real).
b) Que a democracia se
aplica (somente) a países, sendo uma espécie de modo de administração política
do Estado-nação, uma forma de governar.
c) Que existiria um
modelo ideal de democracia, uma verdadeira democracia (diferente das falsas
democracias que se encontram por aí), ou seja, uma espécie de fórmula que,
entretanto, na prática, não consegue ser aplicada em plenitude (sendo o
resultado da sua aplicação sempre imperfeito).
Em geral as pessoas que
não têm muita intimidade com o assunto acham que a democracia (não a que anda
por aí, mas a verdadeira, perfeita, pura, limpa, reta) é um ideal, um regime
político que não consegue se materializar porque os seres humanos não estão
preparados para experimentá-la, seja em razão de suas características inerentes
– por exemplo, por serem competitivos ou hostis por natureza, por não terem
domado a besta-fera que vive no seu interior – seja por força de suas imperfeições
morais, seja por falta de consciência e de conhecimento (do que é e de como
deveria funcionar uma “verdadeira democracia”).
Na verdade este tipo de
pergunta revela uma falta de reflexão sobre o tema, sobre o que é a democracia,
sobre como ela surgiu (ou foi inventada pela primeira vez) e sobre como ela foi
reinventada e existe hoje nos países que a adotam.
A leitura do TEXTO 01 –
O QUE É DEMOCRACIA é fundamental como ponto de partida neste itinerário de
investigação-aprendizagem que está começando agora:
2 – Se a democracia é um bom
regime político, por que temos tão poucas experiências realmente democráticas?
E por que, segundo alguns reconhecidos índices internacionais apenas duas
dezenas de países – em quase 200 – podem ser considerados plenamente
democráticos? E, ainda, por que a maioria da população do planeta nunca viveu
sob regimes democráticos?
Esta pergunta é uma boa oportunidade para
esclarecer algumas características da democracia.
Vamos por partes. Ela começa com a afirmação
(ainda que no contexto de uma frase interrogativa) de que “a democracia é um bom regime político”. Esta é
uma declaração de adesão ou uma aposta na democracia. É, a rigor, a
manifestação de um desejo. A democracia só é um bom regime político para quem
deseja a democracia, ou seja, para quem quer viver sem um senhor.
O primeiro registro escrito da democracia
aparece em Os Persas, de Ésquilo (472 a. E. C.). Referindo-se aos atenienses
(que inventaram a democracia pela primeira vez) ele diz: “Não são escravos, nem súditos de ninguém”.
Em termos atuais poderíamos dizer que a
democracia é boa para quem quer ser cidadão, não súdito. Ou, em outras
palavras, para quem não quer viver em autocracias (ditaduras).
Há quem prefira viver em autocracias (por
exemplo, quase a totalidade dos fundamentalistas islâmicos, ou dos militaristas,
ou dos neonazistas, ou grande parte dos marxistas-leninistas e bolivarianistas –
como Maduro e Cabello, na Venezuela). Aliás, seja por preferência, seja por
falta de oportunidade ou de condições de experimentar outros modos de regulação
de conflitos, a maioria da população do planeta nunca viveu em regimes
democráticos.
No mundo de hoje, não vivem em regimes
democráticos os habitantes de cerca de 60 países (que abarcam a maioria da
população mundial), como China, Cuba, Venezuela, Coréia do Norte, Rússia,
Turquia etc. Claro que muitos habitantes desses países gostariam – se soubessem
do que se trata e se pudessem – de viver em regimes democráticos. Em boa parte
deles, aliás, há movimentos de democratização (em geral fortemente reprimidos
pelos senhores, quer dizer, pelos ditadores que dirigem ou comandam seus
respectivos Estados-nações: toda autocracia se impõe pela força, ainda que não
somente).
Voltemos à segunda parte da primeira pergunta: “por que temos tão poucas experiências realmente democráticas?”
Duas observações preliminares. A primeira é que
não temos tão poucas experiências democráticas assim: se levarmos em conta os
critérios adotadas pelos principais institutos que monitoram a democracia no
mundo – e. g. a Freedom House (FH), a Economist Intelligence Unit (EIU) e o V-Dem
(Universidade de Gotemburgo), veremos que temos mais democracias do que
autocracias.
A segunda observação preliminar é sobre a
palavra “realmente”. Não se sabe o que seriam países “realmente” democráticos.
As duas mais conhecidas organizações que monitoram a democracia no mundo – a Freedom House (FH), a Economist Intelligence Unit (EIU) e o V-Dem
(Universidade de Gotemburgo) – adotam critérios distintos para classificar os
regimes democráticos. A Freedom House classifica
os países em livres, parcialmente livres e não-livres. Para a EIU, temos
democracias plenas, democracias defeituosas, regimes híbridos e regimes
autoritários. Para o V-Dem, temos democracias liberais, democracias eleitorais,
autocracias eleitorais e autocracias fechadas.
Retomando mais uma vez a pergunta e
reformulando-a: por que não temos mais países “satisfatoriamente” democráticos?
Bem… a única resposta para esta questão é a
seguinte: porque não ocorreram processos de democratização (na verdade, de
desconstituição de autocracia) bem-sucedidos em mais países, ainda que o número
de democracias seja bem maior do que 50 em qualquer ranking.
O importante é que como a democracia depende de
iniciativas políticas para existir, não há uma explicação extra-política adequada
para responder a questão (do tipo: porque muitos países não são desenvolvidos o
suficiente para poder adotar a democracia, porque têm um IDH – Índice de
Desenvolvimento Humano – muito baixo, porque não são realmente capitalistas,
porque estão dominados por culturas não-ocidentais etc.). É claro que todas
essas variáveis mencionadas acima incidem sobre as iniciativas políticas, mas
elas não podem ser tomadas como razões imediatas ou de primeira instância para
explicar por que alguns países são democráticos e outros não ou mesmo por que
alguns países são mais democráticos do que outros. A democracia não é
necessária, não é o resultado da ação de algum mecanismo oculto (de natureza
econômica, por exemplo). Ela só acontece se existirem pessoas interagindo politicamente
umas com as outras e dispostas a experimentá-la, seja por que motivo for (isso
não é relevante para a explicação, ainda que possa ser importante para explicar
suas motivações). Onde, por qualquer razão, não se conformou um ambiente social
favorável à democracia, ela não acontece, nem por força de fatores imanentes
(por exemplo, alguma lei histórica), nem por força de fatores transcendentes
(por exemplo, algum plano divino).
3 – Quais são os critérios
para saber se um regime é democrático? Se esses critérios não são inequívocos,
cada qual adotando os indicadores que mais se ajustam à sua visão de mundo, a
democracia não se reduz apenas a um discurso legitimatório do tipo de regime
que se quer manter ou alcançar?
Duas perguntas em uma. Vamos à primeira.
Quais são os critérios? Os que fazem
levantamentos sobre a democracia (como a Freedom House e
a Economist Intelligence Unit – já citados acima)
adotam diferentes critérios. A FH considera dois indicadores básicos: Direitos
Políticos e Liberdades Civis. A EIU considera cinco indicadores: Processo
Eleitoral e Pluralismo, Funcionamento do Governo, Participação Política,
Cultura Política e Liberdades Civis.
Há, é claro, muitos problemas. Não há um modelo
de democracia que possa servir de referência para se dizer o que é e o que não
é democracia. Toda vez que o processo de democratização consegue, mesmo
intermitentemente, prosseguir, dizemos que estamos numa democracia, devendo-se
entender por isso o seguinte: estamos conseguindo tornar modos de regulação de
conflitos menos autocráticos e padrões de organização menos hierárquicos, nada
garantindo, porém, que vamos definitivamente para o céu: sempre pode haver
retrocesso quando – no caso da democracia dos modernos (a democracia
representativa realmente existente nos países que a adotam) – restringe-se a
liberdade, viola-se a publicidade, frauda-se a eletividade, falsifica-se a
rotatividade, descumpre-se a legalidade e degenera-se a institucionalidade.
Quando algumas dessas coisas são feitas a partir de certo grau que começa a
inviabilizar a continuidade do processo de democratização, dizemos que não
estamos mais numa democracia (ou seja, que a democracia que temos não está mais
conformando-se como um ambiente favorável a caminharmos em direção às
democracias que queremos). Mas os limites não são fixos.
Outro problema é o seguinte.
A democracia realmente existente na atualidade
é a democracia reinventada pelos modernos como democracia representativa. O
problema é que ela é coetânea à construção da forma Estado-nação. E como o
Estado (qualquer forma de Estado) é um fruto da guerra (no caso do Estado-nação
europeu moderno, da paz de Westfália), a democracia acabou servindo como modo
de administração política de uma estrutura geneticamente guerreira, para tentar
mitigar o Leviatã com a fórmula do Estado democrático de direito.
Então qual é realmente o problema? O problema é
que a democracia não deveria valer apenas para isso, para domesticar Estados. A
democracia é um processo de desconstituição de autocracia onde quer que ela se
manifeste (nas famílias, escolas, igrejas, corporações sindicais, organizações
sociais, universidades, empresas – além, é claro, de órgãos estatais). Ademais,
não é só o Estado que é ou não é democrático em alguma medida e sim também as
demais estruturas sociais. Ou medimos tudo isso, ou não medimos o que realmente
importa: em que medida comportamentos que refratam a regulação de conflitos de
modo mais autocrático do que democrático se reproduzem na sociedade.
Considerando que a democracia que temos (a
democracia representativa, realizada em Estados-nações) é condição necessária
para alcançar as democracias que queremos (ou, em outras palavras, para a
continuidade do processo de democratização, tanto do Estado quanto da
sociedade) seria necessário, em primeiro lugar, definir um novo índice para
avaliar o grau de realização da democracia representativa em Estados-nações do ponto
de vista da continuidade do processo de democratização.
Esse índice poderia se chamar de índice de
legitimidade da democracia realmente existente. Para calculá-lo poderíamos
partir dos critérios de Ralf Dahrendorf (modificados por investigadores do Projeto
Democracia): liberdade, eletividade, publicidade (ou transparência e, no
limite, accountability), rotatividade (ou alternância),
legalidade e institucionalidade. Dever-se-ia construir indicadores para cada um
desses atributos ou características da democracia representativa.
Em segundo lugar deveria ser construído um novo
índice para medir o grau de democratização da sociedade. Este é um desafio e
tanto, pois é muito difícil medir o capital social (que é, praticamente, o
único conceito político diretamente relacionável à morfologia e a dinâmica
social). É tudo muito problemático porque o padrão de organização não guarda
nenhuma relação de causação com o modo de regulação de conflitos, ainda que
haja condicionamentos recíprocos entre ambos.
Segundo o primeiro índice, os países poderiam
ser classificados segundo os seguintes tipos:
- Autocracias (ditaduras, regimes
autoritários, not-free countries)
- Regimes em transição autocratizante
(protoditaduras)
- Regimes em transição democratizante
(protodemocracias)
- Democracias formais parasitadas por
governos (autocráticos ou autocratizantes) manipuladores (por exemplo, por
governos populistas e neopopulistas)
- Democracias formais representativas
não-plenas (flaweds)
- Democracias formais representativas plenas
O segundo índice permitiria calcular a
probabilidade da mudança de status de um
nível da classificação para outro. No caso das democracias formais representativas
plenas, poder-se-ia avaliar a medida em que o regime político se constitui como
ambiente favorável à realização de ensaios de democracias substantivas, mais
interativas (tanto no âmbito do Estado, quanto no âmbito da sociedade).
Estes são desafios colocados para os que
investigam a democracia, sobretudo do ponto de vista das redes, ou seja, para
os que têm uma visão social da democracia.
Passemos agora à segunda pergunta:
Se os critérios não são inequívocos, cada qual
adotando os indicadores que mais se ajustam à sua visão de mundo, a democracia
não se reduz apenas a um discurso legitimatório do tipo de regime que se quer
manter ou alcançar?
Não. Por mais distintos que sejam os critérios
adotados por diferentes pesquisadores da democracia, todos concordariam sobre o
seguinte: os critérios da legitimidade democrática de Dahrendorf não podem ser
violados em países que adotam regimes considerados democráticos. Repetindo (a
versão modificada pelo Projeto Democracia):
- Liberdade,
- Eletividade,
- Publicidade (ou transparência e, no
limite, accountability),
- Rotatividade (ou alternância),
- Legalidade, e
- Institucionalidade.
Assim, quando autocratas – como Hitler ou
Stalin – dizem (disseram) que estão (estavam) aplicando a “verdadeira
democracia”, nenhum estudioso sério do tema (na verdade, nenhum democrata)
poderia levar tal alegação a sério. Algum dos critérios (em alguns casos, todos
os critérios) acima foram (ou serão) violados.
Numa democracia, seja qual for o critério
adotado por diferentes centros de pesquisa:
1) A liberdade (de
ir e vir, de imprensa, no ciberespaço, de reunião e de manifestação, de
organização social e política e, inclusive, de empreender e ter propriedades)
não pode ser violada, nem restringida (sob qualquer pretexto);
2) A eletividade (o
direito de eleger seus representantes para governar ou elaborar as leis –
executivo e legislativo – e de ser eleito para essas funções) não pode ser
violada, restringida ou fraudada. Aqui cabe um comentário: esse critério é
necessário, porém não suficiente para caracterizar um regime como democrático
(democracia não é eleição: a maioria das ditaduras que remanescem hoje em dia
promovem eleições);
3) A publicidade ou
transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability),
ou seja, a inexistência de opacidade e de segredo nos negócios de Estado, deve
estar garantida por mecanismos eficazes;
4) A rotatividade ou
alternância também devem ser observadas: os mandatos constituídos por
representação ou nomeação devem ser limitados no tempo, não podendo um
governante se prorrogar no posto (mesmo que a reeleição para vários mandatos
consecutivos ou alternados seja inserida na Constituição, como vem ocorrendo
nos regimes bolivarianos);
5) A legalidade deve
ser mantida, o que exige um judiciário independente e um conjunto de leis democraticamente
aprovadas (inclusive uma Constituição elaborada por um parlamento constituinte
legitimamente eleito). É o chamado Império da Lei, expressão utilizada para
dizer que não há império de uma pessoa e que os habitantes do país são cidadãos
e não súditos de ninguém;
6) A institucionalidade,
garantida por um conjunto de instituições que funcionem com a sua dinâmica
própria e tenham proteções suficientes para não serem invadidas por interesses
empresariais, corporativos ou partidários e político-eleitorais. Isso
significa, por exemplo, não transformar as instituições em palcos de disputa de
hegemonia, onde um partido ou coligação de partidos tentem conquistar maioria
para converter essas instituições em correias de transmissão de suas vontades
ou diretivas políticas, como ocorre nos processos de aparelhamento do Estado
(com a indicação de militantes partidários para ocupar os cargos das diversas
instituições).
Vale a pena ler o artigo Ralf Dahrendorf e a
legitimidade democrática, que republica dois textos importantes do autor (em
espanhol): Democracia sin democratas (24/01/2004)
e Legitimidad y elecciones (12/01/2005).
Ele está no link: http://dagobah.com.br/ralf-dahrendorf-e-a-legitimidade-democratica/
4 – Um grupo humano – por
exemplo, de 5 mil pessoas, escolhidas aleatoriamente no conjunto dos países do
mundo atual – que fosse transportado para uma ilha deserta (mas com recursos
suficientes à sua sobrevivência), adotaria um regime democrático para regular
seus conflitos? Quais são as chances de isso acontecer?
Esta pergunta é uma experiência de pensamento (Gedankenexperiment), muito usada em ciência para
ensejar um raciocínio lógico sobre um experimento não realizável na prática,
mas cujas consequências podem ser exploradas pela imaginação.
O objetivo aqui é, em primeiro lugar, mostrar
que a democracia não emerge espontaneamente da convivência social, que ela não
é necessária e sim uma escolha coletiva e que ela não decorre de nenhuma
determinação extra-política, seja imanente ou transcendente à história, que ela
não é “natural” (como se fosse uma característica das sociedades primitivas) e
que ela não surge por força de exigências econômicas (como, por exemplo, o grau
de desenvolvimento das forças produtivas ou por qualquer outro fator
relacionado ao modo de produção).
O que a experiência mental proposta nesta
questão está colocando é que essas pessoas seriam transportadas para uma
localidade onde não há escassez (de recursos sobrevivenciais). Mas isso não garante
que a escassez não venha a ser introduzida artificialmente, em razão dos modos
de regulação de conflitos que forem adotados pela nova comunidade que se
formará. Há um romance clássico sobre isso: O Senhor das Moscas, de William
Golding (1954) – que veio a receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1983.
O livro retrata o comportamento de um grupo de
crianças inglesas de um colégio interno, preso em uma ilha deserta após a queda
do avião que as transportava para longe da guerra.
O Senhor das Moscas (1954) examina então o
comportamento social de indivíduos em condições de escassez (natural e
artificial, porém mais artificial do que natural – e aí pode estar uma chave de
interpretação para o surgimento de modos de regulação autocráticos aderentes a
padrões de organização hierárquicos). É mais uma descrição de um experimento
social do que uma reflexão sobre a origem do mal ou, mesmo, do que uma alegoria
política stricto sensu (como, às
vezes, se interpreta). O livro permite uma leitura capaz de fazer correspondências
entre o social e o político, ou seja, sobre os condicionamentos recíprocos
entre padrão de organização e modo de regulação.
Por isso vale a pena lê-lo. Ele pode ser
baixado aqui: GOLDING, William (1954) O Senhor das Moscas
Para examinar a questão devemos ter em mente
que a democracia se realiza toda vez que adotamos modos não-guerreiros de
regulação de conflitos, mas desde que no contexto de sociedades autocráticas
(quer dizer, guerreiras). Pois a democracia é, no sentido forte do conceito, um
processo de desconstituição de autocracia (assim ela foi inventada pelos
antigos atenienses, contra a tirania dos psistrátidas e assim ela foi
reinventada pelos modernos, contra o poder despótico de Carlos I).
Em sociedades não patriarcais (i. e., não hierárquicas e não guerreiras) – por
exemplo, entre os Pirahãs ou os Yanomamis, num agrupamento paleolítico de
caçadores-coletores ou numa aldeia agrícola neolítica – a democracia não faz o
menor sentido. Porque não há o que democratizar (ou seja, desautocratizar)
nessas sociosferas que não são dominia de
Estados. Impor a essas sociedades um modelo político qualquer, inclusive
democrático, seria uma perversão. Nenhum bem adviria da adoção da democracia
por povos cujo modo de vida (ou de convivência social) não está baseado na
conservação do emocionar guerreiro.
Mas vamos analisar a proposição. Cinco mil
pessoas escolhidas aleatoriamente no conjunto dos países do mundo atual,
provavelmente não teriam, em sua maioria, experiência de democracia. Sua
cultura política, portanto, tenderia a ser mais autocrática do que democrática.
Como vimos nos módulos anteriores deste
programa, a maioria da população do planeta jamais viveu sob regimes
democráticos. Então, se essa maioria viesse a implantar, por qualquer motivo
cultural, um regime político inspirado na guerra, no domínio, no comando-e-controle,
seria possível, sim, que ocorresse o surgimento de um movimento democrático
(mas para desconstituir o modo autocrático de regulação de conflitos que foi
adotado).
O que é determinante para tanto são as
conversações recorrentes das pessoas que não desejam viver sob um regime
autocrático. Sim, a democracia está baseada no desejo de não viver sob um
senhor: como escreveu Ésquilo (472 a. E. C.), em Os Persas, referindo-se aos
atenienses de sua época, de “não ser escravo nem súdito de ninguém”. Se essas conversações,
sintonizadas com um emocionar não-guerreiro, ensejassem ações políticas
concretas de desconstituição de autocracia, então – e só então – um processo
democrático poderia se desenvolver na nossa ilha imaginária. Mas não se pode
saber, de antemão, as chances de isso vir a acontecer.
Ou seja, é necessário, para haver democracia,
que se articule uma rede distribuída (não centralizada ou descentralizada –
portanto, não-hierárquica) de conversações, mas tal não é suficiente. Pois não
pode haver democracia sem política. Ainda que haja um condicionamento recíproco
entre padrão de organização e modo de regulação e, assim, a padrões de
organização não-hierárquicos correspondam modos de regulação não-guerreiros,
apenas a ausência de hierarquia não é capaz de instalar a democracia. Do
contrário encontraríamos regimes democráticos em povos primitivos. E não
encontramos.
Para entender melhor tudo isso, vale a pena ler
um capítulo (ou seção) do livro de Humberto Maturana e Gerda Verden-Zoller
(1993), intitulado Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. O texto
indicado, escrito por Maturana, se chama A democracia: SEM DOUTRINA TEXTO 02
Ele também pode ser lido aqui (vá diretamente
para o capítulo 6): http://dagobah.com.br/um-texto-seminal-de-humberto-maturana/
5 – O ideal democrático não
é semelhante ao que pregavam os anarquistas, ou seja, um sonho que jamais se
concretizou em lugar algum?
É preciso entender, em primeiro lugar, o que
chamamos de ideal democrático. Não é um ideal no sentido em que a palavra é
tomada pelas diferentes doutrinas políticas. Assim, a democracia não é uma
doutrina semelhante às demais doutrinas. A democracia é apenas um modo
não-guerreiro de regulação de conflitos (é o que os atenienses do século 5 a.
E. C. chamavam propriamente de política, que era tomada como o contrário da
guerra). Por isso a democracia pode ser definida, no sentido forte do conceito,
como um processo de desconstituição de autocracia. Porque, ao se exercer, um
modo não-guerreiro de regulação de conflitos desconstitui a guerra (a guerra
quente, a guerra fria ou a política como continuação da guerra por outros
meios) – quer dizer, o modo guerreiro de regulação de conflitos – que
caracteriza a autocracia.
Portanto, a democracia não é mais uma doutrina
política. Não por ser uma doutrina diferente, especial, superior às demais, e
sim porque seu status epistemológico é
distinto do status epistemológico de
uma doutrina, ainda que alguém possa querer inventar uma doutrina democratista.
Na verdade só existem três grandes troncos de
doutrinas políticas hoje: o marxismo, o conservadorismo e o
liberalismo-econômico.
São troncos, não doutrinas específicas, na
medida em que existem vários marxismos (os marxianismos do jovem e do velho
Marx, o marxismo-leninismo, o marxismo-gramscismo e uma infinidade de variantes
como as inventadas pelos filósofos franceses – como o foucaultismo), existem
vários conservadorismos (dos laicos aos religiosos e teosóficos: aqueles que
adotam uma visão esotérica da história) e existem vários
liberalismos-econômicos (os da chamada Escola Austríaca, como o von-misesismo e
o hayekismo, os libertarianismos, o anarcocapitalismo e os individualismos à la Ain Rand et coetera).
O anarquismo original e as diversas formas de
libertarianismo não-marxista estão quase extintos ou são vestigiais ou
marginais.
Os fascismos são comportamentos políticos que
podem ser adotados por quaisquer estatistas, sejam conservadores ou
revolucionários. E há várias combinações de conservadorismo com
liberalismo-econômico.
Todas as doutrinas, consideradas de esquerda ou
de direita, revolucionárias ou conservadoras, liberais ou iliberais,
libertárias ou autoritárias, dificultam a compreensão da democracia. Elas
colocam um conteúdo no que deveria permanecer vazio (a política stricto sensu: o modo não-guerreiro de regulação de
conflitos). E é este conteúdo – extra-político – que passa a servir de
referencial para validar ou invalidar comportamentos políticos.
Mas a validação extra-política de qualquer
regime político é incompatível com a democracia. Por quê? Porque os princípios
de qualquer validação extra-política não estão submetidos à interação
democrática: eles já valem antes e sempre, independentemente dos fluxos
interativos da convivência social que mudam comportamentos e pensamentos.
Ideias não mudam comportamentos, só comportamentos mudam comportamentos e,
inevitavelmente, pensamentos (mas a recíproca não é verdadeira: se fosse,
bastaria doutrinar as pessoas seguindo um codex para
construir a boa sociedade, quando a experiência mostra que não é assim, do
contrário, milênios de pregação religiosa e utópica sobre o bem, o belo e o
verdadeiro já teriam construído o paraíso na Terra).
Toda pregação, toda doutrinação, todo seguimento
de credos e constituição de corpos de fiéis (e, simultaneamente, de infiéis)
são conservadores na medida em que tentam conservar e reproduzir um conteúdo
determinado contra a mudança (desse conteúdo), contra o contingente, contra o
descoberto, contra o inventado, contra o feito por desejo e sem necessidade,
contra o erro, a falha e o acaso que incidem na sempre provisória e precária
vida comum.
A democracia, toda vez que acontece (ou seja,
toda vez que é ensaiada, sejam quais forem as crenças mais profundas que estão
nas cabeças dos que a ensaiam), é inovadora. E é inovadora em relação ao que há
de mais antigo a ser conservado: a cultura patriarcal, hierárquica e
autocrática, do que chamamos de civilização. Não por ter uma outra cultura
(como transmissão não-genética de comportamentos inspirados em um conjunto
qualquer de ideias, ou melhor, em circularidades inerentes às conversações que
ocorrem no seio dessa cultura e que são capazes de reproduzir um determinado
modo de vida ou de convivência social) para colocar no lugar da velha e sim
porque é vazia de conteúdos determinados imunes à interação.
A natureza da democracia não é a de ser mais
uma edificação para trancar os fluxos ou condicioná-los a ficar rodando da
mesma maneira na rede e sim a de ser uma brecha no muro da cultura patriarcal
(como já vimos no TEXTO 02,
examinado no Módulo 04 deste programa).
As doutrinas são, assim, meios de cercear,
direcionar e capturar o fluxo interativo da convivência social, substituindo a
aprendizagem pelo ensino, ou seja, o que pode ser aprendido pelo interativismo
pelo que pode ser apreendido pelo cognitivismo. Isso pressupõe acreditar em
alguma coisa (em um credo) em vez de se comportar de uma maneira. Alguém tem
que conhecer um conteúdo (saber a doutrina) para poder fazer a boa política,
separando-se então os que sabem dos que não sabem. É com base nesse platonismo
que os codificadores e replicadores de doutrina (mestres e professores)
arrebanham seguidores (discípulos e alunos).
Quando se diz que a democracia não tem um
conteúdo, como as doutrinas, isso significa, em primeiro lugar, que a democracia
não tem qualquer projeto de futuro. Diferentemente das doutrinas políticas, ela
é vazia de conteúdo utópico. A “utopia” da democracia é uma topia: ela não quer conduzir uma coletividade para
algum lugar, para um amanhã melhor, quer apenas que os seres humanos convivam,
hoje, como seres políticos, quer dizer, autorregulando seus conflitos de modo
pacífico a partir do livre proferimento e da interação de suas opiniões.
Ora, isso é bem diferente do anarquismo (assim
como de qualquer outra doutrina política), que tem uma visão de como a
sociedade deveria ser e um caminho para alcançar o modelo ideal imaginado.
Quanto à segunda parte da pergunta. A
democracia não é um ideal (no sentido de um modelo de sociedade) que possa se
concretizar em algum lugar. Ela é um processo. Não é o porto, o ponto de
chegada e sim um modo de navegar (ou de caminhar). Não pode ser implantada: só
pode ser exercitada e só existe, a rigor, enquanto o processo de democratização
(ou de desconstituição de autocracia) está acontecendo.
6 – A democracia ideal é uma
utopia (irrealizável) já que a política é o que é – sempre uma luta pelo poder
– e, portanto, não seria uma ingenuidade imaginar que é possível torná-la mais
cooperativa ou menos adversarial? Não é o fato de a democracia ser competitiva
que garante que uns não se sobreporão aos demais, formando oligopólios
políticos?
Temos aqui três questões conexas, porém
distintas, enfeixadas numa mesma pergunta.
1) A primeira é se a democracia não seria uma
utopia.
2) A segunda é que, se a política é sempre uma
competição pelo poder (tendo uma dinâmica de guerra, ainda que não-violenta,
quer dizer, de continuação da guerra por outros meios), não seria razoável esperar
que ela fosse cooperativa, quer dizer, compatível com a democracia (que é um
modo não-guerreiro de regulação de conflitos).
3) A terceira é se não é o fato da democracia
ser competitiva que garante a concorrência (como no mercado), impedindo a
formação de oligopólios.
Passemos à primeira questão.
1 – A DEMOCRACIA É UMA UTOPIA?
Há muita incompreensão sobre a democracia. Ora
ela é confundida com um modo de administração política do Estado (ou com o
chamado Estado de direito; ou pior, com eleições); ora com uma ideologia (e não
raro alguém pergunta se ela não seria a mesma coisa que aquele tipo de
sociedade imaginária pregada pelos anarquistas); ora, ainda, indaga-se se ela
não seria uma utopia (tipo a sociedade sem classes do paraíso construído
idealmente pelos comunistas).
Para tentar desfazer a confusão, comecemos pelo
final, quer dizer, pela ideia – bastante generalizada – de que a democracia
seria uma utopia.
Não! A democracia não é uma utopia. Quem
precisa de utopia é a autocracia. Para a democracia não há um lugar (ou um
não-lugar: u-topos) onde chegar. O amanhã
da democracia chama-se hoje. Isso não significa que a democracia não seja
tensionada pelo futuro desejado. Mas o tempo da democracia é o futuro
antecipado, presentificado, ou seja a topia, o aqui e
agora. Só assim ela se realiza: sendo o meio que realiza o seu fim (no sentido
de finalidade – ou sentido – da política, quer dizer, a liberdade).
Nesse sentido, pode-se dizer que a democracia
se realiza toda vez que adotamos modos não-guerreiros de regulação de
conflitos. Sim, ela é composta por atos singulares e precários, não por altas
estratégias de condução das massas para um porvir radiante. Realizar a
democracia é mais ou menos como seguir aquela homilia do Paulo Brabo: um
instante de cada vez.
Mas – atenção! – adotar modos não-guerreiros de
regulação de conflitos só realiza a democracia em sociedades autocráticas (quer
dizer, guerreiras). Pois a democracia é, no sentido forte do conceito, um
processo de desconstituição de autocracia (assim ela foi inventada pelos
antigos atenienses, contra a tirania dos psistrátidas e assim ela foi
reinventada pelos modernos, contra o poder despótico de Carlos I).
Em sociedades não patriarcais (i. e., não hierárquicas e não guerreiras) – por
exemplo, entre os Pirahãs ou os Yanomamis, num agrupamento paleolítico de
caçadores-coletores ou numa aldeia agrícola neolítica – a democracia não faz o
menor sentido. Porque não há o que democratizar (ou seja, desautocratizar)
nessas sociosferas que não são domínios de
Estados. Impor a essas sociedades um modelo político qualquer, inclusive
democrático, seria uma perversão. Nenhum bem adviria da adoção da democracia
por povos cujo modo de vida (ou de convivência social) não está baseado na
conservação do emocionar guerreiro.
A democracia não é um modelo de sociedade a que
se deva perseguir, nem uma ideologia para conduzir alguém em direção a um
futuro almejado, antevisto ou pré-configurado (como a sociedade comunista, por
exemplo). Sua “utopia”, se é que podemos neste caso empregar figurativamente
tal palavra, é a política (e não o contrário, como se acredita); ou seja, é o
que se faz agora, não o que se fará depois. A democracia é uma espécie de
vacina contra o depois, isto é, contra a alienação do presente que está na base
de todos os sonhos (ou delírios) que compõem os imaginários autocráticos; tipo assim:
vamos sacrificar (um pouco da) sua liberdade agora para que você alcance o
reino da (plena) liberdade depois.
A democracia não quer que sacrifiquemos nada,
em prol de coisa alguma imaginária. O que a democracia quer é apenas que
vivamos como seres políticos, regulando nossos conflitos de modo não-guerreiro
(do contrário não seremos seres políticos e sim seres apolíticos). Mas como não
somos “animais políticos” (o zoon politikón,
ao contrário do que pensava Aristóteles, simplesmente não existe), posto que
não há nenhuma substância política original e a política só existe na
entreidade, no “entre-os-homens” (como escreveu Johannah Arendt), o que a
democracia quer é que sejamos interagentes na pólis, quer
dizer, na koinonia (comunidade)
política: mas… hoje, não amanhã!
Tal, entretanto, não deriva de nenhuma
necessidade. A democracia é a esfera da liberdade porque é o campo das ações
desnecessárias, que fazemos porque desejamos, inclusive quando desejamos ser
infiéis às nossas origens (contra qualquer epigênese: sim a democracia é coisa
de infiéis, não de fiéis). E é esse fazer o que desejamos que nos torna
vulneráveis ao acaso e ao imprevisível; ou seja, livres.
“Livre – disse o poeta (Manoel de Barros)
– livre é quem não tem rumo”, aquele que se jogou no fluxo
interativo da convivência social, abandonado, ao sabor do vento, que ninguém
sabe de onde vem e nem para onde vai.
Passemos agora à segunda questão.
2 – A POLÍTICA É GUERRA?
Não. A política é o contrário da guerra. A
guerra é a falência da política. A democracia (quer dizer, a política
propriamente dita, aquela que tem como sentido a liberdade) é um modo
não-guerreiro de regulação de conflitos.
A questão de saber se uma democracia pode ser
cooperativa (e não competitiva, ou se ela pode ser mais cooperativa do que competitiva)
continua nos assombrando. Seja porque as pessoas, em geral, estão imersas em
uma cultura autocrática, que é uma cultura da guerra (embora o Homo Sapiens venha caminhando sobre a Terra há
mais ou menos 150 mil anos, depois dos últimos 5 a 6 milênios de guerras é
difícil pensar que isso não seja “natural”), seja porque algumas pessoas
imaginam que a dinâmica da sociedade é semelhante à dinâmica do mercado, que é
competitiva mesmo, cada qual se esforçando para maximizar a obtenção de seus
interesses egotistas (sobre esse ponto voltaremos mais adiante, na terceira
questão).
No entanto, a democracia é inerentemente
cooperativa, ainda que as pessoas possam competir entre si o tempo todo nas
democracias realmente existentes.
Mas se as pessoas não cooperam, seja para
contender com um problema comum, seja para realizar um projeto que derive da
congruência de seus desejos, não pode haver nenhuma democracia. Aceitar a
democracia – não obstante toda a competição que possa existir entre os agentes
políticos – é aceitar que o outro não pode ser destruído, é aceitar a
existência de oposição e, sobretudo, aceitar a derrota (sem melar o jogo) em
competições que se dão quando experimentamos processos democráticos. Nenhuma
dessas hipóteses é admitida quando adotamos modos guerreiros de regulação de
conflitos; ou seja, em autocracias o adversário político é um inimigo que deve
ser neutralizado ou destruído. Não se conta com ele para organizar o sistema de
governança, pelo contrário: exige-se a sua exclusão ou a sua desconstituição
como ator político válido e efetivo.
Sobre isso, recomenda-se a leitura
do TEXTO 03 – DEMOCRACIA COOPERATIVA: SEM DOUTRINA TEXTO 03
Ele também pode ser lido no link seguinte: Democracia cooperativa: uma
introdução ao pensamento político de John Dewey
Passemos à terceira questão.
3 – A DINÂMICA DA SOCIEDADE É A MESMA
DINÂMICA DO MERCADO?
Esta é uma confusão muito frequente, que foi
introduzida pelo surgimento do capitalismo concorrencial e, depois, até
legitimada teoricamente pelas doutrinas do chamado liberalismo-econômico.
Examinando a dinâmica do mercado, as pessoas
imaginaram que o embate constante, a interação adversarial permanente entre
organizações privadas (os grupos políticos e os partidos, que seriam espécies
de “empresas políticas”) conseguiria constituir um sentido público. Os modernos
acreditaram nisso, talvez porque tenham se deixado influenciar pela
autorregulação mercantil, que se dá por meio da competição entre atores
privados. Mas a lógica e a racionalidade do mercado não são as mesmas da esfera
pública. Sociedades competitivas, aliás, não constituem bons ambientes para
mercados competitivos. Quem tem que ser competitivo é o mercado, não a
sociedade.
Se não havia derramamento de sangue, pensaram
os modernos: tudo bem. Mas não, não estava tudo bem para a continuidade do
processo de democratização.
O fato, muitas vezes pouco percebido, é que o
sistema concorrencial de partidos não é essencial para a democracia. No
entanto, como as coisas funcionam assim na totalidade das democracias realmente
existentes, tem-se a impressão de que tal mecanismo é, de alguma forma,
necessário para realizar a democracia como sistema de governo nos países
contemporâneos.
Todavia, quanto mais competitiva for a
democracia, menos democratizada (ou mais autocratizada) ela estará (inclusive
na base da sociedade e no cotidiano do cidadão). Mais uma vez (é quase
impossível não repetir): quem tem de ser competitivo é o mercado (e a economia
é que deve ser de mercado), não a sociedade. Mercados competitivos, ao que tudo
indica, exigem como base uma sociedade cooperativa (por razões econômicas
mesmo, como a diminuição das incertezas no tocante aos investimentos produtivos
de longo prazo, com a redução dos custos de transação e, inclusive, da
insegurança jurídica, e dos custos de sinergia).
Associado à visão mercadocêntrica de uma
sociedade competitiva parece estar um novo tipo de fundamentalismo de mercado,
que pode até ser democratizante em relação ao estadocentrismo que, em geral,
acompanha as autocracias, mas, se o for, manifesta-se apenas no tocante à
democracia como sistema de governo e não à democracia na sociedade. É claro que
é melhor ter vários partidos – legal e legitimamente – disputando o poder de
Estado do que apenas um partido (em geral confundido com o Estado) autorizado a
empalmá-lo (em uma espécie de regime de monopólio político). No entanto, vários
partidos também podem constituir um oligopólio político, como, aliás, ocorre
frequentemente, expropriando a cidadania política, sendo que, nesse caso, não
há nenhuma instância “acima” capaz de regular a competição (de vez que o
Estado, nessas circunstâncias, já teria sido ocupado e dividido ou loteado pelo
oligopólio partidário).
A dinâmica da sociedade não é a dinâmica do
mercado. Sociedade, mercado e Estado são três formas de agenciamento
diferentes, presididas por racionalidades distintas. Se a democracia tivesse a
“lógica” do mercado, ela não poderia existir, pois, como se sabe, não havendo
esfera pública, não pode haver democracia.
Esta confusão é o problema de se adotar, para
entender a democracia, um pensamento econômico, não político, ou melhor, um
pensamento que subordina a política a uma lógica econômica. As considerações
sobre a excelência da competição em política são um indicador desse viés
economicista. Claro que a competição é necessária para o mercado, mas isso não
significa que se possa basear um sistema social na competição, como quer o
liberalismo-econômico.
Os que defendem esse ponto de vista não estão
falando de um sistema social, no máximo estão falando de um sistema econômico,
ainda que, mesmo para um sistema econômico, seja necessária a cooperação e a
confiança (ou o capital social, que é a confiança ampliada socialmente). Ao que
parece o liberalismo-econômico não vê diferença entre as duas coisas: é como se
um sistema econômico contivesse em suas entranhas um sistema social e político.
A economia determinaria (como a estrutura dos marxistas) as outras esferas da
atividade humana (a superestrutura). É a mesma coisa, ou seja, ainda é
economicismo.
Como se constata, porém, toda essa conversa
sobre a competição não impediu a formação de oligopólios políticos nos países
democráticos capitalistas, ainda que isso seja melhor do que o monopólio
político existente nos países autocráticos ditos socialistas ou capitalistas de
Estado.
7 – Se a democracia fosse
natural ou compatível com a natureza humana, por que ela não foi inventada e
adotada pelos diversos grupos de Homo Sapiens ao longo da pré-história,
como os grupos ou as tribos de coletores e caçadores e as sociedades
paleolíticas e neolíticas, durante os últimos (pelo menos) 150 mil anos? E por
que, mesmo no período considerado civilizado – nos últimos 6 a 5 mil anos – ela
não existiu senão durante brevíssimos períodos (cerca de 200 anos entre os
antigos e menos de 300 anos entre os modernos)?
A pergunta contém duas questões. A primeira é
uma proposição: se a democracia fosse natural (ou compatível com a natureza
humana, seja lá o que isso for) então ela deveria ter surgido antes de século 5
a. E. C. (quando foi inventada pelos atenienses).
Bem, em primeiro lugar, a hipótese de que a
democracia tenha algo de natural ou compatível com a natureza humana, não é
necessária. A democracia é uma invenção humana (propriamente humana, quer
dizer, social) e não uma emanação de qualquer disposição biológica, ligada ao
gênero Homo ou à espécie Homo
Sapiens.
Por que os atenienses do século 5 inventaram a
democracia? A resposta mais óbvia é: porque quiseram fazer isso, ou seja,
porque não quiseram mais viver sob um senhor (no caso, o filho vivo do tirano
Psístrato, que deu um golpe de Estado alguns anos antes e comandava a cidade
autocraticamente).
Claro que essa resposta não basta. É necessário
dizer também por que eles puderam inventá-la, ou seja, quais as condições que
ensejaram o surgimento da democracia na Atenas daquela época. Parece claro que
a democracia não poderia ter surgido sem interação propriamente política entre
as pessoas (os homens livres de Atenas), que conversavam entre si sobre temas
de interesse comum na praça do mercado: a Ágora.
Configurou-se na Agora um ambiente interativo,
no qual se articularam redes de conversações entre as pessoas que podiam fazer
isso. Não eram, é claro, todas as pessoas (as mulheres, os escravos e os
estrangeiros estavam fora). Mas as que puderam fazer isso, fizeram. E foi
nessas redes, com algum grau significativo de distribuição, que a democracia
nasceu como ideia. A ideia básica, repetindo, era a de ter um regime que não
tivesse dono.
O espaço comum que surgiu dessas conversações –
um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo autocrata – foi fundamental
para o surgimento da democracia. Mais do que isso: a publicização desse espaço
já foi o processo de democratização.
Por que a democracia não surgiu antes? Não se
sabe. Talvez porque ou não se reuniram as condições sociais capazes de
ensejá-la ou porque não se teve a ideia ou não se admitiu nem sequer a
possibilidade de uma coletividade conseguir sobreviver e se defender de seus
inimigos sem ser comandada, conduzida, administrada por alguém acima dela (um
senhor).
Isso não quer dizer que não tenham surgido
tentativas anteriores, que não lograram se materializar como regimes com alguma
estabilidade. O relato bíblico da chamada Assembleia de Siquém, vários séculos
antes, realizada extra muros, quer dizer, fora da cidade fortificada que havia
na região, teve provavelmente elementos de democratização. Casos similares
devem ter ocorrido em profusão, mas certamente não entraram para a história.
Não se conhece nenhum regime democrático anterior ao dos atenienses que começou
a se instalar por volta de 509 a. E. C.
Os grupos ou as tribos de coletores e caçadores
e as sociedades paleolíticas e neolíticas, que existiram durante os últimos
(pelo menos) 150 mil anos, antes do surgimento da civilização dos predadores e
senhores, ou antes da ereção da cidade-Templo-Estado mesopotâmica (entre 5 a 6
mil anos), não instauraram regimes democráticos porque isso não fazia sentido.
A democracia é um processo de desconstituição de autocracia e, não havendo
autocracia, não há o que desconstituir.
A segunda questão embutida na pergunta é: por
que, mesmo no período considerado civilizado – nos últimos 6 a 5 mil anos –, a
democracia não existiu senão durante brevíssimos períodos (e mesmo assim
localizadamente, até o século 19): cerca de 200 anos entre os antigos (em
Atenas, de 509 a 322 a. E. C.) e menos de 400 anos entre os modernos (a partir
do século 17, notadamente com os Bill of Rights do
parlamento inglês).
Na verdade, vários processos de democratização,
além da democracia ateniense e da democracia dos modernos, ocorreram neste
período.
Alguns tentam interpretar a República romana
como uma versão (latina) da democracia (grega). Mas, ao que tudo indica, não se
trata exatamente da mesma coisa, visto que o sistema de governo com
participação popular dos romanos não reunia aqueles três atributos – de
isonomia, isologia e isegoria – que caracterizavam o funcionamento da
comunidade (koinonia) política de Atenas e, talvez, de outras
pouquíssimas cidades gregas do período democrático.
Se encararmos a democracia, no seu sentido
“fraco”, apenas como sistema de governo (popular) – e não, em seu sentido
“forte”, como sistema de convivência ou modo de vida comunitária que, por meio
da política praticada ex parte populis,
regula a estrutura e a dinâmica de uma rede social para evitar que a construção
de inimigos sirva como pretexto para o ereção de hierarquias regidas por modos
de regulação autocráticos – perceberemos que várias outras experiências
surgiram concomitante e posteriormente à experiência dos gregos: Roma (do final
do século 6 até meados do século 2 a. E. C.), governos locais em cidades
italianas (como Florença e Veneza, por exemplo, do início do século 12 até
meados do século 14), bem como outras experiências endógenas de governo que
admitiam alguma forma de assembleia com participação mais ou menos popular (na
Inglaterra, na Escandinávia, nos Países Baixos, na Suíça e em outros pontos ao
norte do Mediterrâneo). Há também alguma coisa significativa na Índia, como nos
relata Amartya Sen (autor que examinaremos em outro módulo deste programa).
De qualquer modo, foram experiências
insuficientes diante da tendência autocrática predominante. Na melhor das
hipóteses, considerando-se a República romana como uma espécie de democracia,
tivemos um interregno autocrático de mil anos (de 130 a. E. C. a 1100). Na pior
hipótese – que, não por acaso, é a mais precisa e a que faz mais sentido – esse
intervalo foi de mais de dois mil anos (de 322 a. E. C. até o século 17).
Mas por que isso foi assim, ou seja, por que
tivemos tal descontinuidade entre a primeira e a segunda democracia? Novamente
a resposta é: por que não ocorreram experiências capazes de ensejar a invenção
de regimes democráticos mais estáveis. A cultura predominante durante todo esse
interregno continuou sendo autocrática, não democrática.
Basta ver que, com raras exceções, os mais
conhecidos pensadores da política que surgiram desde Platão (e Sócrates, tanto
o platônico, quanto o xenofôntico), passando pelos medievais e até pelos
contemporâneos de Thomas Hobbes e seus sucessores (nas sete ou oito gerações
seguintes), eram contrários à democracia.
Em uma lista inquestionável de duas dezenas de
clássicos da política, do século 5 antes da Era Comum ao final do século 16 (de
Platão a Althusius) não se encontra um só pensador democrático. Talvez com
exceção, parcial, de Aristóteles e do próprio Althusius – posto que não
militavam especialmente contra democracia – a totalidade desses pensadores era
autocrática.
Quando Spinoza afirmou (em 1670) – contrariando
Hobbes – que o fim da política não era a ordem e sim a liberdade, não se fez a
luz. Assim como os antecessores de Spinoza (nos dois milênios anteriores) foram
contrários à democracia de alguma forma, seus sucessores (nos dois séculos
seguintes) quando não se posicionaram abertamente contra a democracia, puseram-se
a relê-la de uma forma que acabou esvaziando o seu conteúdo.
Foi a resistência parlamentar à Carlos I, na
Inglaterra, que reinventou a democracia. Aproximadamente em 1625 ocorreu o 1º Bill of Rights no qual ficou definido que:
1 – O Rei não poderia cobrar impostos, sequer
sob a forma de contribuições ou doações sem consentimento do parlamento;
2 – Ninguém poderia ser perseguido por se
recusar a pagar impostos não autorizados pelo parlamento.
O Rei Carlos I não cumpriu as determinações
deste Bill of Rights. Houve uma guerra civil entre os
parlamentares, de um lado, e o Rei Carlos I, de outro, que terminou com a
condenação à morte do tirano. Mas não foi a guerra que inventou a segunda
democracia e sim a resistência democrática – no caso, parlamentar – ao poder
despótico de Carlos I. A guerra – como toda guerra – nunca leva à democracia e
sim à ditadura.
O exército parlamentar liderado por Oliver
Cromwell acabou por prender Carlos I, o qual foi julgado e condenado a pena de
morte, sendo executado no ano de 1649. O governo Cromwell foi uma república
ditatorial militar, regime até então desconhecido na Inglaterra. Oliver
Cromwell morreu em 1658 e com ele foi enterrada a ditadura.+
Vale a pena ler o artigo A resistência a Carlos
I reinventou a democracia, disponível no link http://dagobah.com.br/a-resistencia-a-carlos-i-reinventou-a-democracia/
8 – Como mobilizar e
organizar a ação coletiva sem líderes destacados e sem um mínimo de hierarquia?
Isso não parece uma coisa teórica demais, sem base na realidade?
Em primeiro lugar é preciso entender qual a
relação desta pergunta com a democracia. À primeira vista a democracia parece
não ter nada a ver diretamente com liderança e hierarquia. E liderança também
parece não ter nada a ver diretamente com hierarquia.
A democracia é política, quer dizer, é modo de
regulação de conflitos e não pode ser confundida com padrões de organização e
com comportamentos condicionados por esses padrões.
No entanto, como a democracia pressupõe sempre
algum grau de auto-organização da sociedade, pode-se supor que coletividades
que dependem muito de lideranças destacadas para se conduzir têm baixos graus
de auto-organização, esperando sempre dos líderes a indicação do caminho a
seguir.
Uma sociedade com grau muito baixo de
auto-organização, onde as pessoas não tomam qualquer iniciativa, não pode
suportar a democracia. Tem que ser conduzida por um líder que acabará se
comportando como senhor: o que é, por definição, autocracia, não democracia.
Ocorre que o grau de auto-organização da
sociedade depende dos seus padrões de organização predominantes, ou seja, da
topologia da sua rede social. Sociedades muito hierárquicas (centralizadas)
exigem (poucos) líderes destacados, o que não se verifica em sociedades mais em
rede (com padrões de organização mais distribuídos). Não é que, em rede mais
distribuída do que centralizada, não existirão líderes e sim que eles serão
mais numerosos e temporários, emergindo da dinâmica social, sendo substituídos
por outros líderes. Um líder destacado, que se prorroga indefinidamente no
tempo, que lidera em todas as circunstâncias, que não é substituído por outros
líderes, só é possível em ambientes sociais mais centralizados do que distribuídos.
Para entender a diferença entre centralizado,
descentralizado e distribuído é bom examinar os famosos diagramas de Paul Baran
(1964):
Ora quanto menos líderes surgirem, pior para a
democracia, mais dificuldade haverá de democratização da sociedade e, por
decorrência, de controle da sociedade sobre as atividades do Estado.
A democracia não tem problemas com líderes
e sim com a falta de líderes. Quanto menos líderes, menos capacidade haverá
de auto-organização, mais dependência haverá de um Grande Irmão, de um Führer, de um condutor de rebanhos, de um senhor.
Para entender tudo isso é necessário perceber
que existe um condicionamento recíproco entre modos (políticos) de regulação e
padrões (sociais) de organização. O que exige uma abordagem social da
democracia.
UMA ABORDAGEM SOCIAL DA DEMOCRACIA
Por que e como foi inventada a democracia? Até
hoje os estudiosos têm imensa dificuldade de decifrar o que ocorreu. Não
estabelecem as conexões necessárias e não reconhecem os padrões sem os quais
não se pode desvendar o sentido das configurações coletivas que se constelaram.
Não há, portanto, uma compreensão propriamente social do surgimento da democracia.
Ou, quando há, é uma lástima: tomam por social aquilo que diz respeito às
condições de vida (em geral de sobrevivência) das populações e não à
fenomenologia da interação, quer dizer, o fluxo da convivência social.
Alguns pensadores do século passado conseguiram
captar o “gene” (ou o meme) original democrático – como John Dewey, Hannah
Arendt e Humberto Maturana (entre outros; poder-se-ia citar também Claude
Lefort, Cornelius Castoriadis e Amartya Sen) – mas a maioria dos teóricos da
política ficou presa aos esquemas explicativos da modernidade que replicavam
visões em que o social era uma espécie de epifenômeno (na verdade, para a
maioria deles só existiam os indivíduos, o mercado e o Estado) e, assim, não
conseguiram perceber os condicionamentos recíprocos entre o padrão (social) de
organização e modo (político) de regulação.
Ora, do ponto de vista social, a democracia é
um erro no script da Matrix. Não se
explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de qualquer
“evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de alguma
corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que nela se conformou um
espaço público.
Os teóricos políticos do século passado, porém,
não podiam se conformar com isso. Viciados na ideia (ou no esquema explicativo)
de determinação de uma superestrutura por uma estrutura (um velho vício de raiz
iluminista difundido pelo marxismo), queriam sempre surpreender o que está
debaixo do pano, queriam desvendar a máquina que estaria por trás do que
acontece na vida fenomênica. Destarte, por não encontrarem o mecanismo oculto
(em geral econômico, como acreditam) que estaria determinando uma nova criação
política, suas análises não foram (e ainda não são, posto que esses teóricos
remanescem no século atual) capazes de explicar os problemas atuais da
democracia.
Os analistas políticos, em sua maioria, pensam
a partir de um conjunto de pressupostos, raramente discutidos porquanto tomados
como verdades evidentes por si mesmas: o primeiro deles é que o ser humano é inerentemente
competitivo (postulado largamente falsificado pelas evidências e, portanto,
impossível de ser sustentado pela ciência, tendo status semelhante ao de uma crença de natureza
religiosa) e faz escolhas racionais tentando maximizar a satisfação de seus
interesses egotistas (quando todas as evidências apontam que na raiz da ação
dos humanos – e até dos mamíferos em geral – está mais uma emotional motivation do que uma rational choice); o segundo é que sem líderes
destacados não se pode mobilizar e organizar a ação coletiva (o que vem sendo
refutado fartamente pelos fatos: sobretudo pelos aglomeramentos, enxameamentos
e amassamentos que vêm ocorrendo com cada vez mais frequência em sociedades
altamente conectadas); e o terceiro é que nada pode funcionar sem um mínimo de
hierarquia (idem, do contrário não estaríamos assistindo a profusão de redes
mais distribuídas do que centralizadas).
Além disso, os analistas políticos, de maneira
geral, baseiam suas análises no suposto de que o conteúdo (do que flui) é
relevante para explicar a “realidade” (o que acontece), confundindo informação
(mensagem transmitida-recebida) com comunicação (acoplamento estrutural), longe
de perceber que o comportamento coletivo é função da fenomenologia da interação
(estando os fenômenos interativos, por sua vez, na dependência não de conteúdos
e sim do padrão de organização: basicamente, dos graus de distribuição e
conectividade da rede social).
Quando é que tudo muda nas análises da
democracia? Quando descobrimos que movimentos de desconstituição de autocracia
(que são a democracia propriamente dita, ou seja, os processos de
democratização) são acompanhados por movimentos de desconstituição de
hierarquia.
A democracia pode se democratizar em redes com
alto grau de distribuição (e, consequentemente, com altos graus de
conectividade e interatividade). Dizendo de modo mais preciso: os processos de
democratização tenderão a ter continuidade na medida em que as sociosferas onde
ocorrem forem adquirindo uma topologia mais distribuída do que centralizada.
Porque a democracia é uma espécie de
“metabolismo” da rede social, cujo “corpo”, a estrutura, o hardware, é dado pelo padrão de organização. Mas esse
“metabolismo”, essa dinâmica do modo de regulação, não é uma imanência, não
emerge automaticamente da estrutura, em função do seu padrão de organização.
Democratização (do modo de regulação) e distribuição (da rede) acontecem ao
mesmo tempo, ou melhor, são fenômenos acompanhantes, sinergicamente
acompanhados um do outro, mas não causados um pelo outro.
O padrão de organização condiciona
possibilidades. Quanto mais centralizada for a topologia da rede, menos chance
terá o processo de democratização de prosseguir. Mas mesmo em padrões mais
distribuídos do que centralizados, ainda assim é necessário que haja ação
política para instaurar modos de regulação crescentemente democráticos. Ações
políticas democratizantes, entretanto – eis o ponto – ou serão acompanhadas por
mudanças estruturais que tornem a rede mais distribuída ou terão menos chances
de prosseguir (e de perdurar).
Não que o padrão de organização, por si só, sem
ação política, seja capaz de gerar um determinado modo de regulação, mas
topologias mais centralizadas do que distribuídas se sintonizam com dinâmicas
mais autocráticas do que democráticas. O exemplo clássico, entre nós, foi a
chamada Democracia Corinthiana, aquele movimento surgido na década de 1980 no
Corinthians, liderado por Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon. A Democracia
Corinthiana pôde ser instalada, pela ação política de seus agentes, mas não
pôde perdurar na medida em que o time (Corinthians) tinha uma topologia mais
centralizada do que distribuída.
Ora, tornar a rede mais distribuída significa,
exatamente, desconstituir hierarquia. Assim como a democracia pode ser tomada,
no sentido “forte” do conceito, como movimento de desconstituição de
autocracia, as redes distribuídas podem ser tomadas como movimentos de
desconstituição de hierarquia, sendo que esses processos estão ligados, não por
causalidade direta nem automática e sim por condicionamentos recíprocos.
Pode-se dizer que tanto a expansão da liberdade
quanto a incidência da cooperação (que ocorre na medida em que a rede se torna
mais distribuída) são atributos do modo como os seres humanos se organizam (e
nada mais). Mas não há uma fórmula organizativa capaz de produzir
automaticamente liberdade sem política. É o processo político de desconstituir
autocracia que amplia os graus de liberdade. E é o processo de netweaving, de desconstituir hierarquia, que amplia a
cooperação.
Não há nada teórico demais aqui, no sentido
pejorativo em que a palavra ‘teórico’ e aplicada por pessoas que têm pouca
intimidade com o pensamento filosófico ou científico, para dizer que é uma
coisa “sem base na realidade”. Não! É tudo muito concreto. Basta não querer
mandar nos outros para que a cooperação brote, para que a multiliderança
emerja, ou seja, para que não tenhamos poucos líderes conduzindo tudo, para que
não organizemos as coisas segundo padrões centralizados, baseados em
comando-e-controle.
9 – Os seres humanos,
abandonados à sua própria sorte, sem uma direção política capaz de conduzi-los,
não acabarão entrando em luta uns contra os outros, instaurando um verdadeiro
caos social?
Esta pergunta vai na mesma linha da anterior,
examinada no Módulo 08 do presente programa. Na verdade, como a anterior (sobre
a necessidade da hierarquia e da liderança), não é uma pergunta diretamente
sobre a democracia e sim sobre os seus pressupostos. Ela repete a convicção de
Thomas Hobbes (1651), em O Leviatã, de que abandonados à sua própria sorte, sem
um poder acima deles que os domestique, os homens se engalfinhariam numa guerra
de todos contra todos.
No famoso capítulo XIII do Leviatã, Hobbes
(1651) decreta que “os homens não tiram prazer
algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer),
quando não existe um poder capaz de intimidar a todos”. É claro
que ele não está falando apenas de política, mas também revelando os
pressupostos antropológico-sociais que condicionam sua maneira de ver a
política. Segundo ele, “na natureza do homem
encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição;
segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” – ou seja, essas
manifestações de egoísmo não seriam culturais, não emanariam da forma como a
sociedade se organiza, mas intrínsecas. Essa inclinação “genética” para o mal
explicaria por que, “durante o tempo em que os
homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso,
eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de
todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na
batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade
de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra
não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o
tempo em que não há garantia do contrário. Todo tempo restante é de paz”.
Mas, segundo Hobbes, “tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que todo homem
é inimigo de todo homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens
vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria
força e pela sua própria invenção. Em uma tal condição [de
falta de um poder que domestique ou apazigue os homens]… não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e
perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida,
brutal e curta”.
Hobbes, portanto, lança o fundamento para a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin segundo a qual a política é uma continuação da guerra por outros meios.
Vela a pena ler um pouco mais sobre isso no
artigo: A política é uma continuação da guerra por outros meios? Vá para o
link: http://dagobah.com.br/a-politica-e-uma-continuacao-da-guerra-por-outros-meios/
Ora, não há nenhuma evidência (científica) de
que as coisas são assim. Se fossem, os Homo Sapiens –
caminhando há pelo menos 150 mil anos sobre a Terra – não teriam conseguido
sobreviver, na maior parte (na verdade, quase a totalidade) do tempo sem um
poder instituído acima deles, um Estado ou equivalente.
Aceitar essa visão significa admitir que o ser
humano é inerentemente (ou “por natureza”) competitivo. Mas as evidências
disponíveis indicam o contrário. Os seres humanos conseguiram perdurar porque
colaboraram, se associaram para contender com problemas comuns. Aliás, nem a
linguagem (ou o linguajear e o conversar) teria surgido sem colaboração.
Ademais, há muitas evidências de que os seres humanos primitivos compartilharam
alimentos, o que é uma forma de colaboração.+
O ser humano competitivo surge quando se erigem
padrões hierárquicos de organização, onde a saída única está acima (como os
caranguejos numa lata: se o fluxo foi verticalizado, cada indivíduo pisa nos
demais, que estão acima dele, para subir). É o padrão de organização social que
impõe tal comportamento, não alguma coisa que seja inerente ao ser humano. Estamos
tratando aqui da cultura patriarcal.
Para entender o que estamos chamando de cultura
patriarcal é fundamental ler o TEXTO 04 – CULTURA PATRIARCAL que contém
excertos do livro de Humberto Maturana e Gerda Verden-Zoller (1993) intitulado
Amar e Brincar: Fundamentos esquecidos do humano: SEM DOUTRINA TEXTO 04
10 – A democracia é
necessária ao desenvolvimento? Se países como China e Singapura fossem democráticos,
seriam, por isso, mais desenvolvidos?
Se já soubermos o que significa a palavra
‘democracia’, a questão aqui é saber o que significa a palavra ‘desenvolvimento’.
Se tomarmos desenvolvimento no sentido usual e
corrente do termo, para designar crescimento econômico, a resposta óbvia é não.
A democracia não é necessária para o crescimento. Aliás, ela não é necessária
para nada, a não ser para satisfazer os desejos daqueles que querem viver em
regimes políticos sem senhores.
Mas se interpretamos a palavra ‘necessária’ por
algo que revele alguma relação de causação, de dependência ou de
condicionamento recíproco, do tipo: quanto mais democracia, mais crescimento
econômico (e, inversamente, quanto menos democracia, menos crescimento), a
resposta também é não.
Houve já muita discussão sobre isso. O debate
se intensificou nos anos 90 do século passado, quando surgiu o termo
neoliberalismo a propósito do tal Consenso de Washington. Em 1989 John
Williamson aventou uma série de hipóteses que levaram a uma desvalorização da
democracia a partir de uma perspectiva economicista do desenvolvimento. Para
que serviria a democracia num país como a China, que está crescendo a taxas
estratosféricas? – perguntou nos anos seguintes Williamson. Democracia, segundo
tal visão, apenas atrapalharia o crescimento econômico. Ele acreditava que a
Índia jamais alcançaria a China por ter a desvantagem de ser um regime
democrático.
Na mesma linha, vários economistas
contemporâneos, exaltam que a democracia não é um bom caminho para países que
precisam se desenvolver (tomando esse termo no sentido econômico, de
crescimento do PIB). Por exemplo, Arturo Bris, professor de finanças do IMD,
Escola Suíça de Negócios e diretor do Centro Mundial de Competitividade do IMB,
em recente artigo no Estadão (02/05/2017), intitulado A democracia ainda
existe?, escreveu o seguinte:
“Como pesquisador nessa área, não poderia
recomendar que qualquer país, especialmente um novo país, procure ser
democrático a todo custo – especialmente quando se levam em conta alguns dos
resultados sísmicos que os processos democráticos nos proporcionaram durante o
ano passado”.
Ao não recomendar a democracia para um novo
país que precisa se desenvolver, ele deixa claro que não entendeu que a
democracia é meio e fim, que não se pode chegar à democracia a não ser pela
democracia (um debate que Amartya Sen já havia resolvido na década de 70 do
século passado, ao dizer que não existem países preparados ou não preparados
para a democracia, pois todos os países se preparam através da democracia). O
que ele está defendendo – a pretexto de detectar os problemas da democracia no
mundo (na sua concepção) – é um atalho autocrático, que dê mais estabilidade
(essencialmente econômica) aos países, evitando os abalos sísmicos que são
próprios do processo de democratização, mas são indesejáveis para quem tem uma
mentalidade autoritária.
É bom ler o artigo de Arturo Bris e uma crítica
sobre ele, clicando no link: http://dagobah.com.br/um-artigo-contra-a-democracia/
Muitos analfabetos democráticos ou mesmo
adversários declarados da democracia ainda alegam que o Chile, sob a ditadura de
Pinochet e o Brasil, sob o regime militar, cresceram a altas taxas, muito
maiores do que as verificadas nos regimes democráticos que sucederam essas
experiências autoritárias.
Países como China (uma ditadura clássica) e
Singapura (um regime autoritário, uma ditadura híbrida) não cresceriam mais –
em termos econômicos – se adotassem a via democrática. Mas, com certeza, se
desenvolveriam mais em termos do desenvolvimento humano, social e sustentável.
Basta ver que os países mais desenvolvidos do mundo no sentido acima (não
necessariamente os de maior PIB) são também os que se caracterizam por
apresentar democracias mais plenas e, entre eles, não há uma única ditadura
sequer.
Na verdade, os processos de democratização em
curso até o final do século 20, pelo menos, não entregaram o que seus
entusiastas defensores prometiam, mas não porque eles falharam e sim porque
atribuíram à democracia objetivos estranhos ao que ela pode oferecer, como
assinalamos acima. Vale a pena ler sobre isso o trecho da alocução de Claus
Offe (em uma conferência realizada em 1999) denominado Democratização. A
conferência inteira de Offe está disponível no link: SEM DOUTRINA TEXTO 05
11 – Como pode haver
verdadeira liberdade (e democracia) sem igualdade (cidadania plena)?
Esta é uma ideia muito
comum, difundida, sobretudo, pelo marxismo: a de que a igualdade
(socioeconômica) é uma pré-condição para a liberdade (política).
Examinemos a pergunta.
Em primeiro lugar, não há “verdadeira” liberdade, assim como não há “verdadeira”
democracia. Pode-se admitir que existam graus de liberdade ou graus de
democratização (e tanto é assim que as instituições de pesquisa que estudam e
monitoram a democracia no mundo, fazem rankings classificando os países por
scores de democracia – como já vimos nos Módulos 01, 02 e 03 deste programa).
Em segundo lugar,
também não há “cidadania plena”. Há aqui, igualmente, diferentes graus de
inserção ou inclusão no que se chama de cidadania, um conceito espinhoso, pois
que nasce mais dos esforços para separar o diferente do que para inseri-lo ou
inclui-lo na vida (ou na convivência social) de uma comunidade, com direitos
iguais. O estrangeiro sempre teve menos direitos do que o conterrâneo,
inclusive nas primeiras democracias. Os democratas atenienses vedavam a sua
participação na comunidade política, portanto, não o incluíam como players
válidos do jogo democrático. Roma é um bom exemplo da diferença de tratamento
dispensada a quem não era cidadão: as leis a que estavam submetidos os
não-cidadãos não eram as mesmas que valiam para os cidadãos romanos. Na Europa
posterior ao império romano, cidadania foi usada para restringir os direitos de
quem era “de fora”, do tipo “não venha vender na minha feira”.
Examinemos agora a
premissa de que a igualdade é condição para a liberdade, que virou a narrativa
principal dos autocratas socialistas.
A PREMISSA DE QUE A
IGUALDADE É CONDIÇÃO PARA A LIBERDADE
A ideia de que a
igualdade é condição para a liberdade é a mãe de todas as narrativas ditas
socialistas. Como os ricos têm, em geral, mais liberdade do que os pobres, faz
sentido. E aí todo mundo repete que, para existir verdadeira democracia, todos
têm que ser iguais (em termos socioeconômicos).
A premissa básica é a
da igualdade como ideal supremo (e como pré-condição para a liberdade); ou a
ideia de que não pode haver (verdadeira) liberdade sem (ou até que se alcance a
perfeita) igualdade.
Jacques Rancière
(2005), em O Ódio à Democracia, já havia percebido a trampa e matou a questão.
Por trás de tudo está a ideia de que existe uma sociedade igual para colocar no
lugar da sociedade desigual (e de que essa sociedade igual estaria em alguma
espécie de mundo paralelo pronta para ser trazida – ou realizada – a partir das
contradições da sociedade desigual, elidindo a evidência de que a sociedade
igual é somente o conjunto das relações igualitárias que se traçam aqui e agora
por meio de atos singulares e precários).
Por não perceber isso,
validam-se afirmativas como as seguintes:
1) Sem igualdade
(social) não pode haver democracia (política). O que é um
deslizamento epistemológico indevido: o que se poderia afirmar é que sem
igualdade (política) não pode haver democracia (política). Sobre isso convém
ler agora o artigo O conceito de desliberdade, disponível no link http://dagobah.com.br/o-conceito-de-desliberdade/
2) Se a democracia
não servir para tornar a sociedade mais igualitária, para nada mais servirá. Confunde-se
novamente aqui dois campos de sentido: a democracia não serve propriamente para
levar um conjunto humano para a igualdade social e econômica porque a
democracia não incide sobre as diferenças (sociais) existentes na sociedade
humana e sim sobre as separações (geradoras de poder) que se instalam a partir
dessas diferenças. Em outras palavras: a igualdade é a condição para a política
democrática, não seu sentido ou sua finalidade.
3) Somente a
cidadania plena conduz à democracia. Mais uma vez, o mesmo problema: se houver
cidadania, é a democracia que leva à inclusão na comunidade política. Se não
houver cidadania, a democracia não pode sequer se exercer (entre os cidadãos).
A igualdade é a condição para a política democrática, não seu sentido ou sua
finalidade. O sentido da política (democrática) não é a igualdade e sim a
liberdade.
4) A democracia só
pode ser experimentada em sua plenitude quando os principais problemas sociais
(sobretudo o da desigualdade) estiverem resolvidos. E temos de novo a
confusão. O que se poderia dizer é que os problemas sociais não podem ser
resolvidos sem democracia, como condição para alcançar a (“verdadeira”)
democracia no futuro. Do contrário, quem os resolverá enquanto não houver
democracia? Um déspota esclarecido, quer dizer, um autocrata? Mas a democracia
é sempre resultado do processo de democratização, quer dizer, só se pode
construir democracia praticando democracia. Não há um atalho autocrático para a
democracia.
Conclusão. Fica claro
que opor igualdade à liberdade (dizendo que não pode haver verdadeira liberdade
sem igualdade) é um modo de esvaziar a democracia do seu sentido. Pois a
liberdade de que trata a democracia é a liberdade de uma sociedade se
autoconduzir a partir da interação de suas próprias opiniões (quer dizer das
opiniões das pessoas interagentes) em um espaço público. Essa liberdade de se
autoconduzir não pode ser condicionada pela necessidade de ser conduzido para
colocar-se apto a, no futuro, se autoconduzir. Eis o ponto!
É recomendável ler o
texto Igualdade e Liberdade, disponível no link: SEM DOUTRINA TEXTO 06
12 – A democracia dos antigos,
experimentada nos séculos 5 e 4 a. E. C. na Grécia, não foi um regime
instituído para legitimar o modo de dominação dos homens livres (e
proprietários) de Atenas sobre os escravos, os estrangeiros e as mulheres?
Então, como se pode chamar isso de democracia?
A premissa é falsa. A democracia ateniense não
foi um regime instituído para legitimar o modo de dominação dos homens livres
(e proprietários) de Atenas sobre os escravos, os estrangeiros e as mulheres.
Esta maledicência foi espalhada pelos marxistas, que jamais entenderam a
democracia e que tinham interesse em desacreditá-la.
Trata-se de uma mentira sórdida, que não
resiste a qualquer leitura séria da história.
Em virtude de uma conjunção particularíssima –
provavelmente fortuita – de variados fatores, sociedades humanas na antiguidade
lograram abrir uma brecha na cultura autocrática (patriarcal, hierárquica e
guerreira), ensaiando pactos de convivência estabelecidos em redes de
conversações entre iguais, que aceitavam a legitimidade do outro e valorizavam
sua opinião e não apenas o seu conhecimento técnico ou o seu saber científico
ou filosófico. Registros históricos apontam que isso aconteceu em cidades
gregas, a partir de 509 antes da Era Comum, mas não é improvável que tenha
ocorrido também, de modo mais fugaz, em outras ocasiões e lugares (o relato
profético da chamada Assembleia de Siquém, ocorrida na Palestina entre os
séculos 12 e 11 (?) a. E. C., talvez constitua um indício importante nesse
sentido). Assim surgiu a democracia como uma experiência de conversação em um
espaço público, quer dizer, no caso de Atenas, não privatizado pelo autocrata.
Circunstâncias históricas peculiares – que
possibilitaram as reformas de Clístenes, de Efialtes e o início do protagonismo
Péricles – geraram uma configuração singular, uma constelação particularíssima
de fatores que permitiu a abertura da brecha democrática. O fato é que, do
ponto de vista do padrão de organização, a democracia não teria surgido sem a
formação de uma rede local com significativo grau de distribuição em Atenas. Em
Atenas, as instituições democráticas foram criadas para afastar qualquer risco
de retorno do poder exercido pelo tirano Pisístrato e seus filhos a partir da
experimentação de redes de conversações em um espaço (que se tornou) público.
A primeira invenção da democracia durou de 509
a 322 a. E. C. A democracia foi uma invenção coletiva, uma espécie de
“metabolismo” da rede social (com significativo grau de distribuição) que se
formou na Agora, em Atenas. Foi um movimento de desconstituição de autocracia.
Mas os historiadores, em geral, não captaram isso e sim os feitos dos
indivíduos: as guerras que travaram, os assassinatos que cometeram ou de que
foram vítimas, os golpes que tramaram ou dos quais se defenderam, os cargos de
poder que conquistaram ou dos quais foram apeados e as reformas que
impulsionaram ou tentaram evitar.
Diz-se que tudo começou com as reformas de
Sólon (638-558), sobretudo a instituição da Ecclesia (assembléia) e da Boulé (conselho) por volta
de 590. Mas, na verdade, do ponto de vista da democracia como desconstituição
de autocracia, tudo começou em consequência da intervenção de Psístrato, que
deu um golpe militar e introduziu a tirania em Atenas em 546, governou até 527 e
foi substituído por seus filhos Hipias e Hiparco. Hiparco foi assassinado em
514. Hípias ficou no poder até 510 e foi destituído por Clístenes.
Clístenes (565-492) fez uma reforma da
constituição (508) e abriu caminho para Efialtes (que fez uma reforma do
Areópago). Efialtes foi assassinado em 461 ensejando a ascensão de Péricles,
que exerceu seu protagonismo político de 461 a 429. A democracia ateniense
floresceu neste período. E o século 5 foi também chamado de século de Péricles.
Em 338 Atenas foi derrotada pela Macedônia e
ficou sob o domínio de Filipe e de seu filho Alexandre. Escolhe-se o ano de 509
para marcar o início da democracia porque foi a época do fim da tirania dos
psistrátidas. Escolhe-se o ano de 322 para marcar o fim da democracia ateniense
porque foi o ano em que a oligarquia foi imposta em Atenas por Antipatro,
regente do império de Alexandre. Foi também o ano da morte de Demóstenes
(384-322).
É claro que todos esses registros são
sofríveis. Escritos sob o influxo de culturas autocráticas milenares, os
relatos históricos não podiam mesmo revelar o que estava acontecendo do ponto
de vista social.
A democracia foi a mais formidável antecipação
de uma era interativa que já ocorreu nos seis milênios considerados de
“civilização”. Foi uma invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir
uma fenda no firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos
no abismo (ou não mergulhássemos no fluxo da convivência social).
Mas na verdade as pessoas que inventaram a
primeira democracia não tinham a menor consciência das implicações e
consequências do que estavam fazendo. Talvez tivessem motivos estéticos. Ou
talvez quisessem, simplesmente, abrir uma janela para poder respirar melhor. Em
consequência, abriram uma janela para o simbionte social poder respirar,
sufocado que estava, há milênios, em sociedades de predadores (e de senhores).
Não é por acaso que no primeiro escrito onde
aparece a democracia (dos atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.)
– ela tenha sido apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm
um senhor.
A democracia ateniense não era um
igualitarismo, impossível àquela altura até mesmo como ideia, a não ser para os
deslizadores epistemológicos, que querem projetar na história antiga condições
contemporâneas, sem qualquer pejo hermenêutico de fazer tais transposições
indevidas. E é bom notar isso porque continua na cabeça desse pessoal a ideia
de que a democracia grega não era tão boa assim já que os escravos, os
estrangeiros e as mulheres dela não podiam participar (sem ver que ainda hoje
os estrangeiros ainda não podem e que as mulheres só muito recentemente, no
século passado – ou seja, dois mil e quinhentos anos depois – conquistaram tal
direito).
A finalidade da democracia é a liberdade, ou
seja, a política; não a igualdade. A igualdade é a condição sem a qual não se
pode exercer a política, quer dizer, a liberdade. Se os escravos, os
estrangeiros e as mulheres de Atenas participassem da Ágora, não poderia haver
democracia na Grécia – a menos que eles deixassem de ser o que eram, ou seja,
passassem a ser (iguais aos) cidadãos. Mas só então eles seriam livres no
sentido político. Isso significa que, se existe qualquer coisa como uma
libertação dos excluídos da cidadania, essa libertação deve levar a uma
inclusão na cidadania política para que se transforme em liberdade política.
Ora, a liberdade política nada mais é do que o exercício da vida política.
13 – De que adianta ter
democracia se o povo passa fome (ou como pode haver democracia política
enquanto não for reduzida a desigualdade social)?
Não raro ouvimos afirmações populistas, como
tais demagógicas (e, portanto, subversoras da democracia), do tipo: “Não
adianta ter democracia se o povo passa fome” ou “Não adianta ter democracia
política se não for reduzida a desigualdade social”. Afirmações como essas
confundem a esfera das liberdades com a esfera das necessidades, subordinando a
política às condições de uma cidadania universalizada (seja na perspectiva do
igualitarismo, seja na perspectiva do estabelecimento, ex parte principis, de mínimos sociais
sobrevivenciais).
A democracia (política, como toda a democracia)
é, assim, vista quase que como um luxo, uma realidade própria de um regime de
abundância, que não poderia ser exigido diante da realidade da escassez. Cuba
não tem democracia, mas – diziam (e ainda dizem) seus defensores,
desqualificando a democracia que lhes cobram como apenas política e apenas
representativa, burguesa, controlada pelas elites – em compensação, não tem
crianças na rua e nem favelas com populações em situação de extrema
vulnerabilidade social.
Mais valeria, segundo tal pensamento, ter toda
a população bem alimentada, mesmo que para isso algumas liberdades fossem
(temporariamente) restringidas (até que se atingisse o reino da abundância ou,
pelo menos, que se chegasse a uma solução satisfatória para os problemas de
sobrevivência da maioria do povo).
Afirmações como essas contribuem para
desacreditar a democracia e para atrasar o processo de democratização das
sociedades ao confundi-lo, sintonizando-se instrumentalmente com o senso comum,
com os processos eleitorais (já desgastados e sem muita credibilidade). Elas
são, no fundo, visões autocráticas, que concorrem no sentido de autocratizar a
democracia. Pois como a democracia é sempre resultado do processo de
democratização, quer dizer, como só se pode construir democracia praticando
democracia, se a democracia somente pudesse ser experimentada quando os
problemas sociais fossem resolvidos, quem, então, sem ter passado pela
experiência democrática, poderia democratizar a sociedade pelo povo e para o
povo?
Antes, parece óbvio que se os problemas sociais
pudessem ser resolvidos sem democracia, como condição para alcançar a
(“verdadeira”) democracia no futuro, caberia a alguém fazer isso pelo povo e
para o povo, por fora da democracia? Quem sabe um déspota esclarecido e
identificado com as necessidades populares…
Como já vimos nos Módulos 11 e 12 deste
programa, opor igualdade à liberdade (dizendo que não pode haver verdadeira
liberdade sem igualdade) é um modo de esvaziar a democracia do seu sentido. Pois
a liberdade de que trata a democracia é a liberdade de uma sociedade se
autoconduzir a partir da interação de suas próprias opiniões (quer dizer das
opiniões das pessoas interagentes) em um espaço público. Essa liberdade de se
autoconduzir não pode ser condicionada pela necessidade de ser conduzido para
colocar-se apto a, no futuro, se autoconduzir.
A finalidade da democracia é a liberdade, ou
seja, a política; não a igualdade. A igualdade é a condição sem a qual não se
pode exercer a política, quer dizer, a liberdade.
Dito (ou repetido) isto, voltemos à pergunta.
De que adianta ter democracia se o povo passa fome (ou como pode haver
democracia política enquanto não for reduzida a desigualdade social)?
Pode-se reduzir a desigualdade social e, mesmo
assim, parte do povo continuar passando fome. Países pobres, em muitos casos,
têm desigualdade social menor do que países ricos. Ora, onde a maioria da
população é pobre, a desigualdade social é menor, mas isso não significa que a
maioria tenha condições dignas de vida (ou não passe fome).
A Nova Zelândia tem muito mais desigualdade
social do que a Etiópia. Mesmo assim, quase ninguém passa fome da Nova Zelândia
e muitos passam fome na Etiópia.
A democracia não tem a ver propriamente com
isso. Democracia – repita-se mais uma vez – tem a ver com liberdade. O problema
não é que não seja necessário combater (ou reduzir) a desigualdade. Isso deve
ser feito. O problema é colocar a igualdade sócio-econômica como pré-condição
para a igualdade política (quer dizer, para a liberdade).
Quem pensa assim pensa em termos de
“desliberdade”, ou seja, de desigualdade política. Imagina que uma sociedade
deveria chegar a patamares mínimos de igualdade socioeconômica para – só então
– poder experimentar a liberdade, o que é uma contradição em termos ao admitir
um caminho autocrático para a democracia. Quem levaria a sociedade para uma
condição de mais igualdade a partir da qual ela poderia experimentar a
democracia? Um déspota esclarecido? O sultão de Brunei? O líder do partido
revolucionário transformado em ditador (como Fidel Castro)?
É recomendável ler o pequeno artigo O conceito
de desliberdade, disponível no link: http://dagobah.com.br/o-conceito-de-desliberdade/
14 – Não se deveria primeiro
democratizar a sociedade para depois democratizar a política? O acesso
diferencial aos recursos não impõe diferenças de condição de interação política?
Estas perguntas são semelhantes a do módulo
anterior. Vamos à primeira. Ela elide a questão fundamental: quem fará isto? Ou
seja, quem democratizará a sociedade para que ela se torne apta a experimentar
a democracia (política)?
Elas evocam o velho debate da década de 1970,
sobre se alguns países estavam ou não preparados para a democracia. A questão
já foi resolvida por Amartya Sen, ao dizer que todos os países se preparam
através da democracia. A democracia é meio e fim e não se pode chegar a um
regime democrático a não ser experimentando o praticando a democracia.
Na verdade, o fim (ou a finalidade) é a
política. É os seres humanos viverem como seres políticos, autorregulando seus
conflitos, sem a necessidade de um senhor que faça isso por eles.
Não custa repetir. Deveria ser óbvio que não se
pode democratizar a sociedade sem democratizar a política. Do contrário,
caberia a alguém democratizar a sociedade para e pela sociedade, o que nega o
objetivo de democratização da sociedade. Democracia, ainda quando queiramos
enfatizar seu conteúdo social, é política. Democratização pressupõe exercício
democrático, interação democrática e, por conseguinte, constituição de sujeitos
democráticos, o que só é possível no interior mesmo de um processo democrático.
Também deveria ser óbvio que só se pode
alcançar a democracia praticando democracia. Não é possível tomar um atalho
autocrático para uma sociedade democrática. A democracia é, simultaneamente,
meio e fim, constituindo-se, portanto, como alternativa de presente e não
apenas como modelo utópico de futura sociedade ideal. Assim, não se pode chegar
a uma sociedade democrática a não ser por meio do exercício da democracia.
Tais constatações são um reconhecimento tardio
a John Dewey. Como ele escreveu, no artigo “A democracia é radical” (1937):
“A democracia não somente encarna fins que
até os ditadores reivindicam hoje como próprios, fins como a segurança dos
indivíduos e a oportunidade para que desenvolvam suas respectivas
personalidades. A democracia significa, antes de qualquer coisa, defender os
meios necessários para que tais fins possam ser levados a termo. Os meios que a
democracia se esforça por articular são aqueles próprios da atividade
voluntária em total ausência de coerção; trata-se de obter assentimento e consenso
sem impor violência alguma. É a força da organização inteligente versus a força
da organização imposta de fora para dentro e de cima para baixo. O princípio
fundamental da democracia consiste em que os fins da liberdade e da autonomia
para todo indivíduo somente podem ser alcançados empregando-se meios
condizentes com esses fins”
Dewey deveria ser lido e relido todos os dias
pelos democratas hoje confrontados com renovadas tentativas de usar a
democracia (como fim) contra a democracia (como meio). O que espanta é a
clareza desse senhor de quase 80 anos – e há 80 anos – diante de uma questão
que se arrasta sem solução teórica e prática até os dias de hoje. Por que John
Dewey pôde ter tamanha clareza? Por duas razões, pelo menos: em primeiro lugar
porque ele estava realmente convertido ao que chamava de democracia como ideia
(ou seja, a democracia no sentido “forte” do conceito) e, em segundo lugar,
porque ele vivia um momento histórico em que a democracia estava sendo usada
instrumentalmente para legitimar a autocracia (tanto à direita, com o
nacional-socialismo alemão, quanto à esquerda, com o bolchevismo da III
Internacional ainda em expansão). Isso reforça o conceito “forte” de
democracia, que estabelece que só se pode conceituar – e, portanto, conceber a
– democracia diante da autocracia.
Tudo indica que vivemos hoje um momento
semelhante. Não estamos na iminência de uma guerra generalizada (como estava
Dewey em 1937, na antessala da segunda grande guerra mundial) e não existem
ameaças totalitárias globais semelhantes ao nazismo e ao comunismo. No entanto,
a perversão da política promovida pelos diversos populismos (remanescentes ou
reflorescentes, sobretudo na América Latina) constitui uma ameaça seriíssima à
democracia que só pode ser plenamente percebida por quem está convencido – como
Dewey estava – da necessidade da radicalização da democracia. Infelizmente
tanto os liberais-econômicos quanto os conservadores de hoje não estão
convencidos disso. Creem que basta se posicionar (e ainda por cima timidamente)
na defesa das regras formais do sistema representativo, com suas instituições e
procedimentos limitados ao voto secreto, às eleições periódicas, à alternância
de poder, aos direitos civis e à liberdade de organização política, enfim, ao
chamado Estado de direito e ao império da lei. Parodiando Tayllerand, parecem
não ter esquecido nada e também não ter aprendido nada com o século passado.
Mas enquanto eles cochilam, vai avançando o uso da democracia contra a
democracia com o fito de manter no poder, por longo prazo, grupos privados que
proclamam o ideal democrático como cobertura para enfrear o processo de
democratização das sociedades que parasitam.
Passemos agora à segunda pergunta: o acesso
diferencial aos recursos não impõe diferenças de condição de interação
política?
Ora, isso depende de que recursos estamos
falando. Se forem recursos econômicos, como renda ou riqueza, a resposta é: não
diretamente. A democracia não é um projeto de uma sociedade igualitária, em que
todos terão (ou deveriam ter) os mesmos recursos. Se isso fosse condição para
experimentar a democracia, não teria havido, não há e jamais haverá qualquer democracia.
É claro que pessoas com pouquíssimos recursos
econômicos podem ter mais dificuldade de acesso a recursos que são de fato
relevantes para a igualdade política (ou seja, para ter condições de interação
política). O melhor exemplo é o conhecimento da língua.
Não é que a posse de um conhecimento – como o
conhecimento da língua falada e escrita, a alfabetização ou o letramento –
qualifique a opinião por fora do processo político (sim, não estamos falando
aqui de outra coisa senão do processo político), o que seria uma violação do
pressuposto democrático básico de liberdade e valorização da opinião. É que os
processos pelos quais as opiniões transitam na sociedade, basearam-se, a partir
da modernidade, na palavra escrita e na interpretação do texto, escrito ou
falado, criando assim uma condição de interação política que impede ou
dificulta a interação dos que não possuem tais recursos cognitivos (e/ou de
comunicação).
Em países em que as condições de interação
política estão mais bem distribuídas, há uma tendência clara de convergência
entre a opinião pública e a soma das opiniões privadas, até que ponto não se
sabe. Mas isso explica por que a vitalidade da democracia está sempre associada
a existência de uma sociedade civil ativa ou de uma “classe média” vigorosa.
Não, não é porque a posição de classe em termos clássicos, quer dizer, a
posição em relação ao processo de produção ou de acumulação ampliada do capital
seja determinante, como julgaram todas as vertentes economicistas do pensamento
sociológico (inclusive porque a determinação de classe da chamada “classe
média” é uma operação impossível para as teorias de classes sociais
fundamentadas em alguma racionalidade econômica), e sim porque há um acesso
diferencial ao campo onde se dá a interação das opiniões por parte dessa “classe”
em relação às classes ditas subalternas (em virtude do analfabetismo estrito ou
funcional destas últimas ou, hoje, de seu “analfabetismo” digital e, ainda, do
seu exíguo tempo livre para poder se preocupar com assuntos que não digam
respeito diretamente à sobrevivência e ao lazer).
Mas este não é, diretamente, um problema da
democracia. A democracia é experimentada pelos que têm condições de interagir
politicamente e aposta-se que, uma vez experimentada por estes, possa retroagir
sobre as condições sociais gerais de sorte a possibilitar que todos tenham
condições de interagir politicamente. Se não for por tal caminho, os democratas
têm que ficar esperando que todos tenham as mesmas condições de interação e
enquanto eles ficam esperando, quem fará o trabalho de produzir a igualdade
socioeconômica necessária para que todos possam experimentar a democracia? Um
senhor com um propósito generoso de universalizar a cidadania? Novamente aqui
caímos na armadilha: alguém, por fora da democracia – ou seja, um autocrata –
teria o papel de preparar o povo para a democracia, sequestrando suas
liberdades no presente em nome de um reino da liberdade no futuro.
15 – Se a democracia é o
regime da maioria, por que os representantes da maioria não têm o direito de
fazer o que almejam para melhorar as condições de vida das populações que
governam? Por que condenar o bolivarianismo se os seus líderes foram escolhidos
pela maioria da população?
Estas são, de todas, as colocações mais
primárias, feitas em geral por militantes de esquerda, sobre a democracia.
A primeira pergunta começa com uma falsidade. A
democracia não é o regime (ou o governo) da maioria e sim o governo de qualquer
um. Sobre isso, vale a pena ler o pequeno e instigante livro de Jacques
Rancière (2005), intitulado O ódio à democracia (o link para baixar o PDF está
no final desta página).
Ao contrário do que sugere a visão autocrática
dos que pretendem usar a democracia contra a democracia, parasitando-a e, para
tanto, pegando uma carona no senso comum, democracia não tem propriamente a ver
com prevalência da vontade da maioria e sim com a possibilidade da existência
de minorias capazes (ou não) de se tornar maiorias. Como observou corretamente
Jon Elster (2007), a alternância no poder “é o teste para sabermos se
estamos diante de um arremedo de democracia ou de uma democracia verdadeira”
(Cf. a entrevista “Alternância no poder define as democracias” concedida à
Cláudia Antunes, na Folha de São Paulo em 17/06/07). Regimes eleitorais não são
necessariamente democracias no sentido pleno, ainda que “fraco”, do conceito.
São os casos da Venezuela e da Rússia de nossos dias.
Não se pode aceitar que a democracia seja o
regime da maioria, pois isso seria aceitar a “lei do mais forte” quando a força
é medida pelo número de votos. Pelo contrário, a democracia é um regime em que
as minorias podem ter condições de apresentar suas opiniões com a mesma
liberdade que a maioria e podem sempre se manifestar e se fazer representar na
proporção de sua importância reconhecida e de seu peso aferido na coletividade.
A ideia de democracia como regime de múltiplas
minorias (ou seja, a ideia de que a democracia não é – nem pode ser – o regime da maioria) refere-se à diversidade e à
necessidade de sua manutenção por meio de um pacto político – o acordo fundante
da democracia – que impeça a ereção de um poder autocrático, mesmo dentro de um
regime democrático e em nome de um princípio aparentemente democrático: a
vontade da maioria. Mas é evidente que um pacto dessa natureza co-implica um
grau de cooperação entre os membros da sociedade, um refreamento assentido da
competição que tenderia, como tende na prática de uma parte das democracias
realmente existentes (os tais “arremedos de democracia”), invadidas por enclaves
autocráticos, a cassar ou ao menos cercear as possibilidades de expressão e de
representação das minorias.
Democracia como regulação majoritária da
inimizade política, democracia como lei do mais forte (daquele que tem maioria,
sendo, no caso, mais forte, o competidor que tem mais votos), enfim, democracia
como regime da maioria, remete a uma visão de democracia rebaixada pela ideia
de que só existe um meio de mediar conflitos: estabelecendo a prevalência da
vontade da maioria, revelada em uma disputa (em geral por votos). Aparentemente
democrática, tal visão, na verdade, é bastante problemática. Em primeiro lugar,
porque estabelece uma dinâmica adversarial de convivência política, cada
competidor tentando fazer maioria para derrotar os adversários, o que evoca a
ideia de que o mais forte pode impor sua vontade aos mais fracos (ainda que
aqui o voto ocupe o lugar das armas ou do corpo usado como arma, o mesmo
fundamento incivil permanece). Em segundo lugar, porque, se a democracia não é
o regime da maioria e sim o regime das (múltiplas) minorias, então a liberdade
e os direitos das minorias devem estar protegidos de eventuais humores autocráticos
(violadores da liberdade) da maioria. Caricaturando um pouco para mostrar pelo
absurdo: se democracia fosse o regime da maioria, uma sociedade que tivesse 60%
de brancos e 40% de negros poderia decretar – em eleições limpas, por maioria –
a escravidão dos negros?
Há a questão dos direitos, que não podem ser
violados pela maioria. Ademais, a democracia deve contemplar a possibilidade de
minorias virem a se tornar maiorias, o que só acontecerá se as regras do jogo
garantirem às minorias as mesmas condições que garantem à maioria (coisa que,
na prática, nunca acontece plenamente). E o que só acontecerá (minimamente,
para o regime em questão poder ser chamado de democrático) se essas regras
forem respeitadas pela maioria, que não pode – baseada no fato de que é maioria
– alterar tais regras durante o jogo. Quando a maioria não obedece às normas
estabelecidas para tornar (minimamente) equânime a disputa, pode se perpetuar
ou se delongar no poder, falsificando a rotatividade democrática. O que só não
ocorrerá se existir Estado de direito e instituições fortes, capazes de impor a
prevalência das leis, mesmo contra a vontade da maioria.
Esse é o motivo pelo qual maiorias nacionais
não-convertidas à democracia – muitas vezes constrangidas a seguir sua liturgia
ou ritualística formal por falta de condições internacionais e nacionais para
escapar desses constrangimentos impostos à expansão do seu domínio – tentam
perverter a política e degenerar as instituições. As instituições constituem
freios ao apetite pelo poder das maiorias e atuam tentando conter sua
voracidade. Se elas forem corrompidas, fica mais fácil alterar as regras do jogo,
para então poder usar a democracia (formal) contra a democracia (substantiva);
quer dizer, com instituições fracas, corrompidas ou degeneradas, fica mais
fácil enfrear o processo de democratização, criando mais-ordem top down e, consequentemente, reduzindo as
liberdades (ainda que se possa continuar encenando o ritual democrático, como
ocorreu até há pouco tempo na Venezuela e ainda ocorre em outros países da
América Latina).
A degeneração das instituições é um processo
que ocorre quando as normas que determinam o formato e regem o funcionamento
institucional são pervertidas por uma prática política que se utiliza
instrumentalmente dessas estruturas e dinâmicas para obter vantagens ou
alcançar resultados que não têm a ver com sua natureza ou propósito original,
constituinte ou fundante. A corrupção e outros comportamentos políticos
pervertidos degeneram as instituições. Tal degeneração também pode se dar, para
além da corrupção, pela transposição de uma lógica partidária privada – baseada
em critérios de maioria e minoria – para dentro das instituições públicas. Com
o avanço de tal processo degenerativo, das instituições tende a restar apenas a
casca, a dinâmica formal, a liturgia, a ritualística.
A degeneração das instituições se dá, nesse
sentido, quando o processo de ocupação organizada do Estado por uma força
privada, partidária, esvazia as instituições públicas de seu conteúdo ao deslocar
o centro das decisões para uma instância externa e ilegítima. Assim, por
exemplo, se o partido da maioria logrou fazer maioria em um ente estatal
qualquer, seja um órgão da administração, uma empresa pública, um tribunal ou
uma agência reguladora, as decisões dessas instituições que interessam
politicamente ao poder já estarão tomadas de antemão, cabendo apenas, ao ente
em questão, fazer a encenação de praxe para validar o que já estava decidido.
Experiências recentes de degeneração das
instituições em democracias nas quais líderes populistas lograram conquistar
governos, legitimamente, pelo voto, mostram que ela obedece a uma estratégia de
retenção do poder nas mãos de um mesmo grupo – tentando falsificar a
rotatividade democrática – e tem como objetivo a construção de condições que
permitam o estabelecimento de uma hegemonia de longa duração. Uma parte dos
autocratas busca legitimar tal estratégia argumentando que as instituições
atuais não são ativos democráticos e sim passivos herdados da velha dominação
das elites, que um governo popular teria não apenas o direito, mas o dever de
remover e substituir por outras instituições desenhadas de acordo com os
interesses da maioria do povo, só não o fazendo de pronto porquanto (e
enquanto) a correlação de forças não lhe é favorável. Para tornar a correlação
de forças favorável é necessário prosseguir no processo de conquistar maioria
partidária em todas as instâncias onde isso for possível e por todos os meios
possíveis, sendo que, um desses meios é, exatamente, a ocupação e a consequente
degeneração das instituições.
Frequentemente a política vem sendo pervertida
por meio da realpolitikexacerbada, que transforma tudo em uma
guerra. Antes de tudo, é uma fórmula cômoda para justificar qualquer tipo de
insucesso, de erro ou de irregularidade de quem está no governo: se um programa
público não funcionou como o previsto, a culpa é dos inimigos, da sua presença
não cooperativa ou da herança que deixaram; se uma falha foi cometida, a culpa
é do inimigo, que “puxou o tapete” ou inviabilizou de algum modo a consecução
do projeto correto; se um crime foi perpetrado, a culpa é de quem divulgou o
delito, motivado apenas por interesses eleitoreiros.
Mas a perversão da política como arte da guerra
se baseia na noção, antidemocrática, de que “guerra é guerra”, quer dizer, de
que não existe, a rigor, guerra limpa. Assim, em uma guerra, sempre suja,
justificam-se todos os insucessos e, pior, todos os erros. No limite, pode ser
justificado qualquer crime. Trata-se de uma espécie de shimittianização (de
Carl Shimitt) da política, que tende a encarar qualquer diferente como inimigo
pelo simples fato de ele ser um outro. Ser outro já significa uma ameaça de se
constituir como alternativa ao mesmo. Ameaça que, portanto, deve ser combatida,
neutralizada ou destruída.
Uma variante da concepção autocrática de que
democracia é o regime da maioria, que tem se difundido ultimamente, é a de que
democracia é a regra do jogo estabelecido para verificar quem tem mais
audiência e, assim, entregar os cargos públicos representativos ao detentor do
maior índice de popularidade.
Trata-se, obviamente, de outra concepção
pervertida de democracia. Nos regimes democráticos contemporâneos, no contexto
de uma sociedade midiática, instalou-se essa espécie de “ditadura” do índice de
audiência ou de popularidade, verificada por pesquisas de opinião, que não raro
confunde, perigosamente, popularidade com legitimidade e opinião pública com a
soma das opiniões privadas.+
A segunda pergunta – Por que condenar o bolivarianismo
se os seus líderes foram escolhidos pela maioria da população? – não merece
resposta.
Não deixe de ler o livro de Rancière: RANCIÈRE, Jacques (2005) O ódio à democracia
16 – Um líder identificado
com o povo não pode fazer mais (pelo povo) do que instituições cheias de
políticos controlados e financiados pelas elites?
Esta é uma alegação típica do populismo. O
líder teria o condão de fazer uma ligação direta com as massas (o povo), bypassando as mediações
institucionais (que não estariam a favor do povo e sim das elites).
O líder, mesmo quando eleito para chefiar o
governo e o Estado, é mais do que um simples e temporário representante: é
ungido como legítimo chefe, protetor, cuidador e delegado plenipotenciário para
fazer o que sabe que é melhor para o povo.
Como um candidato a chefe de governo com um
projeto populista dificilmente conseguirá fazer maioria qualificada no
parlamento, maioria que lhe permita promover mudanças constitucionais, tendo
que dividir poder com os representantes das elites, cabe a ele – se eleito –
encontrar meios de dar um curto circuito no sistema de pesos e contrapesos da
democracia para conseguir que os interesses populares, secularmente preteridos
pelas elites, possam afinal vingar.
Isso exigirá um processo de acossamento das
instituições a partir de mobilizações de massa fabricadas por organizações
corporativas (sindicais e associativas) e movimentos sociais, de uma rede de
veículos de comunicação, além de uma ocupação organizada das demais
instituições de controle (incluindo tribunais, tribunais de contas,
procuradorias, agências reguladoras etc.) e de órgãos que detêm o monopólio do
uso da força (polícia e, se possível, forças armadas) para alterar a correlação
de forças a favor do projeto do líder populista e do seu partido ou aliança de
partidos.
Isso também exigirá, via-de-regra, corrupção
organizada, para financiar o projeto populista, comprar ou alugar aliados,
subornar ou neutralizar adversários e custear outras ações de tomada do poder a
partir do governo. Tudo isso equivale, em termos práticos, a um golpe de
Estado, ainda que em doses homeopáticas.
Examinemos o problema em mais detalhes.
É reconhecidamente uma falha “genética” da
democracia sua falta de proteção contra o discurso inverídico, pelo menos no
curto prazo. Tal falha – que já se manifestava entre os gregos (como jactância,
por exemplo) – manifesta-se atualmente como bravata ou, simplesmente, como
mentira mesmo, no nível mais chulo do termo. O discurso inverídico é, em geral,
feito na forma de promessas ao povo, que não poderão ser cumpridas, mas que têm
como objetivo apenas angariar simpatias e votos. Ontem como hoje tudo se baseia
na ideia demagógica de que democracia é fazer a vontade do povo.
A ideia de que democracia é fazer a vontade do
povo é uma variante populista de (in)compreensão da democracia. O fato de a
democracia ser uma política feita ex parte populis não
significa que alguém – um representante supostamente ungido pelo povo – possa
encarnar a missão de fazer a vontade do povo (e, antes, que tal representante
tenha o condão de interpretar essa vontade), como sugere a expressão. Ao
contrário, no máximo, seria possível dizer que a democracia é uma maneira de o
povo realizar sua vontade, mas referindo-se isso ao processo democrático como
um todo e não à delegação de tal missão a um representante escolhido por
maioria.
A mitificação da noção de ‘vontade do povo’
leva, não raro, a outras perversões, como a de que os votos da maioria da
população estão acima das decisões das instituições democráticas quando tais
instituições representam apenas as minorias e a de que um grande líder
identificado com o povo pode fazer mais do que instituições cheias de políticos
controlados pelas elites.
No primeiro caso, estamos diante de um
argumento construído para legitimar a degeneração das instituições, para que
elas não possam mais ser capazes de frear a voracidade pelo poder da maioria (e
o chamado majoritarismo). Se as instituições ficassem ao sabor da vontade da
maioria, não poderiam ser fiéis do processo democrático e não poderia, a rigor,
subsistir qualquer regime democrático. Instituições não têm que “representar” – stricto sensu – nem maioria, nem minorias. Seu
papel é garantir que a democracia seja o regime em que as (múltiplas) minorias
possam vir a se tornar maioria e, em qualquer circunstância, possam continuar
existindo como minorias, mesmo quando já tenham sido maioria. Em suma, antes de
impor uma ordem que favoreça a governabilidade (para o bom exercício dos
mandatos da maioria), cabe às instituições democráticas estabelecer aquele tipo
de ordem capaz de garantir a liberdade, sobretudo a liberdade daqueles que
discordam da maioria e a ela se contrapõem dentro das regras institucionais
vigentes. Assim, se os votos da maioria da população pudessem ficar acima das
instituições, não haveria possibilidade de democracia.
No segundo caso estamos diante de uma
perigosíssima afirmação para a democracia, em geral difundida por líderes
populistas. Vale a pena abrir aqui um parêntese para examinar o populismo, na
medida em que ele se constitui como uma forma de subverter a democracia.
O historiador mexicano Enrique Krauze (2006)
escreveu que o populismo – ao contrário do que se imaginava – continua sendo
uma variante política da atualidade, sobretudo na América Latina. Ele mostrou
como está surgindo o fenômeno da emergência de um “populismo latino-americano
pós-moderno” – que também poderia ser chamado de neopopulismo – que se
diferencia das formas tradicionais, mais conhecidas (de populismo), que se
caracterizavam por uma irresponsabilidade macroeconômica.
Líder carismático, demagogia e palanquismo,
dificuldade em aceitar a crítica e a opinião do outro, esbanjamento de recursos
públicos (sobretudo para financiar gastos crescentes do Estado com pessoal,
quer dizer, com aparelhamento), assistencialismo, incentivo à divisão da
sociedade na base dos pobres contra os ricos (ou do povo contra as elites),
mobilização das massas, criação de inimigos, desprezo pela ordem legal e
desvirtuamento das instituições – todos esses ingredientes, quando combinados,
compõem a fórmula do novo populismo.
O neopopulismo é esse novo tipo de populismo
que floresce quando líderes carismáticos e salvacionistas, apoiados por
correntes estatistas e corporativistas, apossam-se, pela via eleitoral, das
instituições da democracia e as corrompem, gerando um ambiente degenerativo que
perverte a política, privatiza partidariamente a esfera pública e enfraquece a
sociedade civil. Trata-se de uma vertente política de caráter autoritário, que
convive com a democracia, mas que exerce sobre ela uma espécie de parasitismo;
ou seja, que usa a democracia contra a democracia para enfrear e reverter o
processo de democratização da sociedade, assegurando condições para a
permanência, por longo tempo, de um mesmo líder e de seu grupo no poder.
Inevitavelmente, quando não abole a democracia (em geral tal vertente não age
assim), o neopopulismo provoca seu decaimento para regimes eleitorais com alto
grau de antagonismo ou democracias de baixa intensidade.
Esse tipo de projeto de poder em geral não
trabalha por fora das instituições e sim por dentro (daí sua característica de
parasitismo da democracia). Enganam-se, portanto, os que acham que vão
surpreender os neopopulistas em uma tentativa de golpe de Estado em termos
clássicos. Sua via principal é a eleitoral. Tudo o que fazem tem como objetivo
continuar ganhando as eleições, sucessivamente: de um lado, o
palanquismo-messiânico (do líder que se diz predestinado a salvar os pobres)
regado com assistencialismo-clientelista (o neoclientelismo) e, de outro, a
conquista dos meios institucionais pela privatização partidária da esfera
pública e pela alteração da lógica de funcionamento das instituições. Essa é a
fórmula do neopopulismo.
E fundamental agora ler o artigo de Enrique
Krauze (2006), Os dez mandamentos do populismo, clicando aqui: http://dagobah.com.br/a-praga-do-populismo/
É bom ler também o artigo de Moisés Naím
(2017), Manual do Populismo, clicando aqui: http://dagobah.com.br/manual-do-populismo/
E por último, ainda, o artigo de Marcos
Aguinis (2007), El hipnótico modelo populista, clicando aqui http://www.lanacion.com.ar/917448-el-hipnotico-modelo-populista (disponível
somente em espanhol).
17 – Quando se afirma que
existe uma opinião pública, ela não é sempre o resultado artificial da ação de
meios de comunicação que estão nas mãos de grupos minoritários das elites
econômicas? Então, como dizer que a opinião pública é um fator necessário à
democracia nessas circunstâncias?
Em primeiro lugar é preciso ver o que é a opinião
pública. Há várias afirmações, nas duas perguntas que compõem esta questão, que
não podem ser justificadas pela democracia.
Não procede que a opinião pública seja sempre
resultado artificial da ação dos meios de comunicação (ainda que estes tenham
influência na formação da opinião pública, eles podem fabricar e disseminar
versões que incidem mais sobre as opiniões privadas dos cidadãos do que sobre a
opinião pública, quer dizer, sobre o resultado – imprevisível a rigor – da
interação das múltiplas opiniões privadas). Ademais, isso não é sempre um
resultado artificial (no sentido de engendrado, planejado ou programado): se
fosse assim, um candidato ou uma proposta divulgada pelos meios de comunicação
produziria sempre os efeitos esperados, o que não ocorre. Candidatos incensados
pelos meios de comunicação, podem perder – e frequentemente perdem – as
eleições e candidatos ignorados ou desprezados inicialmente por esses meios,
muitas vezes ganham as eleições. No Brasil temos vários exemplos: a eleição de
João Dória, para a prefeitura de São Paulo em 2016 no primeiro turno e a
permanência de Temer na presidência apesar de toda orquestração de grandes
meios de comunicação para depô-lo ou obrigar sua renúncia.
A afirmação, ademais, parece tomar os meios de
comunicação como as grandes mídias broadcasting (rádios,
TVs, jornais, revistas) e não as mídias sociais (incorretamente chamadas entre
nós de “redes sociais”), quer dizer, os meios de comunicação interativos.
Não procede, igualmente, a afirmação de que os
meios de comunicação estejam sempre nas mãos de grupos minoritários das elites
econômicas (na Venezuela e na Rússia, por exemplo, não estão). Aqui fica claro
que se está levando em conta apenas as mídias broadcasting, não
as mídias sociais. Há claramente, um exagero de atribuição de papel aos grandes
veículos de comunicação (e uma desvalorização do papel das mídias sociais).
Antes de completar a crítica a essas afirmações
contidas na questão, é necessário examinar o que é opinião pública e por que
ela é necessária para a democracia.
O QUE É OPINIÃO PÚBLICA
Na maioria dos países do mundo, se fôssemos
organizar a sociedade com base nas opiniões da maioria da população, viveríamos
provavelmente em uma ditadura ou em um tipo de regime excludente,
preconceituoso, intolerante, corrupto e avesso a quaisquer dos elevados valores
anunciados pelos defensores da democracia.
A democracia depende de uma chamada opinião
pública, que não é o mesmo que a soma das opiniões dos habitantes que compõem a
população de um país, mas que é composta a partir dos inputs fornecidos por aqueles que proferem
opiniões no espaço público. Ou seja, a opinião pública não é a opinião da
maioria da população, como somos induzidos a acreditar depois que apareceram os
institutos de pesquisa de opinião. A opinião pública é aquela que se forma
quando as opiniões são voluntariamente proferidas no espaço público e não
quando são arrancadas por um entrevistador que bate à nossa porta, nos telefona
ou corta o nosso caminho na via pública e depois totaliza as respostas que
arrancou porque perguntou, mas que nós não estávamos dispostos a submeter ao
debate público. Se existissem tais institutos na Atenas do século 5, a
democracia certamente não seria escolhida como forma preferível de governo. No
entanto, a opinião pública em Atenas era favorável à democracia. Da mesma
forma, no Brasil do auge do regime militar, os que se posicionavam contra o
governo eram franca minoria e, ainda assim, expressavam a opinião pública da
época.
Diz-se, com razão, que a opinião pública é um
ator (ou um fator) que não pode ser desconsiderado nas sociedades
contemporâneas. Ela não é exatamente o mesmo que chamamos de ‘sociedade civil’
(sobretudo não é nada que se possa reduzir ao conjunto de organizações da
sociedade civil). Ela é algo que se forma, por certo, a partir das opiniões
privadas, porém quando tais opiniões interagem coletivamente formando
configurações complexas que brotam por emergência. Nesse sentido o mecanismo de
construção ou formação da opinião pública é o mesmo mecanismo de formação do
que chamamos de público, como, aliás, já havia percebido John Dewey, em 1927,
no seu clássico “O público e seus problemas” (1).
Dewey, é claro, não podia conceber, àquela
altura, a emergência e outros processos acompanhantes da complexidade social,
mas anteviu certos conceitos dos quais agora somos obrigados a lançar mão para
tentar descrever a formação do ‘público’. Hoje podemos dizer que a diversidade
das iniciativas da sociedade civil é capaz de gerar uma ordem bottom up. E que a partir de certo grau de
complexidade, a pulverização de iniciativas privadas acaba gerando um tipo de
regulação emergente. Quando milhares de micromotivos diferentes entram em
interação, é possível se constituir um sentido coletivo comum que não está mais
vinculado aos motivos originais dos agentes privados que contribuíram para a
sua constituição. Aqui começamos a roçar o problema!
No entanto, isso não é possível quando o número
de agentes privados é muito pequeno. O que indica que o público propriamente
dito só pode, portanto, se constituir por emergência. Pode até haver,
provisória e intencionalmente, um pacto que reconheça alguns processos de
constituição do público, assim como há, por exemplo, um pacto que reconhece
como receita pública o resultado do montante de impostos pagos por agentes
privados (com dinheiro privado). Não há uma mágica que transforma nossos
recursos privados em recursos públicos quando pagamos impostos: há um
assentimento social, que reconhece como válida a operação política pela qual esses
recursos privados, pagos pelos chamados contribuintes, quando arrecadados
compulsoriamente pelo Estado, passam a ser considerados como recursos públicos.
Mas há limites impostos pela racionalidade do
tipo de agenciamento que estamos considerando. Querer transformar o interesse
privado de um grupo em interesse público é semelhante a querer fazer uma mágica
mesmo. Seria, mal comparando, como querer chamar de receita pública os impostos
pagos apenas por uma dúzia de contribuintes.
Entenda-se que não é um problema de quantidade.
É uma questão de complexidade, em que, evidentemente, a quantidade é uma
variável, mas não a única. Se somente uma dúzia de pessoas pagasse impostos,
dificilmente haveria base para um pacto na sociedade reconhecendo como válido o
direito de taxar esses contribuintes. Se houvesse tal pacto, ele seria um pacto
privatizante e os tais contribuintes seriam considerados (e se comportariam
como) donos do Estado (que, então, não poderia mais ser considerado um ente
público).
Por outro lado, há uma razão eloquente para
afirmar que a quantidade não é a única variável nesse processo. Pois também não
fica assegurada a formação do público pela simples soma – ou a totalização ex post e inorgânica – de inputs privados, mesmo que as parcelas dessa soma
expressem quantitativamente a maioria de uma população.
No caso da chamada ‘opinião pública’, não basta
somar (ou juntar e totalizar) as opiniões privadas. É necessário que essas
opiniões se combinem, se polinizem mutuamente e se transformem nesse processo
de emersão para que possamos ter uma opinião pública. Assim, poderá ocorrer que
a maioria das opiniões privadas esteja em contradição com a opinião pública,
mesmo quando as vertentes originalmente formadoras dessa opinião pública sejam
minoritárias ou, até mesmo, francamente minoritárias (por exemplo, a opinião
pública no Brasil de meados do século 19, quando, segundo algumas estimativas,
apenas 1% da nossa população sabia ler e escrever – e os 99% analfabetos nem
mesmo podiam usar os jornais como papel higiênico – era formada por opiniões
privadas que, em sua origem, eram francamente minoritárias).
Não é que a posse de um conhecimento – como o
conhecimento da língua falada e escrita, a alfabetização ou o letramento –
qualifique a opinião por fora do processo político (sim, não estamos falando
aqui de outra coisa senão do processo político), o que seria uma violação do
pressuposto democrático básico de liberdade e valorização da opinião. É que os
processos pelos quais as opiniões transitam na sociedade, basearam-se, a partir
da modernidade, na palavra escrita e na interpretação do texto, escrito ou
falado, criando assim uma condição de interação política que impede a
participação dos que não possuem tais recursos cognitivos (e/ou de
comunicação).
Em países em que as condições de interação
política estão mais bem distribuídas, há uma tendência clara de convergência
entre a opinião pública e a soma das opiniões privadas, até que ponto não se
sabe. Mas isso explica por que a vitalidade da democracia está sempre associada
a existência de uma sociedade civil ativa ou de uma “classe média” vigorosa.
Não, não é porque a posição de classe em termos clássicos, quer dizer, a
posição em relação ao processo de produção ou de acumulação ampliada do capital
seja determinante, como julgaram todas as vertentes economicistas do pensamento
sociológico (inclusive porque a determinação de classe da chamada “classe
média” é uma operação impossível para as teorias de classes sociais
fundamentadas em alguma racionalidade econômica), e sim porque há um acesso
diferencial ao campo onde se dá a interação das opiniões por parte dessa
“classe” em relação às classes ditas subalternas (em virtude do analfabetismo
estrito ou funcional destas últimas ou, hoje, de seu “analfabetismo” digital e,
ainda, do seu exíguo tempo livre para poder se preocupar com assuntos que não
digam respeito diretamente à sobrevivência e ao lazer).
Mas, voltando ao conceito de ‘público’, em
geral, somos obrigados a reconhecer que tudo ou quase tudo que se diz sobre o
público que não leva em conta esse processo emergente pelo qual o público se
constitui a partir da complexidade social não é capaz de explicar a natureza do
público, nem de compreender a fenomenologia a ele associada.
De modo geral confundimos o público com o
estatal, quando, originalmente, trata-se do contrário. A formação do Estado –
em todas as suas formas pretéritas, desde o Estado-Palácio-Templo sumeriano,
passando pelas Cidades-Estados monárquicas da Antiguidade e pelos Estados
feudais, reais e principescos – é o resultado de uma privatização dos assuntos
comuns operada pelo autocrata. O surgimento da democracia foi o resultado de
uma desprivatização, quando os assuntos privatizados pelo autocrata passaram a
ser discutidos por todos (os iguais e os que quisessem discuti-los) na polis. Por isso tinha certa razão (não toda)
Aristóteles, ao sugerir que público é o que é visível indistintamente para
todos na comunidade (koinonia) política. Democracia e
esfera pública são realidades coevas. Apenas ao Estado democrático pode-se
atribuir um caráter público, mesmo assim dentro de certos limites bem estritos
(ou estreitos).
Por exemplo, vejamos o que ocorre em relação às
chamadas políticas públicas. Em geral, as políticas governamentais chamadas de
políticas públicas não estão imunes à privatização (que é sempre uma
desconstituição do sentido público). Um partido pode, por exemplo, alcançar o
comando de um governo e, como organização privada que é, ao assumir o controle
administrativo, direcionar uma determinada política segundo seus próprios
interesses que não são públicos.
O fato de estar escrito em uma Constituição que
uma coisa é pública, não significa que ela o seja realmente. Uma empresa dita
pública tem suas contas, sua folha de pessoal e seus planos estratégicos
visíveis a todos indistintamente? Nesse sentido ela seria realmente pública
segundo um critério decorrente da sugestiva definição aristotélica? Tudo que é
declaradamente público pode ser privatizado, quer por interesses privados
econômicos, quer por interesses corporativos ou, ainda, por interesses
políticos (como, por exemplo, os interesses partidários e clientelistas).
É por isso que não deveríamos nos preocupar
tanto em saber se uma política é formal ou nominalmente pública e sim em saber
se ela é uma política democratizante. Só pode ser publicizante o que é democratizante.
E isso vale também para a chamada ‘opinião pública’.
A rigor uma opinião só pode ser pública se for
resultado de um processo de publicização de opiniões privadas. Esse processo de
publicização é um processo de democratização, ou seja, de liberdade de
proferimento e de interação de opiniões. Em uma ditadura é muito difícil falar
em opinião pública a não ser quando a liberdade de proferir opiniões é exercida
como um ato disruptivo, contra aquela ordem estabelecida para impedir o
exercício dessa liberdade e para desvalorizá-la privatizando a esfera pública
das opiniões.
A autocratização é sempre uma privatização. Em
Cuba há uma privatização clara das opiniões nas mãos do autocrata: o ditador,
por meio de seu partido-Estado e das instituições que lhe servem de correia de
transmissão. Em várias democracias em processo de autocratização estão em
marcha processos de privatização das opiniões, com o objetivo de impedir que se
forme uma opinião pública (e esse é o motivo da perseguição aos meios de comunicação
nesses países). Em outros países da América Latina estão em curso processos de
desvalorização da opinião pública em nome da opinião privada da maioria da
população. Tal totalização das opiniões privadas majoritárias da população que
não são proferidas no espaço público por seus atores, só pode ser feita, ex poste inorganicamente, por meio das pesquisas de
opinião e das eleições.
Ora, se as opiniões privadas da imensa maioria
de uma população – aquelas opiniões que são aferidas, por exemplo, por pesquisas
de opinião ou pelas urnas – não indicam nenhum grau significativo de conversão
à democracia, então isso coloca um enorme problema para a democracia. A ponto
de, em certos países, levar alguns indignados a reclamar, em termos um tanto
grosseiros, que o problema é que “quem decide as eleições não é quem lê jornal,
mas sim quem limpa a bunda com ele”. Antes de reprovar o chulo dístico, devemos
entender a perplexidade que o motivou.
Esse problema tem a ver com as relações entre o
processo de formação da vontade política coletiva e o processo de composição da
chamada opinião pública. Em uma democracia esses dois processos deveriam andar
juntos ou, pelo menos, tender a isso.
Enfim, o que parece ser mesmo fatal para a
democracia dos modernos é a confusão entre o processo de formação da vontade
política coletiva e alguns mecanismos utilizados para captar tendências de
opinião (como as pesquisas de opinião) e para escolher representantes (como as eleições).
Embora guardem relações entre si, são coisas
distintas. Se a soma das opiniões privadas pudesse ser a mesma coisa que a
opinião pública, não haveria necessidade do processo político. Ninguém deveria
proferir opiniões na esfera pública e nem submetê-las ao debate político.
Bastaria segredar no ouvido do entrevistador de um instituto de pesquisa a sua
opinião. Bastaria, de tempos em tempos, depositar secretamente seu voto na
urna.
Mas, como já havia percebido o jovem-Dewey
(1888), no texto “Ética da democracia”, a democracia não é só uma mera forma
organizacional de governo de Estado submetida à regra da maioria (2). Como
observou Axel Honneth (1998), esse conceito instrumental de democracia reduz a
ideia de formação democrática da vontade política ao princípio numérico da
regra de maioria… Ora, fazer isso significa assumir o fato de a sociedade ser
uma massa desorganizada de indivíduos isolados cujos fins são tão incongruentes
que a intenção ou opinião adotada pela maioria deve ser descoberta aritmeticamente
(3).
O tema é vasto e complexo, exigindo muito mais
reflexão, mas temos de voltar agora à crítica da questão que constitui a ementa
deste Módulo 17 do nosso programa.
A questão é: se não se formar uma opinião
pública, não há possibilidade de democracia. Neste sentido podemos dizer que a
opinião pública é necessária para a democracia, que é um modo de regulação que
não se esgota na consulta aos indivíduos (por meio das urnas) e que exige a
interação de suas opiniões. Do contrário a democracia seria igual à eleição (o
que não pode ser: boa parte das 60 ditaduras que remanescem atualmente no mundo
também promove eleições, ainda que não-livres, restringindo ou proibindo os
meios de comunicação e a liberdade de proferir opiniões contrárias ao regime ou
aos seus governantes); ou seja, autocracias podem fazer quantas eleições
quiserem que isso não as transforma em democracias porque, entre outras coisas,
elas não favorecem (antes inibem) a formação de uma opinião pública.
Democratas são agentes fermentadores da
formação de uma opinião pública. Sobre isso, vale a pena ler o artigo Os
democratas sempre foram minoria clicando no link http://dagobah.com.br/os-democratas-sempre-foram-minoria/
Notas e referências
(1) Dewey, John (1927). The Public and its
Problems. Chicago: Gataway Books, 1946 (existe edição em espanhol: La opinión
pública y sus problemas. Madrid: Morata, 2004). Cf. excertos desse texto na
minha edição (com Thamy Pogrebinschi): Democracia cooperativa: escritos
políticos escolhidos de John Dewey (Porto Alegre: ediPUCRS, 2008). Está
disponível neste link.
(2) Cf. Dewey, John (1888). Ethics of
Democracy, apud Honneth, Axel (1998). Ver nota 3 (abaixo).
(3) Cf. Honneth, Axel (1998). “Democracia como
cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje” (publicado
originalmente em “Political Theory”, v. 26, dezembro 1998), traduzido na
coletânea: Souza, Jessé (org.) (2001). Democracia hoje: novos desafios para a teoria
democrática contemporânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
18 – Como pode haver
democracia se, no capitalismo, as grandes corporações estão acima das leis (ou
ditam as leis) e controlam a vida das pessoas?
Eis uma pergunta típica do analfabetismo
democrático. É como perguntar: como poderia ter havido democracia, na Atenas do
século 5 a. C., se os governantes de todos os países existentes na Terra
estavam acima das leis (ou ditavam as leis) e controlavam a vida das pessoas?
Não é bem uma pergunta. É a expressão de uma
incompreensão – e uma negação – do que é a democracia: um processo de
desconstituição de autocracia. Foi justamente por isso que a democracia foi
inventada pelos que não desejavam viver sob o jugo de senhores, quer dizer, dos
que ditam leis para controlar a vida das pessoas.
Grandes corporações concentram riqueza,
conhecimento e poder porque são organizações hierárquicas, quer dizer, mais
centralizadas do que distribuídas. Centralizar é concentrar (erigir e
privilegiar um centro, deformando o fluxo interativo). Não porque sejam
capitalistas.
E porque são corporações, quer dizer,
estruturas desenhadas para defender os interesses sociais (ou antissociais, a
rigor), econômicos e políticos de uma parte da sociedade em detrimento das
demais. No capitalismo ou em qualquer outro modo-de-produção isso acontece.
Há aqui uma confusão entre modo-de-produção
(capitalista) e modo-de-regulação-de-conflitos (política), que foi introduzida
pelas doutrinas marxistas e pelas doutrinas economicistas que foram urdidas,
sobretudo, para se opor ao marxismo.
Organizações centralizadas concentram, sejam ou
não capitalistas. A burocracia estatal no chamado modo de produção asiático (na
China antiga ou no Peru incaico) também concentrava riqueza, conhecimento e
poder. Os sacerdotes de Amon, no Egito faraônico, faziam a mesma coisa, assim
como os senhores feudais na Idade Média europeia. E também a chamada Nomenklatura nos países do socialismo real.
O capitalismo, ao contrário do que se diz
frequentemente, não é sinônimo de livre-mercado, mas foi o resultado histórico
do conúbio entre a grande empresa monárquica e o Estado hobbesiano.
Sobre isso vale a pena ler agora dois pequenos
artigos:
Os casos da Odebrecht e da Oi: reflexões sobre
a natureza das empresas, clicando no link http://dagobah.com.br/os-casos-da-odebrecht-e-da-oi-reflexoes-sobre-a-natureza-das-empresas/
Grandes empresas: pouco de mercado, muito de
poder, disponível no link: http://dagobah.com.br/grandes-empresas-pouco-de-mercado-muito-de-poder/
Se, no capitalismo, as grandes corporações
estão acima das leis (ou ditam as leis) e controlam a vida das pessoas – isto é
mais uma razão para haver democracia. Não um motivo para dizer que não pode
haver democracia enquanto tal situação perdurar. A democracia existe – para os
que a desejam – exatamente contra a possibilidade de ereção de regimes onde
senhores (sejam grandes capitalistas, nobres feudais, déspotas escravistas,
soberanos intermediários de divindades da guerra ou potentados socialistas)
ditem as leis e controlem a vida das pessoas.+
Como escreveu Ésquilo (472 a. C.), em Os
Persas, referindo-se aos democratas atenienses: eles “não são escravos nem súditos de ninguém”.
Para concluir, leia a pequena nota intitulada
Quarta reflexão terrestre sobre a democracia, disponível no link: http://dagobah.com.br/quarta-reflexao-terrestre-sobre-a-democracia/
19 – Como os USA podem ser
uma democracia se vivem se metendo nos outros países para controlá-los, fazem
guerras em todo lugar para satisfazer seus interesses econômicos e espionam
todo mundo?
Com tudo isso, os USA são uma democracia. Essa
posição é unânime entre todos os estudiosos da democracia no mundo. Os USA
estão sempre entre os 30 primeiros países mais democráticos do mundo, seja qual
for o ranking considerado.
O que não significa que os USA não tenham, em
política externa, um comportamento que poderia ser chamado de imperial.
Para entender isso é preciso ver que as
democracias são definidas no plano interno de cada país, não no plano
internacional. Se fôssemos definir a democracia pela política externa da imensa
maioria dos países, talvez não existissem mais do que um ou dois regimes
plenamente democráticos.
No plano internacional não há democracia e sim realpolitik (que é sempre autocrática), ou seja, o
sistema funciona na base do chamado de equilíbrio competitivo. Portanto, os
indicadores relativos à política externa de um país não podem ser usados para
caracterizar seu regime político. Se houvesse democracia no plano
internacional, nenhum país teria a necessidade de manter forças armadas,
vigilância de fronteiras, barreiras alfandegárias rígidas, proteção da moeda
nacional etc. A União Europeia é um esboço do que seria um mundo democrático no
plano internacional, ainda que ela mesma esteja ainda bem longe disso.
A Atenas democrática do século 5 a. C. também
não tinha um comportamento democrático do ponto de vista das suas relações com
outros países da região. Os primeiros democratas gregos se armavam, entravam em
guerra e até promoviam guerras. Mas eles sabiam que, ao fazerem isso, estavam
se comportando de modo apolítico (ou seja, não-democrático).
Ainda que países com regimes democráticos não
guerreiem entre si, a questão fundamental aqui é o grau de intensidade da
“guerra interna”, movida pelo regime contra os de seu próprio povo. Autocracias
são estados de guerra, que vigiam e punem os seus habitantes como se fossem
potenciais inimigos, transformando cidadãos em súditos de um senhor (seja ele
um líder, um partido ou uma casta político-religiosa).
A forma atual de Estado (o Estado-nação), como
um fruto da guerra (da paz de Westfália), tem uma estrutura e uma dinâmica
desenhadas para a guerra. Na medida em que não são domesticados pelo chamado
Estado democrático de direito, os Estados-nações tendem a guerrear os seus
habitantes, invadindo a esfera da liberdade privada dos cidadãos (ou seja,
transformando cidadãos em súditos).
Por isso os critérios para determinar se um
regime é democrático estão sempre relacionados a indicadores internos, como
direitos políticos, processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo,
participação política, cultura política, liberdades civis etc. Segundo índices
formados a partir de indicadores como esses, não resta nenhuma dúvida de que os
Estados Unidos são uma democracia, ainda que, no plano internacional, possam
ter um comportamento não-democrático (como, aliás, a maioria dos países do
globo) exacerbado, porém, pela sua condição de potência mundial (como, em
passado recente, foi o Reino Unido) e como polo de uma guerra fria de longa
duração (1960-1990) entre o Leste e o Oeste, pela corrida armamentista, pelo
complexo científico-industrial-militar e pela centralização crescente do poder
no governo central. Tudo isso, por certo, acaba tendo influência sobre a
democracia americana e dilapidando parte do estoque de capital social que é
necessário para a continuidade do processo de democratização. Por isso, aliás,
os USA têm perdido posições no ranking dos
países democráticos, tendo sido rebaixados recentemente por todos os institutos
da sua condição de país não plenamente democrático.
Israel é outro caso exemplar dessa dicotomia.
Internamente, Israel é um país democrático, mas sua situação em uma região em
que todos os países vizinhos são autocracias (e quase todos têm como objetivo
destruí-lo), é obrigado a se armar e a se manter em estado de guerra
permanente. Os efeitos de rebote dessa militarização sobre o regime e sobre a
qualidade da convivência social são inevitáveis e é por isso que Israel não
ocupa uma boa posição nos rankings internacionais
de democracia.
20 – De que adianta defender
as velhas instituições do Estado de direito, quando sabemos que (numa sociedade
de classes) elas foram planejadas justamente para inviabilizar uma verdadeira
democratização da sociedade e assegurar a reprodução da dominação das elites?
A pergunta parte do pressuposto marxista de que
vivemos numa sociedade de classes. E de que, numa sociedade de classes, a
classe dominante (as elites) constrói instituições, normas, direitos,
ideologias, para satisfazer seus interesses (sendo necessário, para tanto, a
reprodução da sua dominação política sobre as demais classes).
Essa visão, teoria ou narrativa adota o esquema
interpretativo de que a estrutura econômica (na qual se definem as classes)
determina uma suposta superestrutura jurídica, política, cultural ou
ideológica. Trata-se, portanto, de um economicismo em estado (quase) puro. Toda
a superestrutura, numa sociedade de classes, teria por objetivo manter a
dominação de classes. Logo, ao defender as instituições do Estado construído
pela classe dominante para manter a exploração, a opressão e a dominação da
classe subalterna, estaremos, no fundo, defendendo a continuidade da
exploração, da opressão e da dominação.
O conceito de Estado democrático de direito é
estranho ou irrelevante para esse pensamento, na medida em que a “democracia” e
o “direito” das elites são apenas pretextos para (ou modos de) manter sua
dominação. A verdadeira democracia, para os que acham que a luta de classes é o
motor da história, só poderia ser aquela experimentada quando não há mais
dominação, ou seja, quando todos forem iguais, não havendo mais supremacia de
uma classe sobre outra. Essa compreensão é uma denegação da ideia de
democracia.
Reexaminemos a origem desse pensamento.
Marx acreditava em classes sociais e na luta de
classes, acreditava em algo como uma história e, como o neoplatônico João
Filoponius (e, depois, como Jean Buridan, da Universidade de Paris), na
necessidade de um motor intrínseco para haver continuidade do movimento (é uma
hipótese contra a lei da inércia, como ficamos sabendo depois do Le Monde, de Descartes). Este motor estaria na
economia. A política e a ideologia (e a cultura), a chamada superestrutura da
sociedade, seriam determinadas (“em última instância”, como sublinhou aquele
seu camarada de pouca intimidade com o pensamento filosófico e científico,
chamado Engels) pelos movimentos ocorridos na infraestrutura (econômica) da
sociedade. Por isso que as classes eram definidas a partir da economia, não
propriamente da sociologia. Existiriam grupos sociais relativamente estáveis,
definidos pela sua posição nos processos de produção, de divisão social do
trabalho ou de acumulação ampliada do capital. Estes grupos sociais, com
interesses contraditórios ou colidentes, entrariam inevitavelmente em choque e
essa luta faria tudo se mover. Hélas! Eis o
motor intrínseco da história!
Essa visão produtivista (ou economicista)
deveria ter sido refutada in limine pela
sociologia, se a sociologia fosse realmente ciência que existisse com estatuto
próprio (para o quê, diga-se, em quase nada contribuíram os sociólogos do
século passado, cuja maior aspiração, via de regra, era a de serem levados a
sério pelos economistas). Do ponto de vista da nova ciência das redes,
trata-se, porém, de uma grossa besteira.
Em primeiro lugar, se classe social é um grupo,
isto não pode ser um objeto sociológico de primeira ordem. Grupos só existem
porque houve clustering, que é uma fenomenologia
da interação. Quando se diz que tudo que interage tende a clusterizar, a
interação vem antes. A interação de que se trata aqui, porém, não é de
indivíduos com uma estrutura abstrata (econômica ou de qualquer outra natureza)
e sim de pessoas com pessoas. Mas por que pessoas interagindo com pessoas
levariam sempre às mesmas clusterizações, desembocando sempre em dois grandes
grupos (na verdade a determinação de classe marxiana só se aplica adequadamente
a duas grandes classes: a burguesia e o proletariado)? Não faz sentido.
A ideologia marxista fala de estruturas. Mas
estruturas sociais não são nada se não forem redes (e redes sociais são pessoas
interagindo, não abstrações, constructs explicativos).
A sociologia tradicional (quer dizer, pré nova ciência das redes) encara as
redes como metáforas para organizações sociais, ou seja, para grupos de
indivíduos. Então as redes são, para ela, maneiras de apresentar ou visualizar
e, às vezes, investigar, relações entre esses indivíduos. Alega-se que as redes
sociais são modos de representação de estruturas sociais, mas o problema é que
não se sabe exatamente o que significa “estrutura” social. Esse conceito só
passa a ser inteligível se admitirmos que a “estrutura” disso que chamamos de
sociedade é conhecida pelas configurações recorrentes das relações entre as
pessoas… Ora, mas isso é, exatamente, o que significa ‘redes sociais’. Por isso
pode-se afirmar que estruturas sociais não são nada se não forem redes.
E isso significa, portanto, que a rede é
“anterior” ao grupo em termos, digamos, ontológicos. Grupo (agrupamento <=
aglomeração <= clustering) já é
um fenômeno que ocorre na rede. Assim, ao invés de dizer que redes são formas
de representação de agrupamentos, seria mais razoável dizer que agrupamentos
são configurações de rede. A ideia de que os atores (ou agentes) sociais
determinam o comportamento da sociedade quando se agrupam de uma determinada
maneira decorre de uma incompreensão da rede; ou seja, de uma incompreensão de
que ‘ator’ (ou ‘agente’) são “produzidos” pela tal estrutura social, quer
dizer, pela rede. Indivíduos humanos não são atores (ou agentes) nisi quatenus interagem. Mas quando interagem já
são rede. E quando se agrupam (uma forma de interação) não o fazem somente a
partir de supostas escolhas individuais, baseadas nas suas características
distintivas, posto que já estão sob o influxo da dinâmica de rede. E não se
agrupam em função de qualquer estrutura pré-existente à interação, como se
houvesse um mecanismo oculto embaixo do pano, uma máquina (no caso, econômica)
subterrânea capaz de produzir os efeitos que vemos na superfície da sociedade.
Em outras palavras, seres humanos são seres
humano-sociais, não são somente íons vagando em um meio gelatinoso e exibindo suas
qualidades intrínsecas e sim também entroncamentos de fluxos, identidades que
se formam a partir da interação com outros indivíduos. A pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao
mesmo tempo, como série intermitente de relacionamentos, se comporta como ator
(ou agente) por estar imersa (conectada e agrupada) em um ambiente interativo.
Portanto, são a interação e a clusterização que “produzem” o agente (ou ator).
Ninguém pode ser agente de si mesmo: atores sociais se constituem como tais na
medida em que interagem em clusters nas
redes socais.
A hipótese de que é a guerra (violenta ou
não-violenta, pouco importa na medida em que guerra não é violência e sim
construção e manutenção de inimigos) entre grupos sociais (chamados de classes)
que move a história pressupõe uma filosofia da história. A história passa a
ser, nessa filosofia, uma consequência de algo imanente, guardado em seu
ventre, que a leva para um lugar ou outro. Mas a história (supondo que se possa
falar de “a” história, no sentido de uma história – e não se pode) não vai para
lugar nenhum. Nós é que vamos, ou não vamos. E vamos ou não vamos escorrendo
por creodos que estão presentes no campo social e que dependem das
configurações dos fluxos interativos da convivência social.
Se acredito que existe uma história com um
mecanismo embutido que lhe dá sentido, também posso acreditar que o
conhecimento desse mecanismo será capaz de me revelar as suas leis. E aí já
estabeleço uma distinção geradora de poder, separando os que conhecem essas
leis e os que não as conhecem. Os que não conhecem devem ser então conduzidos
pelos que conhecem para que possa se cumprir o desiderato histórico. Note-se
aqui que não é uma interação de opiniões que conduz a história e sim um saber
sobre a história que confere a alguns agentes a capacidade distintiva de
orientar os demais. O agente tem a episteme que
o coloca num patamar diferente da massa que só possui a doxa. Isto é, rigorosamente falando, um platonismo que,
como todo platonismo, só pode levar à autocracia, não à democracia.
Voltemos, porém, à pergunta deste módulo. Ela,
na verdade, está afirmando que defender as instituições do Estado de direito
(sem as quais não pode haver democracia no âmbito dos países ou Estados-nações)
significa impedir a verdadeira democratização (da sociedade), mantendo a
dominação das elites (ou da classe dominante). Entretanto, não existe esta
“verdadeira democratização”: a democracia é o processo de democratização e esse
processo é político. É a política democrática – ou seja, a política que tem como
sentido a liberdade (não a igualdade econômica) – que pode democratizar
qualquer coisa. A igualdade é desejável, mas a ela não se pode chegar por fora
do processo político democrático: do contrário, a alguém, por vias não-democráticas,
caberia democratizar a sociedade (tornando-a, supostamente, mais igualitária).
Trata-se, portanto, de uma pergunta
autocrática, feita para suscitar respostas autocráticas.
21 – A missão do Estado
(quando nas mãos certas) não é educar a sociedade para que os cidadãos possam
conviver no espaço público, evitando com isso a prevalência da dominação de
grupos privados sobre a maioria do povo? Então de que vale a democracia se os
cidadãos não forem educados politicamente (por um Estado colocado a serviço das
maiorias) para se conduzir no espaço público?
As duas perguntas contidas nesta questão
caracterizam um tipo de pensamento (e de comportamento político) que chamamos
de estatismo. É necessário fazer uma introdução antes de passar às perguntas
colocadas.
O QUE É O ESTATISMO
O estatismo é um comportamento político que se
caracteriza por uma desvalorização da racionalidade da sociedade (julgada, não
raro, inexistente ou apenas um epifenômeno) em relação à racionalidade do
Estado (para o estatismo a sociedade uma espécie de dominium do Estado, quase no sentido feudal do
termo) e por uma desconfiança na capacidade de autorregulação do mercado (e da
própria sociedade).
O estatismo é um estadocentrismo. Mas o
problema (que os adeptos das doutrinas do liberalismo-econômico não percebem) é
que o estatismo não se opõe apenas ao mercadocentrismo (a atribuição ao mercado
de um papel regulador não só da economia, mas da sociedade: o que é um
transbordamento ou um deslizamento da regulação que funciona em um campo de eventos
para outro campo de eventos, regidos por lógicas distintas) e sim à autonomia
da sociedade, à sua subsistência por si mesmo, com racionalidade própria (e não
derivada ou emprestada do Estado ou do mercado) e é por isso, fundamentalmente,
que todo estatismo é antidemocrático: não porque seja contra uma impossível
regulação mercantil da sociedade (já que é a economia que tem ser de mercado,
não a sociedade) e sim porque é contra uma regulação social (ou societária) da
sociedade. Sem uma regulação social da sociedade não poderia ter surgido a
democracia, de vez que a polis não
era a cidade-Estado e sim a koinonia (a
comunidade) política e que a polis – como
sacou genialmente Johanna Arendt – não era Atenas (a entidade abstrata, o
Estado) e sim os atenienses (a rede concreta de pessoas que geraram a democracia
por meio das suas conversações na Ágora, uma praça publicizada, tornada, pela
interação dos atenienses livres, um espaço público, quer dizer, não privatizado
pelo autocrata).
Os que acham que só a partir do Estado se pode
promover transformações na sociedade são estatistas (no sentido político do
termo).
Assim, a questão do estatismo, antes de ser um
tema econômico, é matéria da política. O estatismo, em termos estritamente
políticos, é um comportamento (político) que não se caracteriza apenas, nem principalmente,
pelo fato do Estado se meter na economia. A questão central, para a democracia,
é o padrão de relação Estado-sociedade e não o padrão de relação
Estado-mercado. Isso, por certo, é também muito importante, mas não pode elidir
a questão central.
Estatistas, em termos políticos – convém
repetir – pensam que cabe ao Estado promover transformações na sociedade,
conduzir a sociedade, educar a sociedade.
Resumindo. O estatismo é definido como um tipo
de comportamento político conforme a uma visão estadocêntrica do mundo que não
reconhece, para além do Estado, a autonomia – e, em alguns casos, a
legitimidade – de outros modos de agenciamento, como o mercado e a sociedade
civil, as comunidades glocais e as redes (mais distribuídas do que
centralizadas) de pessoas.
ONDE O ESTATISMO SE MANIFESTA
O estatismo não incide apenas no comportamento
político que foi identificado como fascismo (nazismo ou nacional-socialismo),
mas também naqueles comportamentos de raiz marxista (marxista-leninista ou
marxista-gramscista) que se declararam socialistas ou comunistas (do socialismo
realmente existente) e, ainda, nos diversos tipos de jihadismo (com ou sem
Estado formal instalado e reconhecido), como o jihadismo fundamentalista
islâmico ou os jihadismos laicos (de caráter nacionalista e, via de regra,
militarista), nas teocracias (como a iraniana) e nas ditaduras em geral e, por
último, nas formas híbridas (como o neoexpansionismo da Rússia de Putin que
pretende reeditar a guerra fria e a política de blocos – neste caso apenas como
pretexto para consolidar uma hegemonia de longa duração de um grupo privado
sobre a sociedade russa a partir do Estado controlado pela FSB).
COMO SURGIU O ESTATISMO
O estatismo não nasce de boas ou más intenções
das pessoas e sim de uma perturbação no campo social introduzida, antes de
qualquer coisa, pelo que chamamos de Estado e que, em determinadas situações
gera uma configuração da rede que favorece certos tipos de conversações
patriarcais hard. Essas conversações é que
constituem a cultura (ou a ideologia) que chamamos de fascismo latu sensu. Mas – como já foi assinalado – ela não
predominava na polis ateniense do século 5
(ou na koinonia democrática que se conformou entre 509 e
322 a. E. C.), assim como não predomina hoje, conquanto esteja presente (e
estará em alguma medida enquanto houver Estado), em cerca de duas a três
dezenas de países que experimentam mais plenamente a democracia reinventada
pelos modernos (a democracia representativa), mas continua viva, resiliente que
só, em cerca de 60 Estados-nações ditatoriais remanescentes ou florescentes sob
os quais vive mais da metade da população do planeta!
POR QUE OS DEMOCRATAS SE OPÕEM AO ESTATISMO
Democratas são contra todos os estatismos (já
que todo estatismo é autocrático), inclusive contra os estatismos classificados
(pela esquerda) como “de direita”, conservadores, reacionários,
contrarrevolucionários, que querem caçar comunistas (como presenciamos no
século passado nos regimes dirigidos por Franco, Salazar, Médici e Frota,
Pinochet, Videla e Galtieri, Bordaberry e Méndez: sim, todos eles eram
anticomunistas estatistas).
Mas democratas também são contra os estatismos
ditos “de esquerda” (como presenciamos no século passado com a URSS e seus
satélites, Cuba, China, Coreia do Norte e mais duas dezenas de regimes
ditatoriais considerados revolucionários e, neste século, com o bolivarianismo
de Chávez e Maduro, Evo, Correa e Ortega e com o populismo dos Kirchners, de
Lula e Dilma, de Mujica e Vásquez e, talvez, de Funes e Cerén).
Além disso, democratas são contra os estatismos
expansionistas ou pró-imperiais, sem coloração ideológica muito definida, que
querem reeditar a guerra fria e a política de blocos que declinou em 1991 com a
bancarrota da URSS, como o de Putin na Rússia.
Por último, democratas são contra os estatismos
baseados em fundamentalismos religiosos, vigentes, sobretudo, nos regimes sob a
influência do islamismo: no Afeganistão, na Arábia Saudita, na Argélia, no
Azerbaidjão, em Barein, em Brunei, em Burkina Faso, no Cazaquistão, no Chade,
em Comoros, na Costa do Marfim, em Djibuti, nos Emirados Árabes Unidos, na Eritreia,
na Gâmbia, na Guiné, no Irã, na Jordânia, na Líbia, em Marrocos, na Nigéria, em
Omã, na Faixa de Gaza sob o controle do Hamas, no Qatar, na Síria, na Somália,
no Sudão, no Turcomenistão, no Uzbequistão e no Yemen. E agora, infelizmente,
na Turquia. Sim, todos esses regimes são estatistas, subordinam (ou querem
subordinar) seus povos à sharia ministrada
a partir do Estado, instalam teocracias (autocracias fortemente centralizadas)
ou sonham com um califado (que não passa de um Estado capaz de dominar uma
extensa região do mundo ou o mundo todo).
Para resumir, podemos dizer – se isso não fosse
óbvio, posto que faz parte da própria definição “genética” de democracia como
processo de desconstituição de autocracia – que democratas são contra
ditaduras, protoditaduras (regimes em processo de autocratização) e democracias
formais parasitadas por governos populistas ou neopopulistas manipuladores de
viés estatista (sim, o populismo é um estatismo).
O ESTATISMO É A GUERRA
Como todos os estatismos – inclusive aqueles
disfarçados sob o rótulo de nacionalismo ou patriotismo – são guerreiros, posto
que todas as formas conhecidas de Estado nasceram da guerra, inclusive a última
forma Estado-nação, também ela um fruto da guerra, da Paz de Wesfália, pode-se
dizer que os democratas se definem por serem contra a guerra. Mas é preciso
entender que a guerra não é o conflito violento e sim construção e manutenção
de inimigos. E também que a guerra não visa propriamente destruir os inimigos,
senão mantê-los como tais para que seja possível instalar internamente um
estado de guerra: condição para estruturar cosmos sociais segundo padrões hierárquicos
regidos por modos autocráticos de regulação. Por último, é preciso entender que
o objetivo da guerra não é matar pessoas e sim matar a rede social (aquela sem
a qual não poderia ter sido inventada a democracia).
Comunistas e anticomunistas, como agentes da
guerra fria, são guerreiros (ou militantes, quer dizer, jihadistas). Quando
prevalecem, instalam estados de guerra nas sociedades que dominam (sob o
pretexto de combater inimigos externos ou internos, tanto faz). Com isso
deformam os ambientes sociais a tal ponto que inviabilizam a vida comunitária stricto sensu, aquela que não é regida por uma ordem top down e nem pelo consenso administrado e sim
por uma ecologia de diferenças coligadas (somente na medida da qual a
democracia pode ser experimentada).
Feita esta introdução, voltemos às duas
perguntas que compõem a questão do presente módulo.
A primeira pergunta é a seguinte. A missão do
Estado (quando nas mãos certas) não é educar a sociedade para que os cidadãos
possam conviver no espaço público, evitando com isso a prevalência da dominação
de grupos privados sobre a maioria do povo?
Não, não é. Como vimos anteriormente, o Estado
não tem a missão de educar a sociedade. O Estado não é o professor da sociedade
e sim apenas uma forma de governança que surgiu em função da guerra e que deve
ser domesticada pela sociedade para servi-la. Não passa de ideologia estatista
imaginar que o Estado tenha alguma “missão”. Isso fazia parte da narrativa
legitimatória do Estado nos regimes autocráticos, narrativa segundo a qual essa
“missão” teria sido conferida aos governantes por um poder sobre-humano (os
reis acreditavam-se – ou eram assim apresentados – como ungidos por deus ou por
um deus). Esta ideia de Estado como materialização do espírito ou da vontade
divina (ou de alguma realidade ou entidade transcendente) leva a uma espécie de
culto do Estado (muito comum nas autocracias).
Além disso, o Estado não é um ente público, a
não ser nas democracias. O espaço público – ou o público em geral – nas
autocracias é sempre privatizado (pelo autocrata).
Por último, grupos privados não são apenas,
como dá a entender a pergunta, agentes econômicos que privatizam a esfera
pública para satisfazer os seus interesses. Corporações e partidos são também
grupos privados e igualmente privatizam a esfera pública, não raro capturando o
Estado para usá-lo como instrumento de consecução de seus interesses, ainda que
refratados como propostas ou projetos políticos.
Em regimes autocráticos, em geral, temos um
partido fundido ao Estado, um partido que conquistou hegemonia sobre a
sociedade e transformou a sociedade em um ente privado. Não raro, nesses
regimes, há um líder supremo, benfeitor, condutor, com alta gravitatem e carisma, que ocupa o centro (ou o
topo) do Estado para fazer uma ligação direta com as massas bypassando as mediações institucionais interpostas pela
democracia. Em tais circunstâncias, os direitos passam a ser encarados como
privilégios (ou concessões de um benfeitor) e os cidadãos são reduzidos a
súditos (do Estado e, às vezes, do chefe de Estado). No limite, as pessoas –
todas as pessoas – são transformadas em funcionários (stricto ou latu sensu) do
Estado.
A segunda pergunta é a seguinte. Então de que
vale a democracia se os cidadãos não forem educados politicamente (por um
Estado colocado a serviço das maiorias) para se conduzir no espaço público?
Essa segunda pergunta já foi, em grande parte,
respondida na introdução acima. Cabe acrescentar que a democracia é,
justamente, essa “educação política” dos cidadãos, mas não ministrada pelo
“professor Estado” (supostamente a serviço das maiorias). É a livre interação
política dos cidadãos que gera o espaço público (commons), ou
seja, é esse tipo de fazer político ex parte populis que
publiciza os espaços que foram privatizados (ainda que sejam declarados
nominalmente públicos). E não a aplicação de um programa governamental ou a
execução de uma diretiva qualquer emanada do Estado. A democracia é isto: um
deixar-aprender, não um ensinar ou ser ensinado por alguém (muito menos pelo
Estado).
22 – Como a democracia pode
ser tomada como um valor universal (como querem os democratas) diante de várias
culturas que não a valorizam? Não se trataria, mais propriamente, de um valor
ocidental? Como esperar que outras culturas (como o islamismo, por exemplo, mas
vale também para culturas orientais, como a confucionista-chinesa e para culturas
de povos primitivos) possam adotá-la contra todas as suas tradições e costumes?
Em primeiro lugar é preciso ver o que é um
valor. Valor é alguma coisa valorizada por seres humanos. A democracia é um
valor para os que a valorizam, no caso, para os que desejam viver sem um
senhor. Para os que não desejam, para os que têm vocação para rebanho, para
servos que valorizam a proteção que lhes possa dispensar um governante
paternalista, um déspota bondoso – mesmo que seja um tirano ou ditador, mas que
lhes cavalgue com gentileza e se ofereça para resolver seus problemas, a
democracia não é um valor.
Os democratas afirmam que a democracia é um
valor universal. E o fato de certos povos, imersos na cultura islâmica (ou em
outras culturas patriarcais em estado mais puro, ou seja, menos domesticadas e
reformadas pelos fluxos interativos da convivência social), não aceitarem a
democracia, não significa que a democracia não seja um valor universal (e sim
ocidental, como querem os multiculturalistas). A democracia continua sendo um
valor universal: o que significa que ela continua sendo valorizada universalmente
(isto é, em qualquer época ou lugar) pelos que pensam (e se comportam
condizentemente com esse pensamento) que o sentido da política é a liberdade (e
não a ordem, como afirmam os autocratas). Este ponto é básico.
Humberto Maturana (1993), no texto intitulado
Conversações matrísticas e patriarcais (primeira parte do livro Amar e brincar:
fundamentos esquecidos do humano) escreve que,
“como nem todas as formas de patriarcado
têm um núcleo cultural matrístico na infância, nem todas elas incluem um fundo
de conversações matristicas que permitam um emocionar adulto, no qual as
conversações democráticas podem ser vividas como algo que faz sentido como um
modo naturalmente legítimo de coexistência. Tal acontece, por exemplo, nas
formas patriarcais mais puras, como aquelas dos povos que vivem sob as
diferentes ramificações da religião muçulmana. As pessoas que cresceram
originalmente no seio das conversações patriarcais muçulmanas devem primeiro
modificar algumas dimensões de seu espaço convencional e orientá-las de modo
matrístico, para que as conversações democráticas façam sentido para elas como
geradoras de um espaço de coexistência legítimo e desejável”.
Convém entender o que Maturana chama de
matrístico:
“O termo “matrístico” é usado… com o
propósito de conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística,
que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do
autoritário e do hierárquico. A palavra “matrístico”, portanto, é o contrário
de “matriarcal”, que significa o mesmo que o termo “patriarcal”, numa cultura
na qual as mulheres têm o papel dominante. Em outras palavras – e como se verá
ao longo deste capítulo -, a expressão “matrística” é aqui usada
intencionalmente, para designar uma cultura na qual homens e mulheres podem
participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não-hierárquica. Tal
ocorre precisamente porque a figura feminina representa a consciência
não-hierárquica do mundo natural a que nós, seres humanos, pertencemos, numa
relação de participação e confiança, e não de controle e autoridade, e na qual
a vida cotidiana é vivida numa coerência não-hierárquica com todos os seres
vivos, mesmo na relação predador-presa”.
No TEXTO 02 já enviamos a íntegra do capítulo
em que Maturana trata do assunto. Se você ainda não leu, clique aqui para
baixar e releia: SEM DOUTRINA TEXTO 02
Para responder a última pergunta da questão
deste módulo – como esperar que outras culturas (como o islamismo, por exemplo,
mas vale também para culturas orientais, como a confucionista-chinesa e para
culturas de povos primitivos) possam adotá-la contra todas as suas tradições e
costumes? – deve-se dar uma resposta semelhante à de Maturana. As pessoas que
cresceram no seio de culturas caracterizadas por conversações patriarcais, se
quiseram que a democracia faça sentido para elas, devem primeiro modificar seus
modos de convivência social. A democracia é liberdade de opinião e é difícil
entender isso por quem não tem nem sequer o conceito de opinião. As pessoas,
nessas culturas, não acham que podem opinar sobre assuntos que estão a cargo de
hierarcas, designados pelo próprio deus ou pelas autoridades instituídas pela
divindade (no caso do Islã, pelo Corão, pela Sharia, pelos sacerdotes e professores
autorizados a interpretá-los). A opinião da pessoa comum não é matéria prima da
política quando a política está fundida à religião ou a outra ideologia ou
doutrina qualquer considerada a única válida e verdadeira. De que valeria, por
exemplo, a opinião de uma pessoa qualquer do povo diante do saber de um
aiatolá?
A democracia só pode se exercer (e fazer
sentido) se as opiniões forem consideradas e aferidas pelo processo político,
se puderem ser livremente proferidas e se forem igualmente valorizadas em
princípio (tanto a opinião do sábio quanto a do ignorante e tanto a opinião do
clérigo como a do leigo). Em culturas fortemente patriarcais, isso não
acontece. Logo, para as pessoas imersas nessas culturas, que não romperam as
circularidades próprias das conversações que caracterizam (e, mais do que isso,
que são) essas culturas, a democracia não pode se exercer e nem mesmo fazer
sentido.
Porém nada disso significa – como vimos acima –
que a democracia não seja um valor universal. Os que romperam com esses laços
de retroalimentação de reforço da cultura patriarcal, mesmo que tenham nascido
e vivam em localidades onde essa cultura é predominante, podem assumir a
democracia, em geral na forma de resistência às ideias e práticas dominantes.
Para estes, a democracia continuará a ser um valor universal.
Mas isso só acontecerá se houver, em algum
grau, miscigenação de culturas. A perspectiva multiculturalista, que quer
preservar qualquer cultura como se fosse patrimônio intocável da humanidade,
colocando-se contra a miscigenação cultural, é um obstáculo para que tal
processo de conversão à democracia possa ocorrer.
Ademais há a questão dos direitos humanos,
intimamente relacionada à democracia (por razões que não serão tratadas aqui).
Os democratas, em nome do respeito a outras culturas, não podem concordar com a
violação de direitos humanos; por exemplo, não podem aceitar o apedrejamento de
mulheres adúlteras ou a extirpação do clitóris de crianças e jovens, nem
transigir com outras práticas desumanas de dominação patriarcal (como o
assassinato ou o tratamento cruel dispensado a lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais e transgêneros).
Amartya Sen (1999), foi o principal divulgador
da ideia de democracia como valor universal. Seu texto, que já é um clássico,
intitulado A democracia como um valor universal, pode ser baixado no link
abaixo:
23 – Se não há uma ordem
moral perene, ou seja, se as pessoas não têm um sentido forte de certo e
errado, com convicções sobre a justiça e a honra, ficando moralmente à deriva e
movidas pela satisfação de seus apetites, pode haver uma boa sociedade? E se
existe essa ordem moral, quais os indícios de que ela aponta para a democracia
como um regime mais adequado à sua prevalência?
Esta é uma questão típica do conservadorismo
político. Os conservadores acreditam que existe uma ordem moral.
Trata-se, obviamente, de uma crença – uma
ideologia stricto sensu: o conservador acredita em alguma coisa, não se comporta – ou
interage – desta ou daquela maneira. Ele acredita, quer
dizer, adota um filtro para transformar caos em ordem.
É significativo que conservadores coloquem
sempre, em primeiro lugar, justamente a ordem (entre Hobbes e Spinoza, eles
ficam, sem qualquer dúvida, com o primeiro – o que, de pronto, já aponta para
fundamentos autocráticos, não democráticos, do seu pensamento).
Uma ordem moral? Como se teria estabelecido –
ou quem teria estabelecido – essa ordem moral? Ela seria imanente ao ser
humano, à natureza ou à história? Ou seria transcendente (como uma potência
super-humana e extra-social – um deus, por exemplo – com capacidade de intervir
na história ou de dar o primeiro piparote)?
Segundo o pensamento político conservador, essa
ordem moral seria duradoura, posto que inerente à natureza humana (?) que,
coerentemente, seria constante. Por isso que as “verdades
morais” seriam permanentes. Seria uma ordem interna da alma,
diferente da ordem exterior da comunidade (esta separação – que nem todos os
pensadores conservadores deixam explícita – é um ponto importante, que
mereceria ser abordado em maior profundidade).
Todo pensamento conservador está baseado nesta
ideia de ordem. É evidente que, a não ser que se admita, como premissa evidente
por si mesma, que haja um ordenador extra-humano do mundo humano, um deus
criador do ser humano, esta ordem não passa de uma ordem estabelecida pela
visão (conservadora) e não uma ordem pré-existente à visão, capaz de autorizá-la
e validá-la. Ou seja, os conservadores não obtiveram essa visão da ordem a
partir de alguma descoberta sobre a natureza humana (seja lá o que for).
Simplesmente proclamaram que tal ordem existe.
Não vamos entrar agora do debate infindável
sobre a natureza da natureza humana (uma controvérsia que não se resolve sem se
chegar a um acordo sobre o que é humano: o ser biológico, o indivíduo da
espécie Homo Sapiens, ou do gênero Homo ou o complexo biológico-cultural, o ente
social que chamamos de pessoa)? Por enquanto, fiquemos com a distinção entre
dois tipos de ordem (sendo que ordem, para alguns conservadores, significa
harmonia – e aqui há outro problema, que examinaremos logo adiante): a ordem
interna da alma e a ordem exterior da comunidade.
Alguns conservadores, como Russel Kirk (1),
para justificar tal distinção, alegam que “Platão ensinou esta
doutrina” (olha aí a ideologia novamente). Está correto. Platão
ensinou mesmo esta doutrina, de uma ordem anterior (ontologicamente) ao mundo,
uma ideia, uma forma perfeita, pré-existente, ex ante à
interação, que foi se corrompendo com a interação. Mas esse pensamento leva,
necessariamente, à autocracia, não à democracia. Por isso que Platão era um
adversário da democracia. O mundo real (fenomênico), o conjunto de eventos que
ocorrem sempre em razão de algum tipo de interação, não é bem o verdadeiro
mundo, como modelo ou arquétipo, existente antes da interação, ou seja, o mundo
das formas ideais universais que existem (ou existiam) antes da corrupção do
tempo… Por isso, os que têm acesso a esse mundo das formas por meio do
conhecimento (episteme) têm o direito – e o
dever, supõe-se – de dirigir os que não o têm e que se debatem no particular e
no precário mundo das opiniões (doxa). Este é o
fundamento do governo dos sábios de Platão, como se sabe, um regime político (a
rigor, apolítico) autocrático, baseado na separação entre sábios e ignorantes
(em que os segundos estão condenados a ser dirigidos pelos primeiros).
A ideia de ordem como harmonia, entretanto, traz
outro problema. A harmonia é um ideal extra-político. Quem precisa de harmonia
é a autocracia (para que cada coisa fique no seu melhor lugar, como as partes
de um quadro de Velázquez – dizia o fundador da Opus Dei, Josemaría Escrivá de
Balaguer – e não saia saliente por aí mudando de posição). A democracia nunca
pretendeu materializar um ideal de harmonia capaz de se expressar socialmente
na forma política do consenso (derivado do conhecimento certo sobre qualquer
ordem). Porque a democracia não tem como finalidade consertar a sociedade e
pacificar os homens que dissentem por terem interpretações divergentes do bem a
ser alcançado a partir de uma fórmula harmonizante dos conflitos. A democracia
é, justamente, uma convivência com o conflito (portanto, desarmônica) e uma
forma não guerreira de regulá-lo: mas mantendo o dissenso, não suprimindo-o.
Para continuar tomando como exemplo um autor
conservador, como Kirk. A boa sociedade,
segundo suas próprias palavras, é aquela em que “os
homens e as mulheres são governados pela opinião em uma ordem moral perene, por
um sentido forte de certo e errado... [não] uma sociedade em que os homens e as mulheres estão moralmente à deriva,
ignorantes das normas, e movidos primariamente pela satisfação dos seus
apetites…” (esta seria, para ele, a má sociedade).
Esse sentido forte de certo e errado se
expressaria, por exemplo, por “convicções pessoais sobre a
justiça e a honra”. Mas trata-se realmente de uma opinião? Ou de uma
crença na ordem moral derivada de um conhecimento (da crença)? Se Kirk fala das
pessoas “ignorantes das normas”, parece que se trata mesmo de
conhecimento (das normas), ou seja, de uma opinião que só pode ser válida
quando expressa um conhecimento verdadeiro, uma orto-doxa (que
é a negação da doxa, que é sempre qualquer doxa).
Mas se há uma ordem moral duradoura, inerente à
natureza humana – já que é a ordem que “está feita para o homem e o
homem é feito para ela” – como os homens podem deixar de
cumpri-la entregando-se aos seus apetites e ignorando-a? E se os homens podem
ignorá-la, a despeito de essa ordem moral estar inscrita na sua natureza,
trata-se então de fazê-los conhecê-la? Tudo indica que sim. Ou seja, existe uma
ordem correta, mas para adotá-la como critério axiológico-normativo, aos homens
não basta se comportarem de acordo com a sua natureza: eles precisam conhecê-la
discricionariamente, não por comercium spiritum e
sim pela apreensão de um nexus rerum –
o que significa conhecer um discurso sobre ela. Ora, isso significa que há um
conteúdo a ser apreendido. Como fez Platão, é preciso ensinar-lhes (aos homens)
uma… doutrina.
A ideologia da ordem é uma doutrina que temos
que ensinar aos homens para que sua sociedade seja boa. Este princípio revela
um cognitivismo, não um interativismo. É um apreender alguma coisa e não um
aprender na vida comum (pela experiência de interagir no fluxo da convivência
social, mudando com o mundo, como dizia Maturana). Ou seja, é uma ideologia de
professores que, como toda ideologia de professores, é uma kabbalah que substitui a árvore (ou ordem) da vida
pela árvore (ou ordem) do conhecimento sobre a vida (que alguém – eis o ponto –
ordenou, posto que ela não pode ser aprendida espontaneamente por todos, mas
deve ser ensinada ou apreendida por força de um ensinamento). Ora, isso não é
uma ordem emergente da interação, bottom up e
sim uma ordem pré-existente à interação que deve ser estabelecida top down pelos que conhecem as normas
capazes de levar a sociedade a ser uma sociedade boa.
Para a democracia, entretanto, não é necessário
supor a existência ou a não existência de qualquer ordem moral. A democracia
não trata desse assunto. Se há ou não há, é irrelevante para os democratas –
desde que não se derive, da existência ou da não-existência dessa ordem,
qualquer prescrição sobre como deverá ser a sociedade para ser uma boa
sociedade.
A boa sociedade, para os democratas, é aquela
que não é dirigida por um senhor, ainda quando esse senhor seja o próprio autor
dessa ordem moral ou seu legítimo representante. A boa sociedade democrática
não é dominada nem mesmo por um deus, muito menos pelo seu profeta (na verdade
tratar-se-ia aqui de um falso-profeta, na concepção dos profetas hebreus do
Norte da atual Palestina do primeiro milênio AEC; ou seja, seria um sacerdote –
ou uma casta sacerdotal).
Passemos à segunda parte da pergunta contida na
questão do presente módulo: se existe essa ordem moral, quais os indícios de
que ela aponta para a democracia como um regime mais adequado à sua
prevalência?
Já vimos que não precisamos entrar na questão
de se existe ou não existe essa ordem moral. Mas mesmo que existisse tal ordem
moral, não poderia haver nenhum indício de que ela apontasse para a democracia.
A democracia não é o resultado da prevalência de uma ordem. Não pressupõe a
imposição de uma ordem (top down) e sim a
possibilidade da emergência de muitas ordens (bottom up). Ou
seja, a democracia é uma aposta no processo de auto-organização. Não que
qualquer ordem emergente seja melhor do que outras (ou todas as outras já
experimentadas ou ideadas). A aposta democrática não é esta. A aposta
democrática é que as ordens que emergem da interação propriamente política
garantem mais-liberdade aos seres humanos do que as ordens pré-existentes,
impostas por hierarcas e autocratas, ainda quando estes fossem os mais sábios e
bons dentre todos os humanos que já habitaram ou habitam o planeta.
(1) Cf. KIRK, Russell (1993). Dez princípios
conservadores. Adaptado da Política da Prudência (ISI Livro, 1993). Copyright © 1993 por Russell Kirk. Usado com permissão
do espólio de Russell Kirk. Traduzido para o português e publicado na
Internet por Ivan C. P. da Cruz com autorização de Annette Kirk. Texto
original em inglês em (Original text in English at): The Russell Kirk
Center of Cultural Renewal
É interessante ler agora o opúsculo de FRANCO,
Augusto (2017). Conservadorismo, liberalismo-econômico e democracia. São Paulo:
Dagobah, 2018. Ele pode ser baixado em PDF aqui: FRANCO, Augusto (2017) Conservadorismo, liberalismo-econômico e
democracia
Também pode ser útil ler o artigo Um exemplo de
como são conservadores os nossos liberais, no link: http://dagobah.com.br/um-exemplo-de-como-sao-conservadores-os-nossos-liberais/
E ainda o artigo Todas as velhas doutrinas
políticas são conservadoras, no link: http://dagobah.com.br/todas-as-velhas-doutrinas-politicas-sao-conservadoras/
E, por último, o artigo Pensamento
conservador e democracia, no link: http://dagobah.com.br/pensamento-conservador-e-democracia/
24 – Todas as tentativas de
construir sociedades mais igualitárias (como almeja a democracia) não acabaram
ensejando a ereção de regimes totalitários?
Bem, em primeiro lugar a democracia não almeja
construir sociedades mais igualitárias. A não ser do ponto de vista político,
quer dizer, do ponto de vista da igualdade de condições de interação política
(e, mesmo assim, no que depende da liberdade de opinião, quer dizer, da
liberdade de qualquer um de proferir opiniões no espaço público, da valorização
em princípio de todas as opiniões e da não desvalorização da opinião em relação
a qualquer saber: técnico, científico ou filosófico).
A democracia jamais pretendeu construir
sociedades igualitárias do ponto de vista socioeconômico. A democracia tem a
ver propriamente com liberdade, não com igualdade (a não ser a igualdade
política). A democracia não é a utopia de uma sociedade sem desigualdade
(socioeconômica ou cultural) e sim a topia de uma
sociedade sem desliberdade.
Ao contrário das utopias autoritárias, a democracia
jamais coloca a igualdade como condição para a liberdade. A liberdade da
democracia é sempre para hoje, nunca para algum futuro imaginado, um reino da
liberdade que, para ser alcançado algum dia, exige o sacrifício da liberdade
que se possa ter hoje.
Vale a pena aqui dar uma parada para ler o
pequeno artigo O conceito de desliberdade, disponível no link http://dagobah.com.br/o-conceito-de-desliberdade/
No entanto, todas as tentativas de construir
sociedades mais igualitárias, inspiradas por utopias que prometiam um reino da
liberdade no futuro, acabaram levando, como diz a pergunta, a regimes
autocráticos (em muitos casos, totalitários). Mas tais tentativas não foram
democráticas. Foram aplicações de doutrinas sobre o que seria, idealmente, a
boa sociedade.
A felicidade como ideal supremo; a igualdade
como ideal supremo (e como pré-condição para a liberdade) ou a ideia de que não
pode haver (verdadeira) liberdade sem (ou até que se alcance a perfeita)
igualdade; a abundância como ideal supremo (que, para ser alcançado, exige a
politização da economia como administração da escassez, em geral
artificialmente introduzida); enfim, a utopia (qualquer utopia) como modelo a
ser alcançado no futuro (e que, para ser alcançada, exige algum tipo de
sacrifício ou de restrição às liberdades no presente) – são ideias-implante ou
rotinas do programa básico da autocracia.+
Agora chegou a hora de ler (ou reler) –
tentando identificar os padrões autocráticos presentes no texto – o pequeno
livro de George Orwell (1945) A revolução dos bichos. Ele pode ser lido em uma
única página no link: http://dagobah.com.br/a-revolucao-dos-bichos-de-orwell/
25 – Como se pode provar que
a resultante do entrechoque de múltiplas opiniões que refratam interesses
distintos e, em muitos casos, contraditórios, existentes em uma sociedade onde
se exercita um processo democrático de decisão, seja melhor, para o presente e
para o futuro daquela sociedade, do que a decisão tomada por apenas algumas pessoas
portadoras de conhecimentos acumulados sobre a matéria que está sendo objeto da
decisão?
Boa pergunta. Que enseja uma resposta, até
certo ponto, desconcertante: não se pode provar nada disso.
Como assim? Não se pode?
Sim, não se pode.
E por que então devemos aderir à democracia?
Quem disse que devemos? Só os democratas
dizemos isto. Só devem aderir à democracia os que não quiserem viver sob o jugo
de um senhor. Lembram-se do que disse Ésquilo (472 AEC), em Os Persas, pela
boca do Corifeu, tentando explicar para Atossa, viúva de Dario, mãe de Xerxes,
quem eram os atenienses?
“Atossa: Quem é seu senhor?
Corifeu: Não são escravos, nem súditos de
ninguém”.
Não se pode provar que a democracia seja o
melhor regime político do mundo (ela só o é para os democratas). Não se pode
provar, igualmente, que seja o regime mais eficiente para alcançar qualquer
objetivo (a não ser o objetivo dos seres humanos conviverem autorregulando seus
conflitos de modo não-guerreiro, ou seja, viverem coletivamente como seres
políticos).
Por outro lado…
Observa-se que países mais democráticos estão
também nos primeiros lugares nos rankings dos
países mais desenvolvidos. Mas isso não quer dizer, por exemplo, que a
democracia sirva para alcançar maior crescimento econômico. Neste sentido, a
democracia não é necessária em termos instrumentais, embora seja desejável
(pelos democratas).
Observa-se, entretanto, que países democráticos
(não todos, mas em média) são países menos assolados por conflitos internos
violentos (tipo guerra civil). Mas isso não é uma regra geral.
O que se pode afirmar com certeza é que países
democráticos não costumam guerrear entre si. Quem duvidar disso deve procurar
um contraexemplo para desmentir tal constatação.
Então, se a paz for um valor ou um objetivo, a
democracia parece ser mais recomendável do que qualquer outro tipo de regime.
Também se pode afirmar com certeza que em
países democráticos há mais liberdade.
Se a liberdade for um valor ou um objetivo, a
democracia é melhor do que todos os outros regimes que foram experimentados nos
últimos cinco a seis milênios, quer dizer, neste longo período chamado de
civilização (que é a civilização patriarcal).
Mas não se pode dizer que a democracia seja
melhor (melhor para quê?) do que todos os modos de regulação de conflitos
adotados pelos diversos padrões societários dos Homo
Sapiens. Por exemplo, não se pode dizer que um Estado regido por
modos democráticos seja melhor do que uma tribo paleolítica ou do que uma
aldeia agrícola neolítica (onde não há Estado e, a rigor, nem mesmo política).
Para essas formas pré-patriarcais de organização societária, a democracia,
aliás, não faz o menor sentido. Ela é um processo de desconstituição de
autocracia e, portanto, onde não há autocracia não pode haver democracia.
É preciso ter sempre em mente que a democracia,
historicamente, foi uma brecha aberta na civilização dos predadores e dos
senhores. É recomendável aqui reler agora o TEXTO 02 – A democracia, de
Humberto Maturana (1993), que já foi enviado e está disponível neste link: SEM DOUTRINA TEXTO 02
Dito isto, enfrentemos agora a questão colocada
neste Módulo 25. A questão proposta, em outras palavras, é a seguinte: um
processo democrático de decisão será sempre mais bem-sucedido do que um
processo não-democrático, sobretudo quando a decisão depende de conhecimentos
acumulados sobre o tema em tela? Ou seja, especialistas na matéria que está
sendo tratada não poderiam tomar decisões melhores, mais embasadas tecnicamente
ou cientificamente, do que aquelas que resultam da combinação de miríades de
opiniões desinformadas, leigas, ignorantes das causas e consequências dos
problemas em discussão?
A resposta é novamente surpreendente. Sim. Dependendo
do tema em questão, o conhecimento de especialistas pode levar a soluções
melhores para um problema do que a opinião do vulgo. Uma junta médica, por
exemplo, poderá dar um diagnóstico (e receitar um tratamento) melhor (para o
paciente, hehe) do que uma votação da
comunidade a que pertence um indivíduo portador de uma enfermidade. É melhor
seguir cegamente as decisões de um piloto experimentado de uma embarcação em
meio a uma tempestade do que propor uma discussão democrática de todos os
passageiros para saber o que fazer.
Esses argumentos já haviam sido empregados por
Platão, pela boca de Sócrates, para desqualificar a democracia, mas o problema
é que eles são desonestos (como veremos adiante). A democracia jamais quis
desqualificar o saber técnico ou científico ou substituí-lo pelo confronto de
opiniões desinformadas. Quando o tema é técnico ou científico, convoquem-se os
especialistas. A democracia não cuida disso e sim dos assuntos propriamente
políticos, que têm a ver com decisões sobre os temas comuns, que digam respeito
à auto-condução da comunidade.
Examinemos a questão com mais profundidade.
Platão, em “O Político”, usa um argumento
desonesto para desqualificar a democracia ateniense, acusando-a falsamente de
submeter à decisão coletiva, por meio do debate político, assuntos de natureza
técnica (como a medicina ou a pilotagem naval, mencionadas acima). O argumento
é desonesto porque ele sabia que os democratas gregos não procediam assim. Vale
a pena ler a opinião de Cornelius Castoriadis (1986), que analisou o texto de
“O Político” em profundidade, sobre essa tentativa platônica de desqualificar a
democracia como regime político baseado na opinião e não no saber
científico-técnico:
“A maneira pela qual ele (Platão) descreve
o regime democrático ateniense… é uma caricatura grotesca absolutamente inaceitável.
Ele o apresenta como se fosse um regime que decide arbitrariamente sobre o que
é bom ou mau na medicina, que designa por sorteio as pessoas que devem realizar
as prescrições e depois lhes pede prestação de contas… Argumentação
perfeitamente inadmissível e desonesta precisamente porque, em Atenas, aquilo
sobre o que a cidade decide não são os problemas, as questões, os temas sobre
os quais um saber técnico existe. A cidade decide sobre as leis em geral, ou
decide sobre os atos do governo, mas não há leis referentes ao governo como
atividade. Todo o paralelo feito por Platão com o governo de um navio ou com a
atividade de um médico visa apresentar o dêmos ateniense decidindo em sua
ignorância o que o capitão de um navio deve fazer impondo-lhe que siga as
prescrições do dêmos a esse respeito. Ora, isso jamais ocorreu em Atenas, não
há prescrições referentes ao governo como atividade. A atividade do dêmos se
refere a pontos que não são técnicos. E o próprio Platão sabe disso muito bem
por ter discutido isso no “Protágoras”, entre outros…”.
Platão não teve qualquer pejo de partir para a
mais deslavada difamação da democracia, com base em uma falsa alegação. Alguma
coisa muito importante devia estar em jogo para leva-lo a cometer essa
ignomínia, reprovável segundo seus próprios valores. Talvez ele tenha sido o
primeiro a perceber o perigo contido em um regime baseado na liberdade e na
valorização da opinião, corroborando as hipóteses de que as raízes do nosso
pensamento foram moldadas pela autocracia e de que, no campo das ideias, também
se verifica a luta constante das vertentes autocráticas para fechar a brecha
aberta com o advento da democracia.
Mas o processo de formação da vontade política
coletiva (que constitui o coreda
política), quando democrático, leva em conta a interação de uma variedade de
opiniões (tanto informadas quanto desinformadas pelo saber filosófico,
científico ou técnico). A maravilha da democracia, aliás, reside nisso
precisamente: em possibilitar a regulação sistêmica de uma complexidade de
opiniões, de tal sorte que não se possa dizer, no final, de quem partiu a ideia
resultante do processo. Ou seja, a política (a política propriamente dita, ex parte populis), tem sempre o desfecho aberto, é
sempre imprevisível, não porque “as elites” dirigentes mudem sempre de opinião
e sim porque nunca se pode saber de antemão para qual direção apontará a
resultante de miríades de inputs provenientes
dos que não integram “as elites”. Vê-se que há aqui, e não por acaso, uma clara
semelhança com os processos recentemente estudados de inteligência coletiva.
A questão de fundo colocada no parágrafo
anterior é a seguinte: é impossível gerar ordem espontaneamente a partir da
interação? Sempre é preciso alguém conduzir os outros a partir de capacidades
exteriores àquelas que emergem da interação com os outros? Entre o sim e o não
se separam os autocratas dos democratas. O processo espontâneo de surgimento de
lideranças sugere a resposta não. Diante de uma questão posta para todos,
sempre surge alguém – não necessariamente a mesma pessoa em todas as ocasiões –
que consegue captar a confiança coletiva e propõe uma solução que todos acabam
seguindo. Muito mais do que isso, todavia. Existem jogos, que podem ser
aplicados cientificamente (com todo o rigor exigido pelo método experimental),
que mostram que, em certas circunstâncias, não surge nem mesmo tal pessoa que
lidera. O coletivo como um todo consegue se coordenar, por exemplo, para
dirigir uma aeronave por meio de um programa computadorizado de simulação de
voo, a partir de comandos remotos sobre as direções básicas – alto, baixo,
esquerda, direita – que cada um maneja individualmente. Isso é o que chamamos
de coordenação emergente. É ordem emergindo espontaneamente.
Essa é a aposta da democracia; uma aposta
mesmo, pois não se pode provar que a resultante do entrechoque de múltiplas
opiniões que refratam interesses distintos e, em muitos casos, contrários,
existentes em uma sociedade onde se exercita um processo democrático de
decisão, seja melhor, para o presente e para o futuro daquela sociedade, do que
a decisão tomada por apenas algumas pessoas portadoras de conhecimentos
acumulados sobre a matéria que está sendo objeto da decisão. A aposta de que os
seres humanos podem se conduzir a partir das suas livres opiniões – que define
a democracia política como liberdade de opinião contra a autocracia iluminada
como ordem dos sábios, como toda autocracia o é em alguma medida – é uma aposta
de que os seres humanos deixados a si mesmos saberão formar coletivos
convivenciais estáveis, não tendo uns que assumir a tutela de outros, em nome
de seu suposto saber e em virtude de seu efetivo poder, para regular
heteronomamente os conflitos; ou seja, é uma aposta contra a inexorabilidade da
(autocrática) solução hobbesiana.
Desvalorizar a liberdade de opinião,
substituindo a imprevisibilidade da política pelo planejamento qualificado e
informado dos portadores do saber, conduz à autocracia. Pois onde não existe
lugar para o acaso também não há lugar para a liberdade. Se existe sempre um
plano diretor regendo tudo, a liberdade não passa de uma liberdade de concordar
– o que nega a ideia de liberdade.+
Recomenda-se a leitura atenta do artigo
Entendendo a essência da democracia, disponível no link: http://dagobah.com.br/entendendo-a-essencia-da-democracia/
Quem puder, deve comprar e ler o livro de
Castoriadis, Cornelius (1986/1999). Sobre ‘O Político’ de Platão. São Paulo:
Loyola, 2004. Não foi encontrada versão digital disponível para download. Mas pode-se ler O Político de Platão: Platão O Político
26 – Como a democracia pode
funcionar direito quando faltam aos cidadãos os conhecimentos necessários para
interpretar a realidade social e escolher conscientemente os melhores caminhos?
Esta é uma pergunta muito comum que fazem as
pessoas que não captaram o genos da
democracia. A matéria-prima da democracia não é o conhecimento (científico ou
filosófico), nem mesmo a técnica (no sentido do know
how, o saber-fazer) e sim a opinião.
A democracia está fundada na ideia de que todas
as pessoas podem ter uma opinião, informada ou desinformada, e que mesmo as
opiniões desinformadas, quando interagem com outras opiniões menos ou mais
informadas, se contradizem, se corroboram, se combinam e recombinam e se
polinizam mutuamente, de sorte que, no processo geral, tanto a opinião do sábio
(de qualquer coisa) quando a do ignorante (em alguma coisa) se modificam.
Assim, as opiniões resultantes desse processo nunca são as opiniões originais,
dos que sabem (qualquer coisa; ou tudo – o que é impossível) ou dos que não
sabem (alguma coisa; ou nada – o que também é impossível).
A democracia não desvaloriza a opinião em
relação ao saber. Porque qualquer opinião sempre refrata um interesse ou um
desejo que devem estar presentes, não podem ser desqualificados, calados ou
suprimidos, impedidos de se expressar, antes da interação.
O processo político que enseja a interação das
opiniões não admite a existência de um tribunal epistemológico, que julga quais
opiniões são válidas e quais não são de acordo com algum saber (ou de um saber
sobre o saber). E também não admite uma alfândega ideológica que diga quais
opiniões podem entrar no espaço do debate público e quais não podem de acordo
com alguma visão do mundo – ou seja, da natureza, da história, do Estado, da
economia, da sociedade ou do ser humano (ou mesmo de um ser supra-humano).
Do contrário, somente os possuidores de um
saber, de um saber sobre o saber ou de um saber-fazer, poderiam interagir
politicamente, o que condenaria os ignorantes a serem dirigidos pelos sábios.
Isso é o fundamento da meritocracia, não da
democracia. A democracia é um modo de regulação de conflitos. Se quem sabe mais
tem poderes regulatórios aumentativos em relação a quem sabe menos, teremos, no
limite, o governo dos sábios de Platão – um adepto da autocracia, não da
democracia.
Não que o mérito não deva ser valorizado. O
mérito deve ser reconhecido e honrado. Mas uma coisa é o mérito e outra coisa,
muito diferente, é a ereção de um sistema de poder (uma ‘cracia’, de kratos: examine-se a origem da palavra ‘mérito-cracia’)
baseado no mérito.
O neologismo ‘meritocracia’, provavelmente
criado, nos anos 1950, pelo sociólogo britânico Michael Young, é formado pela
conjunção do latim ‘mereo’ (ser digno, merecer) com
o grego antigo κράτος, transl. krátos (força,
poder) estabelecendo uma ligação direta entre mérito e poder. Mas mesmo antes
da invenção da palavra já havia a concepção de que quem sabe mais pode (ou
deve) mandar mais. Essa ideia está amplamente espalhada, inclusive nos meios
populares com baixa escolaridade, dos considerados mais ignorantes.
Um exemplo eloquente disso é o fato de tantos
médicos serem eleitos prefeitos em cidades do interior: as pessoas votam nos
médicos a partir do seguinte raciocínio: se ele sabe medicina e, portanto, é
uma pessoa estudada, então deverá saber como conduzir melhor os negócios
públicos. O que não resta verdadeiro. O conhecimento de uma ciência – nem mesmo
da chamada “ciência política” – não confere a ninguém melhores capacidades de
cumprir o papel de agente político. Se fosse assim teríamos de ser governados
por cientistas políticos (e não precisaria haver debate público e processo
eleitoral: bastaria montar uma banca examinadora, promover um concurso ou fazer
uma prova de títulos).
Outro problema da pergunta é que ela faz uma
confusão entre conhecimento e consciência. Quem possui mais conhecimento teria
melhores condições, do que quem tem menos conhecimento, de “escolher
conscientemente os melhores caminhos”. Não. A consciência (seja lá o que for)
não é formada pelo acúmulo de conhecimentos.
A consciência está mais para uma visão sobre
uma unidade na totalidade (é a consciência da totalidade da unidade) do que
para conhecimento de conteúdos, ou mesmo, em termos mais sofisticados, como
localização da reflexividade no sujeito que sabe que sabe.
Como cantou o poeta Vinicius de Moraes (1959), no poema O operário em
construção:
“De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.”
O operário tomou consciência de um conjunto de
relações entre sujeito e objeto, não adquiriu um conhecimento específico
(científico ou técnico) sobre a natureza do sujeito ou dos objetos em questão
(para tanto, não precisou conhecer nenhuma teoria da percepção, nem conhecer
algum processo de fabricação dos instrumentos que estavam no seu campo de visão).+
Recomenda-se aqui a leitura de três pequenos
artigos:
27 – Se a democracia fosse
natural ou adequada à natureza humana, por que as grandes tradições espirituais
da humanidade (incluindo todas as religiões) não se organizam de modo
democrático? E por que não há democracia no céu (em quaisquer dos “céus” – ou
equivalentes – anunciados por essas tradições)?
Pois é. A democracia não é mesmo natural ou
adequada à natureza humana (seja lá o que for). A democracia foi uma invenção
de pessoas que não desejavam mais viver sob o jugo de um senhor. Foi o
resultado de conversações num espaço que se tornou público (a praça do mercado
de Atenas, na passagem do século 6 para o século 5).
As religiões propriamente ditas – ou seja, as
religiões que surgiram na civilização patriarcal – também não são naturais ou
adequadas à natureza humana. Foram igualmente inventadas por pessoas que
queriam subordinar os seres humanos à algum poder sobre-humano, por via de
intermediários (sacerdotes). Só existe religião propriamente dita com culto
organizado e casta sacerdotal, quer dizer, com um estamento separado (sagrado)
dos demais (os leigos).
Como definiu Maturana (1993), no texto
Conversações matrísticas e patriarcais, “uma religião é um sistema
fechado de crenças místicas, definido pelos crentes como o único correto e
plenamente verdadeiro”.
Crenças místicas já havia, por certo, em
sociedades pré-patriarcais. Mas elas não constituíam religiões. Acompanhemos
mais um pouco a reflexão de Humberto Maturana:
“Os povos matrísticos tiveram crenças
místicas baseadas em experiências também místicas que, segundo acreditamos,
manifestavam ou revelavam sua compreensão básica da relação que tinham com a
totalidade da existência. Expressavam essa compreensão por meio de uma deidade
– a deusa-mãe – que incorporava e evocava a coerência dinâmica e harmônica de
toda a existência numa rede sem fim de ciclos de nascimento e morte.
De modo contrário – segundo pensamos – o
povo patriarcal pastoril teve crenças místicas baseadas em experiências também
místicas. Estas foram vividas como reveladoras de sua conexão com um âmbito
cósmico dominado por entidades poderosas, arbitrárias, que exerciam sua vontade
em atos criativos capazes de violar qualquer ordem previamente existente. Os
povos patriarcais pastores expressavam sua compreensão das relações cósmicas
por meio de deuses – entidades transcendentes que impunham temor e exigiam
obediência. Em seu domínio místico, esses povos não tinham nada a defender e,
consequentemente, nada a impor: cada crença era natural e auto-evidente. Como
entidade cósmica todo-poderosa, Deus era óbvio em sua invisibilidade, e assim
inerentemente espiritual.
Com efeito, tinha de ser desse modo, pela
forma com que Ele devia ter surgido na montanha, enquanto expressava seu
caráter onipotente de patriarca cósmico. As visões místicas matrísticas [pré-patriarcais
e pré-matriarcais] europeias eram totalmente
diversas, dado o seu caráter terrestre. Para os povos matrísticos, os
fundamentos da existência estavam no equilíbrio dinâmico do nascimento e da
morte, tanto quanto na coerência harmônica de todas as coisas, vivas ou não.
Não havia nada a temer quando alguém se movia na coerência da existência; para
eles não havia forças arbitrárias que exigissem obediência, só rupturas humanas
da harmonia natural, devidas a alguma falta circunstancial de consciência e à
limitação por ela implicada.
A divindade não era uma força ou autoridade;
e não poderia ter sido assim, pois esses povos não estavam centrados na
autoridade, dominação ou controle. A deusa-mãe concretizava e evocava a
consciência dessa harmonia natural. E, segundo penso, suas imagens e os rituais
nos quais elas eram usadas significavam presença, evocação e participação na
harmonia de todas as coisas existentes, de uma maneira que permitia que tanto
os homens quanto as mulheres permanecessem conectados com ela em seu viver
cotidiano. Os povos matrísticos [não confundir com matriarcal
que é o mesmo que patriarcal] europeus não tinham nada a
defender, tanto porque viviam na consciência da harmonia da diversidade, quanto
porque não viviam em apropriação.
Logo a seguir, quando os povos… patriarcais
pastoris invadiram a Europa, seus patriarcas perceberam que não podiam aceitar
as crenças, o modo de vida espiritual ou as conversações místicas dos povos
matrísticos, pois estes contradiziam completamente os fundamentos de sua
própria existência. Assim, preferiram defender seu modo de vida e suas crenças
da única maneira que conheciam, isto é, por meio da negação do outro modo de
vida ou do sistema de crenças daqueles povos, transformando-os em seus inimigos.
Além do mais, no processo de defender o seu
viver místico, os patriarcas… criaram uma fronteira de negação de todas as
conversações místicas diferentes das suas. E estabeleceram, de fato, uma
distinção entre o que passou a ser legítimo e ilegítimo, crenças verdadeiras e
falsas. No âmbito espiritual, realizaram a práxis de exclusão e negação que,
operacionalmente, constitui as religiões como domínios culturais de apropriação
das mentes e almas dos membros de uma comunidade pelos defensores da verdade ou
das “crenças” verdadeiras. Contudo, antes de prosseguir reflitamos mais sobre o
místico e o religioso.
Uma experiência mística – ou espiritual,
como é geralmente chamada na atualidade como experiência de pertença ou conexão
a um âmbito mais amplo do que o do entorno imediato de alguém, é pessoal,
privada, inacessível a outros, ou seja, intransferível. Portanto, o ato de
relatar uma experiência assim diante de uma audiência adequada pode ser algo
cativante e sedutor, pois evoca um emocionar congruente em quem escuta, casos
em que ocorre a sedução. Mesmo quando não há transferência da experiência,
muitos dos ouvintes podem chegar a converter-se em adeptos da explicação do
expositor.
Como resultado, pode se formar uma
comunidade de crentes. Quando isso acontece, todavia, o corpo de crenças
adotadas pelos novos crentes – qualquer que seja a sua complexidade e riqueza –
não constitui uma religião. Isso só ocorre se os membros dessa comunidade
afirmarem que suas crenças revelam ou envolvem alguma verdade universal, da
qual eles se apropriaram por meio da negação de outras crenças, baseadas em
outros relatos de experiências místicas ou espirituais.
A apropriação de uma verdade mística ou
espiritual que se sustenta como verdade universal constitui o ponto de partida
ou de nascimento de uma religião. Requer um emocionar e um modo de vida
que não estavam presentes na cultura europeia matrística. Nossa cultura
patriarcal europeia confunde religião com espiritualidade. Nela se fala, com
frequência, de experiências religiosas como se fossem místicas.
Acredito que essa confusão obscurece o fato
de que uma religião não pode existir sem a apropriação de ideias e crenças, e
não nos permite ver o emocionar que a constitui. Some-se a isso que o advento
do pensamento religioso, por meio da defesa do que é “verdadeiro” e da negação
do que é “falso”, é um processo que nos tornou insensíveis para as bases
emocionais de nossos atos. Em consequência, nos tornou inconscientes de nossa responsabilidade em
relação a eles, e obstruiu nossas possibilidades de entender que a história
humana segue o caminho do emocionar, e não um curso guiado por possibilidades
materiais ou recursos naturais. Nossa visão torna-se obscurecida para o fato de
que são nossos desejos e preferências que determinam aquilo que vivemos como
verdades, necessidades, vantagens e fatos.”
Isto posto, voltemos à questão proposta.
Sim, todas as grandes tradições espirituais da
humanidade (incluindo todas as religiões) – não se organizam de modo
democrático. Mas é preciso entender essa afirmação de outra maneira. As
tradições (se se pode chama-las assim) pré-patriarcais não são democráticas
porque a democracia é um processo de desconstituição de autocracia e em mundos
pré-patriarcais não havia autocracia. Logo, não faria o menor sentido que elas
fossem democráticas, assim como não faz sentido perguntar por que os Ianomâmis
ou os Pirahãs não são democráticos.
Já as tradições espirituais – ou ditas
espirituais – do patriarcado não são democráticas porque essa tradição é
mítica, sacerdotal, hierárquica e… autocrática. Não porque não faça sentido
falar, neste caso, em democracia (faz, e muito) e sim porque elas foram urdidas
ou erigidas para satisfazer os interesses e os desejos de predadores e
senhores, em sintonia com o emocionar de um estamento que se conformou para
viver da vampirização das energias das pessoas.
Isso explica por que não há democracia no céu
(em quaisquer dos “céus” – ou equivalentes – anunciados por essas tradições).
Por isso se diz que a democracia é terrestre,
não celeste; e é tópica, não utópica.
Quando os antigos hebreus (apirus) disseram, sob inspiração profética, que “só o
Senhor é Deus”, originalmente isso não queria significar que só havia um deus
(o deus único – no sentido de que era seu ou só seu, o único existente e
verdadeiro – que aquele povo chamava de Senhor), mas sim o oposto, que “só Deus
é Senhor”, ou seja, que não se devia obedecer a senhores humanos. Os hebreus,
como se sabe, eram os Sem Reino numa Canaã já coalhada de cidades monárquicas,
muradas e fortificadas, do primeiro milênio a. E. C. E antes de serem
capturados por regimes autocráticos, perambulavam como turbas, sempre fora das
muralhas das cidades-Estado. Quem duvidar deve ler 1 Samuel 8 ou o relato da
Assembleia de Siquem.
Este é também o significado do dito evangélico
“Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus”. Não que se devia pagar
impostos a Cesar (como se o próprio deus consentisse com a existência de
senhores humanos e houvesse então um poder espiritual legitimando um poder
temporal) e sim que Cesar, um senhor humano, não era Deus (confrontando a narrativa
religiosa do império romano, segundo a qual seus imperadores eram deuses, tanto
que para eles se erigiam templos e se organizavam cultos). Os primeiros cristãos
foram chamados de ateus, por Nero, porque não acreditavam no… imperador.
Para a democracia, mesmo um deus não pode ser
senhor, transformando os humanos em seus escravos, servos ou súditos. A
expressão “servo de Deus” – fora do seu sentido negativo de que os humanos não
são (ou não devem ser) servos de outros humanos – é uma abominação autocrática.
Quando os atenienses do século 5 a. E. C.
disseram que não tinham um senhor, isso não era uma afirmação de ateísmo, pois
continuavam reverenciando os seus deuses, conquanto ressignificados pela
democracia: para citar dois exemplos, o Zeus Agoraios (nume tutelar da
livre-conversação na praça do mercado) e a deusa Peitho (a persuasão deificada,
pois persuasão é expressão do modo não-guerreiro de regulação de conflitos que
é o genos da democracia).
Esses deuses, porém, não comandavam os assuntos
humanos, o que quer dizer que, se havia reverência ou mesmo devoção individual,
não havia obediência coletiva aos seus ditames – interpretados necessariamente
por sacerdotes – nas decisões da koinonia, a
comunidade política. Como escreveu Ésquilo (472 a. E. C.), em Os Persas, sobre
os atenienses: eles “não são escravos, nem súditos de ninguém” – e aí de
ninguém é de ninguém mesmo: nem de um deus.
Os deuses da democracia ateniense eram
realidades extra-políticas que, como tal, não podiam intervir no processo político.
Ora, sendo assim, tudo bem para a democracia.
Por isso a democracia não é ateia e sim laica.
Ela pode conviver com deuses (acredite, quem quiser, nos deuses que quiser), o
que a democracia não pode é ser um regime dirigido por uma entidade sobrenatural
(ou melhor, sobre-social) se a vontade dessa entidade é interpretada por
intermediários humanos (os sacerdotes). O que não se pode fazer, na democracia,
é recorrer a argumentos religiosos para validar ou invalidar comportamentos
políticos (e é isso o que significa dizer que ela é laica).
Eis a razão pela qual as religiões não são
democráticas. Porque as religiões não têm a ver com a crença em um ou vários
deuses: elas só se estabelecem quando se conformam corpos de sacerdotes
(docentes) destacados do corpo social (discente), que passa então ser encarado
como rebanho (ainda que de um deus, mas não importa, pois o problema é que há
sempre algum estamento humano, supostamente instituído por esse deus,
autorizado diferencialmente a interpretar a sua vontade ou dar a versão válida
sobre o seu legado, oral ou codificado em uma escritura sagrada). Por isso
dizia Jung – embora não com esta interpretação – que a religião é uma proteção
contra a experiência de deus.
Se cada pessoa, que acredita em deus, for o seu
próprio sacerdote, não há problema. Se várias pessoas que acreditam em deus
tiverem os seus sacerdotes, também não há problema, desde que eles não queiram
conduzir as decisões políticas. O problema é a intervenção de uma casta
sacerdotal nos assuntos políticos e a validação ou invalidação de
comportamentos políticos com base em critérios extra-políticos.
Mas há mais. A democracia é terrestre, não
celeste. Para entender isso é necessário ver que a autocracia, como modo de
regulação estável, surge – quase três milênios antes da democracia (também como
regime estável) – sob o domínio de deuses sobrenaturais (celestes), que exigiam
intermediação e culto. Devoção (avod) era, na
verdade, trabalho para os deuses (quer dizer, para os seus intermediários e
prepostos). Quem precisa de um céu (quer dizer, de uma utopia, um não-lugar) é
a autocracia, não a democracia.
Na verdade, tudo isso foi uma invenção de
sacerdotes (que sagravam reis e abençoavam guerreiros: pois este é o genos da autocracia). Por isso sempre há um fundamento
religioso nas autocracias antigas: os primeiros reis eram instituídos e ungidos
pelos próprios deuses (por intermédio, é claro, dos seus sacerdotes). Na Mesopotâmia
antiga, os reis eram chamados de Lugal (homem poderoso), eram substitutos do
deus da cidade-Templo-Estado (pois cada qual tinha o seu
deus-senhor-governante) e dizia-se que a realeza “descia” dos céus (como em
Kish, na Suméria, onde teria “descido” pela primeira vez). Mesmo vários
milênios depois, os reis continuaram a ser sagrados por sacerdotes (que
colocavam as coroas nas suas cabeças) e persistia a ideia de um direito divino
dos reis, no plano simbólico um sangue (azul) diferente do sangue (vermelho)
comum, uma dinastia com direito de reproduzir o senhorio com base em
descendência genética (novamente o sangue). Sim, autocracia tem a ver com
sangue, arrancado pela espada abençoada pelo cetro (ou báculo) de quem “descia”
a coroa sobre a cabeça dos que se sentavam no trono. Nesta frase estão
resumidos os principais elementos simbólicos (ou rotinas do programa básico) da
autocracia.
E nas autocracias ateias é a mesma coisa: há
sempre uma doutrina, com statusde religião
do Estado e há sempre sacerdotes (os dirigentes partidários) e, em alguns
casos, também dinastias baseadas em laços de sangue, como na Coréia do Norte:
Kim Jong-un é filho de Kim Jong-Il e neto de Kim Il-sung, o fundador do Partido
dos Trabalhadores da Coreia (o único do país, que funciona, para todos os
efeitos, como uma espécie de igreja, cumprindo o papel de religião a ideologia
oficial Juche).
Mas a democracia não se aplica, porque não faz
o menor sentido, em sociedades (pré-patriarcais) que cultuavam deuses naturais,
como os bandos de coletores e caçadores, as tribos paleolíticas e até as
aldeias neolíticas, onde, se havia alguma distinção, não havia separação entre
sagrado e profano.
Deuses naturais não ensejaram a conformação de
estamentos sacerdotais estáveis, que – como não trabalhavam – para se
reproduzir (artificialmente) urdiram ensinamentos a ser transmitidos diferencialmente
aos componentes dos seus estamentos. Isso só aconteceu quando os deuses
passaram a ser sobrenaturais e o acesso a eles não podia ser dar a não ser em estado
de obediência a um corpo de intermediários.
A ideia evangélica de um deus como espírito
santo que está entre-nós (e não acima de nós), manifestando-se na comunidade
dos amantes (toda vez que eles se amam) era potencialmente subversiva da
autocracia, mas logo foi recuperada e desvirtuada pela hierarquia religiosa. E
esta, sim, seria uma concepção de deus mais compatível com a democracia,
conquanto isso não tenha consequências práticas (a democracia pode conviver com
qualquer deus acreditado pelas pessoas, menos na circunstância em que alguém,
em nome desse deus, queira materializar um plano divino, urdido fora da
interação política, para conduzir os humanos).
A democracia surge, justamente, como um
processo de desconstituição de autocracia, como uma brecha na cultura
patriarcal de sociedades que cultuavam deuses sobrenaturais, inalcançáveis, não
apenas acima de nós, terrestres, mas altíssimos, que queriam (por intermédio de
seus sacerdotes) transformar os humanos em seus escravos, servos ou súditos.
28 – Afinal, qual a doutrina
da democracia, em que princípios ou leis (filosóficos ou científicos, naturais
ou históricos) ela se baseia? E se não existe esta doutrina, filosofia ou
ciência, com base em quê se pode justificar que a democracia é um regime
político melhor do que os outros?
Com esta questão chegamos, afinal, ao centro do
nosso programa – chamado, não por acaso, Sem Doutrina.
A democracia é sem doutrina. Para entender tal
afirmação é necessário, em primeiro lugar, entender o que é doutrina.
O QUE É DOUTRINA
Há um problema com a palavra ‘doutrina’. É
claro que as pessoas devem conhecer as teorias, que nascem de processos de
observação-investigação-explicação realizados segundo certos critérios
epistemológicos (isto é ciência) e também as explorações que tentam articular
construções de pensamentos de sorte a torná-los claros e definidos (isto é
filosofia, na acepção nua e crua de Wittgenstein).
Mas doutrina é outra coisa. As doutrinas
constroem conjuntos coerentes de ideias com o objetivo precípuo de serem
ensinadas (apreendidas, o que não é a mesma coisa do que aprendidas). Em geral
as doutrinas querem explicar o mundo para os outros de sorte que as pessoas
saibam o que fazer (para se comportar de acordo com a explicação que contém
sempre uma prescrição).
No caso das doutrinas políticas, isso fica mais
evidente. Elas inventam uma explicação para a realidade instituindo-a como um
referencial extra-político para avaliar comportamentos políticos. Um
comportamento (ou ação política) será bom se estiver de acordo com o que diz a
doutrina. Ou seja, a doutrina já está certa ex ante (para
quem acredita nela), já avalia o que foi, é ou será, o que deve acontecer ou
não, antes da interação política entre as pessoas. Assim, a doutrina cava um
sulco para fazer escorrer por ele as coisas que ainda virão. É um modo de
trancar o futuro.
As doutrinas geram credos, o que é muito
diferente das teorias (científicas) e das elaborações sistêmicas de pensamento
(filosóficas). Quando alguém segue um credo, em geral, isso exclui – ou se
erige como contraposição a – todos os demais credos. As doutrinas são
expedientes usados em guerras de credos. Assim, o economicismo de von Mises (o
chamado liberalismo-econômico) é construído contra o economicismo de Marx (o
marxismo). E as doutrinas conservadoras são erigidas contra as doutrinas
revolucionárias.
A estrutura do credo é uma espécie de filtro
para transformar caos em ordem, mas uma ordem pré-existente, não emergente, uma
ordem que não será propriamente descoberta, senão replicada pelo ensino da…
doutrina. Ora, isso é diferente da ciência (sempre questionável e falsificável)
e da filosofia (que admite outras filosofias): está mais para religião (e, como
se sabe, cada religião está fundada sobre a ideia de que é a única verdadeira,
do contrário as pessoas – os fiéis – poderiam aderir a outros credos, o que é
vedado pela religião e quem o fizer será chamado de infiel, kafir, assim como quem abandona uma organização fundada
sobre uma doutrina política é chamado de traidor). Uma teoria científica pede
para ser falsificada. Um sistema filosófico aguarda ser contraditado. Uma doutrina
odeia qualquer questionamento (que julga ser uma heresia). Os credos religiosos
são doutrinas. E toda doutrina tem a estrutura de uma religião (mesmo que seja
laica).
Toda doutrina, portanto, é doutrinante. E o
simples fato de ensinar a alguém uma doutrina – qualquer doutrina – já é uma
doutrinação. Portanto, não se trata de ensinar todas as doutrinas para que os
pacientes da ensinagem escolham de qual “religião” querem ser escravos.
Na democracia as pessoas têm o direito de
aderir a qualquer doutrina, adotar qualquer credo, mas não devem usar essa sua
“religião” para avaliar os comportamentos políticos alheios. Nenhuma doutrina
política pode servir de referencial para julgar o que ocorre na esfera pública.
Na autocracia, não. Sempre há uma doutrina correta,
um credo válido e autorizado ao qual as pessoas devem aderir para se conformar
ao que é correto e delas esperado. É uma espécie de compliance. Por isso, via de regra, as religiões que
não coincidem com a religião oficial são proibidas em ditaduras, o mesmo
valendo para as doutrinas políticas. Não se pode ser sufi na teocracia dos
aiatolás iranianos, onde a Fé Bahá’í também é perseguida pelo regime
autocrático. A rigor, não se pode ser ateu em teocracias (o que já levou a
muitas condenações à morte ao longo da história). Não se pode ser xiita na
Arábia Saudita sunita. Não se podia ser muçulmano na corte de Isabel de
Castela, nem judeu. Não se podia ser anarquista (ou trotskista) na União Soviética
stalinista.
Quando há uma doutrina oficial, seja religiosa
ou laica, não pode haver esfera pública. Porque a esfera pública só existe se
houver liberdade de crença e de não-crença para as pessoas que, privadamente,
podem aderir ou não a qualquer doutrina. Ou seja, ao contrário do que se pensa,
a esfera pública está assentada no direito individual privado de não fazer
parte, compulsoriamente, de qualquer rebanho, assim como no direito individual
privado de entrar, voluntariamente, em qualquer rebanho.
Por isso que esfera pública só existe na
democracia, que convive com qualquer doutrina, mas não tem, como regime, uma
doutrina específica a partir da qual se possa avaliar comportamentos políticos.
POR QUE A DEMOCRACIA É SEM DOUTRINA
A democracia, portanto, não é mais uma
doutrina. É apenas um modo não-guerreiro de regulação de conflitos (que, ao se
exercer, desconstitui autocracia) e não importa para nada, do ponto de vista
coletivo, as convicções privadas dos agentes políticos que nela interagem. O
que importa é que, acreditando no que quiserem, não se comportem de modo
guerreiro (o que levará à autocratização da democracia).
Isto é o que significa dizer que a democracia é
sem doutrina.
Se você desqualifica algum argumento dizendo
que ele é um argumento do inimigo, não há mais possibilidade de conversação e
de debate racional. Não haverá entendimento, polinização mútua de ideias e
cocriação de nada.
É como conversar com um fiel de uma religião
militante que, por princípio, está fundada no pressuposto de que é a única
verdadeira. Por isso um kafir (infiel)
jamais conseguirá entrar em acordo com um jihadista do Hamas ou do Hezbollah.
Mas isso vale também para as religiões laicas,
baseadas em visões de mundo totalizantes, que têm narrativas para explicar tudo
e mais um pouco, sejam essas visões consideradas de esquerda ou de direita,
revolucionárias ou conservadoras, não importando muito a origem de suas
doutrinas.
Visões doutrinárias são sempre obstáculos para
a apreensão da democracia, porque colocam barreiras à livre interação e à
miscigenação cultural entre os diferentes.
Se se trata de combater uma visão estabelecida
com outra visão também estabelecida, não há como ensejar o surgimento de novas
visões. Ou seja, não há possibilidade de inovação e ficamos congelados em algum
lugar do passado. Tudo vira uma guerra cultural, onde o principal é
desqualificar e deslegitimar o inimigo.
Todas as doutrinas que se erigem no combate a
outras doutrinas rivais precisam do inimigo para crescer e conquistar adeptos.
Por isso, qualquer seita que pretenda revelar ao mundo a verdadeira doutrina
tem um comportamento semelhante e incompatível com a democracia na medida em
que se constitui na dinâmica da guerra contra outras doutrinas (consideradas
como falsas) enquanto que a democracia é um modo não guerreiro de regulação de
conflitos (que não precisa de doutrina, quer dizer, que não precisa reafirmar a
prevalência de nenhuma doutrina sobre as demais para se exercer).
Quando se diz que a democracia é sem doutrina,
isso não significa que as pessoas não possam acreditar nas doutrinas que quiserem
e sim que elas não podem exigir a adesão prévia a uma doutrina como condição
para praticar a política, adotando critérios extra-políticos para validar
alguma ação política como correta, verdadeira ou boa, antes da interação.
Tomando uma metáfora da física contemporânea:
como podemos explicar a um codificador de doutrina que o ato de medir destrói
um possível emaranhamento quântico e literalmente cria a realidade experimentalmente
mensurada? Não é que não possamos. É que não devemos. Porque é inútil. Porque
não adianta explicar.
O ato de criar uma narrativa doutrinária é um
modo de evitar possíveis nuvens interativas, formadas ao léu, criando uma
realidade baseada em uma ordem pré-formada que só é vista desde os clusters de medidores que são criadores de (suas
próprias) realidades. Se você pertence a um desses clusters não conseguirá ver nada diferente do que
eles veem, não porque não queira e sim porque está, de certo modo, produzindo o
que vê. O papel da doutrina não é explicar a realidade, mas criar uma
realidade.
Por isso a democracia não é bem coisa de
professores. Por isso não se aprende democracia na academia. Não se trata de
ensinar um conteúdo específico (para que alguém possa conhecê-lo) e sim de um
deixar-aprender.
AS DOUTRINAS POLÍTICAS
Na verdade só existem três grandes troncos de
doutrinas políticas hoje: o marxismo, o conservadorismo e o
liberalismo-econômico.
São troncos, não doutrinas específicas, na
medida em que existem vários marxismos (os marxianismos do jovem e do velho
Marx, o marxismo-leninismo, o marxismo-gramscismo e uma infinidade de variantes
como as inventadas pelos filósofos franceses – como o foucaultismo), existem
vários conservadorismos (dos laicos aos religiosos e teosóficos: aqueles que
adotam uma visão esotérica da história) e existem vários
liberalismos-econômicos (os da chamada Escola Austríaca, como o von-misesismo e
o hayekismo, os libertarianismos e os individualismos à la Ain Rand et coetera).
O anarquismo original e as diversas formas de
libertarianismo não-marxista estão quase extintos ou são vestigiais ou
marginais.
Os fascismos são comportamentos políticos que
podem ser adotados por quaisquer estatistas, sejam conservadores ou
revolucionários. E há várias combinações de conservadorismo com
liberalismo-econômico.
Pois bem. Afirmamos aqui que todas essas
doutrinas são conservadoras no sentido de que não são inovadoras.
Não raro, revolucionários (marxistas),
conservadores (de qualquer matiz) e até uma parte dos liberais-econômicos
costumam ter posições conservadoras (no sentido de não-inovadoras). Examinemos
dois exemplos:
Conservadores e liberais-econômicos costumam
ser contra a doutrinação marxista nas escolas. Tudo bem. Mas a escola (como
burocracia do ensinamento, baseada na separação de corpos docente x discente)
vai continuar doutrinando – seja qual for o conteúdo hegemônico que está na
cabeça dos professores da vez – basicamente infundindo noções de ordem,
hierarquia, disciplina, obediência, punição e recompensa e fidelidade impostas top down e matando a criatividade? Ah! Mas isso é
necessário, dirão todos. E até mesmo os marxistas (revolucionários) – que, por
óbvio, não são contra a doutrinação marxista nas escolas – não concordariam em
adotar uma posição contra a escola (visto que nos países onde têm hegemonia a escola
continua sendo, basicamente, a mesma escola doutrinadora dos países
capitalistas, como já havia percebido, em 1970, o maldito Ivan Illich).
Parte dos liberais-conservadores e quase todos
os revolucionários marxistas são a favor do casamento gay (ou de quaisquer
combinações formadas por pares LGBT) com a adoção de filhos e tudo mais.
Conservadores são contra. Mas a família (como cluster fechado,
que privatiza capital social) vai continuar existindo e doutrinando – seja qual
for a ideologia de gênero dos pais ou mães – basicamente infundindo noções de
ordem, hierarquia, disciplina, obediência, punição e recompensa e fidelidade
impostas top down e matando a
criatividade? Pronto! Agora todos (ou quase todos) estão novamente juntos para
dizer que não se pode criticar a família.
Eis que, quando a questão é o padrão
civilizatório (ou a cultura patriarcal), marxistas (revolucionários),
conservadores (contrarrevolucionários) e liberais-econômicos (quer se digam ou
não libertários), não são inovadores. Os inovadores fazem questionamentos como
os dos dois exemplos acima, os conservadores e os liberais-econômicos (ditos de
direita) e os revolucionários (ditos de esquerda) não fazem.
Em uma sociedade-em-rede, que está estilhaçando
o mundo único – e, pela primeira vez, tornando possível o questionamento da
multimilenar cultura patriarcal – não cabem mais narrativas totalizantes, que
expliquem tudo. Em primeiro lugar, pelo simples motivo de que elas não podem
mais explicar tudo (posto que o todo social que precisavam explicar por meio de
uma descrição única, se desfez). Em segundo lugar porque descobriu-se que o
comportamento coletivo não pode mais ser explicado a partir do que pensam os
indivíduos: independentemente das crenças (ou da adesão à doutrinas ou credos
por parte) dos sujeitos, eles se comportam sempre de acordo com os fenômenos
interativos que estão ocorrendo nos emaranhados sociais onde estão e são.
Esses credos políticos não são mais
necessários, senão apenas para os que acham que precisam acreditar em alguma
meganarrativa que explique o mundo para se situar no mundo: são uma espécie de
conforto espiritual para os indivíduos, mas não têm poder de determinar o fluxo
interativo da convivência social. O problema é que alguns desses credos são
claramente avessos à democracia.
Sim, a democracia não precisa de credos e, além
disso, falar sobre a democracia não é “fazer” democracia (que pode se exercer,
inclusive, com pessoas que são contra a democracia ou que não têm capacidade de
explicá-la: a imensa maioria dos atenienses que viveram no século 5 AEC, não
sabia justificar, com argumentos, por que a democracia seria preferível, o
mesmo valendo para os que vivem em países democráticos atuais). Mas
contingentes de pessoas conformados a partir de um pensamento antidemocrático,
têm influência negativa sobre a democracia, não em razão do que eles pensam ou
falam sobre a democracia e sim das ações concretas de autocratização da
democracia que porventura pratiquem.
O liberalismo-político (como o de Spinoza) –
essencialmente anti-autocrático – não chegou a ser uma doutrina (no sentido de
credo), senão um conjunto de ideias capazes de inspirar (ou melhor, capazes de
se sintonizar com) comportamentos políticos compatíveis com a democracia dos
modernos, na medida em que não levou à formação de corpos de militantes que
praticam a guerra (quente, fria ou como política pervertida como arte da guerra
ou continuação da guerra por outros meios) como modo de regulação de conflitos.
Este é o ponto. A democracia é um modo não-guerreiro de regulação de conflitos
e por isso pode ser definida como um processo de desconstituição de autocracia
(já que guerra é autocracia). Todos os que – esposando qualquer doutrina
política – não adotam modos guerreiros de regulação de conflitos, podem ser players válidos da democracia. E todos os que –
mesmo que sigam a vertente mais anárquica do liberalismo-econômico – formam
contingentes para combater, em nome de suas ideias, os que adotam outros
credos, realizando ações práticas para tanto e criando lados em confronto,
desqualificam-se como atores democráticos.
O liberalismo-político é compatível com a
democracia porque está baseado na ideia de que o sentido da política é a
liberdade, não a ordem geral que regeria o universo (a criação), a natureza, a
sociedade ou o ser humano e nem a ordem do Estado orientado por um conjunto de
princípios já estabelecidos ex ante à
interação (sejam estes princípios derivados de alguma instância transcendente
ou imanente, revelados por deus, desvendados por uma teologia, descobertos por
uma filosofia da história ou mesmo pela ciência ao investigar a natureza).
A validação extra-política de qualquer regime
político é incompatível com a democracia. Por que? Porque os princípios de
qualquer validação extra-política não estão submetidos à interação democrática:
eles já valem antes e sempre, independentemente dos fluxos interativos da
convivência social que mudam comportamentos e pensamentos. Ideias não mudam
comportamentos, só comportamentos mudam comportamentos e, inevitavelmente, pensamentos
(mas a recíproca não é verdadeira: se fosse, bastaria doutrinar as pessoas
seguindo um codex para construir a boa
sociedade, quando a experiência mostra que não é assim, do contrário milênios
de pregação religiosa e utópica sobre o bem, o belo e o verdadeiro já teriam
construído o paraíso na Terra).
Toda pregação, toda doutrinação, todo
seguimento de credos e constituição de corpos de fiéis (e, simultaneamente, de
infiéis) são conservadores na medida em que tentam conservar e reproduzir um
conteúdo determinado contra a mudança (desse conteúdo), contra o contingente,
contra o descoberto, contra o inventado, contra o feito por desejo e sem
necessidade, contra o erro, a falha e o acaso que incidem na sempre provisória
e precária vida comum.
A democracia, toda vez que acontece (ou seja,
toda vez que é ensaiada, sejam quais forem as crenças mais profundas que estão
nas cabeças dos que a ensaiam), é inovadora. E é inovadora em relação ao que há
de mais antigo a ser conservado: a cultura patriarcal, hierárquica e
autocrática, do que chamamos de civilização. Não por ter uma outra cultura
(como transmissão não-genética de comportamentos inspirados em um conjunto
qualquer de ideias, ou melhor, em circularidades inerentes às conversações que
ocorrem no seio dessa cultura e que são capazes de reproduzir um determinado
modo de vida ou de convivência social) para colocar no lugar da velha e sim
porque é vazia de conteúdos determinados imunes à interação.
A natureza da democracia não é a de ser mais
uma edificação para trancar os fluxos ou condicioná-los a ficar rodando da
mesma maneira na rede e sim a de ser uma brecha no muro da cultura patriarcal.
Alguns acham que a democracia é assim como um
tipo de construção ideológica, que depende de um corpo de crenças teoricamente
articulado e do qual se possa inferir consequências. Eles têm uma apreensão
cognitivista – e não interativista – da democracia. Superavit de Platão ou deficit de Protágoras.
Isso precisa ser desenvolvido e melhor
explicado.
A opção pela democracia não exige a adesão a um
corpo de crenças como filtro para transformar caos em ordem, mas em uma ordem
estabelecida pregressamente ou antes da interação propriamente política –
transcendente, natural ou imanente: seja porque estaria de acordo com desígnios
extra-humanos já estabelecidos (supra-humanos ou sobre-naturais) por uma ordem
pré-existente, seja porque derivaria da natureza, seja porque se sintonizaria
com a marcha da história ou com suas leis. Este parágrafo é muito sintético,
mas provavelmente contém tudo (ou quase).
Ou seja, nada de transcendente, natural ou
imanente. Em outras palavras:
1) nada de visão esotérica ou religiosa;
2) nada de visão liberal-econômica (segundo a
qual existiria algo como uma natureza humana: e. g., a
hipótese de que o ser humano – tomado como indivíduo – seria inerentemente ou
por natureza (?) competitivo e faria escolhas racionais buscando sempre
maximizar a satisfação dos seus interesses ou preferências, ao fim e ao cabo
egotistas); e
3) nada de visão determinística (baseada em
alguma imanência: a história grávida que vomitaria – por meio das ações humanas
– um sentido já existente antes que os seres humanos escolhessem um caminho ou
simplesmente fossem para onde querem ir ou não.
DEUS, NATUREZA E HISTÓRIA
Se essas noções – Deus, Natureza e História –
forem reificadas para fornecer à política alguma razão, não estamos mais no
terreno da política propriamente dita, quer dizer, da democracia (tal como a
conceberam ou experimentaram – no caso é a mesma coisa – os democratas atenienses).
É por isso que o único sentido compatível com a democracia que se pode atribuir
à política é a liberdade.
Do ponto de vista da democracia, liberdade
significa que Deus não é capaz de dar nenhum sentido à política, a Natureza
(seja o que for) também não é capaz de dar nenhum sentido à política e, ainda,
que a História também não é capaz de dar nenhum sentido à política.
Deus
A adesão confessional ou teologal à uma
potência extra-humana (como fazem as filosofias religiosas ou teosóficas) capaz
de intervir nos assuntos coletivos humanos (ou, mais exatamente, sociais) não
pode fornecer uma razão para a política e é por isso que povos como os hebreus
(a turba dos hapirus, quer dizer, dos sem-reino que invadiram ou se insurgiram
em Canaã na primeira metade do primeiro milênio AEC), que acreditavam num plano
divino para a humanidade (ou para o seu próprio povo, tomado como povo de um
deus: o seu deus IHVH), mesmo tendo todas as condições objetivas para inventar
a democracia (basta ler os relatos da Assembleia de Siquem e 1 Samuel 8), não o
fizeram. Isso não tem a ver propriamente com acreditar em deuses (ou em um
deus) e sim com contar com esses deuses (ou deus) para intervir nos conflitos
humanos, para regular esses conflitos ou para resolver os dilemas da ação
coletiva.
Os democratas atenienses não aboliram os deuses
(da cidade), pelo contrário: conviveram com eles, mas sem deles esperar nada
além da proteção ao funcionamento das suas instituições democráticas nascentes
(como o Zeus Agoraios, nume tutelar das conversações na praça do mercado) e de
inspiração para as práticas (e procedimentos) democráticos que experimentavam
(como a deusa Peitho, a persuasão deificada). Mas eles não substituíram essas
instituições e práticas pela intervenção sobre-humana ou sobre-natural (dos
seus deuses).
Se há deuses (ou um deus) que intervém nos
assuntos propriamente humanos (quer dizer, na rede social), então para nada
serve a política como modo de auto-regulação ou de comum-regulação (e nem ela
teria surgido no entre-os-humanos, já que o Zoon Politikon –
o animal político – é uma invenção de Aristóteles incompatível com a
democracia), como uma forma específica de interação (a política). Onde há
deuses (ou um deus) intervindo, não pode haver lugar para a liberdade, que é
sempre a liberdade de ser infiel a um desígnio, de não seguir um plano (já
traçado por qualquer potência humana ou extra-humana), de não se conformar a
uma ordem (preexistente, ex ante à
interação). Deuses (ou um deus) podem existir, desde que não nos obriguem a ser
fiéis a eles (ou a ele) ou aos seus desideratos. A democracia é coisa de kafirs (e por isso lhe é tão avessa a cultura
islâmica), é uma desobediência ao que já está disposto, à obrigação de seguir
um rumo: porque a liberdade é, fundamentalmente, poder sempre escolher um novo
rumo e mudar de rumo, ou melhor, poder não ter rumo, como disse o poeta –
Manoel de Barros (2010), em Menino do Mato – “Livre, livre é quem não tem
rumo”.
Se há uma ordem, uma hierarquia, uma
fraternidade ou sociedade encarregada de conduzir ou orientar coletividades
humanas (grupos, cidades, nações, povos) em uma determinada direção, para
cumprir algum plano cósmico (engendrado ou não por um deus que apenas quer se
reconhecer no espelho da existência ou por vários deuses ou, ainda, por seres
superiores não-humanos, autóctones ou alienígenas, do passado, do presente ou
vindos do futuro), é a mesma coisa. Todas essas visões esotéricas levam à
autocracia, não à democracia. Pois como alguém, na condição humana, poderia ser
infiel à vontade ou às leis estabelecidas por esses seres superiores sem violar
algum tipo de moral? E como os direitos humanos poderiam se equiparar (ou se
contrastar) aos direitos desses seres mais evoluídos ou melhores, mais puros ou
mais perfeitos?
Quando Ésquilo (472 AEC), em Os Persas,
escreveu que os atenienses (democráticos) “não são escravos nem
súditos de ninguém”, ele estava dizendo que eles (como povo, quer
dizer, coletivamente) não eram escravos nem súditos de ninguém mesmo: nem de
humanos, nem de deuses. E, poderíamos acrescentar, nem de leis naturais. Isso
nos leva ao próximo ponto.
Natureza
O estudo da natureza ou os modos de
observação-investigação-explicação dos fenômenos naturais que chamamos de
ciência (a partir do século 17, mas especialmente na passagem do século 19 para
o século 20, quando entraram em cena os epistemólogos racionalistas que
acreditaram que a filosofia da ciência era uma espécie de ciência ou de ciência
da ciência), também não pode fornecer uma razão para a política. O assunto é
difícil porque fomos acostumados a olhar a ciência como uma espécie de
pansofia. Mais do que a ciência, a ciência autorizada pela filosofia da ciência
foi, por sua vez, autorizada a fornecer uma explicação válida para tudo. E se
seus métodos são válidos para tudo, por que não o seriam também para a
política?
Ocorre que, se existe uma ciência aplicável à
política ou, a rigor, uma ciência política, então não pode haver democracia.
Pois neste caso os que possuem a ciência (política) ou agem de acordo com seus
métodos válidos (quer dizer, validados por algum tribunal epistemológico
válido) não se situarão no mesmo patamar dos demais. Haveria uma desigualdade
(não sócio-econômica, mas política) levando diretamente à desliberdade. Como a
matéria da política não é a episteme (o
conhecimento filosófico ou científico), nem a techné (o
conhecimento – ou know how –
técnico) e sim a doxa (opinião), então
algumas opiniões seriam mais válidas do que outras (aquelas proferidas por quem
tem mais conhecimento reconhecido como válido). No limite isso levaria ao
governo dos sábios de Platão, baseado numa diferença de conhecimento convertida
em separação entre sábios e ignorantes. Os ignorantes seriam governados pelos
sábios, independentemente da justeza de suas opiniões e, o que é pior, ao largo
do processo interativo de formação da vontade política coletiva. Não haveria
propriamente opinião pública, composta por emergência (pois se alguém já pode
saber o que é correto, de que valeria o entrechoque e a polinização cruzada de
uma variedade de opiniões?) e, assim, também não haveria esfera pública (em
termos sociais, quer dizer, geração de commons). Ora,
sem isso, não pode haver democracia.
O apelo à natureza ou a introdução de um corpo
de crenças derivadas do conhecimento sobre os fenômenos naturais – pouco
importa se validadas ou não pela ciência – como recurso para validar uma visão
da política, traz problemas semelhantes aos da ideia de um ou vários deuses com
papel regulador dos dilemas da ação coletiva. Se a natureza (quer dizer, o
conhecimento dos fenômenos naturais) pode dizer o que deve ou não ser feito em
termos políticos, então para nada vale a democracia.
Um exemplo de imposição de um corpo de crenças
– de “como as coisas são” – pode ser fornecido pelo liberalismo-econômico
(sobretudo o da chamada Escola Austríaca: Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk,
Ludwig von Mises, Henry Hazlitt, Israel Kirzner, Murray Rothbard e Friedrich
Hayek, dentre outros). O individualismo metodológico desses pensadores é tomado
como uma ciência, ou seja, é um conhecimento, um saber sobre o indivíduo
portador de uma mente (que seria o ser humano) e sobre a ação humana, que
seria, por sua vez, capaz de explicar o comportamento coletivo a partir dos
comportamentos dos indivíduos. Ora, se existe essa ciência, se é possível
adquirir esse conhecimento, então os que são nela versados (nessa ciência) ou
possuem tal conhecimento, estão mais preparados do que os demais para entender
os processos de regulação de conflitos (a política propriamente dita) e, por
decorrência, para intervir de forma correta (ou mais correta) nesses processos.
Isso é um cognitivismo (com raízes bem fincadas no meritocratismo e no
platonismo), não um interativismo.
Assim, a ideia de uma natureza humana, a ideia
de que o ser humano é, por natureza (ou inerentemente) competitivo, a ideia de
que é possível explicar o comportamento coletivo a partir do comportamento dos
indivíduos, a ideia de que os indivíduos se movem buscando sempre melhorar a
sua vida, ou tentando maximizar a satisfação de seus interesses ou, ainda,
buscando realizar plenamente suas preferências – ao fim e ao cabo egotistas –
todas essas ideias, sejam ou não validadas pela ciência (e boa parte delas não
o são, se considerarmos, por exemplo, as ciências da complexidade e a chamada
nova ciência das redes, e pelo menos Hayek teve lampejos de presciência – ou
seria pré-ciência? – sobre isso), são ideias que em nada favorecem, quando não
dificultam, a apreensão da democracia. Em primeiro lugar porque são absolutamente
desnecessárias para a opção pela democracia. Em segundo lugar porque erigem uma
instância de validação extra-política. Novamente, se há um conhecimento que
explica “como as coisas são”, inclusive em termos políticos, quem possui tal
conhecimento não se iguala aos que não o possuem – o que gera necessariamente
desliberdade.
Não há nada natural na política. A política é
um tipo de interação (social). O social não é natural. Não há uma natureza
humana, a não ser para descrever características da espécie biológica Homo Sapiens (ou, com boa vontade, do gênero Homo) – que é apenas humanizável, não o humano
consumado: com perdão pelo mau-jeito do neologismo, há uma “socialeza” humana
(isto é, precisamente, o que significa dizer que não existe nada como o Zoon Politikon aristotélico: não há uma substância
política original associada à condição da espécie, mas uma fenomenologia que se
manifesta na entreidade, porquanto só se revela quando os humanos interagem uns
com os outros).
Os seres humanos tornados políticos (quando interagem
coletivamente para regular seus conflitos) não precisam ser fieis a
características herdadas da sua suposta natureza, não estão subordinados a
qualquer epigênese (como as 8,7 milhões de espécies de seres vivos que existem
no planeta Terra), podem ser – na sua esfera propriamente política de ação –
infiéis à natureza (no sentido mais ampliado do conceito, de como as coisas
são). Do ponto de vista da democracia, assim como os seres políticos não são
escravos nem súditos de seres humanos, de deuses ou de leis naturais, também
não o são de leis da história. Isso nos leva ao terceiro e último ponto.
História
As visões de que há uma história, de que a
história tem leis que podem ser conhecidas por quem tem o método correto de
interpretação da história, de que há uma ciência, ou melhor, uma filosofia da
história, de que a história vai para algum lugar, em razão de uma imanência
(alguma substância que carregaria em seu ventre) e, portanto, de que a história
tem um sentido que pode ser apreendido antes dos eventos (que ainda não
aconteceram), também leva diretamente à autocracia, não à democracia.
Embora filosofias da história tenham aparecido
na antiguidade e na idade média, por exemplo, com Joaquim de Fiore
(c.1132-1202), com sua teoria dos três tempos (do Pai, do Filho e do Espírito
Santo), inspirando talvez o Sebastianismo e, no Renascimento, com pensadores
como Giambattista Vico (1725) e sua Scienza Nuova e
ainda que haja sempre uma forte raiz hegeliana na construção posterior de
qualquer ontologia da história, o marxismo foi o principal responsável pela
difusão de um corpo de crenças que tem como postulado fundamental (evidente por
si mesmo, que dispensa provas – só corroborações discursivas) a ideia de que a
luta de classes é o motor da história. Daí saem todos (ou quase todos) os
marxismos (do marxianismo do primeiro Marx, passando pelo Marx de 1859, ao
marxismo-leninismo, ao marxismo-gramscismo e a praticamente todos os outros).
A luta entre grupos sociais (chamados de
classes) que move a história pressupõe uma filosofia da história. A história
passa a ser, nessa filosofia, uma consequência de algo imanente guardado em seu
corpo, que a leva para um lugar (e não para outro). Mas a história (supondo que
se possa falar de “a” história, no sentido de uma história – e não se pode) não
vai para lugar nenhum. Nós é que vamos, ou não vamos. E vamos ou não vamos
escorrendo por creodos que estão presentes
no campo social e que dependem das configurações dos fluxos interativos da
convivência social. Se acreditamos que existe uma história com um mecanismo
embutido que lhe dá sentido, também podemos acreditar que o conhecimento desse
mecanismo será capaz de nos revelar as suas leis. E aí já estabelecemos uma
distinção geradora de poder, separando os que conhecem essas leis dos que não
as conhecem. Os que não as conhecem devem ser então conduzidos pelos que as
conhecem para que possa se cumprir o desiderato histórico. Note-se aqui que não
é uma interação de opiniões que conduz a história (seja o que for) e sim um
saber sobre a história que confere a alguns agentes a capacidade distintiva de
orientar os demais. O agente tem a episteme que
o coloca num patamar diferente da massa que só possui a doxa. Isto é, rigorosamente falando, um platonismo que,
como todo platonismo, só pode levar à autocracia, não à democracia.
Dizendo o mesmo de outra maneira para resumir.
Se a história tem um sentido antes dos seres humanos atribuírem-lhe tal sentido
com suas ações, então não pode haver liberdade (que é sempre liberdade de
atribuir sentidos e de mudar a atribuição de sentidos). Se a história tem um
sentido e se esse sentido puder ser conhecido de antemão, então alguns (que
conhecem tal sentido) estarão sempre mais corretos do que outros por razões
extra-políticas.
É tudo a mesma coisa
Tanto a ciência de deus (ou o conhecimento de
desígnios supra-humanos), quanto a ciência da natureza (ou o conhecimento de
como as coisas são), quanto a ciência da história (na verdade de qualquer
filosofia que lhe dê sentido) são corpos de crenças colocados como filtros para
transformar o caos da experiência humana comum em ordem autocrática. É por isso
que a adesão à democracia não pode depender dessas crenças (sejam teológicas,
teosóficas, científicas ou filosófico-ideológicas). Não pode haver conteúdo a
ser assimilado como condição para alguém preferir a democracia à autocracia. Se
houver, essa pessoa que se transformou em seguidor de uma visão, será um fiel,
não um infiel. E, como tal, será um agente – ou uma peça – de um sistema
autocrático.
Eis as razões pelas quais os seguidores de
vertentes míticas, sacerdotais e hierárquicas do chamado ocultismo ocidental,
assim como os fiéis religiosos do catolicismo tradicional e de outras
religiões, sobretudo de religiões políticas como o islamismo, têm tanta dificuldade
com a democracia. Embora suas elaborações – e visões de mundo – sejam muito
diferentes, de um ponto de vista interativista, essas razões são as mesmas
pelas quais seguidores de von Mises e de Marx têm dificuldades com a
democracia. Em primeiro lugar porque são seguidores e a democracia é para
não-seguidores: é um erro (no script da Matrix), não um acerto, quer dizer, um trilhar por um
caminho certo. Em segundo lugar porque, todos eles, colocam a adesão a um codex como condição para se fazer (a correta, a
boa, a desejável) política. Mas a democracia não é a política ideal, não é a
utopia da política: é justamente o contrário. A utopia da democracia é uma
topia: é a política feita pelos seres humanos que erram, aprendem com seus
erros e continuam errando e aprendendo quando não há ninguém – ainda bem – para
lhes dizer, a partir de qualquer instância extra-política, o que é certo.+
Vale a pena baixar e ler o texto
Conservadorismo, liberalismo-econômico e democracia, disponível aqui FRANCO, Augusto (2017) Conservadorismo, liberalismo-econômico e
democracia
29 – Como se pode justificar
que a democracia é um modo de regulação baseado na construção de commons (ambientes comuns) se
o ser humano é inerentemente competitivo e faz escolhas racionais tentando
sempre maximizar a satisfação de seus interesses egotistas?
A pergunta contém três pressupostos – apresentados
como se fossem verdades evidentes por si mesmas – que precisam ser
questionados.
Em primeiro lugar, não há nenhuma evidência –
aceitável pela ciência – de que os seres humanos sejam inerentemente (ou por
natureza) competitivos. Isso é uma crença que, a despeito de ser muito
difundida pelo pensamento econômico ortodoxo, não pode ser tomada como verdade
inquestionável. É uma hipótese antropológica que não pode ser verificada. Pelo
contrário, temos muitas evidências do oposto. Sem colaboração, nossa espécie
não teria chegado até aqui. Sem relações amistosas, compartilhamento de
alimentos, linguajear e conversar, não teria surgido o ser humano propriamente
dito.
Em segundo lugar, não é certo que nós, os seres
humanos, agimos a partir de escolhas racionais. O que se sabe é que agimos a
partir de emoções (que são disposições para a ação). Há sempre uma emotional motivation antes da (ou na raiz da) tal rational choise (ou da irrational choise, hehe).
Em terceiro lugar, também não é verdade que
tentamos sempre maximizar a satisfação de nossos interesses (ao fim e ao cabo
egotistas). As ações dos seres humanos são, em boa parte, desinteressadas.
Fazemos ou deixamos de fazer qualquer coisa, em grande parte, movidos por
nossos desejos – alguns dos quais, inclusive, contrariam nossos interesses
egóicos, como se sacrificar para salvar o semelhante de um perigo, amar uma
pessoa, atender a alguém que nos pede ajuda sem expectativa de reciprocidade
(ou seja, alguém que, sabidamente, não poderá nos retribuir o favor ou auxílio),
adotar um animal doméstico abandonado, “perder” tempo ouvindo ou fazendo um relato
que em nada poderá nos ajudar em nossos empreendimentos ou trabalhos,
contemplar uma paisagem ou nos perder na observação das estrelas.
Seres humanos são humanos justamente porque
podem fazer coisas gratuitas e desnecessárias – sem o que não poderia haver
liberdade (sim, a liberdade é sempre a liberdade de não seguir um script, de não ser fiel a uma epigênese). Não somos
máquinas econômicas que funcionam buscando eficiência. Não somos computadores
programados para otimizar preferências.
A democracia é um modo de regulação de
conflitos baseado na construção do commons e
isso só pode acontecer porque os seres humanos têm a liberdade de construir
ambientes comuns, espaços realmente públicos. Se eles estivessem submetidos a
uma lei de ferro de sempre levar vantagem, de sempre satisfazer seus próprios
interesses egotistas em detrimento dos interesses ou desejos alheios, todo
ambiente configurado pelas suas ações seria privado (anticommons).
A evidência de que as coisas não são assim é que existem espaços comuns. Do
contrário não teria surgido a democracia.
Cabe aqui repetir uma reflexão sobre commons e público do ponto de vista político (sim,
esses conceitos não são econômicos e sim políticos).
Só há política propriamente dita quando se
forma o commons. O commons é o
que há de emergência (e de emergente) no conceito de público. O que do público
se forma por emergência é o commons: uma
realidade social, não estatal.
O Estado sempre foi uma organização privada, a
não ser nas democracias. Estado como ente público é uma realidade de apenas
cinco séculos (duzentos anos entre os gregos: de 509 a 322 AEC e mais trezentos
com os modernos, a partir do século 17, quando a democracia foi inventada pela
segunda vez) contra quase seis milênios de Estado como ente privado e
privatizador (cujo papel principal é, exatamente, o de evitar a emergência do commons). Todas as formas de Estado, com exceção
da polis ateniense dos séculos 5 e 4 e do Estado-nação
europeu moderno – o Estado-templo-palácio sumeriano e as hordas proto-estatais
de predadores e senhores, os Estados feudais antigos e os Estados do despotismo
oriental, associados ao chamado modo de produção asiático ou hidráulico, as
cidades-Estado monárquicas da antiguidade, os Estados imperiais do Oriente e do
Ocidente (como Roma), os Estados feudais medievais na Europa e no Japão, os
Estados principescos e reais do Renascimento e, finalmente, o Estado-nação
europeu moderno, que se universalizou, quando não submetido ou domado pelo
fórmula do Estado democrático de direito – todas essas formas de Estado são
estruturas privadas e privatizadoras, regidas por dinâmicas autocráticas. Seu
objetivo precípuo era (e continua sendo, nas ditaduras contemporâneas) impedir
a distribuição da rede social e, com isso, inviabilizar as condições favoráveis
à emersão do commons, quer dizer, de uma
realidade social capaz de se autorregular pela… política (ex parte populis)!
Portanto, o público não se confunde, nem
historicamente, nem conceitualmente, com o estatal, a menos quando há
democracia, quer dizer… política! A democracia não é a utopia da política e sim
o contrário. O sentido da política é as pessoas se autorregularem, ou seja,
conviverem como seres políticos. E por isso as distinções correntes entre
política privada (politics) e política pública (policy) merecem ser reexaminadas.
Só há liberdade se a politics puder se exercer, ou seja, se existir
política ex parte populis, quando
qualquer um do povo (qualquer pessoa) puder fazer política e isso for legítimo
e legal. Em regimes autocráticos a política legítima é feita ex parte principis (seja por um monarca, um
aiatolá ou um dirigente do partido oficial) e às pessoas (comuns) não cabe
praticá-la.
Em geral, nos últimos séculos, a politics é feita por pessoas filiadas a partidos,
que são organizações privadas, não públicas. A liberdade de organização
partidária é fundamental, pois as pessoas podem se aglomerar em torno de ideias
e programas de sua preferência destinados a valer para a comunidade política (a polis, no seu sentido original) como um todo. A
premissa de que a competição entre partidos seja capaz de gerar um sentido
público (como se a racionalidade do mercado pudesse também presidir outras
formas de agenciamento, como o Estado e a sociedade) é uma hipótese incerta,
mas geralmente aceita.
Em ditaduras não há liberdade de organização
partidária (a não ser “para inglês ver”, para efeitos demonstrativos, de
propaganda), pois vigora o regime de partido único fundido ao Estado. Quando há
apenas um partido, a policy, a
política pública que deveria se destinar a promover o bem comum (ou melhor, que
deveria ser um metabolismo do commons) é
capturada pela politics, degenerada como
política ex parte principis (ocupando
então o partido único o papel do príncipe moderno, como queria o autocrata Gramsci),
o que resulta, inevitavelmente, numa privatização partidária do público.
Isso não significa, entretanto, que a policy, a política dita pública, a política em geral feita
por governos, não possa também ser feita pelas pessoas organizadas em outros entes
estatais não governamentais e, ainda, pelas pessoas na sociedade, aglomeradas
em organizações que não são partidárias. Pode-se, por exemplo, fazer política
comunitária ou política voltada ao desenvolvimento local que não seja política
privada. E pode-se fazer também fazer política pública no cenário mais global,
como as políticas de defesa dos direitos humanos e de conservação do meio
ambiente.
Se a política dita pública só puder ser feita
pelo Estado, toda politics não
passará de uma via de acesso ao Estado (que deterá então o monopólio do
público, mas se isso acontecer o que há de social no público – o commons – desaparecerá para dar lugar ao jogo de
interesses privados dos aglomerados que chamamos de partidos, que são
organizações pro-estatais ou proto-estatais na medida em que decalcam a
organização piramidal do Estado e na medida em que existem para ocupar o Estado
e colocá-lo a serviço de seus interesses… privados).+
Talvez seja necessário ler várias vezes os dez
parágrafos acima.
30 – Como a democracia pode
funcionar se os seus agentes são corruptos (ou tão vulneráveis à corrupção),
trabalhando, em grande parte, apenas para garantir interesses e auferir
vantagens pessoais ou corporativos em vez de se dedicarem ao bem comum?
Por trás dessa pergunta existem várias ideias
equivocadas sobre a democracia.
A primeira (e a principal) delas é que a
democracia é um modelo de sociedade ideal e não um processo de desconstituição
de autocracia, sempre singular e precário, realizado pelas pessoas realmente
existentes, com todos os seus vícios e virtudes, defeitos e qualidades.
A segunda ideia equivocada, em parte derivada
da primeira (ou a ela relacionada), é que democracia tem a ver com pureza,
honestidade (pessoal). É uma ideia que não percebe que democracia tem a ver com
liberdade (liberdade, inclusive, para diminuir a desonestidade ou a chamada
corrupção, na política e em outras áreas da atividade humana). Essa ideia não
vê que autocracias (ou regimes antidemocráticos) podem ser erigidas por seres
humanos (pessoalmente) honestos (em especial, no sentido de não-corruptos).
A terceira ideia equivocada, decorrente da
segunda (e relacionada à primeira), é a de que a democracia não pode ser
experimentada enquanto as pessoas continuarem sendo egoístas, tentando sempre
maximizar a obtenção de seus interesses ou preferências, em detrimento dos
demais. Teríamos, primeiro, que realizar uma reforma do ser humano para que ele
passasse a ser altruísta para, só então, poder estabelecer um regime
democrático; ou seja, nunca. Esta ideia impede a visão de que a democracia,
desde que foi inventada pela primeira vez, contou com a participação de pessoas
honestas e desonestas sob algum ponto de vista (ou seja, as pessoas realmente
existentes, não santos, muito menos anjos ou arcanjos).
Essas três ideias equivocadas sobre a
democracia não dão conta de explicar a simples evidência de que nenhum regime
democrático se autocratizou, ou seja, virou uma ditadura, em razão do aumento
do número de desonestos (ou corruptos) por metro quadrado. Quando isso acontece
sempre há um projeto político autocrático em curso, com a participação,
inclusive, de pessoas honestas (não-corruptas).
As três ideias equivocadas, comentadas acima,
têm uma mesma raiz: a noção maligna de pureza.
De todas as ideias introduzidas pelo
patriarcado a mais maligna é a de pureza. Há mundos sutis acima de mundos
densos. Os mais altos são mais puros, os seres angélicos são mais puros do que
os terrestres, e por aí vai… Não é a toa que deus é chamado de O Altíssimo, o
que está longe do comum, o incomum, o que não se configura entre nós (como o
espírito santo na visão evangélica), senão acima de nós.
Está tão enraizada essa ideia, posto que repetida
durante os últimos cinco a seis milênios, que as pessoas são levadas
inconscientemente a preferir o que é puro. O que é puro, entretanto? É o
não-contaminado pela interação, é o que pode ser sagrado (quer dizer, separado
do outro, do profano, do impuro).
O fundamental é que a ideia de pureza é
consonante com o comportamento político que leva à separação. O diferente, em
princípio, é um impuro, aquele cujo modo de ser, pelo seu simples existir
diverso, constitui uma ameaça ao nosso way of life. Não
podemos, portanto, nos deixar contaminar por ele (que deve, então, ser encarado
como um potencial inimigo antes de ser aceito como um possível parceiro). Em
vez de nos comportarmos segundo a evidência de que o que chamamos de ‘eu’ é ‘um
outro’, nos armamos para ficar permanentemente prevenidos contra o outro.
Quando a democracia surge como uma brecha na
cultura patriarcal, ela desafia a ideia de pureza. A democracia, desde o
início, nunca foi a ideia de um governo dos mais puros (dos não corrompidos) e
sim o de qualquer um. A democracia é suja, tão suja quanto qualquer um de nós
quando passa o dia ralando pra cima e pra baixo na praça do mercado. Quem
precisa de pureza (para, com base nela, legitimar a separação geradora de
poder) é a autocracia.
Por isso que a antipolítica robespierriana da
pureza é tão avessa à liberdade. Os jacobinos que querem nos purificar a partir
da sua “teologia” do bem, destroem o sistema imunológico da democracia (que
precisa da “sujeira” para funcionar) substituindo o que é sistêmico por
mecanismos artificiais, por uma moral normativa que acaba virando moralismo
(que é sempre imoral em política). Se é para separar os bons dos maus não
estamos mais no campo da democracia, pois alguém deverá estabelecer ex parte principis, os critérios de pureza, os
indicadores de bondade (e maldade).
É aí que aparecem ideias cretinas, como a de
limpar o Estado dos maus, dos sujos, dos impuros. Os que defendem essas ideias
não confiam nos sistemas de pesos e contrapesos da democracia (ou seja, na
interação propriamente política, capaz de compensar ou contrabalançar desvios a
partir de uma dinâmica orgânica). Não, eles querem sempre erigir um tribunal
ético capaz de separar os ‘do bem’ dos ‘do mal’. Ora, a democracia não aceita
tribunais éticos, só jurídicos. O que a justiça julga não é se alguém é bom ou
mau e sim se alguém violou as leis.
A democracia não é um regime sem corrupção e
sim um regime sem um senhor, mesmo que seja um senhor puro, bom, honesto, capaz
de impedir, ao exercer seu governo virtuoso, que os impuros, os maus, os
desonestos venham sujar o ambiente que deveria ser sagrado (reservado, separado
apenas para os limpos). Pode-se afirmar que todos os jacobinos e moralistas
ainda não estão sujos o suficiente para poder assimilar a democracia.
De que ponto de vista podemos afirmar que ideia
de pureza é uma ideia maligna? Ora, do ponto de vista da democracia. Porque
bom, para a democracia, é tudo que nos faz mais livres. E a ideia de pureza, ao
introduzir a separação entre puros e impuros, reduz os graus de liberdade dos
que são julgados como impuros, seja eliminando ou restringindo as conexões,
seja excluindo nodos, seja reduzindo o número de atalhos entre clusters. Isso não tem nada a ver com obedecer as leis
e punir os que as transgridem (o que é correto). Está antes. É uma ideologia,
uma visão de mundo selecionadora, julgadora, estabelecida ex ante à interação, que fecha em vez de abrir a
possibilidade de ser alterado pelo outro (o outro concreto, com todas as suas
sujeiras, imperfeições e curvaturas, o outro realmente existente, não um modelo
ideal do ser limpo, perfeito e reto).
FIM
Leia mais em:
http://dagobah.com.br/sem-doutrina-um-curso-de-introducao-a-democracia/
A ROUPA NOVA DO REI
Hans Christian Andersen (1837)
Há muitos e muitos anos atrás, havia um rei tão apaixonado,
mas tão apaixonado por roupas novas, que gastava com elas todo o dinheiro que
possuía. Pouco se importava com seus soldados, com o teatro ou com os passeios
pelos bosques, contanto que pudesse vestir novos trajes. E ele tinha mesmo um
para cada hora do dia, tanto que, ao invés de se dizer dele o que se diz de
qualquer rei: “O rei está ocupado com seus conselheiros”, por exemplo, dele se
dizia sempre a mesma coisa: “0 rei está se vestindo”. Na cidade em que vivia, a
vida era muito alegre; todos os dias chegavam multidões de forasteiros para
visitá-la, e, entre eles, certa ocasião, chegaram dois vigaristas. Sabendo do
gosto do monarca, e tramando dar nele um golpe, fingiram-se de tecelões, e
apresentaram-se no palácio dizendo-se capazes de tecer os tecidos mais
maravilhosos do mundo. E não somente as cores e os desenhos de seus tecidos
eram magníficos, mas também os trajes que faziam possuíam a qualidade especial
de se tornar invisíveis para aqueles que não tivessem as qualidades necessárias
para desempenhar suas funções e também para aqueles que fossem muito tolos e
presunçosos. “Devem ser trajes magníficos —pensou o rei. “E se eu vestisse um
deles, poderia descobrir todos aqueles que em meu reino carecem das qualidades
necessárias para desempenhar seus cargos. E também poderei distinguir os tolos
dos inteligentes. “Sim, estou decidido a encomendar um desses trajes para mim!”
Entregou então a um dos tecelões uma grande soma em dinheiro como adiantamento,
na expectativa de que assim os dois começassem imediatamente o trabalho. E foi
o que aconteceu: depois de receberem uma grande quantidade de seda pura e fio
de ouro, material que guardaram em seus alforjes, os dois vigaristas prepararam
os teares e fingiram entregarse ao trabalho de tecer, embora não houvesse um só
fio nas lançadeiras. “Gostaria de saber como vai o trabalho dos tecelões”
—pensou um dia o rei. Todavia, temendo ser ele mesmo um tolo, ou alguém incapaz
de exercer a função de rei, desistiu de ir pessoalmente e decidiu mandar outra
pessoa em seu lugar. Todos os habitantes da cidade conheciam as maravilhosas
qualidades do tecido em questão, e todos, também, desejavam saber, por esse
meio, se seus vizinhos ou amigos era tolos. “Mandarei meu fiel primeiro
ministro visitar os tecelões”— pensou o rei. “Será o mais capacitado para ver o
tecido, pois é um homem muito hábil e ninguém cumpre seus deveres melhor do que
ele”. E assim o bom e velho primeiro ministro dirigiu-se ao aposento em que os
vigaristas trabalhavam nos teares completamente vazios. “Deus me proteja!”
—pensou o ancião, e abrindo bem os olhos pensou “Mas eu não vejo nada!” Os dois
vigaristas, então, notando a expressão de espanto no rosto do velho, pedem-lhe
que se aproxime e opine acerca do desenho e do colorido do tecido. Mostram-lhe
o tear vazio e o pobre ministro, por mais que se esforçasse para ver, não
conseguia enxergar coisa alguma, porque não havia nada para ver. “Deus meu!
—pensava. “Serei eu tão tolo assim?” E não querendo que ninguém soubesse de sua
tolice e menos ainda que o julgasse incapaz de exercer a função de ministro,
imediatamente respondeu: “É muito lindo! Que efeito encantador!!” E fitando o
tear vazio através de seus óculos: “0 que mais me agrada são os desenhos e as
maravilhosas cores que o compõem. Asseguro-lhes que direi ao rei o quanto gosto
de seu trabalho!” “Ficamos muito honrados em ouvir tais palavras de vossos
lábios, senhor ministro” — replicaram os tecelões. E imediatamente começam a
verbalmente descrever os detalhes do complicado desenho e das cores que o
formavam. 0 ministro ouviu- os com a maior atenção, com a intenção de repetir
essas palavras quando estivesse na presença do rei. Percebendo que seu plano
estava dando certo, os dois vigaristas pedem então mais dinheiro, mais seda e
mais fio de ouro, para dar prosseguimento a seu trabalho. Porém, assim que
recebem o solicitado, guardam-no como antes. Nem um só fio foi colocado no
tear, embora eles fingissem continuar trabalhando apressadamente. Passado algum
tempo, o rei envia outro fiel cortesão para verificar o progresso do trabalho
dos falsos tecelões e a fim de saber se eles demorariam muito para entregar o
tecido. A este segundo enviado aconteceu a mesma coisa que com o primeiro: “Não
acha que é uma fazenda maravilhosa?” —perguntaram os vigaristas, mostrando e
explicando um desenho imaginário e um colorido não menos fantástico, que
ninguém conseguia ver. “Sei que não sou tolo” —pensava o cortesão; “mas se não
vejo o tecido, é porque não devo ser capaz de exercer minha função... Melhor
pois não dar a perceber esse fato.” E assim foi, até que o rei convencido de
que ele próprio deveria ver o tal tecido enquanto ainda estivesse no tear,
pediu que outros mais cortesãos, dentre os quais o primeiro ministro e o outro
palaciano que haviam fingido ver o tecido, o acompanhassem em uma visita aos
falsos tecelões. Chegando lá, viu que os dois vigaristas com o maior cuidado
trabalhavam no tear vazio, e com grande compenetração. “É magnífico!”
—exclamaram o primeiro ministro e o palaciano. “Digne-se Vossa Majestade a
olhar o desenho. Que cores maravilhosas!” E apontavam para o tear vazio, pois
não tinham dúvidas de que as outras pessoas viam o tecido. “Mas o que é isto?”
—pensou o rei. “Não estou vendo nada! Isso é terrível! Serei um tolo? Não terei
capacidade para ser rei? Certamente não poderia acontecer-me nada pior.” E
assim pensando, exclama: “É realmente uma beleza esse tecido!” “E merece minha
melhor aprovação.” E manifestava sua aprovação por meio de alguns gestos,
enquanto olhava para o tear vazio, pois ninguém poderia supor que ele não
estivesse vendo coisa alguma.
Por sua vez, todos os outros cortesãos olhavam e obviamente
também não viam nada. Porém, como nenhum queria passar por tolo ou incapaz,
todos fizeram coro às palavras de Sua Majestade. “É uma beleza!” --exclamavam.
E aconselharam o rei a mandar fazer uma roupa com aquele tecido maravilhoso, e
que a estreasse no grande desfile que se iria realizar daí a alguns dias. Os
elogios ao inexistente tecido corriam de boca em boca e toda a cidade estava
curiosa e entusiasmada. E o rei condecorou os dois vigaristas com a ordem dos
cavaleiros e concedeu-lhes o título de Cavaleiros Tecelões... Na noite anterior
ao desfile, os dois vigaristas, querendo que todos testemunhassem seu grande
interesse em terminar a roupa do rei, passam a noite toda trabalhando, à luz de
dezesseis velas. E fingem tirar a fazenda do tear, e cortá-la com enormes
tesouras e costurá-la com agulhas sem linha de espécie alguma até finalmente dizer:
“Já está pronto o traje do rei!!” 0 rei, então, acompanhado por seus mais
nobres cortesãos, vai ao atelier dos vigaristas, e um deles, levantando um
braço, como se segurasse uma peca de roupa, diz: “Aqui estão suas calças. Este
é o colete!!! Veja, Vossa Majestade, aqui está o casaco!! Finalmente,
dignai-vos a examinar o manto!! Estas peças pesam tanto quanto uma teia de
aranha. Quem as usar mal sentirá o seu peso...” E embora ninguém visse nada,
todos fingiam ver, enquanto ouviam os vigaristas a descrever as roupas, porque
todos temiam ser considerados tolos ou incapazes. “Tirai agora vossas roupas,
Majestade --disse um dos falsos tecelões-- e assim poderá experimentar a roupa
nova na frente do espelho”. E o rei tirou a roupa que vestia e os impostores
fingiram entregar-lhe peça por peça sucessivamente e a ajudá-lo a vestir cada
uma delas. “Que bem assenta este traje em Sua Majestade!!!” “Como está
elegante!!! Que desenho e que colorido! É uma roupa magnífica!” “Estou pronto”
– disse finalmente o rei, completamente nu. “Acham que esta roupa me assenta
bem?” E novamente mirou-se no espelho, a fim de fingir que se admirava vestido
com a roupa nova. E os camaristas, que deviam carregar o manto, inclinaram-se
fingindo recolhê-lo do chão e logo começaram a andar com as mãos no ar,
carregando nada, pois também eles não se atreviam a dizer que não viam coisa
alguma. À frente o rei andava orgulhoso e todos os que o assistiam das ruas e
das janelas, exclamavam: “Como está bem vestido o rei! Que cauda magnífica! A
roupa assenta nele como uma luva!!!” Nunca na verdade a roupa do rei alcançara
tanto sucesso!! Até que subitamente uma criança, do meio da multidão gritou: O
rei está nu!!! “Ouçam! Ouçam o que diz esta criança inocente!” --observou o pai
a quantos o rodeavam. Imediatamente o povo começou a cochichar entre si. “0 rei
está nu! O rei está nu!!” --começou a gritar o povo. E o rei ouvindo, fez um
trejeito, pois sabia que aquelas palavras eram a expressão da verdade, mas
pensou: “O desfile tem que continuar!!” E, assim, continuou mais impassível que
nunca e os camaristas continuaram, segurando a sua cauda invisível.
Leia mais em:
https://static.poder360.com.br/2018/11/roupa_nova_rei-texto.pdf
O REI ESTÁ NU - História
“O conto A Roupa Nova do Rei (imperador)”
https://www.youtube.com/watch?v=RMje8EpqTUU
Referências
https://youtu.be/n-eoStMliK0
https://www.youtube.com/watch?v=n-eoStMliK0
https://youtu.be/eo6_wP7RMzM
https://www.youtube.com/watch?v=eo6_wP7RMzM&feature=youtu.be
https://youtu.be/n2FQ10sTowg
https://www.youtube.com/watch?v=n2FQ10sTowg
https://youtu.be/6IiD2lpL-aA
https://www.youtube.com/watch?v=6IiD2lpL-aA
https://static.poder360.com.br/2018/11/roupa_nova_rei-texto.pdf
https://youtu.be/RMje8EpqTUU
https://www.youtube.com/watch?v=RMje8EpqTUU
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