quinta-feira, 2 de julho de 2020

Introdução à Democracia







“O Rei vai nu.”






"O Rei vai nu" | Hora do Conto


‘"O Rei vai nu" é um conto do famoso autor dinamarquês Hans Christian Andersen.’
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https://www.youtube.com/watch?v=n-eoStMliK0








Conversas com o Meio: Augusto de Franco


“De formação, Augusto de Franco é físico. Mas o fascínio pela compreensão das redes o transformou num especialista em democracias. Você acha que compreende bem o que é — e como funciona — uma democracia? Talvez não. O que a experiência de Atenas e a atual têm em comum? Onde estão os problemas na democracia? E de que forma o novo populismo de direita a ameaça? Estes são apenas alguns dos temas desta conversa.”
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https://www.youtube.com/watch?v=eo6_wP7RMzM&feature=youtu.be






Exclusivo: FHC diz que Brasil precisa de pessoas capazes de unir o país

“Ex-presidente do Brasil e sociólogo de formação, Fernando Henrique Cardoso deu entrevista para a CNN onde avaliou a situação do país, os desafios para Bolsonaro e os próximos presidente e trouxe o perfil ao qual acha que o próximo líder da nação deve ter para que saiamos de uma crise econômico que perdura há anos. “A polarização cansa, chega um momento em que é preciso ter juízo. No momento precisamos dar confiança ao Brasil, acreditar em nós mesmo, e as palavras do presidente são simbólicas para a nação. É preciso alguém que explique o que quer fazer e que toque o coração das pessoas, alguém que faça as pessoas sentirem algo, que tenho o espírito aberto, que simboliza o caminho. A dificuldade maior no momento é encontrar quem seja capaz de liderar". Debate exibido em 01 de julho no programa CNN 360, apresentado por Daniela Lima e Carol Nogueira.”
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https://www.youtube.com/watch?v=n2FQ10sTowg





LULA NA RÁDIO BANDEIRANTES


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https://www.youtube.com/watch?v=6IiD2lpL-aA




Sem Doutrina: um Curso de Introdução à Democracia

O desconhecimento da democracia é tão generalizado e a programação autocrática é tão forte que as pessoas fazem sempre as mesmas perguntas (o que é uma evidência inconteste de que existe mesmo uma programação autocrática).
Este programa – baseado em perguntas recorrentes sobre a democracia – parte da seguinte seguinte ideia geral. Você pode acreditar no que quiser e ninguém tem nada com isso. Mas estabelecer como pré-condição para a atuação política correta a adesão a qualquer credo dificulta ou impede a compreensão – e muitas vezes a prática – da democracia. Por isso nenhum códex, nenhuma doutrina – seja realista, marxista, conservadora, liberal-econômica, ou mesmo anarquista ou libertária – são necessários. Porque a democracia não é um modo-de-ver ou de conhecer (observar, investigar, explicar – como a ciência) e sim um modo-de-interagir. Não é baseada em cognitivismo e sim em interativismo. Por isso este curso sobre democracia se chama Sem Doutrina. Porque a democracia não precisa mesmo de doutrina.
Ninguém é obrigado a ser democrata (e sim a não transgredir as leis, o que é outra coisa). A democracia não é necessária, é uma questão de desejo (o desejo – como dizia Esquilo (472 a. E. C.), em Os Persas, referindo-se aos atenienses do século 5 – de não ser escravo nem súdito de ninguém). Quem tem vocação para rebanho, pode continuar seguindo lideranças, quem gosta de ser fiel pode abraçar doutrinas que invocam qualquer razão extra-política – seja deus, a natureza ou a história – para validar suas posições políticas.
O programa Sem Doutrina foi desenvolvido por Augusto de Franco e por pesquisadores associados à Escola de Redes.
O programa teve sua primeira oferta em agosto de 2017 e foi feito por e-mails semanais. Agora abrimos o acesso solicitando uma contribuição. Quem quiser contribuir voluntariamente com qualquer valor clique neste link: https://pag.ae/7VSSjZ89p
O PROGRAMA É COMPOSTO POR TRINTA QUESTÕES

1 – Quais os exemplos de países plenamente democráticos? Existem de fato tais países?
O desconhecimento da democracia é tão generalizado e a programação autocrática é tão forte que as pessoas fazem sempre as mesmas perguntas (o que é uma evidência de que existe mesmo uma programação autocrática).
Esta é uma das perguntas mais comuns. Em geral a pessoa que faz esta pergunta pode estar querendo dizer várias coisas:
a) Que não existem países plenamente democráticos (e que, portanto, a democracia é uma espécie de utopia, sem aplicação satisfatória no mundo real).
b) Que a democracia se aplica (somente) a países, sendo uma espécie de modo de administração política do Estado-nação, uma forma de governar.
c) Que existiria um modelo ideal de democracia, uma verdadeira democracia (diferente das falsas democracias que se encontram por aí), ou seja, uma espécie de fórmula que, entretanto, na prática, não consegue ser aplicada em plenitude (sendo o resultado da sua aplicação sempre imperfeito).
Em geral as pessoas que não têm muita intimidade com o assunto acham que a democracia (não a que anda por aí, mas a verdadeira, perfeita, pura, limpa, reta) é um ideal, um regime político que não consegue se materializar porque os seres humanos não estão preparados para experimentá-la, seja em razão de suas características inerentes – por exemplo, por serem competitivos ou hostis por natureza, por não terem domado a besta-fera que vive no seu interior – seja por força de suas imperfeições morais, seja por falta de consciência e de conhecimento (do que é e de como deveria funcionar uma “verdadeira democracia”).
Na verdade este tipo de pergunta revela uma falta de reflexão sobre o tema, sobre o que é a democracia, sobre como ela surgiu (ou foi inventada pela primeira vez) e sobre como ela foi reinventada e existe hoje nos países que a adotam.
A leitura do TEXTO 01 – O QUE É DEMOCRACIA é fundamental como ponto de partida neste itinerário de investigação-aprendizagem que está começando agora:

2 – Se a democracia é um bom regime político, por que temos tão poucas experiências realmente democráticas? E por que, segundo alguns reconhecidos índices internacionais apenas duas dezenas de países – em quase 200 – podem ser considerados plenamente democráticos? E, ainda, por que a maioria da população do planeta nunca viveu sob regimes democráticos?
Esta pergunta é uma boa oportunidade para esclarecer algumas características da democracia.
Vamos por partes. Ela começa com a afirmação (ainda que no contexto de uma frase interrogativa) de que “a democracia é um bom regime político”. Esta é uma declaração de adesão ou uma aposta na democracia. É, a rigor, a manifestação de um desejo. A democracia só é um bom regime político para quem deseja a democracia, ou seja, para quem quer viver sem um senhor.
O primeiro registro escrito da democracia aparece em Os Persas, de Ésquilo (472 a. E. C.). Referindo-se aos atenienses (que inventaram a democracia pela primeira vez) ele diz: “Não são escravos, nem súditos de ninguém”.
Em termos atuais poderíamos dizer que a democracia é boa para quem quer ser cidadão, não súdito. Ou, em outras palavras, para quem não quer viver em autocracias (ditaduras).
Há quem prefira viver em autocracias (por exemplo, quase a totalidade dos fundamentalistas islâmicos, ou dos militaristas, ou dos neonazistas, ou grande parte dos marxistas-leninistas e bolivarianistas – como Maduro e Cabello, na Venezuela). Aliás, seja por preferência, seja por falta de oportunidade ou de condições de experimentar outros modos de regulação de conflitos, a maioria da população do planeta nunca viveu em regimes democráticos.
No mundo de hoje, não vivem em regimes democráticos os habitantes de cerca de 60 países (que abarcam a maioria da população mundial), como China, Cuba, Venezuela, Coréia do Norte, Rússia, Turquia etc. Claro que muitos habitantes desses países gostariam – se soubessem do que se trata e se pudessem – de viver em regimes democráticos. Em boa parte deles, aliás, há movimentos de democratização (em geral fortemente reprimidos pelos senhores, quer dizer, pelos ditadores que dirigem ou comandam seus respectivos Estados-nações: toda autocracia se impõe pela força, ainda que não somente).
Voltemos à segunda parte da primeira pergunta: “por que temos tão poucas experiências realmente democráticas?”
Duas observações preliminares. A primeira é que não temos tão poucas experiências democráticas assim: se levarmos em conta os critérios adotadas pelos principais institutos que monitoram a democracia no mundo – e. g. a Freedom House (FH), a Economist Intelligence Unit (EIU) e o V-Dem (Universidade de Gotemburgo), veremos que temos mais democracias do que autocracias.
A segunda observação preliminar é sobre a palavra “realmente”. Não se sabe o que seriam países “realmente” democráticos. As duas mais conhecidas organizações que monitoram a democracia no mundo – a Freedom House (FH), a Economist Intelligence Unit (EIU) e o V-Dem (Universidade de Gotemburgo) – adotam critérios distintos para classificar os regimes democráticos. A Freedom House classifica os países em livres, parcialmente livres e não-livres. Para a EIU, temos democracias plenas, democracias defeituosas, regimes híbridos e regimes autoritários. Para o V-Dem, temos democracias liberais, democracias eleitorais, autocracias eleitorais e autocracias fechadas.
Retomando mais uma vez a pergunta e reformulando-a: por que não temos mais países “satisfatoriamente” democráticos?
Bem… a única resposta para esta questão é a seguinte: porque não ocorreram processos de democratização (na verdade, de desconstituição de autocracia) bem-sucedidos em mais países, ainda que o número de democracias seja bem maior do que 50 em qualquer ranking.
O importante é que como a democracia depende de iniciativas políticas para existir, não há uma explicação extra-política adequada para responder a questão (do tipo: porque muitos países não são desenvolvidos o suficiente para poder adotar a democracia, porque têm um IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – muito baixo, porque não são realmente capitalistas, porque estão dominados por culturas não-ocidentais etc.). É claro que todas essas variáveis mencionadas acima incidem sobre as iniciativas políticas, mas elas não podem ser tomadas como razões imediatas ou de primeira instância para explicar por que alguns países são democráticos e outros não ou mesmo por que alguns países são mais democráticos do que outros. A democracia não é necessária, não é o resultado da ação de algum mecanismo oculto (de natureza econômica, por exemplo). Ela só acontece se existirem pessoas interagindo politicamente umas com as outras e dispostas a experimentá-la, seja por que motivo for (isso não é relevante para a explicação, ainda que possa ser importante para explicar suas motivações). Onde, por qualquer razão, não se conformou um ambiente social favorável à democracia, ela não acontece, nem por força de fatores imanentes (por exemplo, alguma lei histórica), nem por força de fatores transcendentes (por exemplo, algum plano divino).

3 – Quais são os critérios para saber se um regime é democrático? Se esses critérios não são inequívocos, cada qual adotando os indicadores que mais se ajustam à sua visão de mundo, a democracia não se reduz apenas a um discurso legitimatório do tipo de regime que se quer manter ou alcançar?
Duas perguntas em uma. Vamos à primeira.
Quais são os critérios? Os que fazem levantamentos sobre a democracia (como a Freedom House e a Economist Intelligence Unit – já citados acima) adotam diferentes critérios. A FH considera dois indicadores básicos: Direitos Políticos e Liberdades Civis. A EIU considera cinco indicadores: Processo Eleitoral e Pluralismo, Funcionamento do Governo, Participação Política, Cultura Política e Liberdades Civis.
Há, é claro, muitos problemas. Não há um modelo de democracia que possa servir de referência para se dizer o que é e o que não é democracia. Toda vez que o processo de democratização consegue, mesmo intermitentemente, prosseguir, dizemos que estamos numa democracia, devendo-se entender por isso o seguinte: estamos conseguindo tornar modos de regulação de conflitos menos autocráticos e padrões de organização menos hierárquicos, nada garantindo, porém, que vamos definitivamente para o céu: sempre pode haver retrocesso quando – no caso da democracia dos modernos (a democracia representativa realmente existente nos países que a adotam) – restringe-se a liberdade, viola-se a publicidade, frauda-se a eletividade, falsifica-se a rotatividade, descumpre-se a legalidade e degenera-se a institucionalidade. Quando algumas dessas coisas são feitas a partir de certo grau que começa a inviabilizar a continuidade do processo de democratização, dizemos que não estamos mais numa democracia (ou seja, que a democracia que temos não está mais conformando-se como um ambiente favorável a caminharmos em direção às democracias que queremos). Mas os limites não são fixos.
Outro problema é o seguinte.
A democracia realmente existente na atualidade é a democracia reinventada pelos modernos como democracia representativa. O problema é que ela é coetânea à construção da forma Estado-nação. E como o Estado (qualquer forma de Estado) é um fruto da guerra (no caso do Estado-nação europeu moderno, da paz de Westfália), a democracia acabou servindo como modo de administração política de uma estrutura geneticamente guerreira, para tentar mitigar o Leviatã com a fórmula do Estado democrático de direito.
Então qual é realmente o problema? O problema é que a democracia não deveria valer apenas para isso, para domesticar Estados. A democracia é um processo de desconstituição de autocracia onde quer que ela se manifeste (nas famílias, escolas, igrejas, corporações sindicais, organizações sociais, universidades, empresas – além, é claro, de órgãos estatais). Ademais, não é só o Estado que é ou não é democrático em alguma medida e sim também as demais estruturas sociais. Ou medimos tudo isso, ou não medimos o que realmente importa: em que medida comportamentos que refratam a regulação de conflitos de modo mais autocrático do que democrático se reproduzem na sociedade.
Considerando que a democracia que temos (a democracia representativa, realizada em Estados-nações) é condição necessária para alcançar as democracias que queremos (ou, em outras palavras, para a continuidade do processo de democratização, tanto do Estado quanto da sociedade) seria necessário, em primeiro lugar, definir um novo índice para avaliar o grau de realização da democracia representativa em Estados-nações do ponto de vista da continuidade do processo de democratização.
Esse índice poderia se chamar de índice de legitimidade da democracia realmente existente. Para calculá-lo poderíamos partir dos critérios de Ralf Dahrendorf (modificados por investigadores do Projeto Democracia): liberdade, eletividade, publicidade (ou transparência e, no limite, accountability), rotatividade (ou alternância), legalidade e institucionalidade. Dever-se-ia construir indicadores para cada um desses atributos ou características da democracia representativa.
Em segundo lugar deveria ser construído um novo índice para medir o grau de democratização da sociedade. Este é um desafio e tanto, pois é muito difícil medir o capital social (que é, praticamente, o único conceito político diretamente relacionável à morfologia e a dinâmica social). É tudo muito problemático porque o padrão de organização não guarda nenhuma relação de causação com o modo de regulação de conflitos, ainda que haja condicionamentos recíprocos entre ambos.
Segundo o primeiro índice, os países poderiam ser classificados segundo os seguintes tipos:
  • Autocracias (ditaduras, regimes autoritários, not-free countries)
  • Regimes em transição autocratizante (protoditaduras)
  • Regimes em transição democratizante (protodemocracias)
  • Democracias formais parasitadas por governos (autocráticos ou autocratizantes) manipuladores (por exemplo, por governos populistas e neopopulistas)
  • Democracias formais representativas não-plenas (flaweds)
  • Democracias formais representativas plenas
O segundo índice permitiria calcular a probabilidade da mudança de status de um nível da classificação para outro. No caso das democracias formais representativas plenas, poder-se-ia avaliar a medida em que o regime político se constitui como ambiente favorável à realização de ensaios de democracias substantivas, mais interativas (tanto no âmbito do Estado, quanto no âmbito da sociedade).
Estes são desafios colocados para os que investigam a democracia, sobretudo do ponto de vista das redes, ou seja, para os que têm uma visão social da democracia.
Passemos agora à segunda pergunta:
Se os critérios não são inequívocos, cada qual adotando os indicadores que mais se ajustam à sua visão de mundo, a democracia não se reduz apenas a um discurso legitimatório do tipo de regime que se quer manter ou alcançar?
Não. Por mais distintos que sejam os critérios adotados por diferentes pesquisadores da democracia, todos concordariam sobre o seguinte: os critérios da legitimidade democrática de Dahrendorf não podem ser violados em países que adotam regimes considerados democráticos. Repetindo (a versão modificada pelo Projeto Democracia):
  • Liberdade,
  • Eletividade,
  • Publicidade (ou transparência e, no limite, accountability),
  • Rotatividade (ou alternância),
  • Legalidade, e
  • Institucionalidade.
Assim, quando autocratas – como Hitler ou Stalin – dizem (disseram) que estão (estavam) aplicando a “verdadeira democracia”, nenhum estudioso sério do tema (na verdade, nenhum democrata) poderia levar tal alegação a sério. Algum dos critérios (em alguns casos, todos os critérios) acima foram (ou serão) violados.
Numa democracia, seja qual for o critério adotado por diferentes centros de pesquisa:
1) A liberdade (de ir e vir, de imprensa, no ciberespaço, de reunião e de manifestação, de organização social e política e, inclusive, de empreender e ter propriedades) não pode ser violada, nem restringida (sob qualquer pretexto);
2) A eletividade (o direito de eleger seus representantes para governar ou elaborar as leis – executivo e legislativo – e de ser eleito para essas funções) não pode ser violada, restringida ou fraudada. Aqui cabe um comentário: esse critério é necessário, porém não suficiente para caracterizar um regime como democrático (democracia não é eleição: a maioria das ditaduras que remanescem hoje em dia promovem eleições);
3) A publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), ou seja, a inexistência de opacidade e de segredo nos negócios de Estado, deve estar garantida por mecanismos eficazes;
4) A rotatividade ou alternância também devem ser observadas: os mandatos constituídos por representação ou nomeação devem ser limitados no tempo, não podendo um governante se prorrogar no posto (mesmo que a reeleição para vários mandatos consecutivos ou alternados seja inserida na Constituição, como vem ocorrendo nos regimes bolivarianos);
5) A legalidade deve ser mantida, o que exige um judiciário independente e um conjunto de leis democraticamente aprovadas (inclusive uma Constituição elaborada por um parlamento constituinte legitimamente eleito). É o chamado Império da Lei, expressão utilizada para dizer que não há império de uma pessoa e que os habitantes do país são cidadãos e não súditos de ninguém;
6) A institucionalidade, garantida por um conjunto de instituições que funcionem com a sua dinâmica própria e tenham proteções suficientes para não serem invadidas por interesses empresariais, corporativos ou partidários e político-eleitorais. Isso significa, por exemplo, não transformar as instituições em palcos de disputa de hegemonia, onde um partido ou coligação de partidos tentem conquistar maioria para converter essas instituições em correias de transmissão de suas vontades ou diretivas políticas, como ocorre nos processos de aparelhamento do Estado (com a indicação de militantes partidários para ocupar os cargos das diversas instituições).
Vale a pena ler o artigo Ralf Dahrendorf e a legitimidade democrática, que republica dois textos importantes do autor (em espanhol): Democracia sin democratas (24/01/2004) e Legitimidad y elecciones (12/01/2005). Ele está no link: http://dagobah.com.br/ralf-dahrendorf-e-a-legitimidade-democratica/

4 – Um grupo humano – por exemplo, de 5 mil pessoas, escolhidas aleatoriamente no conjunto dos países do mundo atual – que fosse transportado para uma ilha deserta (mas com recursos suficientes à sua sobrevivência), adotaria um regime democrático para regular seus conflitos? Quais são as chances de isso acontecer?
Esta pergunta é uma experiência de pensamento (Gedankenexperiment), muito usada em ciência para ensejar um raciocínio lógico sobre um experimento não realizável na prática, mas cujas consequências podem ser exploradas pela imaginação.
O objetivo aqui é, em primeiro lugar, mostrar que a democracia não emerge espontaneamente da convivência social, que ela não é necessária e sim uma escolha coletiva e que ela não decorre de nenhuma determinação extra-política, seja imanente ou transcendente à história, que ela não é “natural” (como se fosse uma característica das sociedades primitivas) e que ela não surge por força de exigências econômicas (como, por exemplo, o grau de desenvolvimento das forças produtivas ou por qualquer outro fator relacionado ao modo de produção).
O que a experiência mental proposta nesta questão está colocando é que essas pessoas seriam transportadas para uma localidade onde não há escassez (de recursos sobrevivenciais). Mas isso não garante que a escassez não venha a ser introduzida artificialmente, em razão dos modos de regulação de conflitos que forem adotados pela nova comunidade que se formará. Há um romance clássico sobre isso: O Senhor das Moscas, de William Golding (1954) – que veio a receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1983.
O livro retrata o comportamento de um grupo de crianças inglesas de um colégio interno, preso em uma ilha deserta após a queda do avião que as transportava para longe da guerra.
O Senhor das Moscas (1954) examina então o comportamento social de indivíduos em condições de escassez (natural e artificial, porém mais artificial do que natural – e aí pode estar uma chave de interpretação para o surgimento de modos de regulação autocráticos aderentes a padrões de organização hierárquicos). É mais uma descrição de um experimento social do que uma reflexão sobre a origem do mal ou, mesmo, do que uma alegoria política stricto sensu (como, às vezes, se interpreta). O livro permite uma leitura capaz de fazer correspondências entre o social e o político, ou seja, sobre os condicionamentos recíprocos entre padrão de organização e modo de regulação.
Por isso vale a pena lê-lo. Ele pode ser baixado aqui: GOLDING, William (1954) O Senhor das Moscas
Para examinar a questão devemos ter em mente que a democracia se realiza toda vez que adotamos modos não-guerreiros de regulação de conflitos, mas desde que no contexto de sociedades autocráticas (quer dizer, guerreiras). Pois a democracia é, no sentido forte do conceito, um processo de desconstituição de autocracia (assim ela foi inventada pelos antigos atenienses, contra a tirania dos psistrátidas e assim ela foi reinventada pelos modernos, contra o poder despótico de Carlos I).
Em sociedades não patriarcais (i. e., não hierárquicas e não guerreiras) – por exemplo, entre os Pirahãs ou os Yanomamis, num agrupamento paleolítico de caçadores-coletores ou numa aldeia agrícola neolítica – a democracia não faz o menor sentido. Porque não há o que democratizar (ou seja, desautocratizar) nessas sociosferas que não são dominia de Estados. Impor a essas sociedades um modelo político qualquer, inclusive democrático, seria uma perversão. Nenhum bem adviria da adoção da democracia por povos cujo modo de vida (ou de convivência social) não está baseado na conservação do emocionar guerreiro.
Mas vamos analisar a proposição. Cinco mil pessoas escolhidas aleatoriamente no conjunto dos países do mundo atual, provavelmente não teriam, em sua maioria, experiência de democracia. Sua cultura política, portanto, tenderia a ser mais autocrática do que democrática.
Como vimos nos módulos anteriores deste programa, a maioria da população do planeta jamais viveu sob regimes democráticos. Então, se essa maioria viesse a implantar, por qualquer motivo cultural, um regime político inspirado na guerra, no domínio, no comando-e-controle, seria possível, sim, que ocorresse o surgimento de um movimento democrático (mas para desconstituir o modo autocrático de regulação de conflitos que foi adotado).
O que é determinante para tanto são as conversações recorrentes das pessoas que não desejam viver sob um regime autocrático. Sim, a democracia está baseada no desejo de não viver sob um senhor: como escreveu Ésquilo (472 a. E. C.), em Os Persas, referindo-se aos atenienses de sua época, de “não ser escravo nem súdito de ninguém”. Se essas conversações, sintonizadas com um emocionar não-guerreiro, ensejassem ações políticas concretas de desconstituição de autocracia, então – e só então – um processo democrático poderia se desenvolver na nossa ilha imaginária. Mas não se pode saber, de antemão, as chances de isso vir a acontecer.
Ou seja, é necessário, para haver democracia, que se articule uma rede distribuída (não centralizada ou descentralizada – portanto, não-hierárquica) de conversações, mas tal não é suficiente. Pois não pode haver democracia sem política. Ainda que haja um condicionamento recíproco entre padrão de organização e modo de regulação e, assim, a padrões de organização não-hierárquicos correspondam modos de regulação não-guerreiros, apenas a ausência de hierarquia não é capaz de instalar a democracia. Do contrário encontraríamos regimes democráticos em povos primitivos. E não encontramos.
Para entender melhor tudo isso, vale a pena ler um capítulo (ou seção) do livro de Humberto Maturana e Gerda Verden-Zoller (1993), intitulado Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. O texto indicado, escrito por Maturana, se chama A democracia: SEM DOUTRINA TEXTO 02
Ele também pode ser lido aqui (vá diretamente para o capítulo 6): http://dagobah.com.br/um-texto-seminal-de-humberto-maturana/

5 – O ideal democrático não é semelhante ao que pregavam os anarquistas, ou seja, um sonho que jamais se concretizou em lugar algum?
É preciso entender, em primeiro lugar, o que chamamos de ideal democrático. Não é um ideal no sentido em que a palavra é tomada pelas diferentes doutrinas políticas. Assim, a democracia não é uma doutrina semelhante às demais doutrinas. A democracia é apenas um modo não-guerreiro de regulação de conflitos (é o que os atenienses do século 5 a. E. C. chamavam propriamente de política, que era tomada como o contrário da guerra). Por isso a democracia pode ser definida, no sentido forte do conceito, como um processo de desconstituição de autocracia. Porque, ao se exercer, um modo não-guerreiro de regulação de conflitos desconstitui a guerra (a guerra quente, a guerra fria ou a política como continuação da guerra por outros meios) – quer dizer, o modo guerreiro de regulação de conflitos – que caracteriza a autocracia.
Portanto, a democracia não é mais uma doutrina política. Não por ser uma doutrina diferente, especial, superior às demais, e sim porque seu status epistemológico é distinto do status epistemológico de uma doutrina, ainda que alguém possa querer inventar uma doutrina democratista.
Na verdade só existem três grandes troncos de doutrinas políticas hoje: o marxismo, o conservadorismo e o liberalismo-econômico.
São troncos, não doutrinas específicas, na medida em que existem vários marxismos (os marxianismos do jovem e do velho Marx, o marxismo-leninismo, o marxismo-gramscismo e uma infinidade de variantes como as inventadas pelos filósofos franceses – como o foucaultismo), existem vários conservadorismos (dos laicos aos religiosos e teosóficos: aqueles que adotam uma visão esotérica da história) e existem vários liberalismos-econômicos (os da chamada Escola Austríaca, como o von-misesismo e o hayekismo, os libertarianismos, o anarcocapitalismo e os individualismos à la Ain Rand et coetera).
O anarquismo original e as diversas formas de libertarianismo não-marxista estão quase extintos ou são vestigiais ou marginais.
Os fascismos são comportamentos políticos que podem ser adotados por quaisquer estatistas, sejam conservadores ou revolucionários. E há várias combinações de conservadorismo com liberalismo-econômico.
Todas as doutrinas, consideradas de esquerda ou de direita, revolucionárias ou conservadoras, liberais ou iliberais, libertárias ou autoritárias, dificultam a compreensão da democracia. Elas colocam um conteúdo no que deveria permanecer vazio (a política stricto sensu: o modo não-guerreiro de regulação de conflitos). E é este conteúdo – extra-político – que passa a servir de referencial para validar ou invalidar comportamentos políticos.
Mas a validação extra-política de qualquer regime político é incompatível com a democracia. Por quê? Porque os princípios de qualquer validação extra-política não estão submetidos à interação democrática: eles já valem antes e sempre, independentemente dos fluxos interativos da convivência social que mudam comportamentos e pensamentos. Ideias não mudam comportamentos, só comportamentos mudam comportamentos e, inevitavelmente, pensamentos (mas a recíproca não é verdadeira: se fosse, bastaria doutrinar as pessoas seguindo um codex para construir a boa sociedade, quando a experiência mostra que não é assim, do contrário, milênios de pregação religiosa e utópica sobre o bem, o belo e o verdadeiro já teriam construído o paraíso na Terra).
Toda pregação, toda doutrinação, todo seguimento de credos e constituição de corpos de fiéis (e, simultaneamente, de infiéis) são conservadores na medida em que tentam conservar e reproduzir um conteúdo determinado contra a mudança (desse conteúdo), contra o contingente, contra o descoberto, contra o inventado, contra o feito por desejo e sem necessidade, contra o erro, a falha e o acaso que incidem na sempre provisória e precária vida comum.
A democracia, toda vez que acontece (ou seja, toda vez que é ensaiada, sejam quais forem as crenças mais profundas que estão nas cabeças dos que a ensaiam), é inovadora. E é inovadora em relação ao que há de mais antigo a ser conservado: a cultura patriarcal, hierárquica e autocrática, do que chamamos de civilização. Não por ter uma outra cultura (como transmissão não-genética de comportamentos inspirados em um conjunto qualquer de ideias, ou melhor, em circularidades inerentes às conversações que ocorrem no seio dessa cultura e que são capazes de reproduzir um determinado modo de vida ou de convivência social) para colocar no lugar da velha e sim porque é vazia de conteúdos determinados imunes à interação.
A natureza da democracia não é a de ser mais uma edificação para trancar os fluxos ou condicioná-los a ficar rodando da mesma maneira na rede e sim a de ser uma brecha no muro da cultura patriarcal (como já vimos no TEXTO 02, examinado no Módulo 04 deste programa).
As doutrinas são, assim, meios de cercear, direcionar e capturar o fluxo interativo da convivência social, substituindo a aprendizagem pelo ensino, ou seja, o que pode ser aprendido pelo interativismo pelo que pode ser apreendido pelo cognitivismo. Isso pressupõe acreditar em alguma coisa (em um credo) em vez de se comportar de uma maneira. Alguém tem que conhecer um conteúdo (saber a doutrina) para poder fazer a boa política, separando-se então os que sabem dos que não sabem. É com base nesse platonismo que os codificadores e replicadores de doutrina (mestres e professores) arrebanham seguidores (discípulos e alunos).
Quando se diz que a democracia não tem um conteúdo, como as doutrinas, isso significa, em primeiro lugar, que a democracia não tem qualquer projeto de futuro. Diferentemente das doutrinas políticas, ela é vazia de conteúdo utópico. A “utopia” da democracia é uma topia: ela não quer conduzir uma coletividade para algum lugar, para um amanhã melhor, quer apenas que os seres humanos convivam, hoje, como seres políticos, quer dizer, autorregulando seus conflitos de modo pacífico a partir do livre proferimento e da interação de suas opiniões.
Ora, isso é bem diferente do anarquismo (assim como de qualquer outra doutrina política), que tem uma visão de como a sociedade deveria ser e um caminho para alcançar o modelo ideal imaginado.
Quanto à segunda parte da pergunta. A democracia não é um ideal (no sentido de um modelo de sociedade) que possa se concretizar em algum lugar. Ela é um processo. Não é o porto, o ponto de chegada e sim um modo de navegar (ou de caminhar). Não pode ser implantada: só pode ser exercitada e só existe, a rigor, enquanto o processo de democratização (ou de desconstituição de autocracia) está acontecendo.

6 – A democracia ideal é uma utopia (irrealizável) já que a política é o que é – sempre uma luta pelo poder – e, portanto, não seria uma ingenuidade imaginar que é possível torná-la mais cooperativa ou menos adversarial? Não é o fato de a democracia ser competitiva que garante que uns não se sobreporão aos demais, formando oligopólios políticos?
Temos aqui três questões conexas, porém distintas, enfeixadas numa mesma pergunta.
1) A primeira é se a democracia não seria uma utopia.
2) A segunda é que, se a política é sempre uma competição pelo poder (tendo uma dinâmica de guerra, ainda que não-violenta, quer dizer, de continuação da guerra por outros meios), não seria razoável esperar que ela fosse cooperativa, quer dizer, compatível com a democracia (que é um modo não-guerreiro de regulação de conflitos).
3) A terceira é se não é o fato da democracia ser competitiva que garante a concorrência (como no mercado), impedindo a formação de oligopólios.
Passemos à primeira questão.
1 – A DEMOCRACIA É UMA UTOPIA?
Há muita incompreensão sobre a democracia. Ora ela é confundida com um modo de administração política do Estado (ou com o chamado Estado de direito; ou pior, com eleições); ora com uma ideologia (e não raro alguém pergunta se ela não seria a mesma coisa que aquele tipo de sociedade imaginária pregada pelos anarquistas); ora, ainda, indaga-se se ela não seria uma utopia (tipo a sociedade sem classes do paraíso construído idealmente pelos comunistas).
Para tentar desfazer a confusão, comecemos pelo final, quer dizer, pela ideia – bastante generalizada – de que a democracia seria uma utopia.
Não! A democracia não é uma utopia. Quem precisa de utopia é a autocracia. Para a democracia não há um lugar (ou um não-lugar: u-topos) onde chegar. O amanhã da democracia chama-se hoje. Isso não significa que a democracia não seja tensionada pelo futuro desejado. Mas o tempo da democracia é o futuro antecipado, presentificado, ou seja a topia, o aqui e agora. Só assim ela se realiza: sendo o meio que realiza o seu fim (no sentido de finalidade – ou sentido – da política, quer dizer, a liberdade).
Nesse sentido, pode-se dizer que a democracia se realiza toda vez que adotamos modos não-guerreiros de regulação de conflitos. Sim, ela é composta por atos singulares e precários, não por altas estratégias de condução das massas para um porvir radiante. Realizar a democracia é mais ou menos como seguir aquela homilia do Paulo Brabo: um instante de cada vez.
Mas – atenção! – adotar modos não-guerreiros de regulação de conflitos só realiza a democracia em sociedades autocráticas (quer dizer, guerreiras). Pois a democracia é, no sentido forte do conceito, um processo de desconstituição de autocracia (assim ela foi inventada pelos antigos atenienses, contra a tirania dos psistrátidas e assim ela foi reinventada pelos modernos, contra o poder despótico de Carlos I).
Em sociedades não patriarcais (i. e., não hierárquicas e não guerreiras) – por exemplo, entre os Pirahãs ou os Yanomamis, num agrupamento paleolítico de caçadores-coletores ou numa aldeia agrícola neolítica – a democracia não faz o menor sentido. Porque não há o que democratizar (ou seja, desautocratizar) nessas sociosferas que não são domínios de Estados. Impor a essas sociedades um modelo político qualquer, inclusive democrático, seria uma perversão. Nenhum bem adviria da adoção da democracia por povos cujo modo de vida (ou de convivência social) não está baseado na conservação do emocionar guerreiro.
A democracia não é um modelo de sociedade a que se deva perseguir, nem uma ideologia para conduzir alguém em direção a um futuro almejado, antevisto ou pré-configurado (como a sociedade comunista, por exemplo). Sua “utopia”, se é que podemos neste caso empregar figurativamente tal palavra, é a política (e não o contrário, como se acredita); ou seja, é o que se faz agora, não o que se fará depois. A democracia é uma espécie de vacina contra o depois, isto é, contra a alienação do presente que está na base de todos os sonhos (ou delírios) que compõem os imaginários autocráticos; tipo assim: vamos sacrificar (um pouco da) sua liberdade agora para que você alcance o reino da (plena) liberdade depois.
A democracia não quer que sacrifiquemos nada, em prol de coisa alguma imaginária. O que a democracia quer é apenas que vivamos como seres políticos, regulando nossos conflitos de modo não-guerreiro (do contrário não seremos seres políticos e sim seres apolíticos). Mas como não somos “animais políticos” (o zoon politikón, ao contrário do que pensava Aristóteles, simplesmente não existe), posto que não há nenhuma substância política original e a política só existe na entreidade, no “entre-os-homens” (como escreveu Johannah Arendt), o que a democracia quer é que sejamos interagentes na pólis, quer dizer, na koinonia (comunidade) política: mas… hoje, não amanhã!
Tal, entretanto, não deriva de nenhuma necessidade. A democracia é a esfera da liberdade porque é o campo das ações desnecessárias, que fazemos porque desejamos, inclusive quando desejamos ser infiéis às nossas origens (contra qualquer epigênese: sim a democracia é coisa de infiéis, não de fiéis). E é esse fazer o que desejamos que nos torna vulneráveis ao acaso e ao imprevisível; ou seja, livres.
“Livre – disse o poeta (Manoel de Barros) – livre é quem não tem rumo”, aquele que se jogou no fluxo interativo da convivência social, abandonado, ao sabor do vento, que ninguém sabe de onde vem e nem para onde vai.
Passemos agora à segunda questão.
2 – A POLÍTICA É GUERRA?
Não. A política é o contrário da guerra. A guerra é a falência da política. A democracia (quer dizer, a política propriamente dita, aquela que tem como sentido a liberdade) é um modo não-guerreiro de regulação de conflitos.
A questão de saber se uma democracia pode ser cooperativa (e não competitiva, ou se ela pode ser mais cooperativa do que competitiva) continua nos assombrando. Seja porque as pessoas, em geral, estão imersas em uma cultura autocrática, que é uma cultura da guerra (embora o Homo Sapiens venha caminhando sobre a Terra há mais ou menos 150 mil anos, depois dos últimos 5 a 6 milênios de guerras é difícil pensar que isso não seja “natural”), seja porque algumas pessoas imaginam que a dinâmica da sociedade é semelhante à dinâmica do mercado, que é competitiva mesmo, cada qual se esforçando para maximizar a obtenção de seus interesses egotistas (sobre esse ponto voltaremos mais adiante, na terceira questão).
No entanto, a democracia é inerentemente cooperativa, ainda que as pessoas possam competir entre si o tempo todo nas democracias realmente existentes.
Mas se as pessoas não cooperam, seja para contender com um problema comum, seja para realizar um projeto que derive da congruência de seus desejos, não pode haver nenhuma democracia. Aceitar a democracia – não obstante toda a competição que possa existir entre os agentes políticos – é aceitar que o outro não pode ser destruído, é aceitar a existência de oposição e, sobretudo, aceitar a derrota (sem melar o jogo) em competições que se dão quando experimentamos processos democráticos. Nenhuma dessas hipóteses é admitida quando adotamos modos guerreiros de regulação de conflitos; ou seja, em autocracias o adversário político é um inimigo que deve ser neutralizado ou destruído. Não se conta com ele para organizar o sistema de governança, pelo contrário: exige-se a sua exclusão ou a sua desconstituição como ator político válido e efetivo.
Sobre isso, recomenda-se a leitura do TEXTO 03 – DEMOCRACIA COOPERATIVA: SEM DOUTRINA TEXTO 03
Passemos à terceira questão.
3 – A DINÂMICA DA SOCIEDADE É A MESMA DINÂMICA DO MERCADO?
Esta é uma confusão muito frequente, que foi introduzida pelo surgimento do capitalismo concorrencial e, depois, até legitimada teoricamente pelas doutrinas do chamado liberalismo-econômico.
Examinando a dinâmica do mercado, as pessoas imaginaram que o embate constante, a interação adversarial permanente entre organizações privadas (os grupos políticos e os partidos, que seriam espécies de “empresas políticas”) conseguiria constituir um sentido público. Os modernos acreditaram nisso, talvez porque tenham se deixado influenciar pela autorregulação mercantil, que se dá por meio da competição entre atores privados. Mas a lógica e a racionalidade do mercado não são as mesmas da esfera pública. Sociedades competitivas, aliás, não constituem bons ambientes para mercados competitivos. Quem tem que ser competitivo é o mercado, não a sociedade.
Se não havia derramamento de sangue, pensaram os modernos: tudo bem. Mas não, não estava tudo bem para a continuidade do processo de democratização.
O fato, muitas vezes pouco percebido, é que o sistema concorrencial de partidos não é essencial para a democracia. No entanto, como as coisas funcionam assim na totalidade das democracias realmente existentes, tem-se a impressão de que tal mecanismo é, de alguma forma, necessário para realizar a democracia como sistema de governo nos países contemporâneos.
Todavia, quanto mais competitiva for a democracia, menos democratizada (ou mais autocratizada) ela estará (inclusive na base da sociedade e no cotidiano do cidadão). Mais uma vez (é quase impossível não repetir): quem tem de ser competitivo é o mercado (e a economia é que deve ser de mercado), não a sociedade. Mercados competitivos, ao que tudo indica, exigem como base uma sociedade cooperativa (por razões econômicas mesmo, como a diminuição das incertezas no tocante aos investimentos produtivos de longo prazo, com a redução dos custos de transação e, inclusive, da insegurança jurídica, e dos custos de sinergia).
Associado à visão mercadocêntrica de uma sociedade competitiva parece estar um novo tipo de fundamentalismo de mercado, que pode até ser democratizante em relação ao estadocentrismo que, em geral, acompanha as autocracias, mas, se o for, manifesta-se apenas no tocante à democracia como sistema de governo e não à democracia na sociedade. É claro que é melhor ter vários partidos – legal e legitimamente – disputando o poder de Estado do que apenas um partido (em geral confundido com o Estado) autorizado a empalmá-lo (em uma espécie de regime de monopólio político). No entanto, vários partidos também podem constituir um oligopólio político, como, aliás, ocorre frequentemente, expropriando a cidadania política, sendo que, nesse caso, não há nenhuma instância “acima” capaz de regular a competição (de vez que o Estado, nessas circunstâncias, já teria sido ocupado e dividido ou loteado pelo oligopólio partidário).
A dinâmica da sociedade não é a dinâmica do mercado. Sociedade, mercado e Estado são três formas de agenciamento diferentes, presididas por racionalidades distintas. Se a democracia tivesse a “lógica” do mercado, ela não poderia existir, pois, como se sabe, não havendo esfera pública, não pode haver democracia.
Esta confusão é o problema de se adotar, para entender a democracia, um pensamento econômico, não político, ou melhor, um pensamento que subordina a política a uma lógica econômica. As considerações sobre a excelência da competição em política são um indicador desse viés economicista. Claro que a competição é necessária para o mercado, mas isso não significa que se possa basear um sistema social na competição, como quer o liberalismo-econômico.
Os que defendem esse ponto de vista não estão falando de um sistema social, no máximo estão falando de um sistema econômico, ainda que, mesmo para um sistema econômico, seja necessária a cooperação e a confiança (ou o capital social, que é a confiança ampliada socialmente). Ao que parece o liberalismo-econômico não vê diferença entre as duas coisas: é como se um sistema econômico contivesse em suas entranhas um sistema social e político. A economia determinaria (como a estrutura dos marxistas) as outras esferas da atividade humana (a superestrutura). É a mesma coisa, ou seja, ainda é economicismo.
Como se constata, porém, toda essa conversa sobre a competição não impediu a formação de oligopólios políticos nos países democráticos capitalistas, ainda que isso seja melhor do que o monopólio político existente nos países autocráticos ditos socialistas ou capitalistas de Estado.

7 – Se a democracia fosse natural ou compatível com a natureza humana, por que ela não foi inventada e adotada pelos diversos grupos de Homo Sapiens ao longo da pré-história, como os grupos ou as tribos de coletores e caçadores e as sociedades paleolíticas e neolíticas, durante os últimos (pelo menos) 150 mil anos? E por que, mesmo no período considerado civilizado – nos últimos 6 a 5 mil anos – ela não existiu senão durante brevíssimos períodos (cerca de 200 anos entre os antigos e menos de 300 anos entre os modernos)?
A pergunta contém duas questões. A primeira é uma proposição: se a democracia fosse natural (ou compatível com a natureza humana, seja lá o que isso for) então ela deveria ter surgido antes de século 5 a. E. C. (quando foi inventada pelos atenienses).
Bem, em primeiro lugar, a hipótese de que a democracia tenha algo de natural ou compatível com a natureza humana, não é necessária. A democracia é uma invenção humana (propriamente humana, quer dizer, social) e não uma emanação de qualquer disposição biológica, ligada ao gênero Homo ou à espécie Homo Sapiens.
Por que os atenienses do século 5 inventaram a democracia? A resposta mais óbvia é: porque quiseram fazer isso, ou seja, porque não quiseram mais viver sob um senhor (no caso, o filho vivo do tirano Psístrato, que deu um golpe de Estado alguns anos antes e comandava a cidade autocraticamente).
Claro que essa resposta não basta. É necessário dizer também por que eles puderam inventá-la, ou seja, quais as condições que ensejaram o surgimento da democracia na Atenas daquela época. Parece claro que a democracia não poderia ter surgido sem interação propriamente política entre as pessoas (os homens livres de Atenas), que conversavam entre si sobre temas de interesse comum na praça do mercado: a Ágora.
Configurou-se na Agora um ambiente interativo, no qual se articularam redes de conversações entre as pessoas que podiam fazer isso. Não eram, é claro, todas as pessoas (as mulheres, os escravos e os estrangeiros estavam fora). Mas as que puderam fazer isso, fizeram. E foi nessas redes, com algum grau significativo de distribuição, que a democracia nasceu como ideia. A ideia básica, repetindo, era a de ter um regime que não tivesse dono.
O espaço comum que surgiu dessas conversações – um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo autocrata – foi fundamental para o surgimento da democracia. Mais do que isso: a publicização desse espaço já foi o processo de democratização.
Por que a democracia não surgiu antes? Não se sabe. Talvez porque ou não se reuniram as condições sociais capazes de ensejá-la ou porque não se teve a ideia ou não se admitiu nem sequer a possibilidade de uma coletividade conseguir sobreviver e se defender de seus inimigos sem ser comandada, conduzida, administrada por alguém acima dela (um senhor).
Isso não quer dizer que não tenham surgido tentativas anteriores, que não lograram se materializar como regimes com alguma estabilidade. O relato bíblico da chamada Assembleia de Siquém, vários séculos antes, realizada extra muros, quer dizer, fora da cidade fortificada que havia na região, teve provavelmente elementos de democratização. Casos similares devem ter ocorrido em profusão, mas certamente não entraram para a história. Não se conhece nenhum regime democrático anterior ao dos atenienses que começou a se instalar por volta de 509 a. E. C.
Os grupos ou as tribos de coletores e caçadores e as sociedades paleolíticas e neolíticas, que existiram durante os últimos (pelo menos) 150 mil anos, antes do surgimento da civilização dos predadores e senhores, ou antes da ereção da cidade-Templo-Estado mesopotâmica (entre 5 a 6 mil anos), não instauraram regimes democráticos porque isso não fazia sentido. A democracia é um processo de desconstituição de autocracia e, não havendo autocracia, não há o que desconstituir.
A segunda questão embutida na pergunta é: por que, mesmo no período considerado civilizado – nos últimos 6 a 5 mil anos –, a democracia não existiu senão durante brevíssimos períodos (e mesmo assim localizadamente, até o século 19): cerca de 200 anos entre os antigos (em Atenas, de 509 a 322 a. E. C.) e menos de 400 anos entre os modernos (a partir do século 17, notadamente com os Bill of Rights do parlamento inglês).
Na verdade, vários processos de democratização, além da democracia ateniense e da democracia dos modernos, ocorreram neste período.
Alguns tentam interpretar a República romana como uma versão (latina) da democracia (grega). Mas, ao que tudo indica, não se trata exatamente da mesma coisa, visto que o sistema de governo com participação popular dos romanos não reunia aqueles três atributos – de isonomia, isologia e isegoria – que caracterizavam o funcionamento da comunidade (koinonia) política de Atenas e, talvez, de outras pouquíssimas cidades gregas do período democrático.
Se encararmos a democracia, no seu sentido “fraco”, apenas como sistema de governo (popular) – e não, em seu sentido “forte”, como sistema de convivência ou modo de vida comunitária que, por meio da política praticada ex parte populis, regula a estrutura e a dinâmica de uma rede social para evitar que a construção de inimigos sirva como pretexto para o ereção de hierarquias regidas por modos de regulação autocráticos – perceberemos que várias outras experiências surgiram concomitante e posteriormente à experiência dos gregos: Roma (do final do século 6 até meados do século 2 a. E. C.), governos locais em cidades italianas (como Florença e Veneza, por exemplo, do início do século 12 até meados do século 14), bem como outras experiências endógenas de governo que admitiam alguma forma de assembleia com participação mais ou menos popular (na Inglaterra, na Escandinávia, nos Países Baixos, na Suíça e em outros pontos ao norte do Mediterrâneo). Há também alguma coisa significativa na Índia, como nos relata Amartya Sen (autor que examinaremos em outro módulo deste programa).
De qualquer modo, foram experiências insuficientes diante da tendência autocrática predominante. Na melhor das hipóteses, considerando-se a República romana como uma espécie de democracia, tivemos um interregno autocrático de mil anos (de 130 a. E. C. a 1100). Na pior hipótese – que, não por acaso, é a mais precisa e a que faz mais sentido – esse intervalo foi de mais de dois mil anos (de 322 a. E. C. até o século 17).
Mas por que isso foi assim, ou seja, por que tivemos tal descontinuidade entre a primeira e a segunda democracia? Novamente a resposta é: por que não ocorreram experiências capazes de ensejar a invenção de regimes democráticos mais estáveis. A cultura predominante durante todo esse interregno continuou sendo autocrática, não democrática.
Basta ver que, com raras exceções, os mais conhecidos pensadores da política que surgiram desde Platão (e Sócrates, tanto o platônico, quanto o xenofôntico), passando pelos medievais e até pelos contemporâneos de Thomas Hobbes e seus sucessores (nas sete ou oito gerações seguintes), eram contrários à democracia.
Em uma lista inquestionável de duas dezenas de clássicos da política, do século 5 antes da Era Comum ao final do século 16 (de Platão a Althusius) não se encontra um só pensador democrático. Talvez com exceção, parcial, de Aristóteles e do próprio Althusius – posto que não militavam especialmente contra democracia – a totalidade desses pensadores era autocrática.
Quando Spinoza afirmou (em 1670) – contrariando Hobbes – que o fim da política não era a ordem e sim a liberdade, não se fez a luz. Assim como os antecessores de Spinoza (nos dois milênios anteriores) foram contrários à democracia de alguma forma, seus sucessores (nos dois séculos seguintes) quando não se posicionaram abertamente contra a democracia, puseram-se a relê-la de uma forma que acabou esvaziando o seu conteúdo.
Foi a resistência parlamentar à Carlos I, na Inglaterra, que reinventou a democracia. Aproximadamente em 1625 ocorreu o 1º Bill of Rights no qual ficou definido que:
1 – O Rei não poderia cobrar impostos, sequer sob a forma de contribuições ou doações sem consentimento do parlamento;
2 – Ninguém poderia ser perseguido por se recusar a pagar impostos não autorizados pelo parlamento.
O Rei Carlos I não cumpriu as determinações deste Bill of Rights. Houve uma guerra civil entre os parlamentares, de um lado, e o Rei Carlos I, de outro, que terminou com a condenação à morte do tirano. Mas não foi a guerra que inventou a segunda democracia e sim a resistência democrática – no caso, parlamentar – ao poder despótico de Carlos I. A guerra – como toda guerra – nunca leva à democracia e sim à ditadura.
O exército parlamentar liderado por Oliver Cromwell acabou por prender Carlos I, o qual foi julgado e condenado a pena de morte, sendo executado no ano de 1649. O governo Cromwell foi uma república ditatorial militar, regime até então desconhecido na Inglaterra. Oliver Cromwell morreu em 1658 e com ele foi enterrada a ditadura.+
Vale a pena ler o artigo A resistência a Carlos I reinventou a democracia, disponível no link http://dagobah.com.br/a-resistencia-a-carlos-i-reinventou-a-democracia/

8 – Como mobilizar e organizar a ação coletiva sem líderes destacados e sem um mínimo de hierarquia? Isso não parece uma coisa teórica demais, sem base na realidade?
Em primeiro lugar é preciso entender qual a relação desta pergunta com a democracia. À primeira vista a democracia parece não ter nada a ver diretamente com liderança e hierarquia. E liderança também parece não ter nada a ver diretamente com hierarquia.
A democracia é política, quer dizer, é modo de regulação de conflitos e não pode ser confundida com padrões de organização e com comportamentos condicionados por esses padrões.
No entanto, como a democracia pressupõe sempre algum grau de auto-organização da sociedade, pode-se supor que coletividades que dependem muito de lideranças destacadas para se conduzir têm baixos graus de auto-organização, esperando sempre dos líderes a indicação do caminho a seguir.
Uma sociedade com grau muito baixo de auto-organização, onde as pessoas não tomam qualquer iniciativa, não pode suportar a democracia. Tem que ser conduzida por um líder que acabará se comportando como senhor: o que é, por definição, autocracia, não democracia.
Ocorre que o grau de auto-organização da sociedade depende dos seus padrões de organização predominantes, ou seja, da topologia da sua rede social. Sociedades muito hierárquicas (centralizadas) exigem (poucos) líderes destacados, o que não se verifica em sociedades mais em rede (com padrões de organização mais distribuídos). Não é que, em rede mais distribuída do que centralizada, não existirão líderes e sim que eles serão mais numerosos e temporários, emergindo da dinâmica social, sendo substituídos por outros líderes. Um líder destacado, que se prorroga indefinidamente no tempo, que lidera em todas as circunstâncias, que não é substituído por outros líderes, só é possível em ambientes sociais mais centralizados do que distribuídos.
Para entender a diferença entre centralizado, descentralizado e distribuído é bom examinar os famosos diagramas de Paul Baran (1964):
Ora quanto menos líderes surgirem, pior para a democracia, mais dificuldade haverá de democratização da sociedade e, por decorrência, de controle da sociedade sobre as atividades do Estado.
A democracia não tem problemas com líderes e sim com a falta de líderes. Quanto menos líderes, menos capacidade haverá de auto-organização, mais dependência haverá de um Grande Irmão, de um Führer, de um condutor de rebanhos, de um senhor.
Para entender tudo isso é necessário perceber que existe um condicionamento recíproco entre modos (políticos) de regulação e padrões (sociais) de organização. O que exige uma abordagem social da democracia.
UMA ABORDAGEM SOCIAL DA DEMOCRACIA
Por que e como foi inventada a democracia? Até hoje os estudiosos têm imensa dificuldade de decifrar o que ocorreu. Não estabelecem as conexões necessárias e não reconhecem os padrões sem os quais não se pode desvendar o sentido das configurações coletivas que se constelaram. Não há, portanto, uma compreensão propriamente social do surgimento da democracia. Ou, quando há, é uma lástima: tomam por social aquilo que diz respeito às condições de vida (em geral de sobrevivência) das populações e não à fenomenologia da interação, quer dizer, o fluxo da convivência social.
Alguns pensadores do século passado conseguiram captar o “gene” (ou o meme) original democrático – como John Dewey, Hannah Arendt e Humberto Maturana (entre outros; poder-se-ia citar também Claude Lefort, Cornelius Castoriadis e Amartya Sen) – mas a maioria dos teóricos da política ficou presa aos esquemas explicativos da modernidade que replicavam visões em que o social era uma espécie de epifenômeno (na verdade, para a maioria deles só existiam os indivíduos, o mercado e o Estado) e, assim, não conseguiram perceber os condicionamentos recíprocos entre o padrão (social) de organização e modo (político) de regulação.
Ora, do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix. Não se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de alguma corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que nela se conformou um espaço público.
Os teóricos políticos do século passado, porém, não podiam se conformar com isso. Viciados na ideia (ou no esquema explicativo) de determinação de uma superestrutura por uma estrutura (um velho vício de raiz iluminista difundido pelo marxismo), queriam sempre surpreender o que está debaixo do pano, queriam desvendar a máquina que estaria por trás do que acontece na vida fenomênica. Destarte, por não encontrarem o mecanismo oculto (em geral econômico, como acreditam) que estaria determinando uma nova criação política, suas análises não foram (e ainda não são, posto que esses teóricos remanescem no século atual) capazes de explicar os problemas atuais da democracia.
Os analistas políticos, em sua maioria, pensam a partir de um conjunto de pressupostos, raramente discutidos porquanto tomados como verdades evidentes por si mesmas: o primeiro deles é que o ser humano é inerentemente competitivo (postulado largamente falsificado pelas evidências e, portanto, impossível de ser sustentado pela ciência, tendo status semelhante ao de uma crença de natureza religiosa) e faz escolhas racionais tentando maximizar a satisfação de seus interesses egotistas (quando todas as evidências apontam que na raiz da ação dos humanos – e até dos mamíferos em geral – está mais uma emotional motivation do que uma rational choice); o segundo é que sem líderes destacados não se pode mobilizar e organizar a ação coletiva (o que vem sendo refutado fartamente pelos fatos: sobretudo pelos aglomeramentos, enxameamentos e amassamentos que vêm ocorrendo com cada vez mais frequência em sociedades altamente conectadas); e o terceiro é que nada pode funcionar sem um mínimo de hierarquia (idem, do contrário não estaríamos assistindo a profusão de redes mais distribuídas do que centralizadas).
Além disso, os analistas políticos, de maneira geral, baseiam suas análises no suposto de que o conteúdo (do que flui) é relevante para explicar a “realidade” (o que acontece), confundindo informação (mensagem transmitida-recebida) com comunicação (acoplamento estrutural), longe de perceber que o comportamento coletivo é função da fenomenologia da interação (estando os fenômenos interativos, por sua vez, na dependência não de conteúdos e sim do padrão de organização: basicamente, dos graus de distribuição e conectividade da rede social).
Quando é que tudo muda nas análises da democracia? Quando descobrimos que movimentos de desconstituição de autocracia (que são a democracia propriamente dita, ou seja, os processos de democratização) são acompanhados por movimentos de desconstituição de hierarquia.
A democracia pode se democratizar em redes com alto grau de distribuição (e, consequentemente, com altos graus de conectividade e interatividade). Dizendo de modo mais preciso: os processos de democratização tenderão a ter continuidade na medida em que as sociosferas onde ocorrem forem adquirindo uma topologia mais distribuída do que centralizada.
Porque a democracia é uma espécie de “metabolismo” da rede social, cujo “corpo”, a estrutura, o hardware, é dado pelo padrão de organização. Mas esse “metabolismo”, essa dinâmica do modo de regulação, não é uma imanência, não emerge automaticamente da estrutura, em função do seu padrão de organização. Democratização (do modo de regulação) e distribuição (da rede) acontecem ao mesmo tempo, ou melhor, são fenômenos acompanhantes, sinergicamente acompanhados um do outro, mas não causados um pelo outro.
O padrão de organização condiciona possibilidades. Quanto mais centralizada for a topologia da rede, menos chance terá o processo de democratização de prosseguir. Mas mesmo em padrões mais distribuídos do que centralizados, ainda assim é necessário que haja ação política para instaurar modos de regulação crescentemente democráticos. Ações políticas democratizantes, entretanto – eis o ponto – ou serão acompanhadas por mudanças estruturais que tornem a rede mais distribuída ou terão menos chances de prosseguir (e de perdurar).
Não que o padrão de organização, por si só, sem ação política, seja capaz de gerar um determinado modo de regulação, mas topologias mais centralizadas do que distribuídas se sintonizam com dinâmicas mais autocráticas do que democráticas. O exemplo clássico, entre nós, foi a chamada Democracia Corinthiana, aquele movimento surgido na década de 1980 no Corinthians, liderado por Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon. A Democracia Corinthiana pôde ser instalada, pela ação política de seus agentes, mas não pôde perdurar na medida em que o time (Corinthians) tinha uma topologia mais centralizada do que distribuída.
Ora, tornar a rede mais distribuída significa, exatamente, desconstituir hierarquia. Assim como a democracia pode ser tomada, no sentido “forte” do conceito, como movimento de desconstituição de autocracia, as redes distribuídas podem ser tomadas como movimentos de desconstituição de hierarquia, sendo que esses processos estão ligados, não por causalidade direta nem automática e sim por condicionamentos recíprocos.
Pode-se dizer que tanto a expansão da liberdade quanto a incidência da cooperação (que ocorre na medida em que a rede se torna mais distribuída) são atributos do modo como os seres humanos se organizam (e nada mais). Mas não há uma fórmula organizativa capaz de produzir automaticamente liberdade sem política. É o processo político de desconstituir autocracia que amplia os graus de liberdade. E é o processo de netweaving, de desconstituir hierarquia, que amplia a cooperação.
Não há nada teórico demais aqui, no sentido pejorativo em que a palavra ‘teórico’ e aplicada por pessoas que têm pouca intimidade com o pensamento filosófico ou científico, para dizer que é uma coisa “sem base na realidade”. Não! É tudo muito concreto. Basta não querer mandar nos outros para que a cooperação brote, para que a multiliderança emerja, ou seja, para que não tenhamos poucos líderes conduzindo tudo, para que não organizemos as coisas segundo padrões centralizados, baseados em comando-e-controle.

9 – Os seres humanos, abandonados à sua própria sorte, sem uma direção política capaz de conduzi-los, não acabarão entrando em luta uns contra os outros, instaurando um verdadeiro caos social?
Esta pergunta vai na mesma linha da anterior, examinada no Módulo 08 do presente programa. Na verdade, como a anterior (sobre a necessidade da hierarquia e da liderança), não é uma pergunta diretamente sobre a democracia e sim sobre os seus pressupostos. Ela repete a convicção de Thomas Hobbes (1651), em O Leviatã, de que abandonados à sua própria sorte, sem um poder acima deles que os domestique, os homens se engalfinhariam numa guerra de todos contra todos.
No famoso capítulo XIII do Leviatã, Hobbes (1651) decreta que “os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de intimidar a todos”. É claro que ele não está falando apenas de política, mas também revelando os pressupostos antropológico-sociais que condicionam sua maneira de ver a política. Segundo ele, “na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” – ou seja, essas manifestações de egoísmo não seriam culturais, não emanariam da forma como a sociedade se organiza, mas intrínsecas. Essa inclinação “genética” para o mal explicaria por que, “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo tempo restante é de paz”.
Mas, segundo Hobbes, “tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção. Em uma tal condição [de falta de um poder que domestique ou apazigue os homens]… não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta”.
Hobbes, portanto, lança o fundamento para a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin segundo a qual a política é uma continuação da guerra por outros meios.
Vela a pena ler um pouco mais sobre isso no artigo: A política é uma continuação da guerra por outros meios? Vá para o link: http://dagobah.com.br/a-politica-e-uma-continuacao-da-guerra-por-outros-meios/
Ora, não há nenhuma evidência (científica) de que as coisas são assim. Se fossem, os Homo Sapiens – caminhando há pelo menos 150 mil anos sobre a Terra – não teriam conseguido sobreviver, na maior parte (na verdade, quase a totalidade) do tempo sem um poder instituído acima deles, um Estado ou equivalente.
Aceitar essa visão significa admitir que o ser humano é inerentemente (ou “por natureza”) competitivo. Mas as evidências disponíveis indicam o contrário. Os seres humanos conseguiram perdurar porque colaboraram, se associaram para contender com problemas comuns. Aliás, nem a linguagem (ou o linguajear e o conversar) teria surgido sem colaboração. Ademais, há muitas evidências de que os seres humanos primitivos compartilharam alimentos, o que é uma forma de colaboração.+
O ser humano competitivo surge quando se erigem padrões hierárquicos de organização, onde a saída única está acima (como os caranguejos numa lata: se o fluxo foi verticalizado, cada indivíduo pisa nos demais, que estão acima dele, para subir). É o padrão de organização social que impõe tal comportamento, não alguma coisa que seja inerente ao ser humano. Estamos tratando aqui da cultura patriarcal.
Para entender o que estamos chamando de cultura patriarcal é fundamental ler o TEXTO 04 – CULTURA PATRIARCAL que contém excertos do livro de Humberto Maturana e Gerda Verden-Zoller (1993) intitulado Amar e Brincar: Fundamentos esquecidos do humano: SEM DOUTRINA TEXTO 04

10 – A democracia é necessária ao desenvolvimento? Se países como China e Singapura fossem democráticos, seriam, por isso, mais desenvolvidos?
Se já soubermos o que significa a palavra ‘democracia’, a questão aqui é saber o que significa a palavra ‘desenvolvimento’.
Se tomarmos desenvolvimento no sentido usual e corrente do termo, para designar crescimento econômico, a resposta óbvia é não. A democracia não é necessária para o crescimento. Aliás, ela não é necessária para nada, a não ser para satisfazer os desejos daqueles que querem viver em regimes políticos sem senhores.
Mas se interpretamos a palavra ‘necessária’ por algo que revele alguma relação de causação, de dependência ou de condicionamento recíproco, do tipo: quanto mais democracia, mais crescimento econômico (e, inversamente, quanto menos democracia, menos crescimento), a resposta também é não.
Houve já muita discussão sobre isso. O debate se intensificou nos anos 90 do século passado, quando surgiu o termo neoliberalismo a propósito do tal Consenso de Washington. Em 1989 John Williamson aventou uma série de hipóteses que levaram a uma desvalorização da democracia a partir de uma perspectiva economicista do desenvolvimento. Para que serviria a democracia num país como a China, que está crescendo a taxas estratosféricas? – perguntou nos anos seguintes Williamson. Democracia, segundo tal visão, apenas atrapalharia o crescimento econômico. Ele acreditava que a Índia jamais alcançaria a China por ter a desvantagem de ser um regime democrático.
Na mesma linha, vários economistas contemporâneos, exaltam que a democracia não é um bom caminho para países que precisam se desenvolver (tomando esse termo no sentido econômico, de crescimento do PIB). Por exemplo, Arturo Bris, professor de finanças do IMD, Escola Suíça de Negócios e diretor do Centro Mundial de Competitividade do IMB, em recente artigo no Estadão (02/05/2017), intitulado A democracia ainda existe?, escreveu o seguinte:
“Como pesquisador nessa área, não poderia recomendar que qualquer país, especialmente um novo país, procure ser democrático a todo custo – especialmente quando se levam em conta alguns dos resultados sísmicos que os processos democráticos nos proporcionaram durante o ano passado”.
Ao não recomendar a democracia para um novo país que precisa se desenvolver, ele deixa claro que não entendeu que a democracia é meio e fim, que não se pode chegar à democracia a não ser pela democracia (um debate que Amartya Sen já havia resolvido na década de 70 do século passado, ao dizer que não existem países preparados ou não preparados para a democracia, pois todos os países se preparam através da democracia). O que ele está defendendo – a pretexto de detectar os problemas da democracia no mundo (na sua concepção) – é um atalho autocrático, que dê mais estabilidade (essencialmente econômica) aos países, evitando os abalos sísmicos que são próprios do processo de democratização, mas são indesejáveis para quem tem uma mentalidade autoritária.
É bom ler o artigo de Arturo Bris e uma crítica sobre ele, clicando no link: http://dagobah.com.br/um-artigo-contra-a-democracia/
Muitos analfabetos democráticos ou mesmo adversários declarados da democracia ainda alegam que o Chile, sob a ditadura de Pinochet e o Brasil, sob o regime militar, cresceram a altas taxas, muito maiores do que as verificadas nos regimes democráticos que sucederam essas experiências autoritárias.
Países como China (uma ditadura clássica) e Singapura (um regime autoritário, uma ditadura híbrida) não cresceriam mais – em termos econômicos – se adotassem a via democrática. Mas, com certeza, se desenvolveriam mais em termos do desenvolvimento humano, social e sustentável. Basta ver que os países mais desenvolvidos do mundo no sentido acima (não necessariamente os de maior PIB) são também os que se caracterizam por apresentar democracias mais plenas e, entre eles, não há uma única ditadura sequer.
Na verdade, os processos de democratização em curso até o final do século 20, pelo menos, não entregaram o que seus entusiastas defensores prometiam, mas não porque eles falharam e sim porque atribuíram à democracia objetivos estranhos ao que ela pode oferecer, como assinalamos acima. Vale a pena ler sobre isso o trecho da alocução de Claus Offe (em uma conferência realizada em 1999) denominado Democratização. A conferência inteira de Offe está disponível no link: SEM DOUTRINA TEXTO 05

11 – Como pode haver verdadeira liberdade (e democracia) sem igualdade (cidadania plena)?
Esta é uma ideia muito comum, difundida, sobretudo, pelo marxismo: a de que a igualdade (socioeconômica) é uma pré-condição para a liberdade (política).
Examinemos a pergunta. Em primeiro lugar, não há “verdadeira” liberdade, assim como não há “verdadeira” democracia. Pode-se admitir que existam graus de liberdade ou graus de democratização (e tanto é assim que as instituições de pesquisa que estudam e monitoram a democracia no mundo, fazem rankings classificando os países por scores de democracia – como já vimos nos Módulos 01, 02 e 03 deste programa).
Em segundo lugar, também não há “cidadania plena”. Há aqui, igualmente, diferentes graus de inserção ou inclusão no que se chama de cidadania, um conceito espinhoso, pois que nasce mais dos esforços para separar o diferente do que para inseri-lo ou inclui-lo na vida (ou na convivência social) de uma comunidade, com direitos iguais. O estrangeiro sempre teve menos direitos do que o conterrâneo, inclusive nas primeiras democracias. Os democratas atenienses vedavam a sua participação na comunidade política, portanto, não o incluíam como players válidos do jogo democrático. Roma é um bom exemplo da diferença de tratamento dispensada a quem não era cidadão: as leis a que estavam submetidos os não-cidadãos não eram as mesmas que valiam para os cidadãos romanos. Na Europa posterior ao império romano, cidadania foi usada para restringir os direitos de quem era “de fora”, do tipo “não venha vender na minha feira”.
Examinemos agora a premissa de que a igualdade é condição para a liberdade, que virou a narrativa principal dos autocratas socialistas.
A PREMISSA DE QUE A IGUALDADE É CONDIÇÃO PARA A LIBERDADE
A ideia de que a igualdade é condição para a liberdade é a mãe de todas as narrativas ditas socialistas. Como os ricos têm, em geral, mais liberdade do que os pobres, faz sentido. E aí todo mundo repete que, para existir verdadeira democracia, todos têm que ser iguais (em termos socioeconômicos).
A premissa básica é a da igualdade como ideal supremo (e como pré-condição para a liberdade); ou a ideia de que não pode haver (verdadeira) liberdade sem (ou até que se alcance a perfeita) igualdade.
Jacques Rancière (2005), em O Ódio à Democracia, já havia percebido a trampa e matou a questão. Por trás de tudo está a ideia de que existe uma sociedade igual para colocar no lugar da sociedade desigual (e de que essa sociedade igual estaria em alguma espécie de mundo paralelo pronta para ser trazida – ou realizada – a partir das contradições da sociedade desigual, elidindo a evidência de que a sociedade igual é somente o conjunto das relações igualitárias que se traçam aqui e agora por meio de atos singulares e precários).
Por não perceber isso, validam-se afirmativas como as seguintes:
1) Sem igualdade (social) não pode haver democracia (política). O que é um deslizamento epistemológico indevido: o que se poderia afirmar é que sem igualdade (política) não pode haver democracia (política). Sobre isso convém ler agora o artigo O conceito de desliberdade, disponível no link http://dagobah.com.br/o-conceito-de-desliberdade/
2) Se a democracia não servir para tornar a sociedade mais igualitária, para nada mais servirá. Confunde-se novamente aqui dois campos de sentido: a democracia não serve propriamente para levar um conjunto humano para a igualdade social e econômica porque a democracia não incide sobre as diferenças (sociais) existentes na sociedade humana e sim sobre as separações (geradoras de poder) que se instalam a partir dessas diferenças. Em outras palavras: a igualdade é a condição para a política democrática, não seu sentido ou sua finalidade.
3) Somente a cidadania plena conduz à democracia. Mais uma vez, o mesmo problema: se houver cidadania, é a democracia que leva à inclusão na comunidade política. Se não houver cidadania, a democracia não pode sequer se exercer (entre os cidadãos). A igualdade é a condição para a política democrática, não seu sentido ou sua finalidade. O sentido da política (democrática) não é a igualdade e sim a liberdade.
4) A democracia só pode ser experimentada em sua plenitude quando os principais problemas sociais (sobretudo o da desigualdade) estiverem resolvidos. E temos de novo a confusão. O que se poderia dizer é que os problemas sociais não podem ser resolvidos sem democracia, como condição para alcançar a (“verdadeira”) democracia no futuro. Do contrário, quem os resolverá enquanto não houver democracia? Um déspota esclarecido, quer dizer, um autocrata? Mas a democracia é sempre resultado do processo de democratização, quer dizer, só se pode construir democracia praticando democracia. Não há um atalho autocrático para a democracia.
Conclusão. Fica claro que opor igualdade à liberdade (dizendo que não pode haver verdadeira liberdade sem igualdade) é um modo de esvaziar a democracia do seu sentido. Pois a liberdade de que trata a democracia é a liberdade de uma sociedade se autoconduzir a partir da interação de suas próprias opiniões (quer dizer das opiniões das pessoas interagentes) em um espaço público. Essa liberdade de se autoconduzir não pode ser condicionada pela necessidade de ser conduzido para colocar-se apto a, no futuro, se autoconduzir. Eis o ponto!
É recomendável ler o texto Igualdade e Liberdade, disponível no link: SEM DOUTRINA TEXTO 06

12 – A democracia dos antigos, experimentada nos séculos 5 e 4 a. E. C. na Grécia, não foi um regime instituído para legitimar o modo de dominação dos homens livres (e proprietários) de Atenas sobre os escravos, os estrangeiros e as mulheres? Então, como se pode chamar isso de democracia?
A premissa é falsa. A democracia ateniense não foi um regime instituído para legitimar o modo de dominação dos homens livres (e proprietários) de Atenas sobre os escravos, os estrangeiros e as mulheres. Esta maledicência foi espalhada pelos marxistas, que jamais entenderam a democracia e que tinham interesse em desacreditá-la.
Trata-se de uma mentira sórdida, que não resiste a qualquer leitura séria da história.
Em virtude de uma conjunção particularíssima – provavelmente fortuita – de variados fatores, sociedades humanas na antiguidade lograram abrir uma brecha na cultura autocrática (patriarcal, hierárquica e guerreira), ensaiando pactos de convivência estabelecidos em redes de conversações entre iguais, que aceitavam a legitimidade do outro e valorizavam sua opinião e não apenas o seu conhecimento técnico ou o seu saber científico ou filosófico. Registros históricos apontam que isso aconteceu em cidades gregas, a partir de 509 antes da Era Comum, mas não é improvável que tenha ocorrido também, de modo mais fugaz, em outras ocasiões e lugares (o relato profético da chamada Assembleia de Siquém, ocorrida na Palestina entre os séculos 12 e 11 (?) a. E. C., talvez constitua um indício importante nesse sentido). Assim surgiu a democracia como uma experiência de conversação em um espaço público, quer dizer, no caso de Atenas, não privatizado pelo autocrata.
Circunstâncias históricas peculiares – que possibilitaram as reformas de Clístenes, de Efialtes e o início do protagonismo Péricles – geraram uma configuração singular, uma constelação particularíssima de fatores que permitiu a abertura da brecha democrática. O fato é que, do ponto de vista do padrão de organização, a democracia não teria surgido sem a formação de uma rede local com significativo grau de distribuição em Atenas. Em Atenas, as instituições democráticas foram criadas para afastar qualquer risco de retorno do poder exercido pelo tirano Pisístrato e seus filhos a partir da experimentação de redes de conversações em um espaço (que se tornou) público.
A primeira invenção da democracia durou de 509 a 322 a. E. C. A democracia foi uma invenção coletiva, uma espécie de “metabolismo” da rede social (com significativo grau de distribuição) que se formou na Agora, em Atenas. Foi um movimento de desconstituição de autocracia. Mas os historiadores, em geral, não captaram isso e sim os feitos dos indivíduos: as guerras que travaram, os assassinatos que cometeram ou de que foram vítimas, os golpes que tramaram ou dos quais se defenderam, os cargos de poder que conquistaram ou dos quais foram apeados e as reformas que impulsionaram ou tentaram evitar.
Diz-se que tudo começou com as reformas de Sólon (638-558), sobretudo a instituição da Ecclesia (assembléia) e da Boulé (conselho) por volta de 590. Mas, na verdade, do ponto de vista da democracia como desconstituição de autocracia, tudo começou em consequência da intervenção de Psístrato, que deu um golpe militar e introduziu a tirania em Atenas em 546, governou até 527 e foi substituído por seus filhos Hipias e Hiparco. Hiparco foi assassinado em 514. Hípias ficou no poder até 510 e foi destituído por Clístenes.
Clístenes (565-492) fez uma reforma da constituição (508) e abriu caminho para Efialtes (que fez uma reforma do Areópago). Efialtes foi assassinado em 461 ensejando a ascensão de Péricles, que exerceu seu protagonismo político de 461 a 429. A democracia ateniense floresceu neste período. E o século 5 foi também chamado de século de Péricles.
Em 338 Atenas foi derrotada pela Macedônia e ficou sob o domínio de Filipe e de seu filho Alexandre. Escolhe-se o ano de 509 para marcar o início da democracia porque foi a época do fim da tirania dos psistrátidas. Escolhe-se o ano de 322 para marcar o fim da democracia ateniense porque foi o ano em que a oligarquia foi imposta em Atenas por Antipatro, regente do império de Alexandre. Foi também o ano da morte de Demóstenes (384-322).
É claro que todos esses registros são sofríveis. Escritos sob o influxo de culturas autocráticas milenares, os relatos históricos não podiam mesmo revelar o que estava acontecendo do ponto de vista social.
A democracia foi a mais formidável antecipação de uma era interativa que já ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos no abismo (ou não mergulhássemos no fluxo da convivência social).
Mas na verdade as pessoas que inventaram a primeira democracia não tinham a menor consciência das implicações e consequências do que estavam fazendo. Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem, simplesmente, abrir uma janela para poder respirar melhor. Em consequência, abriram uma janela para o simbionte social poder respirar, sufocado que estava, há milênios, em sociedades de predadores (e de senhores).
Não é por acaso que no primeiro escrito onde aparece a democracia (dos atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela tenha sido apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm um senhor.
A democracia ateniense não era um igualitarismo, impossível àquela altura até mesmo como ideia, a não ser para os deslizadores epistemológicos, que querem projetar na história antiga condições contemporâneas, sem qualquer pejo hermenêutico de fazer tais transposições indevidas. E é bom notar isso porque continua na cabeça desse pessoal a ideia de que a democracia grega não era tão boa assim já que os escravos, os estrangeiros e as mulheres dela não podiam participar (sem ver que ainda hoje os estrangeiros ainda não podem e que as mulheres só muito recentemente, no século passado – ou seja, dois mil e quinhentos anos depois – conquistaram tal direito).
A finalidade da democracia é a liberdade, ou seja, a política; não a igualdade. A igualdade é a condição sem a qual não se pode exercer a política, quer dizer, a liberdade. Se os escravos, os estrangeiros e as mulheres de Atenas participassem da Ágora, não poderia haver democracia na Grécia – a menos que eles deixassem de ser o que eram, ou seja, passassem a ser (iguais aos) cidadãos. Mas só então eles seriam livres no sentido político. Isso significa que, se existe qualquer coisa como uma libertação dos excluídos da cidadania, essa libertação deve levar a uma inclusão na cidadania política para que se transforme em liberdade política. Ora, a liberdade política nada mais é do que o exercício da vida política.

13 – De que adianta ter democracia se o povo passa fome (ou como pode haver democracia política enquanto não for reduzida a desigualdade social)?
Não raro ouvimos afirmações populistas, como tais demagógicas (e, portanto, subversoras da democracia), do tipo: “Não adianta ter democracia se o povo passa fome” ou “Não adianta ter democracia política se não for reduzida a desigualdade social”. Afirmações como essas confundem a esfera das liberdades com a esfera das necessidades, subordinando a política às condições de uma cidadania universalizada (seja na perspectiva do igualitarismo, seja na perspectiva do estabelecimento, ex parte principis, de mínimos sociais sobrevivenciais).
A democracia (política, como toda a democracia) é, assim, vista quase que como um luxo, uma realidade própria de um regime de abundância, que não poderia ser exigido diante da realidade da escassez. Cuba não tem democracia, mas – diziam (e ainda dizem) seus defensores, desqualificando a democracia que lhes cobram como apenas política e apenas representativa, burguesa, controlada pelas elites – em compensação, não tem crianças na rua e nem favelas com populações em situação de extrema vulnerabilidade social.
Mais valeria, segundo tal pensamento, ter toda a população bem alimentada, mesmo que para isso algumas liberdades fossem (temporariamente) restringidas (até que se atingisse o reino da abundância ou, pelo menos, que se chegasse a uma solução satisfatória para os problemas de sobrevivência da maioria do povo).
Afirmações como essas contribuem para desacreditar a democracia e para atrasar o processo de democratização das sociedades ao confundi-lo, sintonizando-se instrumentalmente com o senso comum, com os processos eleitorais (já desgastados e sem muita credibilidade). Elas são, no fundo, visões autocráticas, que concorrem no sentido de autocratizar a democracia. Pois como a democracia é sempre resultado do processo de democratização, quer dizer, como só se pode construir democracia praticando democracia, se a democracia somente pudesse ser experimentada quando os problemas sociais fossem resolvidos, quem, então, sem ter passado pela experiência democrática, poderia democratizar a sociedade pelo povo e para o povo?
Antes, parece óbvio que se os problemas sociais pudessem ser resolvidos sem democracia, como condição para alcançar a (“verdadeira”) democracia no futuro, caberia a alguém fazer isso pelo povo e para o povo, por fora da democracia? Quem sabe um déspota esclarecido e identificado com as necessidades populares…
Como já vimos nos Módulos 11 e 12 deste programa, opor igualdade à liberdade (dizendo que não pode haver verdadeira liberdade sem igualdade) é um modo de esvaziar a democracia do seu sentido. Pois a liberdade de que trata a democracia é a liberdade de uma sociedade se autoconduzir a partir da interação de suas próprias opiniões (quer dizer das opiniões das pessoas interagentes) em um espaço público. Essa liberdade de se autoconduzir não pode ser condicionada pela necessidade de ser conduzido para colocar-se apto a, no futuro, se autoconduzir.
A finalidade da democracia é a liberdade, ou seja, a política; não a igualdade. A igualdade é a condição sem a qual não se pode exercer a política, quer dizer, a liberdade.
Dito (ou repetido) isto, voltemos à pergunta. De que adianta ter democracia se o povo passa fome (ou como pode haver democracia política enquanto não for reduzida a desigualdade social)?
Pode-se reduzir a desigualdade social e, mesmo assim, parte do povo continuar passando fome. Países pobres, em muitos casos, têm desigualdade social menor do que países ricos. Ora, onde a maioria da população é pobre, a desigualdade social é menor, mas isso não significa que a maioria tenha condições dignas de vida (ou não passe fome).
A Nova Zelândia tem muito mais desigualdade social do que a Etiópia. Mesmo assim, quase ninguém passa fome da Nova Zelândia e muitos passam fome na Etiópia.
A democracia não tem a ver propriamente com isso. Democracia – repita-se mais uma vez – tem a ver com liberdade. O problema não é que não seja necessário combater (ou reduzir) a desigualdade. Isso deve ser feito. O problema é colocar a igualdade sócio-econômica como pré-condição para a igualdade política (quer dizer, para a liberdade).
Quem pensa assim pensa em termos de “desliberdade”, ou seja, de desigualdade política. Imagina que uma sociedade deveria chegar a patamares mínimos de igualdade socioeconômica para – só então – poder experimentar a liberdade, o que é uma contradição em termos ao admitir um caminho autocrático para a democracia. Quem levaria a sociedade para uma condição de mais igualdade a partir da qual ela poderia experimentar a democracia? Um déspota esclarecido? O sultão de Brunei? O líder do partido revolucionário transformado em ditador (como Fidel Castro)?
É recomendável ler o pequeno artigo O conceito de desliberdade, disponível no link: http://dagobah.com.br/o-conceito-de-desliberdade/

14 – Não se deveria primeiro democratizar a sociedade para depois democratizar a política? O acesso diferencial aos recursos não impõe diferenças de condição de interação política?
Estas perguntas são semelhantes a do módulo anterior. Vamos à primeira. Ela elide a questão fundamental: quem fará isto? Ou seja, quem democratizará a sociedade para que ela se torne apta a experimentar a democracia (política)?
Elas evocam o velho debate da década de 1970, sobre se alguns países estavam ou não preparados para a democracia. A questão já foi resolvida por Amartya Sen, ao dizer que todos os países se preparam através da democracia. A democracia é meio e fim e não se pode chegar a um regime democrático a não ser experimentando o praticando a democracia.
Na verdade, o fim (ou a finalidade) é a política. É os seres humanos viverem como seres políticos, autorregulando seus conflitos, sem a necessidade de um senhor que faça isso por eles.
Não custa repetir. Deveria ser óbvio que não se pode democratizar a sociedade sem democratizar a política. Do contrário, caberia a alguém democratizar a sociedade para e pela sociedade, o que nega o objetivo de democratização da sociedade. Democracia, ainda quando queiramos enfatizar seu conteúdo social, é política. Democratização pressupõe exercício democrático, interação democrática e, por conseguinte, constituição de sujeitos democráticos, o que só é possível no interior mesmo de um processo democrático.
Também deveria ser óbvio que só se pode alcançar a democracia praticando democracia. Não é possível tomar um atalho autocrático para uma sociedade democrática. A democracia é, simultaneamente, meio e fim, constituindo-se, portanto, como alternativa de presente e não apenas como modelo utópico de futura sociedade ideal. Assim, não se pode chegar a uma sociedade democrática a não ser por meio do exercício da democracia.
Tais constatações são um reconhecimento tardio a John Dewey. Como ele escreveu, no artigo “A democracia é radical” (1937):
“A democracia não somente encarna fins que até os ditadores reivindicam hoje como próprios, fins como a segurança dos indivíduos e a oportunidade para que desenvolvam suas respectivas personalidades. A democracia significa, antes de qualquer coisa, defender os meios necessários para que tais fins possam ser levados a termo. Os meios que a democracia se esforça por articular são aqueles próprios da atividade voluntária em total ausência de coerção; trata-se de obter assentimento e consenso sem impor violência alguma. É a força da organização inteligente versus a força da organização imposta de fora para dentro e de cima para baixo. O princípio fundamental da democracia consiste em que os fins da liberdade e da autonomia para todo indivíduo somente podem ser alcançados empregando-se meios condizentes com esses fins”
Dewey deveria ser lido e relido todos os dias pelos democratas hoje confrontados com renovadas tentativas de usar a democracia (como fim) contra a democracia (como meio). O que espanta é a clareza desse senhor de quase 80 anos – e há 80 anos – diante de uma questão que se arrasta sem solução teórica e prática até os dias de hoje. Por que John Dewey pôde ter tamanha clareza? Por duas razões, pelo menos: em primeiro lugar porque ele estava realmente convertido ao que chamava de democracia como ideia (ou seja, a democracia no sentido “forte” do conceito) e, em segundo lugar, porque ele vivia um momento histórico em que a democracia estava sendo usada instrumentalmente para legitimar a autocracia (tanto à direita, com o nacional-socialismo alemão, quanto à esquerda, com o bolchevismo da III Internacional ainda em expansão). Isso reforça o conceito “forte” de democracia, que estabelece que só se pode conceituar – e, portanto, conceber a – democracia diante da autocracia.
Tudo indica que vivemos hoje um momento semelhante. Não estamos na iminência de uma guerra generalizada (como estava Dewey em 1937, na antessala da segunda grande guerra mundial) e não existem ameaças totalitárias globais semelhantes ao nazismo e ao comunismo. No entanto, a perversão da política promovida pelos diversos populismos (remanescentes ou reflorescentes, sobretudo na América Latina) constitui uma ameaça seriíssima à democracia que só pode ser plenamente percebida por quem está convencido – como Dewey estava – da necessidade da radicalização da democracia. Infelizmente tanto os liberais-econômicos quanto os conservadores de hoje não estão convencidos disso. Creem que basta se posicionar (e ainda por cima timidamente) na defesa das regras formais do sistema representativo, com suas instituições e procedimentos limitados ao voto secreto, às eleições periódicas, à alternância de poder, aos direitos civis e à liberdade de organização política, enfim, ao chamado Estado de direito e ao império da lei. Parodiando Tayllerand, parecem não ter esquecido nada e também não ter aprendido nada com o século passado. Mas enquanto eles cochilam, vai avançando o uso da democracia contra a democracia com o fito de manter no poder, por longo prazo, grupos privados que proclamam o ideal democrático como cobertura para enfrear o processo de democratização das sociedades que parasitam.
Passemos agora à segunda pergunta: o acesso diferencial aos recursos não impõe diferenças de condição de interação política?
Ora, isso depende de que recursos estamos falando. Se forem recursos econômicos, como renda ou riqueza, a resposta é: não diretamente. A democracia não é um projeto de uma sociedade igualitária, em que todos terão (ou deveriam ter) os mesmos recursos. Se isso fosse condição para experimentar a democracia, não teria havido, não há e jamais haverá qualquer democracia.
É claro que pessoas com pouquíssimos recursos econômicos podem ter mais dificuldade de acesso a recursos que são de fato relevantes para a igualdade política (ou seja, para ter condições de interação política). O melhor exemplo é o conhecimento da língua.
Não é que a posse de um conhecimento – como o conhecimento da língua falada e escrita, a alfabetização ou o letramento – qualifique a opinião por fora do processo político (sim, não estamos falando aqui de outra coisa senão do processo político), o que seria uma violação do pressuposto democrático básico de liberdade e valorização da opinião. É que os processos pelos quais as opiniões transitam na sociedade, basearam-se, a partir da modernidade, na palavra escrita e na interpretação do texto, escrito ou falado, criando assim uma condição de interação política que impede ou dificulta a interação dos que não possuem tais recursos cognitivos (e/ou de comunicação).
Em países em que as condições de interação política estão mais bem distribuídas, há uma tendência clara de convergência entre a opinião pública e a soma das opiniões privadas, até que ponto não se sabe. Mas isso explica por que a vitalidade da democracia está sempre associada a existência de uma sociedade civil ativa ou de uma “classe média” vigorosa. Não, não é porque a posição de classe em termos clássicos, quer dizer, a posição em relação ao processo de produção ou de acumulação ampliada do capital seja determinante, como julgaram todas as vertentes economicistas do pensamento sociológico (inclusive porque a determinação de classe da chamada “classe média” é uma operação impossível para as teorias de classes sociais fundamentadas em alguma racionalidade econômica), e sim porque há um acesso diferencial ao campo onde se dá a interação das opiniões por parte dessa “classe” em relação às classes ditas subalternas (em virtude do analfabetismo estrito ou funcional destas últimas ou, hoje, de seu “analfabetismo” digital e, ainda, do seu exíguo tempo livre para poder se preocupar com assuntos que não digam respeito diretamente à sobrevivência e ao lazer).
Mas este não é, diretamente, um problema da democracia. A democracia é experimentada pelos que têm condições de interagir politicamente e aposta-se que, uma vez experimentada por estes, possa retroagir sobre as condições sociais gerais de sorte a possibilitar que todos tenham condições de interagir politicamente. Se não for por tal caminho, os democratas têm que ficar esperando que todos tenham as mesmas condições de interação e enquanto eles ficam esperando, quem fará o trabalho de produzir a igualdade socioeconômica necessária para que todos possam experimentar a democracia? Um senhor com um propósito generoso de universalizar a cidadania? Novamente aqui caímos na armadilha: alguém, por fora da democracia – ou seja, um autocrata – teria o papel de preparar o povo para a democracia, sequestrando suas liberdades no presente em nome de um reino da liberdade no futuro.

15 – Se a democracia é o regime da maioria, por que os representantes da maioria não têm o direito de fazer o que almejam para melhorar as condições de vida das populações que governam? Por que condenar o bolivarianismo se os seus líderes foram escolhidos pela maioria da população?
Estas são, de todas, as colocações mais primárias, feitas em geral por militantes de esquerda, sobre a democracia.
A primeira pergunta começa com uma falsidade. A democracia não é o regime (ou o governo) da maioria e sim o governo de qualquer um. Sobre isso, vale a pena ler o pequeno e instigante livro de Jacques Rancière (2005), intitulado O ódio à democracia (o link para baixar o PDF está no final desta página).
Ao contrário do que sugere a visão autocrática dos que pretendem usar a democracia contra a democracia, parasitando-a e, para tanto, pegando uma carona no senso comum, democracia não tem propriamente a ver com prevalência da vontade da maioria e sim com a possibilidade da existência de minorias capazes (ou não) de se tornar maiorias. Como observou corretamente Jon Elster (2007), a alternância no poder “é o teste para sabermos se estamos diante de um arremedo de democracia ou de uma democracia verdadeira” (Cf. a entrevista “Alternância no poder define as democracias” concedida à Cláudia Antunes, na Folha de São Paulo em 17/06/07). Regimes eleitorais não são necessariamente democracias no sentido pleno, ainda que “fraco”, do conceito. São os casos da Venezuela e da Rússia de nossos dias.
Não se pode aceitar que a democracia seja o regime da maioria, pois isso seria aceitar a “lei do mais forte” quando a força é medida pelo número de votos. Pelo contrário, a democracia é um regime em que as minorias podem ter condições de apresentar suas opiniões com a mesma liberdade que a maioria e podem sempre se manifestar e se fazer representar na proporção de sua importância reconhecida e de seu peso aferido na coletividade.
A ideia de democracia como regime de múltiplas minorias (ou seja, a ideia de que a democracia não é – nem pode ser – o regime da maioria) refere-se à diversidade e à necessidade de sua manutenção por meio de um pacto político – o acordo fundante da democracia – que impeça a ereção de um poder autocrático, mesmo dentro de um regime democrático e em nome de um princípio aparentemente democrático: a vontade da maioria. Mas é evidente que um pacto dessa natureza co-implica um grau de cooperação entre os membros da sociedade, um refreamento assentido da competição que tenderia, como tende na prática de uma parte das democracias realmente existentes (os tais “arremedos de democracia”), invadidas por enclaves autocráticos, a cassar ou ao menos cercear as possibilidades de expressão e de representação das minorias.
Democracia como regulação majoritária da inimizade política, democracia como lei do mais forte (daquele que tem maioria, sendo, no caso, mais forte, o competidor que tem mais votos), enfim, democracia como regime da maioria, remete a uma visão de democracia rebaixada pela ideia de que só existe um meio de mediar conflitos: estabelecendo a prevalência da vontade da maioria, revelada em uma disputa (em geral por votos). Aparentemente democrática, tal visão, na verdade, é bastante problemática. Em primeiro lugar, porque estabelece uma dinâmica adversarial de convivência política, cada competidor tentando fazer maioria para derrotar os adversários, o que evoca a ideia de que o mais forte pode impor sua vontade aos mais fracos (ainda que aqui o voto ocupe o lugar das armas ou do corpo usado como arma, o mesmo fundamento incivil permanece). Em segundo lugar, porque, se a democracia não é o regime da maioria e sim o regime das (múltiplas) minorias, então a liberdade e os direitos das minorias devem estar protegidos de eventuais humores autocráticos (violadores da liberdade) da maioria. Caricaturando um pouco para mostrar pelo absurdo: se democracia fosse o regime da maioria, uma sociedade que tivesse 60% de brancos e 40% de negros poderia decretar – em eleições limpas, por maioria – a escravidão dos negros?
Há a questão dos direitos, que não podem ser violados pela maioria. Ademais, a democracia deve contemplar a possibilidade de minorias virem a se tornar maiorias, o que só acontecerá se as regras do jogo garantirem às minorias as mesmas condições que garantem à maioria (coisa que, na prática, nunca acontece plenamente). E o que só acontecerá (minimamente, para o regime em questão poder ser chamado de democrático) se essas regras forem respeitadas pela maioria, que não pode – baseada no fato de que é maioria – alterar tais regras durante o jogo. Quando a maioria não obedece às normas estabelecidas para tornar (minimamente) equânime a disputa, pode se perpetuar ou se delongar no poder, falsificando a rotatividade democrática. O que só não ocorrerá se existir Estado de direito e instituições fortes, capazes de impor a prevalência das leis, mesmo contra a vontade da maioria.
Esse é o motivo pelo qual maiorias nacionais não-convertidas à democracia – muitas vezes constrangidas a seguir sua liturgia ou ritualística formal por falta de condições internacionais e nacionais para escapar desses constrangimentos impostos à expansão do seu domínio – tentam perverter a política e degenerar as instituições. As instituições constituem freios ao apetite pelo poder das maiorias e atuam tentando conter sua voracidade. Se elas forem corrompidas, fica mais fácil alterar as regras do jogo, para então poder usar a democracia (formal) contra a democracia (substantiva); quer dizer, com instituições fracas, corrompidas ou degeneradas, fica mais fácil enfrear o processo de democratização, criando mais-ordem top down e, consequentemente, reduzindo as liberdades (ainda que se possa continuar encenando o ritual democrático, como ocorreu até há pouco tempo na Venezuela e ainda ocorre em outros países da América Latina).
A degeneração das instituições é um processo que ocorre quando as normas que determinam o formato e regem o funcionamento institucional são pervertidas por uma prática política que se utiliza instrumentalmente dessas estruturas e dinâmicas para obter vantagens ou alcançar resultados que não têm a ver com sua natureza ou propósito original, constituinte ou fundante. A corrupção e outros comportamentos políticos pervertidos degeneram as instituições. Tal degeneração também pode se dar, para além da corrupção, pela transposição de uma lógica partidária privada – baseada em critérios de maioria e minoria – para dentro das instituições públicas. Com o avanço de tal processo degenerativo, das instituições tende a restar apenas a casca, a dinâmica formal, a liturgia, a ritualística.
A degeneração das instituições se dá, nesse sentido, quando o processo de ocupação organizada do Estado por uma força privada, partidária, esvazia as instituições públicas de seu conteúdo ao deslocar o centro das decisões para uma instância externa e ilegítima. Assim, por exemplo, se o partido da maioria logrou fazer maioria em um ente estatal qualquer, seja um órgão da administração, uma empresa pública, um tribunal ou uma agência reguladora, as decisões dessas instituições que interessam politicamente ao poder já estarão tomadas de antemão, cabendo apenas, ao ente em questão, fazer a encenação de praxe para validar o que já estava decidido.
Experiências recentes de degeneração das instituições em democracias nas quais líderes populistas lograram conquistar governos, legitimamente, pelo voto, mostram que ela obedece a uma estratégia de retenção do poder nas mãos de um mesmo grupo – tentando falsificar a rotatividade democrática – e tem como objetivo a construção de condições que permitam o estabelecimento de uma hegemonia de longa duração. Uma parte dos autocratas busca legitimar tal estratégia argumentando que as instituições atuais não são ativos democráticos e sim passivos herdados da velha dominação das elites, que um governo popular teria não apenas o direito, mas o dever de remover e substituir por outras instituições desenhadas de acordo com os interesses da maioria do povo, só não o fazendo de pronto porquanto (e enquanto) a correlação de forças não lhe é favorável. Para tornar a correlação de forças favorável é necessário prosseguir no processo de conquistar maioria partidária em todas as instâncias onde isso for possível e por todos os meios possíveis, sendo que, um desses meios é, exatamente, a ocupação e a consequente degeneração das instituições.
Frequentemente a política vem sendo pervertida por meio da realpolitikexacerbada, que transforma tudo em uma guerra. Antes de tudo, é uma fórmula cômoda para justificar qualquer tipo de insucesso, de erro ou de irregularidade de quem está no governo: se um programa público não funcionou como o previsto, a culpa é dos inimigos, da sua presença não cooperativa ou da herança que deixaram; se uma falha foi cometida, a culpa é do inimigo, que “puxou o tapete” ou inviabilizou de algum modo a consecução do projeto correto; se um crime foi perpetrado, a culpa é de quem divulgou o delito, motivado apenas por interesses eleitoreiros.
Mas a perversão da política como arte da guerra se baseia na noção, antidemocrática, de que “guerra é guerra”, quer dizer, de que não existe, a rigor, guerra limpa. Assim, em uma guerra, sempre suja, justificam-se todos os insucessos e, pior, todos os erros. No limite, pode ser justificado qualquer crime. Trata-se de uma espécie de shimittianização (de Carl Shimitt) da política, que tende a encarar qualquer diferente como inimigo pelo simples fato de ele ser um outro. Ser outro já significa uma ameaça de se constituir como alternativa ao mesmo. Ameaça que, portanto, deve ser combatida, neutralizada ou destruída.
Uma variante da concepção autocrática de que democracia é o regime da maioria, que tem se difundido ultimamente, é a de que democracia é a regra do jogo estabelecido para verificar quem tem mais audiência e, assim, entregar os cargos públicos representativos ao detentor do maior índice de popularidade.
Trata-se, obviamente, de outra concepção pervertida de democracia. Nos regimes democráticos contemporâneos, no contexto de uma sociedade midiática, instalou-se essa espécie de “ditadura” do índice de audiência ou de popularidade, verificada por pesquisas de opinião, que não raro confunde, perigosamente, popularidade com legitimidade e opinião pública com a soma das opiniões privadas.+
A segunda pergunta – Por que condenar o bolivarianismo se os seus líderes foram escolhidos pela maioria da população? – não merece resposta.
Não deixe de ler o livro de Rancière: RANCIÈRE, Jacques (2005) O ódio à democracia

16 – Um líder identificado com o povo não pode fazer mais (pelo povo) do que instituições cheias de políticos controlados e financiados pelas elites?
Esta é uma alegação típica do populismo. O líder teria o condão de fazer uma ligação direta com as massas (o povo), bypassando as mediações institucionais (que não estariam a favor do povo e sim das elites).
O líder, mesmo quando eleito para chefiar o governo e o Estado, é mais do que um simples e temporário representante: é ungido como legítimo chefe, protetor, cuidador e delegado plenipotenciário para fazer o que sabe que é melhor para o povo.
Como um candidato a chefe de governo com um projeto populista dificilmente conseguirá fazer maioria qualificada no parlamento, maioria que lhe permita promover mudanças constitucionais, tendo que dividir poder com os representantes das elites, cabe a ele – se eleito – encontrar meios de dar um curto circuito no sistema de pesos e contrapesos da democracia para conseguir que os interesses populares, secularmente preteridos pelas elites, possam afinal vingar.
Isso exigirá um processo de acossamento das instituições a partir de mobilizações de massa fabricadas por organizações corporativas (sindicais e associativas) e movimentos sociais, de uma rede de veículos de comunicação, além de uma ocupação organizada das demais instituições de controle (incluindo tribunais, tribunais de contas, procuradorias, agências reguladoras etc.) e de órgãos que detêm o monopólio do uso da força (polícia e, se possível, forças armadas) para alterar a correlação de forças a favor do projeto do líder populista e do seu partido ou aliança de partidos.
Isso também exigirá, via-de-regra, corrupção organizada, para financiar o projeto populista, comprar ou alugar aliados, subornar ou neutralizar adversários e custear outras ações de tomada do poder a partir do governo. Tudo isso equivale, em termos práticos, a um golpe de Estado, ainda que em doses homeopáticas.
Examinemos o problema em mais detalhes.
É reconhecidamente uma falha “genética” da democracia sua falta de proteção contra o discurso inverídico, pelo menos no curto prazo. Tal falha – que já se manifestava entre os gregos (como jactância, por exemplo) – manifesta-se atualmente como bravata ou, simplesmente, como mentira mesmo, no nível mais chulo do termo. O discurso inverídico é, em geral, feito na forma de promessas ao povo, que não poderão ser cumpridas, mas que têm como objetivo apenas angariar simpatias e votos. Ontem como hoje tudo se baseia na ideia demagógica de que democracia é fazer a vontade do povo.
A ideia de que democracia é fazer a vontade do povo é uma variante populista de (in)compreensão da democracia. O fato de a democracia ser uma política feita ex parte populis não significa que alguém – um representante supostamente ungido pelo povo – possa encarnar a missão de fazer a vontade do povo (e, antes, que tal representante tenha o condão de interpretar essa vontade), como sugere a expressão. Ao contrário, no máximo, seria possível dizer que a democracia é uma maneira de o povo realizar sua vontade, mas referindo-se isso ao processo democrático como um todo e não à delegação de tal missão a um representante escolhido por maioria.
A mitificação da noção de ‘vontade do povo’ leva, não raro, a outras perversões, como a de que os votos da maioria da população estão acima das decisões das instituições democráticas quando tais instituições representam apenas as minorias e a de que um grande líder identificado com o povo pode fazer mais do que instituições cheias de políticos controlados pelas elites.
No primeiro caso, estamos diante de um argumento construído para legitimar a degeneração das instituições, para que elas não possam mais ser capazes de frear a voracidade pelo poder da maioria (e o chamado majoritarismo). Se as instituições ficassem ao sabor da vontade da maioria, não poderiam ser fiéis do processo democrático e não poderia, a rigor, subsistir qualquer regime democrático. Instituições não têm que “representar” – stricto sensu – nem maioria, nem minorias. Seu papel é garantir que a democracia seja o regime em que as (múltiplas) minorias possam vir a se tornar maioria e, em qualquer circunstância, possam continuar existindo como minorias, mesmo quando já tenham sido maioria. Em suma, antes de impor uma ordem que favoreça a governabilidade (para o bom exercício dos mandatos da maioria), cabe às instituições democráticas estabelecer aquele tipo de ordem capaz de garantir a liberdade, sobretudo a liberdade daqueles que discordam da maioria e a ela se contrapõem dentro das regras institucionais vigentes. Assim, se os votos da maioria da população pudessem ficar acima das instituições, não haveria possibilidade de democracia.
No segundo caso estamos diante de uma perigosíssima afirmação para a democracia, em geral difundida por líderes populistas. Vale a pena abrir aqui um parêntese para examinar o populismo, na medida em que ele se constitui como uma forma de subverter a democracia.
O historiador mexicano Enrique Krauze (2006) escreveu que o populismo – ao contrário do que se imaginava – continua sendo uma variante política da atualidade, sobretudo na América Latina. Ele mostrou como está surgindo o fenômeno da emergência de um “populismo latino-americano pós-moderno” – que também poderia ser chamado de neopopulismo – que se diferencia das formas tradicionais, mais conhecidas (de populismo), que se caracterizavam por uma irresponsabilidade macroeconômica.
Líder carismático, demagogia e palanquismo, dificuldade em aceitar a crítica e a opinião do outro, esbanjamento de recursos públicos (sobretudo para financiar gastos crescentes do Estado com pessoal, quer dizer, com aparelhamento), assistencialismo, incentivo à divisão da sociedade na base dos pobres contra os ricos (ou do povo contra as elites), mobilização das massas, criação de inimigos, desprezo pela ordem legal e desvirtuamento das instituições – todos esses ingredientes, quando combinados, compõem a fórmula do novo populismo.
O neopopulismo é esse novo tipo de populismo que floresce quando líderes carismáticos e salvacionistas, apoiados por correntes estatistas e corporativistas, apossam-se, pela via eleitoral, das instituições da democracia e as corrompem, gerando um ambiente degenerativo que perverte a política, privatiza partidariamente a esfera pública e enfraquece a sociedade civil. Trata-se de uma vertente política de caráter autoritário, que convive com a democracia, mas que exerce sobre ela uma espécie de parasitismo; ou seja, que usa a democracia contra a democracia para enfrear e reverter o processo de democratização da sociedade, assegurando condições para a permanência, por longo tempo, de um mesmo líder e de seu grupo no poder. Inevitavelmente, quando não abole a democracia (em geral tal vertente não age assim), o neopopulismo provoca seu decaimento para regimes eleitorais com alto grau de antagonismo ou democracias de baixa intensidade.
Esse tipo de projeto de poder em geral não trabalha por fora das instituições e sim por dentro (daí sua característica de parasitismo da democracia). Enganam-se, portanto, os que acham que vão surpreender os neopopulistas em uma tentativa de golpe de Estado em termos clássicos. Sua via principal é a eleitoral. Tudo o que fazem tem como objetivo continuar ganhando as eleições, sucessivamente: de um lado, o palanquismo-messiânico (do líder que se diz predestinado a salvar os pobres) regado com assistencialismo-clientelista (o neoclientelismo) e, de outro, a conquista dos meios institucionais pela privatização partidária da esfera pública e pela alteração da lógica de funcionamento das instituições. Essa é a fórmula do neopopulismo.
E fundamental agora ler o artigo de Enrique Krauze (2006), Os dez mandamentos do populismo, clicando aqui: http://dagobah.com.br/a-praga-do-populismo/
É bom ler também o artigo de Moisés Naím (2017), Manual do Populismo, clicando aqui: http://dagobah.com.br/manual-do-populismo/
E por último, ainda, o artigo de Marcos Aguinis (2007), El hipnótico modelo populista, clicando aqui http://www.lanacion.com.ar/917448-el-hipnotico-modelo-populista (disponível somente em espanhol).

17 – Quando se afirma que existe uma opinião pública, ela não é sempre o resultado artificial da ação de meios de comunicação que estão nas mãos de grupos minoritários das elites econômicas? Então, como dizer que a opinião pública é um fator necessário à democracia nessas circunstâncias?
Em primeiro lugar é preciso ver o que é a opinião pública. Há várias afirmações, nas duas perguntas que compõem esta questão, que não podem ser justificadas pela democracia.
Não procede que a opinião pública seja sempre resultado artificial da ação dos meios de comunicação (ainda que estes tenham influência na formação da opinião pública, eles podem fabricar e disseminar versões que incidem mais sobre as opiniões privadas dos cidadãos do que sobre a opinião pública, quer dizer, sobre o resultado – imprevisível a rigor – da interação das múltiplas opiniões privadas). Ademais, isso não é sempre um resultado artificial (no sentido de engendrado, planejado ou programado): se fosse assim, um candidato ou uma proposta divulgada pelos meios de comunicação produziria sempre os efeitos esperados, o que não ocorre. Candidatos incensados pelos meios de comunicação, podem perder – e frequentemente perdem – as eleições e candidatos ignorados ou desprezados inicialmente por esses meios, muitas vezes ganham as eleições. No Brasil temos vários exemplos: a eleição de João Dória, para a prefeitura de São Paulo em 2016 no primeiro turno e a permanência de Temer na presidência apesar de toda orquestração de grandes meios de comunicação para depô-lo ou obrigar sua renúncia.
A afirmação, ademais, parece tomar os meios de comunicação como as grandes mídias broadcasting (rádios, TVs, jornais, revistas) e não as mídias sociais (incorretamente chamadas entre nós de “redes sociais”), quer dizer, os meios de comunicação interativos.
Não procede, igualmente, a afirmação de que os meios de comunicação estejam sempre nas mãos de grupos minoritários das elites econômicas (na Venezuela e na Rússia, por exemplo, não estão). Aqui fica claro que se está levando em conta apenas as mídias broadcasting, não as mídias sociais. Há claramente, um exagero de atribuição de papel aos grandes veículos de comunicação (e uma desvalorização do papel das mídias sociais).
Antes de completar a crítica a essas afirmações contidas na questão, é necessário examinar o que é opinião pública e por que ela é necessária para a democracia.
O QUE É OPINIÃO PÚBLICA
Na maioria dos países do mundo, se fôssemos organizar a sociedade com base nas opiniões da maioria da população, viveríamos provavelmente em uma ditadura ou em um tipo de regime excludente, preconceituoso, intolerante, corrupto e avesso a quaisquer dos elevados valores anunciados pelos defensores da democracia.
A democracia depende de uma chamada opinião pública, que não é o mesmo que a soma das opiniões dos habitantes que compõem a população de um país, mas que é composta a partir dos inputs fornecidos por aqueles que proferem opiniões no espaço público. Ou seja, a opinião pública não é a opinião da maioria da população, como somos induzidos a acreditar depois que apareceram os institutos de pesquisa de opinião. A opinião pública é aquela que se forma quando as opiniões são voluntariamente proferidas no espaço público e não quando são arrancadas por um entrevistador que bate à nossa porta, nos telefona ou corta o nosso caminho na via pública e depois totaliza as respostas que arrancou porque perguntou, mas que nós não estávamos dispostos a submeter ao debate público. Se existissem tais institutos na Atenas do século 5, a democracia certamente não seria escolhida como forma preferível de governo. No entanto, a opinião pública em Atenas era favorável à democracia. Da mesma forma, no Brasil do auge do regime militar, os que se posicionavam contra o governo eram franca minoria e, ainda assim, expressavam a opinião pública da época.
Diz-se, com razão, que a opinião pública é um ator (ou um fator) que não pode ser desconsiderado nas sociedades contemporâneas. Ela não é exatamente o mesmo que chamamos de ‘sociedade civil’ (sobretudo não é nada que se possa reduzir ao conjunto de organizações da sociedade civil). Ela é algo que se forma, por certo, a partir das opiniões privadas, porém quando tais opiniões interagem coletivamente formando configurações complexas que brotam por emergência. Nesse sentido o mecanismo de construção ou formação da opinião pública é o mesmo mecanismo de formação do que chamamos de público, como, aliás, já havia percebido John Dewey, em 1927, no seu clássico “O público e seus problemas” (1).
Dewey, é claro, não podia conceber, àquela altura, a emergência e outros processos acompanhantes da complexidade social, mas anteviu certos conceitos dos quais agora somos obrigados a lançar mão para tentar descrever a formação do ‘público’. Hoje podemos dizer que a diversidade das iniciativas da sociedade civil é capaz de gerar uma ordem bottom up. E que a partir de certo grau de complexidade, a pulverização de iniciativas privadas acaba gerando um tipo de regulação emergente. Quando milhares de micromotivos diferentes entram em interação, é possível se constituir um sentido coletivo comum que não está mais vinculado aos motivos originais dos agentes privados que contribuíram para a sua constituição. Aqui começamos a roçar o problema!
No entanto, isso não é possível quando o número de agentes privados é muito pequeno. O que indica que o público propriamente dito só pode, portanto, se constituir por emergência. Pode até haver, provisória e intencionalmente, um pacto que reconheça alguns processos de constituição do público, assim como há, por exemplo, um pacto que reconhece como receita pública o resultado do montante de impostos pagos por agentes privados (com dinheiro privado). Não há uma mágica que transforma nossos recursos privados em recursos públicos quando pagamos impostos: há um assentimento social, que reconhece como válida a operação política pela qual esses recursos privados, pagos pelos chamados contribuintes, quando arrecadados compulsoriamente pelo Estado, passam a ser considerados como recursos públicos.
Mas há limites impostos pela racionalidade do tipo de agenciamento que estamos considerando. Querer transformar o interesse privado de um grupo em interesse público é semelhante a querer fazer uma mágica mesmo. Seria, mal comparando, como querer chamar de receita pública os impostos pagos apenas por uma dúzia de contribuintes.
Entenda-se que não é um problema de quantidade. É uma questão de complexidade, em que, evidentemente, a quantidade é uma variável, mas não a única. Se somente uma dúzia de pessoas pagasse impostos, dificilmente haveria base para um pacto na sociedade reconhecendo como válido o direito de taxar esses contribuintes. Se houvesse tal pacto, ele seria um pacto privatizante e os tais contribuintes seriam considerados (e se comportariam como) donos do Estado (que, então, não poderia mais ser considerado um ente público).
Por outro lado, há uma razão eloquente para afirmar que a quantidade não é a única variável nesse processo. Pois também não fica assegurada a formação do público pela simples soma – ou a totalização ex post e inorgânica – de inputs privados, mesmo que as parcelas dessa soma expressem quantitativamente a maioria de uma população.
No caso da chamada ‘opinião pública’, não basta somar (ou juntar e totalizar) as opiniões privadas. É necessário que essas opiniões se combinem, se polinizem mutuamente e se transformem nesse processo de emersão para que possamos ter uma opinião pública. Assim, poderá ocorrer que a maioria das opiniões privadas esteja em contradição com a opinião pública, mesmo quando as vertentes originalmente formadoras dessa opinião pública sejam minoritárias ou, até mesmo, francamente minoritárias (por exemplo, a opinião pública no Brasil de meados do século 19, quando, segundo algumas estimativas, apenas 1% da nossa população sabia ler e escrever – e os 99% analfabetos nem mesmo podiam usar os jornais como papel higiênico – era formada por opiniões privadas que, em sua origem, eram francamente minoritárias).
Não é que a posse de um conhecimento – como o conhecimento da língua falada e escrita, a alfabetização ou o letramento – qualifique a opinião por fora do processo político (sim, não estamos falando aqui de outra coisa senão do processo político), o que seria uma violação do pressuposto democrático básico de liberdade e valorização da opinião. É que os processos pelos quais as opiniões transitam na sociedade, basearam-se, a partir da modernidade, na palavra escrita e na interpretação do texto, escrito ou falado, criando assim uma condição de interação política que impede a participação dos que não possuem tais recursos cognitivos (e/ou de comunicação).
Em países em que as condições de interação política estão mais bem distribuídas, há uma tendência clara de convergência entre a opinião pública e a soma das opiniões privadas, até que ponto não se sabe. Mas isso explica por que a vitalidade da democracia está sempre associada a existência de uma sociedade civil ativa ou de uma “classe média” vigorosa. Não, não é porque a posição de classe em termos clássicos, quer dizer, a posição em relação ao processo de produção ou de acumulação ampliada do capital seja determinante, como julgaram todas as vertentes economicistas do pensamento sociológico (inclusive porque a determinação de classe da chamada “classe média” é uma operação impossível para as teorias de classes sociais fundamentadas em alguma racionalidade econômica), e sim porque há um acesso diferencial ao campo onde se dá a interação das opiniões por parte dessa “classe” em relação às classes ditas subalternas (em virtude do analfabetismo estrito ou funcional destas últimas ou, hoje, de seu “analfabetismo” digital e, ainda, do seu exíguo tempo livre para poder se preocupar com assuntos que não digam respeito diretamente à sobrevivência e ao lazer).
Mas, voltando ao conceito de ‘público’, em geral, somos obrigados a reconhecer que tudo ou quase tudo que se diz sobre o público que não leva em conta esse processo emergente pelo qual o público se constitui a partir da complexidade social não é capaz de explicar a natureza do público, nem de compreender a fenomenologia a ele associada.
De modo geral confundimos o público com o estatal, quando, originalmente, trata-se do contrário. A formação do Estado – em todas as suas formas pretéritas, desde o Estado-Palácio-Templo sumeriano, passando pelas Cidades-Estados monárquicas da Antiguidade e pelos Estados feudais, reais e principescos – é o resultado de uma privatização dos assuntos comuns operada pelo autocrata. O surgimento da democracia foi o resultado de uma desprivatização, quando os assuntos privatizados pelo autocrata passaram a ser discutidos por todos (os iguais e os que quisessem discuti-los) na polis. Por isso tinha certa razão (não toda) Aristóteles, ao sugerir que público é o que é visível indistintamente para todos na comunidade (koinonia) política. Democracia e esfera pública são realidades coevas. Apenas ao Estado democrático pode-se atribuir um caráter público, mesmo assim dentro de certos limites bem estritos (ou estreitos).
Por exemplo, vejamos o que ocorre em relação às chamadas políticas públicas. Em geral, as políticas governamentais chamadas de políticas públicas não estão imunes à privatização (que é sempre uma desconstituição do sentido público). Um partido pode, por exemplo, alcançar o comando de um governo e, como organização privada que é, ao assumir o controle administrativo, direcionar uma determinada política segundo seus próprios interesses que não são públicos.
O fato de estar escrito em uma Constituição que uma coisa é pública, não significa que ela o seja realmente. Uma empresa dita pública tem suas contas, sua folha de pessoal e seus planos estratégicos visíveis a todos indistintamente? Nesse sentido ela seria realmente pública segundo um critério decorrente da sugestiva definição aristotélica? Tudo que é declaradamente público pode ser privatizado, quer por interesses privados econômicos, quer por interesses corporativos ou, ainda, por interesses políticos (como, por exemplo, os interesses partidários e clientelistas).
É por isso que não deveríamos nos preocupar tanto em saber se uma política é formal ou nominalmente pública e sim em saber se ela é uma política democratizante. Só pode ser publicizante o que é democratizante. E isso vale também para a chamada ‘opinião pública’.
A rigor uma opinião só pode ser pública se for resultado de um processo de publicização de opiniões privadas. Esse processo de publicização é um processo de democratização, ou seja, de liberdade de proferimento e de interação de opiniões. Em uma ditadura é muito difícil falar em opinião pública a não ser quando a liberdade de proferir opiniões é exercida como um ato disruptivo, contra aquela ordem estabelecida para impedir o exercício dessa liberdade e para desvalorizá-la privatizando a esfera pública das opiniões.
A autocratização é sempre uma privatização. Em Cuba há uma privatização clara das opiniões nas mãos do autocrata: o ditador, por meio de seu partido-Estado e das instituições que lhe servem de correia de transmissão. Em várias democracias em processo de autocratização estão em marcha processos de privatização das opiniões, com o objetivo de impedir que se forme uma opinião pública (e esse é o motivo da perseguição aos meios de comunicação nesses países). Em outros países da América Latina estão em curso processos de desvalorização da opinião pública em nome da opinião privada da maioria da população. Tal totalização das opiniões privadas majoritárias da população que não são proferidas no espaço público por seus atores, só pode ser feita, ex poste inorganicamente, por meio das pesquisas de opinião e das eleições.
Ora, se as opiniões privadas da imensa maioria de uma população – aquelas opiniões que são aferidas, por exemplo, por pesquisas de opinião ou pelas urnas – não indicam nenhum grau significativo de conversão à democracia, então isso coloca um enorme problema para a democracia. A ponto de, em certos países, levar alguns indignados a reclamar, em termos um tanto grosseiros, que o problema é que “quem decide as eleições não é quem lê jornal, mas sim quem limpa a bunda com ele”. Antes de reprovar o chulo dístico, devemos entender a perplexidade que o motivou.
Esse problema tem a ver com as relações entre o processo de formação da vontade política coletiva e o processo de composição da chamada opinião pública. Em uma democracia esses dois processos deveriam andar juntos ou, pelo menos, tender a isso.
Enfim, o que parece ser mesmo fatal para a democracia dos modernos é a confusão entre o processo de formação da vontade política coletiva e alguns mecanismos utilizados para captar tendências de opinião (como as pesquisas de opinião) e para escolher representantes (como as eleições).
Embora guardem relações entre si, são coisas distintas. Se a soma das opiniões privadas pudesse ser a mesma coisa que a opinião pública, não haveria necessidade do processo político. Ninguém deveria proferir opiniões na esfera pública e nem submetê-las ao debate político. Bastaria segredar no ouvido do entrevistador de um instituto de pesquisa a sua opinião. Bastaria, de tempos em tempos, depositar secretamente seu voto na urna.
Mas, como já havia percebido o jovem-Dewey (1888), no texto “Ética da democracia”, a democracia não é só uma mera forma organizacional de governo de Estado submetida à regra da maioria (2). Como observou Axel Honneth (1998), esse conceito instrumental de democracia reduz a ideia de formação democrática da vontade política ao princípio numérico da regra de maioria… Ora, fazer isso significa assumir o fato de a sociedade ser uma massa desorganizada de indivíduos isolados cujos fins são tão incongruentes que a intenção ou opinião adotada pela maioria deve ser descoberta aritmeticamente (3).
O tema é vasto e complexo, exigindo muito mais reflexão, mas temos de voltar agora à crítica da questão que constitui a ementa deste Módulo 17 do nosso programa.
A questão é: se não se formar uma opinião pública, não há possibilidade de democracia. Neste sentido podemos dizer que a opinião pública é necessária para a democracia, que é um modo de regulação que não se esgota na consulta aos indivíduos (por meio das urnas) e que exige a interação de suas opiniões. Do contrário a democracia seria igual à eleição (o que não pode ser: boa parte das 60 ditaduras que remanescem atualmente no mundo também promove eleições, ainda que não-livres, restringindo ou proibindo os meios de comunicação e a liberdade de proferir opiniões contrárias ao regime ou aos seus governantes); ou seja, autocracias podem fazer quantas eleições quiserem que isso não as transforma em democracias porque, entre outras coisas, elas não favorecem (antes inibem) a formação de uma opinião pública.
Democratas são agentes fermentadores da formação de uma opinião pública. Sobre isso, vale a pena ler o artigo Os democratas sempre foram minoria clicando no link http://dagobah.com.br/os-democratas-sempre-foram-minoria/
Notas e referências
(1) Dewey, John (1927). The Public and its Problems. Chicago: Gataway Books, 1946 (existe edição em espanhol: La opinión pública y sus problemas. Madrid: Morata, 2004). Cf. excertos desse texto na minha edição (com Thamy Pogrebinschi): Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey (Porto Alegre: ediPUCRS, 2008). Está disponível neste link.
(2) Cf. Dewey, John (1888). Ethics of Democracy, apud Honneth, Axel (1998). Ver nota 3 (abaixo).
(3) Cf. Honneth, Axel (1998). “Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje” (publicado originalmente em “Political Theory”, v. 26, dezembro 1998), traduzido na coletânea: Souza, Jessé (org.) (2001). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

18 – Como pode haver democracia se, no capitalismo, as grandes corporações estão acima das leis (ou ditam as leis) e controlam a vida das pessoas?
Eis uma pergunta típica do analfabetismo democrático. É como perguntar: como poderia ter havido democracia, na Atenas do século 5 a. C., se os governantes de todos os países existentes na Terra estavam acima das leis (ou ditavam as leis) e controlavam a vida das pessoas?
Não é bem uma pergunta. É a expressão de uma incompreensão – e uma negação – do que é a democracia: um processo de desconstituição de autocracia. Foi justamente por isso que a democracia foi inventada pelos que não desejavam viver sob o jugo de senhores, quer dizer, dos que ditam leis para controlar a vida das pessoas.
Grandes corporações concentram riqueza, conhecimento e poder porque são organizações hierárquicas, quer dizer, mais centralizadas do que distribuídas. Centralizar é concentrar (erigir e privilegiar um centro, deformando o fluxo interativo). Não porque sejam capitalistas.
E porque são corporações, quer dizer, estruturas desenhadas para defender os interesses sociais (ou antissociais, a rigor), econômicos e políticos de uma parte da sociedade em detrimento das demais. No capitalismo ou em qualquer outro modo-de-produção isso acontece.
Há aqui uma confusão entre modo-de-produção (capitalista) e modo-de-regulação-de-conflitos (política), que foi introduzida pelas doutrinas marxistas e pelas doutrinas economicistas que foram urdidas, sobretudo, para se opor ao marxismo.
Organizações centralizadas concentram, sejam ou não capitalistas. A burocracia estatal no chamado modo de produção asiático (na China antiga ou no Peru incaico) também concentrava riqueza, conhecimento e poder. Os sacerdotes de Amon, no Egito faraônico, faziam a mesma coisa, assim como os senhores feudais na Idade Média europeia. E também a chamada Nomenklatura nos países do socialismo real.
O capitalismo, ao contrário do que se diz frequentemente, não é sinônimo de livre-mercado, mas foi o resultado histórico do conúbio entre a grande empresa monárquica e o Estado hobbesiano.
Sobre isso vale a pena ler agora dois pequenos artigos:
Os casos da Odebrecht e da Oi: reflexões sobre a natureza das empresas, clicando no link http://dagobah.com.br/os-casos-da-odebrecht-e-da-oi-reflexoes-sobre-a-natureza-das-empresas/
Grandes empresas: pouco de mercado, muito de poder, disponível no link: http://dagobah.com.br/grandes-empresas-pouco-de-mercado-muito-de-poder/
Se, no capitalismo, as grandes corporações estão acima das leis (ou ditam as leis) e controlam a vida das pessoas – isto é mais uma razão para haver democracia. Não um motivo para dizer que não pode haver democracia enquanto tal situação perdurar. A democracia existe – para os que a desejam – exatamente contra a possibilidade de ereção de regimes onde senhores (sejam grandes capitalistas, nobres feudais, déspotas escravistas, soberanos intermediários de divindades da guerra ou potentados socialistas) ditem as leis e controlem a vida das pessoas.+
Como escreveu Ésquilo (472 a. C.), em Os Persas, referindo-se aos democratas atenienses: eles “não são escravos nem súditos de ninguém”.
Para concluir, leia a pequena nota intitulada Quarta reflexão terrestre sobre a democracia, disponível no link: http://dagobah.com.br/quarta-reflexao-terrestre-sobre-a-democracia/

19 – Como os USA podem ser uma democracia se vivem se metendo nos outros países para controlá-los, fazem guerras em todo lugar para satisfazer seus interesses econômicos e espionam todo mundo?
Com tudo isso, os USA são uma democracia. Essa posição é unânime entre todos os estudiosos da democracia no mundo. Os USA estão sempre entre os 30 primeiros países mais democráticos do mundo, seja qual for o ranking considerado.
O que não significa que os USA não tenham, em política externa, um comportamento que poderia ser chamado de imperial.
Para entender isso é preciso ver que as democracias são definidas no plano interno de cada país, não no plano internacional. Se fôssemos definir a democracia pela política externa da imensa maioria dos países, talvez não existissem mais do que um ou dois regimes plenamente democráticos.
No plano internacional não há democracia e sim realpolitik (que é sempre autocrática), ou seja, o sistema funciona na base do chamado de equilíbrio competitivo. Portanto, os indicadores relativos à política externa de um país não podem ser usados para caracterizar seu regime político. Se houvesse democracia no plano internacional, nenhum país teria a necessidade de manter forças armadas, vigilância de fronteiras, barreiras alfandegárias rígidas, proteção da moeda nacional etc. A União Europeia é um esboço do que seria um mundo democrático no plano internacional, ainda que ela mesma esteja ainda bem longe disso.
A Atenas democrática do século 5 a. C. também não tinha um comportamento democrático do ponto de vista das suas relações com outros países da região. Os primeiros democratas gregos se armavam, entravam em guerra e até promoviam guerras. Mas eles sabiam que, ao fazerem isso, estavam se comportando de modo apolítico (ou seja, não-democrático).
Ainda que países com regimes democráticos não guerreiem entre si, a questão fundamental aqui é o grau de intensidade da “guerra interna”, movida pelo regime contra os de seu próprio povo. Autocracias são estados de guerra, que vigiam e punem os seus habitantes como se fossem potenciais inimigos, transformando cidadãos em súditos de um senhor (seja ele um líder, um partido ou uma casta político-religiosa).
A forma atual de Estado (o Estado-nação), como um fruto da guerra (da paz de Westfália), tem uma estrutura e uma dinâmica desenhadas para a guerra. Na medida em que não são domesticados pelo chamado Estado democrático de direito, os Estados-nações tendem a guerrear os seus habitantes, invadindo a esfera da liberdade privada dos cidadãos (ou seja, transformando cidadãos em súditos).
Por isso os critérios para determinar se um regime é democrático estão sempre relacionados a indicadores internos, como direitos políticos, processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política, liberdades civis etc. Segundo índices formados a partir de indicadores como esses, não resta nenhuma dúvida de que os Estados Unidos são uma democracia, ainda que, no plano internacional, possam ter um comportamento não-democrático (como, aliás, a maioria dos países do globo) exacerbado, porém, pela sua condição de potência mundial (como, em passado recente, foi o Reino Unido) e como polo de uma guerra fria de longa duração (1960-1990) entre o Leste e o Oeste, pela corrida armamentista, pelo complexo científico-industrial-militar e pela centralização crescente do poder no governo central. Tudo isso, por certo, acaba tendo influência sobre a democracia americana e dilapidando parte do estoque de capital social que é necessário para a continuidade do processo de democratização. Por isso, aliás, os USA têm perdido posições no ranking dos países democráticos, tendo sido rebaixados recentemente por todos os institutos da sua condição de país não plenamente democrático.
Israel é outro caso exemplar dessa dicotomia. Internamente, Israel é um país democrático, mas sua situação em uma região em que todos os países vizinhos são autocracias (e quase todos têm como objetivo destruí-lo), é obrigado a se armar e a se manter em estado de guerra permanente. Os efeitos de rebote dessa militarização sobre o regime e sobre a qualidade da convivência social são inevitáveis e é por isso que Israel não ocupa uma boa posição nos rankings internacionais de democracia.

20 – De que adianta defender as velhas instituições do Estado de direito, quando sabemos que (numa sociedade de classes) elas foram planejadas justamente para inviabilizar uma verdadeira democratização da sociedade e assegurar a reprodução da dominação das elites?
A pergunta parte do pressuposto marxista de que vivemos numa sociedade de classes. E de que, numa sociedade de classes, a classe dominante (as elites) constrói instituições, normas, direitos, ideologias, para satisfazer seus interesses (sendo necessário, para tanto, a reprodução da sua dominação política sobre as demais classes).
Essa visão, teoria ou narrativa adota o esquema interpretativo de que a estrutura econômica (na qual se definem as classes) determina uma suposta superestrutura jurídica, política, cultural ou ideológica. Trata-se, portanto, de um economicismo em estado (quase) puro. Toda a superestrutura, numa sociedade de classes, teria por objetivo manter a dominação de classes. Logo, ao defender as instituições do Estado construído pela classe dominante para manter a exploração, a opressão e a dominação da classe subalterna, estaremos, no fundo, defendendo a continuidade da exploração, da opressão e da dominação.
O conceito de Estado democrático de direito é estranho ou irrelevante para esse pensamento, na medida em que a “democracia” e o “direito” das elites são apenas pretextos para (ou modos de) manter sua dominação. A verdadeira democracia, para os que acham que a luta de classes é o motor da história, só poderia ser aquela experimentada quando não há mais dominação, ou seja, quando todos forem iguais, não havendo mais supremacia de uma classe sobre outra. Essa compreensão é uma denegação da ideia de democracia.
Reexaminemos a origem desse pensamento.
Marx acreditava em classes sociais e na luta de classes, acreditava em algo como uma história e, como o neoplatônico João Filoponius (e, depois, como Jean Buridan, da Universidade de Paris), na necessidade de um motor intrínseco para haver continuidade do movimento (é uma hipótese contra a lei da inércia, como ficamos sabendo depois do Le Monde, de Descartes). Este motor estaria na economia. A política e a ideologia (e a cultura), a chamada superestrutura da sociedade, seriam determinadas (“em última instância”, como sublinhou aquele seu camarada de pouca intimidade com o pensamento filosófico e científico, chamado Engels) pelos movimentos ocorridos na infraestrutura (econômica) da sociedade. Por isso que as classes eram definidas a partir da economia, não propriamente da sociologia. Existiriam grupos sociais relativamente estáveis, definidos pela sua posição nos processos de produção, de divisão social do trabalho ou de acumulação ampliada do capital. Estes grupos sociais, com interesses contraditórios ou colidentes, entrariam inevitavelmente em choque e essa luta faria tudo se mover. Hélas! Eis o motor intrínseco da história!
Essa visão produtivista (ou economicista) deveria ter sido refutada in limine pela sociologia, se a sociologia fosse realmente ciência que existisse com estatuto próprio (para o quê, diga-se, em quase nada contribuíram os sociólogos do século passado, cuja maior aspiração, via de regra, era a de serem levados a sério pelos economistas). Do ponto de vista da nova ciência das redes, trata-se, porém, de uma grossa besteira.
Em primeiro lugar, se classe social é um grupo, isto não pode ser um objeto sociológico de primeira ordem. Grupos só existem porque houve clustering, que é uma fenomenologia da interação. Quando se diz que tudo que interage tende a clusterizar, a interação vem antes. A interação de que se trata aqui, porém, não é de indivíduos com uma estrutura abstrata (econômica ou de qualquer outra natureza) e sim de pessoas com pessoas. Mas por que pessoas interagindo com pessoas levariam sempre às mesmas clusterizações, desembocando sempre em dois grandes grupos (na verdade a determinação de classe marxiana só se aplica adequadamente a duas grandes classes: a burguesia e o proletariado)? Não faz sentido.
A ideologia marxista fala de estruturas. Mas estruturas sociais não são nada se não forem redes (e redes sociais são pessoas interagindo, não abstrações, constructs explicativos). A sociologia tradicional (quer dizer, pré nova ciência das redes) encara as redes como metáforas para organizações sociais, ou seja, para grupos de indivíduos. Então as redes são, para ela, maneiras de apresentar ou visualizar e, às vezes, investigar, relações entre esses indivíduos. Alega-se que as redes sociais são modos de representação de estruturas sociais, mas o problema é que não se sabe exatamente o que significa “estrutura” social. Esse conceito só passa a ser inteligível se admitirmos que a “estrutura” disso que chamamos de sociedade é conhecida pelas configurações recorrentes das relações entre as pessoas… Ora, mas isso é, exatamente, o que significa ‘redes sociais’. Por isso pode-se afirmar que estruturas sociais não são nada se não forem redes.
E isso significa, portanto, que a rede é “anterior” ao grupo em termos, digamos, ontológicos. Grupo (agrupamento <= aglomeração <= clustering) já é um fenômeno que ocorre na rede. Assim, ao invés de dizer que redes são formas de representação de agrupamentos, seria mais razoável dizer que agrupamentos são configurações de rede. A ideia de que os atores (ou agentes) sociais determinam o comportamento da sociedade quando se agrupam de uma determinada maneira decorre de uma incompreensão da rede; ou seja, de uma incompreensão de que ‘ator’ (ou ‘agente’) são “produzidos” pela tal estrutura social, quer dizer, pela rede. Indivíduos humanos não são atores (ou agentes) nisi quatenus interagem. Mas quando interagem já são rede. E quando se agrupam (uma forma de interação) não o fazem somente a partir de supostas escolhas individuais, baseadas nas suas características distintivas, posto que já estão sob o influxo da dinâmica de rede. E não se agrupam em função de qualquer estrutura pré-existente à interação, como se houvesse um mecanismo oculto embaixo do pano, uma máquina (no caso, econômica) subterrânea capaz de produzir os efeitos que vemos na superfície da sociedade.
Em outras palavras, seres humanos são seres humano-sociais, não são somente íons vagando em um meio gelatinoso e exibindo suas qualidades intrínsecas e sim também entroncamentos de fluxos, identidades que se formam a partir da interação com outros indivíduos. A pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao mesmo tempo, como série intermitente de relacionamentos, se comporta como ator (ou agente) por estar imersa (conectada e agrupada) em um ambiente interativo. Portanto, são a interação e a clusterização que “produzem” o agente (ou ator). Ninguém pode ser agente de si mesmo: atores sociais se constituem como tais na medida em que interagem em clusters nas redes socais.
A hipótese de que é a guerra (violenta ou não-violenta, pouco importa na medida em que guerra não é violência e sim construção e manutenção de inimigos) entre grupos sociais (chamados de classes) que move a história pressupõe uma filosofia da história. A história passa a ser, nessa filosofia, uma consequência de algo imanente, guardado em seu ventre, que a leva para um lugar ou outro. Mas a história (supondo que se possa falar de “a” história, no sentido de uma história – e não se pode) não vai para lugar nenhum. Nós é que vamos, ou não vamos. E vamos ou não vamos escorrendo por creodos que estão presentes no campo social e que dependem das configurações dos fluxos interativos da convivência social.
Se acredito que existe uma história com um mecanismo embutido que lhe dá sentido, também posso acreditar que o conhecimento desse mecanismo será capaz de me revelar as suas leis. E aí já estabeleço uma distinção geradora de poder, separando os que conhecem essas leis e os que não as conhecem. Os que não conhecem devem ser então conduzidos pelos que conhecem para que possa se cumprir o desiderato histórico. Note-se aqui que não é uma interação de opiniões que conduz a história e sim um saber sobre a história que confere a alguns agentes a capacidade distintiva de orientar os demais. O agente tem a episteme que o coloca num patamar diferente da massa que só possui a doxa. Isto é, rigorosamente falando, um platonismo que, como todo platonismo, só pode levar à autocracia, não à democracia.
Voltemos, porém, à pergunta deste módulo. Ela, na verdade, está afirmando que defender as instituições do Estado de direito (sem as quais não pode haver democracia no âmbito dos países ou Estados-nações) significa impedir a verdadeira democratização (da sociedade), mantendo a dominação das elites (ou da classe dominante). Entretanto, não existe esta “verdadeira democratização”: a democracia é o processo de democratização e esse processo é político. É a política democrática – ou seja, a política que tem como sentido a liberdade (não a igualdade econômica) – que pode democratizar qualquer coisa. A igualdade é desejável, mas a ela não se pode chegar por fora do processo político democrático: do contrário, a alguém, por vias não-democráticas, caberia democratizar a sociedade (tornando-a, supostamente, mais igualitária).
Trata-se, portanto, de uma pergunta autocrática, feita para suscitar respostas autocráticas.

21 – A missão do Estado (quando nas mãos certas) não é educar a sociedade para que os cidadãos possam conviver no espaço público, evitando com isso a prevalência da dominação de grupos privados sobre a maioria do povo? Então de que vale a democracia se os cidadãos não forem educados politicamente (por um Estado colocado a serviço das maiorias) para se conduzir no espaço público?
As duas perguntas contidas nesta questão caracterizam um tipo de pensamento (e de comportamento político) que chamamos de estatismo. É necessário fazer uma introdução antes de passar às perguntas colocadas.
O QUE É O ESTATISMO
O estatismo é um comportamento político que se caracteriza por uma desvalorização da racionalidade da sociedade (julgada, não raro, inexistente ou apenas um epifenômeno) em relação à racionalidade do Estado (para o estatismo a sociedade uma espécie de dominium do Estado, quase no sentido feudal do termo) e por uma desconfiança na capacidade de autorregulação do mercado (e da própria sociedade).
O estatismo é um estadocentrismo. Mas o problema (que os adeptos das doutrinas do liberalismo-econômico não percebem) é que o estatismo não se opõe apenas ao mercadocentrismo (a atribuição ao mercado de um papel regulador não só da economia, mas da sociedade: o que é um transbordamento ou um deslizamento da regulação que funciona em um campo de eventos para outro campo de eventos, regidos por lógicas distintas) e sim à autonomia da sociedade, à sua subsistência por si mesmo, com racionalidade própria (e não derivada ou emprestada do Estado ou do mercado) e é por isso, fundamentalmente, que todo estatismo é antidemocrático: não porque seja contra uma impossível regulação mercantil da sociedade (já que é a economia que tem ser de mercado, não a sociedade) e sim porque é contra uma regulação social (ou societária) da sociedade. Sem uma regulação social da sociedade não poderia ter surgido a democracia, de vez que a polis não era a cidade-Estado e sim a koinonia (a comunidade) política e que a polis – como sacou genialmente Johanna Arendt – não era Atenas (a entidade abstrata, o Estado) e sim os atenienses (a rede concreta de pessoas que geraram a democracia por meio das suas conversações na Ágora, uma praça publicizada, tornada, pela interação dos atenienses livres, um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo autocrata).
Os que acham que só a partir do Estado se pode promover transformações na sociedade são estatistas (no sentido político do termo).
Assim, a questão do estatismo, antes de ser um tema econômico, é matéria da política. O estatismo, em termos estritamente políticos, é um comportamento (político) que não se caracteriza apenas, nem principalmente, pelo fato do Estado se meter na economia. A questão central, para a democracia, é o padrão de relação Estado-sociedade e não o padrão de relação Estado-mercado. Isso, por certo, é também muito importante, mas não pode elidir a questão central.
Estatistas, em termos políticos – convém repetir – pensam que cabe ao Estado promover transformações na sociedade, conduzir a sociedade, educar a sociedade.
Resumindo. O estatismo é definido como um tipo de comportamento político conforme a uma visão estadocêntrica do mundo que não reconhece, para além do Estado, a autonomia – e, em alguns casos, a legitimidade – de outros modos de agenciamento, como o mercado e a sociedade civil, as comunidades glocais e as redes (mais distribuídas do que centralizadas) de pessoas.
ONDE O ESTATISMO SE MANIFESTA
O estatismo não incide apenas no comportamento político que foi identificado como fascismo (nazismo ou nacional-socialismo), mas também naqueles comportamentos de raiz marxista (marxista-leninista ou marxista-gramscista) que se declararam socialistas ou comunistas (do socialismo realmente existente) e, ainda, nos diversos tipos de jihadismo (com ou sem Estado formal instalado e reconhecido), como o jihadismo fundamentalista islâmico ou os jihadismos laicos (de caráter nacionalista e, via de regra, militarista), nas teocracias (como a iraniana) e nas ditaduras em geral e, por último, nas formas híbridas (como o neoexpansionismo da Rússia de Putin que pretende reeditar a guerra fria e a política de blocos – neste caso apenas como pretexto para consolidar uma hegemonia de longa duração de um grupo privado sobre a sociedade russa a partir do Estado controlado pela FSB).
COMO SURGIU O ESTATISMO
O estatismo não nasce de boas ou más intenções das pessoas e sim de uma perturbação no campo social introduzida, antes de qualquer coisa, pelo que chamamos de Estado e que, em determinadas situações gera uma configuração da rede que favorece certos tipos de conversações patriarcais hard. Essas conversações é que constituem a cultura (ou a ideologia) que chamamos de fascismo latu sensu. Mas – como já foi assinalado – ela não predominava na polis ateniense do século 5 (ou na koinonia democrática que se conformou entre 509 e 322 a. E. C.), assim como não predomina hoje, conquanto esteja presente (e estará em alguma medida enquanto houver Estado), em cerca de duas a três dezenas de países que experimentam mais plenamente a democracia reinventada pelos modernos (a democracia representativa), mas continua viva, resiliente que só, em cerca de 60 Estados-nações ditatoriais remanescentes ou florescentes sob os quais vive mais da metade da população do planeta!
POR QUE OS DEMOCRATAS SE OPÕEM AO ESTATISMO
Democratas são contra todos os estatismos (já que todo estatismo é autocrático), inclusive contra os estatismos classificados (pela esquerda) como “de direita”, conservadores, reacionários, contrarrevolucionários, que querem caçar comunistas (como presenciamos no século passado nos regimes dirigidos por Franco, Salazar, Médici e Frota, Pinochet, Videla e Galtieri, Bordaberry e Méndez: sim, todos eles eram anticomunistas estatistas).
Mas democratas também são contra os estatismos ditos “de esquerda” (como presenciamos no século passado com a URSS e seus satélites, Cuba, China, Coreia do Norte e mais duas dezenas de regimes ditatoriais considerados revolucionários e, neste século, com o bolivarianismo de Chávez e Maduro, Evo, Correa e Ortega e com o populismo dos Kirchners, de Lula e Dilma, de Mujica e Vásquez e, talvez, de Funes e Cerén).
Além disso, democratas são contra os estatismos expansionistas ou pró-imperiais, sem coloração ideológica muito definida, que querem reeditar a guerra fria e a política de blocos que declinou em 1991 com a bancarrota da URSS, como o de Putin na Rússia.
Por último, democratas são contra os estatismos baseados em fundamentalismos religiosos, vigentes, sobretudo, nos regimes sob a influência do islamismo: no Afeganistão, na Arábia Saudita, na Argélia, no Azerbaidjão, em Barein, em Brunei, em Burkina Faso, no Cazaquistão, no Chade, em Comoros, na Costa do Marfim, em Djibuti, nos Emirados Árabes Unidos, na Eritreia, na Gâmbia, na Guiné, no Irã, na Jordânia, na Líbia, em Marrocos, na Nigéria, em Omã, na Faixa de Gaza sob o controle do Hamas, no Qatar, na Síria, na Somália, no Sudão, no Turcomenistão, no Uzbequistão e no Yemen. E agora, infelizmente, na Turquia. Sim, todos esses regimes são estatistas, subordinam (ou querem subordinar) seus povos à sharia ministrada a partir do Estado, instalam teocracias (autocracias fortemente centralizadas) ou sonham com um califado (que não passa de um Estado capaz de dominar uma extensa região do mundo ou o mundo todo).
Para resumir, podemos dizer – se isso não fosse óbvio, posto que faz parte da própria definição “genética” de democracia como processo de desconstituição de autocracia – que democratas são contra ditaduras, protoditaduras (regimes em processo de autocratização) e democracias formais parasitadas por governos populistas ou neopopulistas manipuladores de viés estatista (sim, o populismo é um estatismo).
O ESTATISMO É A GUERRA
Como todos os estatismos – inclusive aqueles disfarçados sob o rótulo de nacionalismo ou patriotismo – são guerreiros, posto que todas as formas conhecidas de Estado nasceram da guerra, inclusive a última forma Estado-nação, também ela um fruto da guerra, da Paz de Wesfália, pode-se dizer que os democratas se definem por serem contra a guerra. Mas é preciso entender que a guerra não é o conflito violento e sim construção e manutenção de inimigos. E também que a guerra não visa propriamente destruir os inimigos, senão mantê-los como tais para que seja possível instalar internamente um estado de guerra: condição para estruturar cosmos sociais segundo padrões hierárquicos regidos por modos autocráticos de regulação. Por último, é preciso entender que o objetivo da guerra não é matar pessoas e sim matar a rede social (aquela sem a qual não poderia ter sido inventada a democracia).
Comunistas e anticomunistas, como agentes da guerra fria, são guerreiros (ou militantes, quer dizer, jihadistas). Quando prevalecem, instalam estados de guerra nas sociedades que dominam (sob o pretexto de combater inimigos externos ou internos, tanto faz). Com isso deformam os ambientes sociais a tal ponto que inviabilizam a vida comunitária stricto sensu, aquela que não é regida por uma ordem top down e nem pelo consenso administrado e sim por uma ecologia de diferenças coligadas (somente na medida da qual a democracia pode ser experimentada).
Feita esta introdução, voltemos às duas perguntas que compõem a questão do presente módulo.
A primeira pergunta é a seguinte. A missão do Estado (quando nas mãos certas) não é educar a sociedade para que os cidadãos possam conviver no espaço público, evitando com isso a prevalência da dominação de grupos privados sobre a maioria do povo?
Não, não é. Como vimos anteriormente, o Estado não tem a missão de educar a sociedade. O Estado não é o professor da sociedade e sim apenas uma forma de governança que surgiu em função da guerra e que deve ser domesticada pela sociedade para servi-la. Não passa de ideologia estatista imaginar que o Estado tenha alguma “missão”. Isso fazia parte da narrativa legitimatória do Estado nos regimes autocráticos, narrativa segundo a qual essa “missão” teria sido conferida aos governantes por um poder sobre-humano (os reis acreditavam-se – ou eram assim apresentados – como ungidos por deus ou por um deus). Esta ideia de Estado como materialização do espírito ou da vontade divina (ou de alguma realidade ou entidade transcendente) leva a uma espécie de culto do Estado (muito comum nas autocracias).
Além disso, o Estado não é um ente público, a não ser nas democracias. O espaço público – ou o público em geral – nas autocracias é sempre privatizado (pelo autocrata).
Por último, grupos privados não são apenas, como dá a entender a pergunta, agentes econômicos que privatizam a esfera pública para satisfazer os seus interesses. Corporações e partidos são também grupos privados e igualmente privatizam a esfera pública, não raro capturando o Estado para usá-lo como instrumento de consecução de seus interesses, ainda que refratados como propostas ou projetos políticos.
Em regimes autocráticos, em geral, temos um partido fundido ao Estado, um partido que conquistou hegemonia sobre a sociedade e transformou a sociedade em um ente privado. Não raro, nesses regimes, há um líder supremo, benfeitor, condutor, com alta gravitatem e carisma, que ocupa o centro (ou o topo) do Estado para fazer uma ligação direta com as massas bypassando as mediações institucionais interpostas pela democracia. Em tais circunstâncias, os direitos passam a ser encarados como privilégios (ou concessões de um benfeitor) e os cidadãos são reduzidos a súditos (do Estado e, às vezes, do chefe de Estado). No limite, as pessoas – todas as pessoas – são transformadas em funcionários (stricto ou latu sensu) do Estado.
A segunda pergunta é a seguinte. Então de que vale a democracia se os cidadãos não forem educados politicamente (por um Estado colocado a serviço das maiorias) para se conduzir no espaço público?
Essa segunda pergunta já foi, em grande parte, respondida na introdução acima. Cabe acrescentar que a democracia é, justamente, essa “educação política” dos cidadãos, mas não ministrada pelo “professor Estado” (supostamente a serviço das maiorias). É a livre interação política dos cidadãos que gera o espaço público (commons), ou seja, é esse tipo de fazer político ex parte populis que publiciza os espaços que foram privatizados (ainda que sejam declarados nominalmente públicos). E não a aplicação de um programa governamental ou a execução de uma diretiva qualquer emanada do Estado. A democracia é isto: um deixar-aprender, não um ensinar ou ser ensinado por alguém (muito menos pelo Estado).

22 – Como a democracia pode ser tomada como um valor universal (como querem os democratas) diante de várias culturas que não a valorizam? Não se trataria, mais propriamente, de um valor ocidental? Como esperar que outras culturas (como o islamismo, por exemplo, mas vale também para culturas orientais, como a confucionista-chinesa e para culturas de povos primitivos) possam adotá-la contra todas as suas tradições e costumes?
Em primeiro lugar é preciso ver o que é um valor. Valor é alguma coisa valorizada por seres humanos. A democracia é um valor para os que a valorizam, no caso, para os que desejam viver sem um senhor. Para os que não desejam, para os que têm vocação para rebanho, para servos que valorizam a proteção que lhes possa dispensar um governante paternalista, um déspota bondoso – mesmo que seja um tirano ou ditador, mas que lhes cavalgue com gentileza e se ofereça para resolver seus problemas, a democracia não é um valor.
Os democratas afirmam que a democracia é um valor universal. E o fato de certos povos, imersos na cultura islâmica (ou em outras culturas patriarcais em estado mais puro, ou seja, menos domesticadas e reformadas pelos fluxos interativos da convivência social), não aceitarem a democracia, não significa que a democracia não seja um valor universal (e sim ocidental, como querem os multiculturalistas). A democracia continua sendo um valor universal: o que significa que ela continua sendo valorizada universalmente (isto é, em qualquer época ou lugar) pelos que pensam (e se comportam condizentemente com esse pensamento) que o sentido da política é a liberdade (e não a ordem, como afirmam os autocratas). Este ponto é básico.
Humberto Maturana (1993), no texto intitulado Conversações matrísticas e patriarcais (primeira parte do livro Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano) escreve que,
“como nem todas as formas de patriarcado têm um núcleo cultural matrístico na infância, nem todas elas incluem um fundo de conversações matristicas que permitam um emocionar adulto, no qual as conversações democráticas podem ser vividas como algo que faz sentido como um modo naturalmente legítimo de coexistência. Tal acontece, por exemplo, nas formas patriarcais mais puras, como aquelas dos povos que vivem sob as diferentes ramificações da religião muçulmana. As pessoas que cresceram originalmente no seio das conversações patriarcais muçulmanas devem primeiro modificar algumas dimensões de seu espaço convencional e orientá-las de modo matrístico, para que as conversações democráticas façam sentido para elas como geradoras de um espaço de coexistência legítimo e desejável”.
Convém entender o que Maturana chama de matrístico:
“O termo “matrístico” é usado… com o propósito de conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário e do hierárquico. A palavra “matrístico”, portanto, é o contrário de “matriarcal”, que significa o mesmo que o termo “patriarcal”, numa cultura na qual as mulheres têm o papel dominante. Em outras palavras – e como se verá ao longo deste capítulo -, a expressão “matrística” é aqui usada intencionalmente, para designar uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não-hierárquica. Tal ocorre precisamente porque a figura feminina representa a consciência não-hierárquica do mundo natural a que nós, seres humanos, pertencemos, numa relação de participação e confiança, e não de controle e autoridade, e na qual a vida cotidiana é vivida numa coerência não-hierárquica com todos os seres vivos, mesmo na relação predador-presa”.
No TEXTO 02 já enviamos a íntegra do capítulo em que Maturana trata do assunto. Se você ainda não leu, clique aqui para baixar e releia: SEM DOUTRINA TEXTO 02
Para responder a última pergunta da questão deste módulo – como esperar que outras culturas (como o islamismo, por exemplo, mas vale também para culturas orientais, como a confucionista-chinesa e para culturas de povos primitivos) possam adotá-la contra todas as suas tradições e costumes? – deve-se dar uma resposta semelhante à de Maturana. As pessoas que cresceram no seio de culturas caracterizadas por conversações patriarcais, se quiseram que a democracia faça sentido para elas, devem primeiro modificar seus modos de convivência social. A democracia é liberdade de opinião e é difícil entender isso por quem não tem nem sequer o conceito de opinião. As pessoas, nessas culturas, não acham que podem opinar sobre assuntos que estão a cargo de hierarcas, designados pelo próprio deus ou pelas autoridades instituídas pela divindade (no caso do Islã, pelo Corão, pela Sharia, pelos sacerdotes e professores autorizados a interpretá-los). A opinião da pessoa comum não é matéria prima da política quando a política está fundida à religião ou a outra ideologia ou doutrina qualquer considerada a única válida e verdadeira. De que valeria, por exemplo, a opinião de uma pessoa qualquer do povo diante do saber de um aiatolá?
A democracia só pode se exercer (e fazer sentido) se as opiniões forem consideradas e aferidas pelo processo político, se puderem ser livremente proferidas e se forem igualmente valorizadas em princípio (tanto a opinião do sábio quanto a do ignorante e tanto a opinião do clérigo como a do leigo). Em culturas fortemente patriarcais, isso não acontece. Logo, para as pessoas imersas nessas culturas, que não romperam as circularidades próprias das conversações que caracterizam (e, mais do que isso, que são) essas culturas, a democracia não pode se exercer e nem mesmo fazer sentido.
Porém nada disso significa – como vimos acima – que a democracia não seja um valor universal. Os que romperam com esses laços de retroalimentação de reforço da cultura patriarcal, mesmo que tenham nascido e vivam em localidades onde essa cultura é predominante, podem assumir a democracia, em geral na forma de resistência às ideias e práticas dominantes. Para estes, a democracia continuará a ser um valor universal.
Mas isso só acontecerá se houver, em algum grau, miscigenação de culturas. A perspectiva multiculturalista, que quer preservar qualquer cultura como se fosse patrimônio intocável da humanidade, colocando-se contra a miscigenação cultural, é um obstáculo para que tal processo de conversão à democracia possa ocorrer.
Ademais há a questão dos direitos humanos, intimamente relacionada à democracia (por razões que não serão tratadas aqui). Os democratas, em nome do respeito a outras culturas, não podem concordar com a violação de direitos humanos; por exemplo, não podem aceitar o apedrejamento de mulheres adúlteras ou a extirpação do clitóris de crianças e jovens, nem transigir com outras práticas desumanas de dominação patriarcal (como o assassinato ou o tratamento cruel dispensado a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros).
Amartya Sen (1999), foi o principal divulgador da ideia de democracia como valor universal. Seu texto, que já é um clássico, intitulado A democracia como um valor universal, pode ser baixado no link abaixo:

23 – Se não há uma ordem moral perene, ou seja, se as pessoas não têm um sentido forte de certo e errado, com convicções sobre a justiça e a honra, ficando moralmente à deriva e movidas pela satisfação de seus apetites, pode haver uma boa sociedade? E se existe essa ordem moral, quais os indícios de que ela aponta para a democracia como um regime mais adequado à sua prevalência?
Esta é uma questão típica do conservadorismo político. Os conservadores acreditam que existe uma ordem moral.
Trata-se, obviamente, de uma crença – uma ideologia stricto sensu: o conservador acredita em alguma coisa, não se comporta – ou interage – desta ou daquela maneira. Ele acredita, quer dizer, adota um filtro para transformar caos em ordem.
É significativo que conservadores coloquem sempre, em primeiro lugar, justamente a ordem (entre Hobbes e Spinoza, eles ficam, sem qualquer dúvida, com o primeiro – o que, de pronto, já aponta para fundamentos autocráticos, não democráticos, do seu pensamento).
Uma ordem moral? Como se teria estabelecido – ou quem teria estabelecido – essa ordem moral? Ela seria imanente ao ser humano, à natureza ou à história? Ou seria transcendente (como uma potência super-humana e extra-social – um deus, por exemplo – com capacidade de intervir na história ou de dar o primeiro piparote)?
Segundo o pensamento político conservador, essa ordem moral seria duradoura, posto que inerente à natureza humana (?) que, coerentemente, seria constante. Por isso que as “verdades morais” seriam permanentes. Seria uma ordem interna da alma, diferente da ordem exterior da comunidade (esta separação – que nem todos os pensadores conservadores deixam explícita – é um ponto importante, que mereceria ser abordado em maior profundidade).
Todo pensamento conservador está baseado nesta ideia de ordem. É evidente que, a não ser que se admita, como premissa evidente por si mesma, que haja um ordenador extra-humano do mundo humano, um deus criador do ser humano, esta ordem não passa de uma ordem estabelecida pela visão (conservadora) e não uma ordem pré-existente à visão, capaz de autorizá-la e validá-la. Ou seja, os conservadores não obtiveram essa visão da ordem a partir de alguma descoberta sobre a natureza humana (seja lá o que for). Simplesmente proclamaram que tal ordem existe.
Não vamos entrar agora do debate infindável sobre a natureza da natureza humana (uma controvérsia que não se resolve sem se chegar a um acordo sobre o que é humano: o ser biológico, o indivíduo da espécie Homo Sapiens, ou do gênero Homo ou o complexo biológico-cultural, o ente social que chamamos de pessoa)? Por enquanto, fiquemos com a distinção entre dois tipos de ordem (sendo que ordem, para alguns conservadores, significa harmonia – e aqui há outro problema, que examinaremos logo adiante): a ordem interna da alma e a ordem exterior da comunidade.
Alguns conservadores, como Russel Kirk (1), para justificar tal distinção, alegam que “Platão ensinou esta doutrina” (olha aí a ideologia novamente). Está correto. Platão ensinou mesmo esta doutrina, de uma ordem anterior (ontologicamente) ao mundo, uma ideia, uma forma perfeita, pré-existente, ex ante à interação, que foi se corrompendo com a interação. Mas esse pensamento leva, necessariamente, à autocracia, não à democracia. Por isso que Platão era um adversário da democracia. O mundo real (fenomênico), o conjunto de eventos que ocorrem sempre em razão de algum tipo de interação, não é bem o verdadeiro mundo, como modelo ou arquétipo, existente antes da interação, ou seja, o mundo das formas ideais universais que existem (ou existiam) antes da corrupção do tempo… Por isso, os que têm acesso a esse mundo das formas por meio do conhecimento (episteme) têm o direito – e o dever, supõe-se – de dirigir os que não o têm e que se debatem no particular e no precário mundo das opiniões (doxa). Este é o fundamento do governo dos sábios de Platão, como se sabe, um regime político (a rigor, apolítico) autocrático, baseado na separação entre sábios e ignorantes (em que os segundos estão condenados a ser dirigidos pelos primeiros).
A ideia de ordem como harmonia, entretanto, traz outro problema. A harmonia é um ideal extra-político. Quem precisa de harmonia é a autocracia (para que cada coisa fique no seu melhor lugar, como as partes de um quadro de Velázquez – dizia o fundador da Opus Dei, Josemaría Escrivá de Balaguer – e não saia saliente por aí mudando de posição). A democracia nunca pretendeu materializar um ideal de harmonia capaz de se expressar socialmente na forma política do consenso (derivado do conhecimento certo sobre qualquer ordem). Porque a democracia não tem como finalidade consertar a sociedade e pacificar os homens que dissentem por terem interpretações divergentes do bem a ser alcançado a partir de uma fórmula harmonizante dos conflitos. A democracia é, justamente, uma convivência com o conflito (portanto, desarmônica) e uma forma não guerreira de regulá-lo: mas mantendo o dissenso, não suprimindo-o.
Para continuar tomando como exemplo um autor conservador, como Kirk. A boa sociedade, segundo suas próprias palavras, é aquela em que “os homens e as mulheres são governados pela opinião em uma ordem moral perene, por um sentido forte de certo e errado... [não] uma sociedade em que os homens e as mulheres estão moralmente à deriva, ignorantes das normas, e movidos primariamente pela satisfação dos seus apetites…” (esta seria, para ele, a má sociedade).
Esse sentido forte de certo e errado se expressaria, por exemplo, por “convicções pessoais sobre a justiça e a honra”. Mas trata-se realmente de uma opinião? Ou de uma crença na ordem moral derivada de um conhecimento (da crença)? Se Kirk fala das pessoas “ignorantes das normas”, parece que se trata mesmo de conhecimento (das normas), ou seja, de uma opinião que só pode ser válida quando expressa um conhecimento verdadeiro, uma orto-doxa (que é a negação da doxa, que é sempre qualquer doxa).
Mas se há uma ordem moral duradoura, inerente à natureza humana – já que é a ordem que “está feita para o homem e o homem é feito para ela” – como os homens podem deixar de cumpri-la entregando-se aos seus apetites e ignorando-a? E se os homens podem ignorá-la, a despeito de essa ordem moral estar inscrita na sua natureza, trata-se então de fazê-los conhecê-la? Tudo indica que sim. Ou seja, existe uma ordem correta, mas para adotá-la como critério axiológico-normativo, aos homens não basta se comportarem de acordo com a sua natureza: eles precisam conhecê-la discricionariamente, não por comercium spiritum e sim pela apreensão de um nexus rerum – o que significa conhecer um discurso sobre ela. Ora, isso significa que há um conteúdo a ser apreendido. Como fez Platão, é preciso ensinar-lhes (aos homens) uma… doutrina.
A ideologia da ordem é uma doutrina que temos que ensinar aos homens para que sua sociedade seja boa. Este princípio revela um cognitivismo, não um interativismo. É um apreender alguma coisa e não um aprender na vida comum (pela experiência de interagir no fluxo da convivência social, mudando com o mundo, como dizia Maturana). Ou seja, é uma ideologia de professores que, como toda ideologia de professores, é uma kabbalah que substitui a árvore (ou ordem) da vida pela árvore (ou ordem) do conhecimento sobre a vida (que alguém – eis o ponto – ordenou, posto que ela não pode ser aprendida espontaneamente por todos, mas deve ser ensinada ou apreendida por força de um ensinamento). Ora, isso não é uma ordem emergente da interação, bottom up e sim uma ordem pré-existente à interação que deve ser estabelecida top down pelos que conhecem as normas capazes de levar a sociedade a ser uma sociedade boa.
Para a democracia, entretanto, não é necessário supor a existência ou a não existência de qualquer ordem moral. A democracia não trata desse assunto. Se há ou não há, é irrelevante para os democratas – desde que não se derive, da existência ou da não-existência dessa ordem, qualquer prescrição sobre como deverá ser a sociedade para ser uma boa sociedade.
A boa sociedade, para os democratas, é aquela que não é dirigida por um senhor, ainda quando esse senhor seja o próprio autor dessa ordem moral ou seu legítimo representante. A boa sociedade democrática não é dominada nem mesmo por um deus, muito menos pelo seu profeta (na verdade tratar-se-ia aqui de um falso-profeta, na concepção dos profetas hebreus do Norte da atual Palestina do primeiro milênio AEC; ou seja, seria um sacerdote – ou uma casta sacerdotal).
Passemos à segunda parte da pergunta contida na questão do presente módulo: se existe essa ordem moral, quais os indícios de que ela aponta para a democracia como um regime mais adequado à sua prevalência?
Já vimos que não precisamos entrar na questão de se existe ou não existe essa ordem moral. Mas mesmo que existisse tal ordem moral, não poderia haver nenhum indício de que ela apontasse para a democracia. A democracia não é o resultado da prevalência de uma ordem. Não pressupõe a imposição de uma ordem (top down) e sim a possibilidade da emergência de muitas ordens (bottom up). Ou seja, a democracia é uma aposta no processo de auto-organização. Não que qualquer ordem emergente seja melhor do que outras (ou todas as outras já experimentadas ou ideadas). A aposta democrática não é esta. A aposta democrática é que as ordens que emergem da interação propriamente política garantem mais-liberdade aos seres humanos do que as ordens pré-existentes, impostas por hierarcas e autocratas, ainda quando estes fossem os mais sábios e bons dentre todos os humanos que já habitaram ou habitam o planeta.
(1) Cf. KIRK, Russell (1993). Dez princípios conservadores. Adaptado da Política da Prudência (ISI Livro, 1993). Copyright © 1993 por Russell Kirk. Usado com permissão do espólio de Russell Kirk. Traduzido para o português e publicado na Internet por Ivan C. P. da Cruz com autorização de Annette Kirk. Texto original em inglês em (Original text in English at): The Russell Kirk Center of Cultural Renewal
É interessante ler agora o opúsculo de FRANCO, Augusto (2017). Conservadorismo, liberalismo-econômico e democracia. São Paulo: Dagobah, 2018. Ele pode ser baixado em PDF aqui: FRANCO, Augusto (2017) Conservadorismo, liberalismo-econômico e democracia
Também pode ser útil ler o artigo Um exemplo de como são conservadores os nossos liberais, no link: http://dagobah.com.br/um-exemplo-de-como-sao-conservadores-os-nossos-liberais/
E ainda o artigo Todas as velhas doutrinas políticas são conservadoras, no link: http://dagobah.com.br/todas-as-velhas-doutrinas-politicas-sao-conservadoras/
E, por último, o artigo Pensamento conservador e democracia, no link: http://dagobah.com.br/pensamento-conservador-e-democracia/

24 – Todas as tentativas de construir sociedades mais igualitárias (como almeja a democracia) não acabaram ensejando a ereção de regimes totalitários?
Bem, em primeiro lugar a democracia não almeja construir sociedades mais igualitárias. A não ser do ponto de vista político, quer dizer, do ponto de vista da igualdade de condições de interação política (e, mesmo assim, no que depende da liberdade de opinião, quer dizer, da liberdade de qualquer um de proferir opiniões no espaço público, da valorização em princípio de todas as opiniões e da não desvalorização da opinião em relação a qualquer saber: técnico, científico ou filosófico).
A democracia jamais pretendeu construir sociedades igualitárias do ponto de vista socioeconômico. A democracia tem a ver propriamente com liberdade, não com igualdade (a não ser a igualdade política). A democracia não é a utopia de uma sociedade sem desigualdade (socioeconômica ou cultural) e sim a topia de uma sociedade sem desliberdade.
Ao contrário das utopias autoritárias, a democracia jamais coloca a igualdade como condição para a liberdade. A liberdade da democracia é sempre para hoje, nunca para algum futuro imaginado, um reino da liberdade que, para ser alcançado algum dia, exige o sacrifício da liberdade que se possa ter hoje.
Vale a pena aqui dar uma parada para ler o pequeno artigo O conceito de desliberdade, disponível no link http://dagobah.com.br/o-conceito-de-desliberdade/
No entanto, todas as tentativas de construir sociedades mais igualitárias, inspiradas por utopias que prometiam um reino da liberdade no futuro, acabaram levando, como diz a pergunta, a regimes autocráticos (em muitos casos, totalitários). Mas tais tentativas não foram democráticas. Foram aplicações de doutrinas sobre o que seria, idealmente, a boa sociedade.
A felicidade como ideal supremo; a igualdade como ideal supremo (e como pré-condição para a liberdade) ou a ideia de que não pode haver (verdadeira) liberdade sem (ou até que se alcance a perfeita) igualdade; a abundância como ideal supremo (que, para ser alcançado, exige a politização da economia como administração da escassez, em geral artificialmente introduzida); enfim, a utopia (qualquer utopia) como modelo a ser alcançado no futuro (e que, para ser alcançada, exige algum tipo de sacrifício ou de restrição às liberdades no presente) – são ideias-implante ou rotinas do programa básico da autocracia.+
Agora chegou a hora de ler (ou reler) – tentando identificar os padrões autocráticos presentes no texto – o pequeno livro de George Orwell (1945) A revolução dos bichos. Ele pode ser lido em uma única página no link: http://dagobah.com.br/a-revolucao-dos-bichos-de-orwell/

25 – Como se pode provar que a resultante do entrechoque de múltiplas opiniões que refratam interesses distintos e, em muitos casos, contraditórios, existentes em uma sociedade onde se exercita um processo democrático de decisão, seja melhor, para o presente e para o futuro daquela sociedade, do que a decisão tomada por apenas algumas pessoas portadoras de conhecimentos acumulados sobre a matéria que está sendo objeto da decisão?
Boa pergunta. Que enseja uma resposta, até certo ponto, desconcertante: não se pode provar nada disso.
Como assim? Não se pode?
Sim, não se pode.
E por que então devemos aderir à democracia?
Quem disse que devemos? Só os democratas dizemos isto. Só devem aderir à democracia os que não quiserem viver sob o jugo de um senhor. Lembram-se do que disse Ésquilo (472 AEC), em Os Persas, pela boca do Corifeu, tentando explicar para Atossa, viúva de Dario, mãe de Xerxes, quem eram os atenienses?
“Atossa: Quem é seu senhor?
Corifeu: Não são escravos, nem súditos de ninguém”.
Não se pode provar que a democracia seja o melhor regime político do mundo (ela só o é para os democratas). Não se pode provar, igualmente, que seja o regime mais eficiente para alcançar qualquer objetivo (a não ser o objetivo dos seres humanos conviverem autorregulando seus conflitos de modo não-guerreiro, ou seja, viverem coletivamente como seres políticos).
Por outro lado…
Observa-se que países mais democráticos estão também nos primeiros lugares nos rankings dos países mais desenvolvidos. Mas isso não quer dizer, por exemplo, que a democracia sirva para alcançar maior crescimento econômico. Neste sentido, a democracia não é necessária em termos instrumentais, embora seja desejável (pelos democratas).
Observa-se, entretanto, que países democráticos (não todos, mas em média) são países menos assolados por conflitos internos violentos (tipo guerra civil). Mas isso não é uma regra geral.
O que se pode afirmar com certeza é que países democráticos não costumam guerrear entre si. Quem duvidar disso deve procurar um contraexemplo para desmentir tal constatação.
Então, se a paz for um valor ou um objetivo, a democracia parece ser mais recomendável do que qualquer outro tipo de regime.
Também se pode afirmar com certeza que em países democráticos há mais liberdade.
Se a liberdade for um valor ou um objetivo, a democracia é melhor do que todos os outros regimes que foram experimentados nos últimos cinco a seis milênios, quer dizer, neste longo período chamado de civilização (que é a civilização patriarcal).
Mas não se pode dizer que a democracia seja melhor (melhor para quê?) do que todos os modos de regulação de conflitos adotados pelos diversos padrões societários dos Homo Sapiens. Por exemplo, não se pode dizer que um Estado regido por modos democráticos seja melhor do que uma tribo paleolítica ou do que uma aldeia agrícola neolítica (onde não há Estado e, a rigor, nem mesmo política). Para essas formas pré-patriarcais de organização societária, a democracia, aliás, não faz o menor sentido. Ela é um processo de desconstituição de autocracia e, portanto, onde não há autocracia não pode haver democracia.
É preciso ter sempre em mente que a democracia, historicamente, foi uma brecha aberta na civilização dos predadores e dos senhores. É recomendável aqui reler agora o TEXTO 02 – A democracia, de Humberto Maturana (1993), que já foi enviado e está disponível neste link: SEM DOUTRINA TEXTO 02
Dito isto, enfrentemos agora a questão colocada neste Módulo 25. A questão proposta, em outras palavras, é a seguinte: um processo democrático de decisão será sempre mais bem-sucedido do que um processo não-democrático, sobretudo quando a decisão depende de conhecimentos acumulados sobre o tema em tela? Ou seja, especialistas na matéria que está sendo tratada não poderiam tomar decisões melhores, mais embasadas tecnicamente ou cientificamente, do que aquelas que resultam da combinação de miríades de opiniões desinformadas, leigas, ignorantes das causas e consequências dos problemas em discussão?
A resposta é novamente surpreendente. Sim. Dependendo do tema em questão, o conhecimento de especialistas pode levar a soluções melhores para um problema do que a opinião do vulgo. Uma junta médica, por exemplo, poderá dar um diagnóstico (e receitar um tratamento) melhor (para o paciente, hehe) do que uma votação da comunidade a que pertence um indivíduo portador de uma enfermidade. É melhor seguir cegamente as decisões de um piloto experimentado de uma embarcação em meio a uma tempestade do que propor uma discussão democrática de todos os passageiros para saber o que fazer.
Esses argumentos já haviam sido empregados por Platão, pela boca de Sócrates, para desqualificar a democracia, mas o problema é que eles são desonestos (como veremos adiante). A democracia jamais quis desqualificar o saber técnico ou científico ou substituí-lo pelo confronto de opiniões desinformadas. Quando o tema é técnico ou científico, convoquem-se os especialistas. A democracia não cuida disso e sim dos assuntos propriamente políticos, que têm a ver com decisões sobre os temas comuns, que digam respeito à auto-condução da comunidade.
Examinemos a questão com mais profundidade.
Platão, em “O Político”, usa um argumento desonesto para desqualificar a democracia ateniense, acusando-a falsamente de submeter à decisão coletiva, por meio do debate político, assuntos de natureza técnica (como a medicina ou a pilotagem naval, mencionadas acima). O argumento é desonesto porque ele sabia que os democratas gregos não procediam assim. Vale a pena ler a opinião de Cornelius Castoriadis (1986), que analisou o texto de “O Político” em profundidade, sobre essa tentativa platônica de desqualificar a democracia como regime político baseado na opinião e não no saber científico-técnico:
“A maneira pela qual ele (Platão) descreve o regime democrático ateniense… é uma caricatura grotesca absolutamente inaceitável. Ele o apresenta como se fosse um regime que decide arbitrariamente sobre o que é bom ou mau na medicina, que designa por sorteio as pessoas que devem realizar as prescrições e depois lhes pede prestação de contas… Argumentação perfeitamente inadmissível e desonesta precisamente porque, em Atenas, aquilo sobre o que a cidade decide não são os problemas, as questões, os temas sobre os quais um saber técnico existe. A cidade decide sobre as leis em geral, ou decide sobre os atos do governo, mas não há leis referentes ao governo como atividade. Todo o paralelo feito por Platão com o governo de um navio ou com a atividade de um médico visa apresentar o dêmos ateniense decidindo em sua ignorância o que o capitão de um navio deve fazer impondo-lhe que siga as prescrições do dêmos a esse respeito. Ora, isso jamais ocorreu em Atenas, não há prescrições referentes ao governo como atividade. A atividade do dêmos se refere a pontos que não são técnicos. E o próprio Platão sabe disso muito bem por ter discutido isso no “Protágoras”, entre outros…”.
Platão não teve qualquer pejo de partir para a mais deslavada difamação da democracia, com base em uma falsa alegação. Alguma coisa muito importante devia estar em jogo para leva-lo a cometer essa ignomínia, reprovável segundo seus próprios valores. Talvez ele tenha sido o primeiro a perceber o perigo contido em um regime baseado na liberdade e na valorização da opinião, corroborando as hipóteses de que as raízes do nosso pensamento foram moldadas pela autocracia e de que, no campo das ideias, também se verifica a luta constante das vertentes autocráticas para fechar a brecha aberta com o advento da democracia.
Mas o processo de formação da vontade política coletiva (que constitui o coreda política), quando democrático, leva em conta a interação de uma variedade de opiniões (tanto informadas quanto desinformadas pelo saber filosófico, científico ou técnico). A maravilha da democracia, aliás, reside nisso precisamente: em possibilitar a regulação sistêmica de uma complexidade de opiniões, de tal sorte que não se possa dizer, no final, de quem partiu a ideia resultante do processo. Ou seja, a política (a política propriamente dita, ex parte populis), tem sempre o desfecho aberto, é sempre imprevisível, não porque “as elites” dirigentes mudem sempre de opinião e sim porque nunca se pode saber de antemão para qual direção apontará a resultante de miríades de inputs provenientes dos que não integram “as elites”. Vê-se que há aqui, e não por acaso, uma clara semelhança com os processos recentemente estudados de inteligência coletiva.
A questão de fundo colocada no parágrafo anterior é a seguinte: é impossível gerar ordem espontaneamente a partir da interação? Sempre é preciso alguém conduzir os outros a partir de capacidades exteriores àquelas que emergem da interação com os outros? Entre o sim e o não se separam os autocratas dos democratas. O processo espontâneo de surgimento de lideranças sugere a resposta não. Diante de uma questão posta para todos, sempre surge alguém – não necessariamente a mesma pessoa em todas as ocasiões – que consegue captar a confiança coletiva e propõe uma solução que todos acabam seguindo. Muito mais do que isso, todavia. Existem jogos, que podem ser aplicados cientificamente (com todo o rigor exigido pelo método experimental), que mostram que, em certas circunstâncias, não surge nem mesmo tal pessoa que lidera. O coletivo como um todo consegue se coordenar, por exemplo, para dirigir uma aeronave por meio de um programa computadorizado de simulação de voo, a partir de comandos remotos sobre as direções básicas – alto, baixo, esquerda, direita – que cada um maneja individualmente. Isso é o que chamamos de coordenação emergente. É ordem emergindo espontaneamente.
Essa é a aposta da democracia; uma aposta mesmo, pois não se pode provar que a resultante do entrechoque de múltiplas opiniões que refratam interesses distintos e, em muitos casos, contrários, existentes em uma sociedade onde se exercita um processo democrático de decisão, seja melhor, para o presente e para o futuro daquela sociedade, do que a decisão tomada por apenas algumas pessoas portadoras de conhecimentos acumulados sobre a matéria que está sendo objeto da decisão. A aposta de que os seres humanos podem se conduzir a partir das suas livres opiniões – que define a democracia política como liberdade de opinião contra a autocracia iluminada como ordem dos sábios, como toda autocracia o é em alguma medida – é uma aposta de que os seres humanos deixados a si mesmos saberão formar coletivos convivenciais estáveis, não tendo uns que assumir a tutela de outros, em nome de seu suposto saber e em virtude de seu efetivo poder, para regular heteronomamente os conflitos; ou seja, é uma aposta contra a inexorabilidade da (autocrática) solução hobbesiana.
Desvalorizar a liberdade de opinião, substituindo a imprevisibilidade da política pelo planejamento qualificado e informado dos portadores do saber, conduz à autocracia. Pois onde não existe lugar para o acaso também não há lugar para a liberdade. Se existe sempre um plano diretor regendo tudo, a liberdade não passa de uma liberdade de concordar – o que nega a ideia de liberdade.+
Recomenda-se a leitura atenta do artigo Entendendo a essência da democracia, disponível no link: http://dagobah.com.br/entendendo-a-essencia-da-democracia/
Quem puder, deve comprar e ler o livro de Castoriadis, Cornelius (1986/1999). Sobre ‘O Político’ de Platão. São Paulo: Loyola, 2004. Não foi encontrada versão digital disponível para download. Mas pode-se ler O Político de Platão: Platão O Político

26 – Como a democracia pode funcionar direito quando faltam aos cidadãos os conhecimentos necessários para interpretar a realidade social e escolher conscientemente os melhores caminhos?
Esta é uma pergunta muito comum que fazem as pessoas que não captaram o genos da democracia. A matéria-prima da democracia não é o conhecimento (científico ou filosófico), nem mesmo a técnica (no sentido do know how, o saber-fazer) e sim a opinião.
A democracia está fundada na ideia de que todas as pessoas podem ter uma opinião, informada ou desinformada, e que mesmo as opiniões desinformadas, quando interagem com outras opiniões menos ou mais informadas, se contradizem, se corroboram, se combinam e recombinam e se polinizam mutuamente, de sorte que, no processo geral, tanto a opinião do sábio (de qualquer coisa) quando a do ignorante (em alguma coisa) se modificam. Assim, as opiniões resultantes desse processo nunca são as opiniões originais, dos que sabem (qualquer coisa; ou tudo – o que é impossível) ou dos que não sabem (alguma coisa; ou nada – o que também é impossível).
A democracia não desvaloriza a opinião em relação ao saber. Porque qualquer opinião sempre refrata um interesse ou um desejo que devem estar presentes, não podem ser desqualificados, calados ou suprimidos, impedidos de se expressar, antes da interação.
O processo político que enseja a interação das opiniões não admite a existência de um tribunal epistemológico, que julga quais opiniões são válidas e quais não são de acordo com algum saber (ou de um saber sobre o saber). E também não admite uma alfândega ideológica que diga quais opiniões podem entrar no espaço do debate público e quais não podem de acordo com alguma visão do mundo – ou seja, da natureza, da história, do Estado, da economia, da sociedade ou do ser humano (ou mesmo de um ser supra-humano).
Do contrário, somente os possuidores de um saber, de um saber sobre o saber ou de um saber-fazer, poderiam interagir politicamente, o que condenaria os ignorantes a serem dirigidos pelos sábios.
Isso é o fundamento da meritocracia, não da democracia. A democracia é um modo de regulação de conflitos. Se quem sabe mais tem poderes regulatórios aumentativos em relação a quem sabe menos, teremos, no limite, o governo dos sábios de Platão – um adepto da autocracia, não da democracia.
Não que o mérito não deva ser valorizado. O mérito deve ser reconhecido e honrado. Mas uma coisa é o mérito e outra coisa, muito diferente, é a ereção de um sistema de poder (uma ‘cracia’, de kratos: examine-se a origem da palavra ‘mérito-cracia’) baseado no mérito.
O neologismo ‘meritocracia’, provavelmente criado, nos anos 1950, pelo sociólogo britânico Michael Young, é formado pela conjunção do latim ‘mereo’ (ser digno, merecer) com o grego antigo κράτος, transl. krátos (força, poder) estabelecendo uma ligação direta entre mérito e poder. Mas mesmo antes da invenção da palavra já havia a concepção de que quem sabe mais pode (ou deve) mandar mais. Essa ideia está amplamente espalhada, inclusive nos meios populares com baixa escolaridade, dos considerados mais ignorantes.
Um exemplo eloquente disso é o fato de tantos médicos serem eleitos prefeitos em cidades do interior: as pessoas votam nos médicos a partir do seguinte raciocínio: se ele sabe medicina e, portanto, é uma pessoa estudada, então deverá saber como conduzir melhor os negócios públicos. O que não resta verdadeiro. O conhecimento de uma ciência – nem mesmo da chamada “ciência política” – não confere a ninguém melhores capacidades de cumprir o papel de agente político. Se fosse assim teríamos de ser governados por cientistas políticos (e não precisaria haver debate público e processo eleitoral: bastaria montar uma banca examinadora, promover um concurso ou fazer uma prova de títulos).
Outro problema da pergunta é que ela faz uma confusão entre conhecimento e consciência. Quem possui mais conhecimento teria melhores condições, do que quem tem menos conhecimento, de “escolher conscientemente os melhores caminhos”. Não. A consciência (seja lá o que for) não é formada pelo acúmulo de conhecimentos.
A consciência está mais para uma visão sobre uma unidade na totalidade (é a consciência da totalidade da unidade) do que para conhecimento de conteúdos, ou mesmo, em termos mais sofisticados, como localização da reflexividade no sujeito que sabe que sabe. Como cantou o poeta Vinicius de Moraes (1959), no poema O operário em construção:
“De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.”
O operário tomou consciência de um conjunto de relações entre sujeito e objeto, não adquiriu um conhecimento específico (científico ou técnico) sobre a natureza do sujeito ou dos objetos em questão (para tanto, não precisou conhecer nenhuma teoria da percepção, nem conhecer algum processo de fabricação dos instrumentos que estavam no seu campo de visão).+
Recomenda-se aqui a leitura de três pequenos artigos:

27 – Se a democracia fosse natural ou adequada à natureza humana, por que as grandes tradições espirituais da humanidade (incluindo todas as religiões) não se organizam de modo democrático? E por que não há democracia no céu (em quaisquer dos “céus” – ou equivalentes – anunciados por essas tradições)?
Pois é. A democracia não é mesmo natural ou adequada à natureza humana (seja lá o que for). A democracia foi uma invenção de pessoas que não desejavam mais viver sob o jugo de um senhor. Foi o resultado de conversações num espaço que se tornou público (a praça do mercado de Atenas, na passagem do século 6 para o século 5).
As religiões propriamente ditas – ou seja, as religiões que surgiram na civilização patriarcal – também não são naturais ou adequadas à natureza humana. Foram igualmente inventadas por pessoas que queriam subordinar os seres humanos à algum poder sobre-humano, por via de intermediários (sacerdotes). Só existe religião propriamente dita com culto organizado e casta sacerdotal, quer dizer, com um estamento separado (sagrado) dos demais (os leigos).
Como definiu Maturana (1993), no texto Conversações matrísticas e patriarcais, “uma religião é um sistema fechado de crenças místicas, definido pelos crentes como o único correto e plenamente verdadeiro”.
Crenças místicas já havia, por certo, em sociedades pré-patriarcais. Mas elas não constituíam religiões. Acompanhemos mais um pouco a reflexão de Humberto Maturana:
“Os povos matrísticos tiveram crenças místicas baseadas em experiências também místicas que, segundo acreditamos, manifestavam ou revelavam sua compreensão básica da relação que tinham com a totalidade da existência. Expressavam essa compreensão por meio de uma deidade – a deusa-mãe – que incorporava e evocava a coerência dinâmica e harmônica de toda a existência numa rede sem fim de ciclos de nascimento e morte.
De modo contrário – segundo pensamos – o povo patriarcal pastoril teve crenças místicas baseadas em experiências também místicas. Estas foram vividas como reveladoras de sua conexão com um âmbito cósmico dominado por entidades poderosas, arbitrárias, que exerciam sua vontade em atos criativos capazes de violar qualquer ordem previamente existente. Os povos patriarcais pastores expressavam sua compreensão das relações cósmicas por meio de deuses – entidades transcendentes que impunham temor e exigiam obediência. Em seu domínio místico, esses povos não tinham nada a defender e, consequentemente, nada a impor: cada crença era natural e auto-evidente. Como entidade cósmica todo-poderosa, Deus era óbvio em sua invisibilidade, e assim inerentemente espiritual.
Com efeito, tinha de ser desse modo, pela forma com que Ele devia ter surgido na montanha, enquanto expressava seu caráter onipotente de patriarca cósmico. As visões místicas matrísticas [pré-patriarcais e pré-matriarcais] europeias eram totalmente diversas, dado o seu caráter terrestre. Para os povos matrísticos, os fundamentos da existência estavam no equilíbrio dinâmico do nascimento e da morte, tanto quanto na coerência harmônica de todas as coisas, vivas ou não. Não havia nada a temer quando alguém se movia na coerência da existência; para eles não havia forças arbitrárias que exigissem obediência, só rupturas humanas da harmonia natural, devidas a alguma falta circunstancial de consciência e à limitação por ela implicada.
A divindade não era uma força ou autoridade; e não poderia ter sido assim, pois esses povos não estavam centrados na autoridade, dominação ou controle. A deusa-mãe concretizava e evocava a consciência dessa harmonia natural. E, segundo penso, suas imagens e os rituais nos quais elas eram usadas significavam presença, evocação e participação na harmonia de todas as coisas existentes, de uma maneira que permitia que tanto os homens quanto as mulheres permanecessem conectados com ela em seu viver cotidiano. Os povos matrísticos [não confundir com matriarcal que é o mesmo que patriarcal] europeus não tinham nada a defender, tanto porque viviam na consciência da harmonia da diversidade, quanto porque não viviam em apropriação.
Logo a seguir, quando os povos… patriarcais pastoris invadiram a Europa, seus patriarcas perceberam que não podiam aceitar as crenças, o modo de vida espiritual ou as conversações místicas dos povos matrísticos, pois estes contradiziam completamente os fundamentos de sua própria existência. Assim, preferiram defender seu modo de vida e suas crenças da única maneira que conheciam, isto é, por meio da negação do outro modo de vida ou do sistema de crenças daqueles povos, transformando-os em seus inimigos.
Além do mais, no processo de defender o seu viver místico, os patriarcas… criaram uma fronteira de negação de todas as conversações místicas diferentes das suas. E estabeleceram, de fato, uma distinção entre o que passou a ser legítimo e ilegítimo, crenças verdadeiras e falsas. No âmbito espiritual, realizaram a práxis de exclusão e negação que, operacionalmente, constitui as religiões como domínios culturais de apropriação das mentes e almas dos membros de uma comunidade pelos defensores da verdade ou das “crenças” verdadeiras. Contudo, antes de prosseguir reflitamos mais sobre o místico e o religioso.
Uma experiência mística – ou espiritual, como é geralmente chamada na atualidade como experiência de pertença ou conexão a um âmbito mais amplo do que o do entorno imediato de alguém, é pessoal, privada, inacessível a outros, ou seja, intransferível. Portanto, o ato de relatar uma experiência assim diante de uma audiência adequada pode ser algo cativante e sedutor, pois evoca um emocionar congruente em quem escuta, casos em que ocorre a sedução. Mesmo quando não há transferência da experiência, muitos dos ouvintes podem chegar a converter-se em adeptos da explicação do expositor.
Como resultado, pode se formar uma comunidade de crentes. Quando isso acontece, todavia, o corpo de crenças adotadas pelos novos crentes – qualquer que seja a sua complexidade e riqueza – não constitui uma religião. Isso só ocorre se os membros dessa comunidade afirmarem que suas crenças revelam ou envolvem alguma verdade universal, da qual eles se apropriaram por meio da negação de outras crenças, baseadas em outros relatos de experiências místicas ou espirituais.
A apropriação de uma verdade mística ou espiritual que se sustenta como verdade universal constitui o ponto de partida ou de nascimento de uma religião. Requer um emocionar e um modo de vida que não estavam presentes na cultura europeia matrística. Nossa cultura patriarcal europeia confunde religião com espiritualidade. Nela se fala, com frequência, de experiências religiosas como se fossem místicas.
Acredito que essa confusão obscurece o fato de que uma religião não pode existir sem a apropriação de ideias e crenças, e não nos permite ver o emocionar que a constitui. Some-se a isso que o advento do pensamento religioso, por meio da defesa do que é “verdadeiro” e da negação do que é “falso”, é um processo que nos tornou insensíveis para as bases emocionais de nossos atos. Em consequência, nos tornou inconscientes de nossa responsabilidade em relação a eles, e obstruiu nossas possibilidades de entender que a história humana segue o caminho do emocionar, e não um curso guiado por possibilidades materiais ou recursos naturais. Nossa visão torna-se obscurecida para o fato de que são nossos desejos e preferências que determinam aquilo que vivemos como verdades, necessidades, vantagens e fatos.”
Isto posto, voltemos à questão proposta.
Sim, todas as grandes tradições espirituais da humanidade (incluindo todas as religiões) – não se organizam de modo democrático. Mas é preciso entender essa afirmação de outra maneira. As tradições (se se pode chama-las assim) pré-patriarcais não são democráticas porque a democracia é um processo de desconstituição de autocracia e em mundos pré-patriarcais não havia autocracia. Logo, não faria o menor sentido que elas fossem democráticas, assim como não faz sentido perguntar por que os Ianomâmis ou os Pirahãs não são democráticos.
Já as tradições espirituais – ou ditas espirituais – do patriarcado não são democráticas porque essa tradição é mítica, sacerdotal, hierárquica e… autocrática. Não porque não faça sentido falar, neste caso, em democracia (faz, e muito) e sim porque elas foram urdidas ou erigidas para satisfazer os interesses e os desejos de predadores e senhores, em sintonia com o emocionar de um estamento que se conformou para viver da vampirização das energias das pessoas.
Isso explica por que não há democracia no céu (em quaisquer dos “céus” – ou equivalentes – anunciados por essas tradições).
Por isso se diz que a democracia é terrestre, não celeste; e é tópica, não utópica.
Quando os antigos hebreus (apirus) disseram, sob inspiração profética, que “só o Senhor é Deus”, originalmente isso não queria significar que só havia um deus (o deus único – no sentido de que era seu ou só seu, o único existente e verdadeiro – que aquele povo chamava de Senhor), mas sim o oposto, que “só Deus é Senhor”, ou seja, que não se devia obedecer a senhores humanos. Os hebreus, como se sabe, eram os Sem Reino numa Canaã já coalhada de cidades monárquicas, muradas e fortificadas, do primeiro milênio a. E. C. E antes de serem capturados por regimes autocráticos, perambulavam como turbas, sempre fora das muralhas das cidades-Estado. Quem duvidar deve ler 1 Samuel 8 ou o relato da Assembleia de Siquem.
Este é também o significado do dito evangélico “Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus”. Não que se devia pagar impostos a Cesar (como se o próprio deus consentisse com a existência de senhores humanos e houvesse então um poder espiritual legitimando um poder temporal) e sim que Cesar, um senhor humano, não era Deus (confrontando a narrativa religiosa do império romano, segundo a qual seus imperadores eram deuses, tanto que para eles se erigiam templos e se organizavam cultos). Os primeiros cristãos foram chamados de ateus, por Nero, porque não acreditavam no… imperador.
Para a democracia, mesmo um deus não pode ser senhor, transformando os humanos em seus escravos, servos ou súditos. A expressão “servo de Deus” – fora do seu sentido negativo de que os humanos não são (ou não devem ser) servos de outros humanos – é uma abominação autocrática.
Quando os atenienses do século 5 a. E. C. disseram que não tinham um senhor, isso não era uma afirmação de ateísmo, pois continuavam reverenciando os seus deuses, conquanto ressignificados pela democracia: para citar dois exemplos, o Zeus Agoraios (nume tutelar da livre-conversação na praça do mercado) e a deusa Peitho (a persuasão deificada, pois persuasão é expressão do modo não-guerreiro de regulação de conflitos que é o genos da democracia).
Esses deuses, porém, não comandavam os assuntos humanos, o que quer dizer que, se havia reverência ou mesmo devoção individual, não havia obediência coletiva aos seus ditames – interpretados necessariamente por sacerdotes – nas decisões da koinonia, a comunidade política. Como escreveu Ésquilo (472 a. E. C.), em Os Persas, sobre os atenienses: eles “não são escravos, nem súditos de ninguém” – e aí de ninguém é de ninguém mesmo: nem de um deus.
Os deuses da democracia ateniense eram realidades extra-políticas que, como tal, não podiam intervir no processo político. Ora, sendo assim, tudo bem para a democracia.
Por isso a democracia não é ateia e sim laica. Ela pode conviver com deuses (acredite, quem quiser, nos deuses que quiser), o que a democracia não pode é ser um regime dirigido por uma entidade sobrenatural (ou melhor, sobre-social) se a vontade dessa entidade é interpretada por intermediários humanos (os sacerdotes). O que não se pode fazer, na democracia, é recorrer a argumentos religiosos para validar ou invalidar comportamentos políticos (e é isso o que significa dizer que ela é laica).
Eis a razão pela qual as religiões não são democráticas. Porque as religiões não têm a ver com a crença em um ou vários deuses: elas só se estabelecem quando se conformam corpos de sacerdotes (docentes) destacados do corpo social (discente), que passa então ser encarado como rebanho (ainda que de um deus, mas não importa, pois o problema é que há sempre algum estamento humano, supostamente instituído por esse deus, autorizado diferencialmente a interpretar a sua vontade ou dar a versão válida sobre o seu legado, oral ou codificado em uma escritura sagrada). Por isso dizia Jung – embora não com esta interpretação – que a religião é uma proteção contra a experiência de deus.
Se cada pessoa, que acredita em deus, for o seu próprio sacerdote, não há problema. Se várias pessoas que acreditam em deus tiverem os seus sacerdotes, também não há problema, desde que eles não queiram conduzir as decisões políticas. O problema é a intervenção de uma casta sacerdotal nos assuntos políticos e a validação ou invalidação de comportamentos políticos com base em critérios extra-políticos.
Mas há mais. A democracia é terrestre, não celeste. Para entender isso é necessário ver que a autocracia, como modo de regulação estável, surge – quase três milênios antes da democracia (também como regime estável) – sob o domínio de deuses sobrenaturais (celestes), que exigiam intermediação e culto. Devoção (avod) era, na verdade, trabalho para os deuses (quer dizer, para os seus intermediários e prepostos). Quem precisa de um céu (quer dizer, de uma utopia, um não-lugar) é a autocracia, não a democracia.
Na verdade, tudo isso foi uma invenção de sacerdotes (que sagravam reis e abençoavam guerreiros: pois este é o genos da autocracia). Por isso sempre há um fundamento religioso nas autocracias antigas: os primeiros reis eram instituídos e ungidos pelos próprios deuses (por intermédio, é claro, dos seus sacerdotes). Na Mesopotâmia antiga, os reis eram chamados de Lugal (homem poderoso), eram substitutos do deus da cidade-Templo-Estado (pois cada qual tinha o seu deus-senhor-governante) e dizia-se que a realeza “descia” dos céus (como em Kish, na Suméria, onde teria “descido” pela primeira vez). Mesmo vários milênios depois, os reis continuaram a ser sagrados por sacerdotes (que colocavam as coroas nas suas cabeças) e persistia a ideia de um direito divino dos reis, no plano simbólico um sangue (azul) diferente do sangue (vermelho) comum, uma dinastia com direito de reproduzir o senhorio com base em descendência genética (novamente o sangue). Sim, autocracia tem a ver com sangue, arrancado pela espada abençoada pelo cetro (ou báculo) de quem “descia” a coroa sobre a cabeça dos que se sentavam no trono. Nesta frase estão resumidos os principais elementos simbólicos (ou rotinas do programa básico) da autocracia.
E nas autocracias ateias é a mesma coisa: há sempre uma doutrina, com statusde religião do Estado e há sempre sacerdotes (os dirigentes partidários) e, em alguns casos, também dinastias baseadas em laços de sangue, como na Coréia do Norte: Kim Jong-un é filho de Kim Jong-Il e neto de Kim Il-sung, o fundador do Partido dos Trabalhadores da Coreia (o único do país, que funciona, para todos os efeitos, como uma espécie de igreja, cumprindo o papel de religião a ideologia oficial Juche).
Mas a democracia não se aplica, porque não faz o menor sentido, em sociedades (pré-patriarcais) que cultuavam deuses naturais, como os bandos de coletores e caçadores, as tribos paleolíticas e até as aldeias neolíticas, onde, se havia alguma distinção, não havia separação entre sagrado e profano.
Deuses naturais não ensejaram a conformação de estamentos sacerdotais estáveis, que – como não trabalhavam – para se reproduzir (artificialmente) urdiram ensinamentos a ser transmitidos diferencialmente aos componentes dos seus estamentos. Isso só aconteceu quando os deuses passaram a ser sobrenaturais e o acesso a eles não podia ser dar a não ser em estado de obediência a um corpo de intermediários.
A ideia evangélica de um deus como espírito santo que está entre-nós (e não acima de nós), manifestando-se na comunidade dos amantes (toda vez que eles se amam) era potencialmente subversiva da autocracia, mas logo foi recuperada e desvirtuada pela hierarquia religiosa. E esta, sim, seria uma concepção de deus mais compatível com a democracia, conquanto isso não tenha consequências práticas (a democracia pode conviver com qualquer deus acreditado pelas pessoas, menos na circunstância em que alguém, em nome desse deus, queira materializar um plano divino, urdido fora da interação política, para conduzir os humanos).
A democracia surge, justamente, como um processo de desconstituição de autocracia, como uma brecha na cultura patriarcal de sociedades que cultuavam deuses sobrenaturais, inalcançáveis, não apenas acima de nós, terrestres, mas altíssimos, que queriam (por intermédio de seus sacerdotes) transformar os humanos em seus escravos, servos ou súditos.

28 – Afinal, qual a doutrina da democracia, em que princípios ou leis (filosóficos ou científicos, naturais ou históricos) ela se baseia? E se não existe esta doutrina, filosofia ou ciência, com base em quê se pode justificar que a democracia é um regime político melhor do que os outros?
Com esta questão chegamos, afinal, ao centro do nosso programa – chamado, não por acaso, Sem Doutrina.
A democracia é sem doutrina. Para entender tal afirmação é necessário, em primeiro lugar, entender o que é doutrina.
O QUE É DOUTRINA
Há um problema com a palavra ‘doutrina’. É claro que as pessoas devem conhecer as teorias, que nascem de processos de observação-investigação-explicação realizados segundo certos critérios epistemológicos (isto é ciência) e também as explorações que tentam articular construções de pensamentos de sorte a torná-los claros e definidos (isto é filosofia, na acepção nua e crua de Wittgenstein).
Mas doutrina é outra coisa. As doutrinas constroem conjuntos coerentes de ideias com o objetivo precípuo de serem ensinadas (apreendidas, o que não é a mesma coisa do que aprendidas). Em geral as doutrinas querem explicar o mundo para os outros de sorte que as pessoas saibam o que fazer (para se comportar de acordo com a explicação que contém sempre uma prescrição).
No caso das doutrinas políticas, isso fica mais evidente. Elas inventam uma explicação para a realidade instituindo-a como um referencial extra-político para avaliar comportamentos políticos. Um comportamento (ou ação política) será bom se estiver de acordo com o que diz a doutrina. Ou seja, a doutrina já está certa ex ante (para quem acredita nela), já avalia o que foi, é ou será, o que deve acontecer ou não, antes da interação política entre as pessoas. Assim, a doutrina cava um sulco para fazer escorrer por ele as coisas que ainda virão. É um modo de trancar o futuro.
As doutrinas geram credos, o que é muito diferente das teorias (científicas) e das elaborações sistêmicas de pensamento (filosóficas). Quando alguém segue um credo, em geral, isso exclui – ou se erige como contraposição a – todos os demais credos. As doutrinas são expedientes usados em guerras de credos. Assim, o economicismo de von Mises (o chamado liberalismo-econômico) é construído contra o economicismo de Marx (o marxismo). E as doutrinas conservadoras são erigidas contra as doutrinas revolucionárias.
A estrutura do credo é uma espécie de filtro para transformar caos em ordem, mas uma ordem pré-existente, não emergente, uma ordem que não será propriamente descoberta, senão replicada pelo ensino da… doutrina. Ora, isso é diferente da ciência (sempre questionável e falsificável) e da filosofia (que admite outras filosofias): está mais para religião (e, como se sabe, cada religião está fundada sobre a ideia de que é a única verdadeira, do contrário as pessoas – os fiéis – poderiam aderir a outros credos, o que é vedado pela religião e quem o fizer será chamado de infiel, kafir, assim como quem abandona uma organização fundada sobre uma doutrina política é chamado de traidor). Uma teoria científica pede para ser falsificada. Um sistema filosófico aguarda ser contraditado. Uma doutrina odeia qualquer questionamento (que julga ser uma heresia). Os credos religiosos são doutrinas. E toda doutrina tem a estrutura de uma religião (mesmo que seja laica).
Toda doutrina, portanto, é doutrinante. E o simples fato de ensinar a alguém uma doutrina – qualquer doutrina – já é uma doutrinação. Portanto, não se trata de ensinar todas as doutrinas para que os pacientes da ensinagem escolham de qual “religião” querem ser escravos.
Na democracia as pessoas têm o direito de aderir a qualquer doutrina, adotar qualquer credo, mas não devem usar essa sua “religião” para avaliar os comportamentos políticos alheios. Nenhuma doutrina política pode servir de referencial para julgar o que ocorre na esfera pública.
Na autocracia, não. Sempre há uma doutrina correta, um credo válido e autorizado ao qual as pessoas devem aderir para se conformar ao que é correto e delas esperado. É uma espécie de compliance. Por isso, via de regra, as religiões que não coincidem com a religião oficial são proibidas em ditaduras, o mesmo valendo para as doutrinas políticas. Não se pode ser sufi na teocracia dos aiatolás iranianos, onde a Fé Bahá’í também é perseguida pelo regime autocrático. A rigor, não se pode ser ateu em teocracias (o que já levou a muitas condenações à morte ao longo da história). Não se pode ser xiita na Arábia Saudita sunita. Não se podia ser muçulmano na corte de Isabel de Castela, nem judeu. Não se podia ser anarquista (ou trotskista) na União Soviética stalinista.
Quando há uma doutrina oficial, seja religiosa ou laica, não pode haver esfera pública. Porque a esfera pública só existe se houver liberdade de crença e de não-crença para as pessoas que, privadamente, podem aderir ou não a qualquer doutrina. Ou seja, ao contrário do que se pensa, a esfera pública está assentada no direito individual privado de não fazer parte, compulsoriamente, de qualquer rebanho, assim como no direito individual privado de entrar, voluntariamente, em qualquer rebanho.
Por isso que esfera pública só existe na democracia, que convive com qualquer doutrina, mas não tem, como regime, uma doutrina específica a partir da qual se possa avaliar comportamentos políticos.
POR QUE A DEMOCRACIA É SEM DOUTRINA
A democracia, portanto, não é mais uma doutrina. É apenas um modo não-guerreiro de regulação de conflitos (que, ao se exercer, desconstitui autocracia) e não importa para nada, do ponto de vista coletivo, as convicções privadas dos agentes políticos que nela interagem. O que importa é que, acreditando no que quiserem, não se comportem de modo guerreiro (o que levará à autocratização da democracia).
Isto é o que significa dizer que a democracia é sem doutrina.
Se você desqualifica algum argumento dizendo que ele é um argumento do inimigo, não há mais possibilidade de conversação e de debate racional. Não haverá entendimento, polinização mútua de ideias e cocriação de nada.
É como conversar com um fiel de uma religião militante que, por princípio, está fundada no pressuposto de que é a única verdadeira. Por isso um kafir (infiel) jamais conseguirá entrar em acordo com um jihadista do Hamas ou do Hezbollah.
Mas isso vale também para as religiões laicas, baseadas em visões de mundo totalizantes, que têm narrativas para explicar tudo e mais um pouco, sejam essas visões consideradas de esquerda ou de direita, revolucionárias ou conservadoras, não importando muito a origem de suas doutrinas.
Visões doutrinárias são sempre obstáculos para a apreensão da democracia, porque colocam barreiras à livre interação e à miscigenação cultural entre os diferentes.
Se se trata de combater uma visão estabelecida com outra visão também estabelecida, não há como ensejar o surgimento de novas visões. Ou seja, não há possibilidade de inovação e ficamos congelados em algum lugar do passado. Tudo vira uma guerra cultural, onde o principal é desqualificar e deslegitimar o inimigo.
Todas as doutrinas que se erigem no combate a outras doutrinas rivais precisam do inimigo para crescer e conquistar adeptos. Por isso, qualquer seita que pretenda revelar ao mundo a verdadeira doutrina tem um comportamento semelhante e incompatível com a democracia na medida em que se constitui na dinâmica da guerra contra outras doutrinas (consideradas como falsas) enquanto que a democracia é um modo não guerreiro de regulação de conflitos (que não precisa de doutrina, quer dizer, que não precisa reafirmar a prevalência de nenhuma doutrina sobre as demais para se exercer).
Quando se diz que a democracia é sem doutrina, isso não significa que as pessoas não possam acreditar nas doutrinas que quiserem e sim que elas não podem exigir a adesão prévia a uma doutrina como condição para praticar a política, adotando critérios extra-políticos para validar alguma ação política como correta, verdadeira ou boa, antes da interação.
Tomando uma metáfora da física contemporânea: como podemos explicar a um codificador de doutrina que o ato de medir destrói um possível emaranhamento quântico e literalmente cria a realidade experimentalmente mensurada? Não é que não possamos. É que não devemos. Porque é inútil. Porque não adianta explicar.
O ato de criar uma narrativa doutrinária é um modo de evitar possíveis nuvens interativas, formadas ao léu, criando uma realidade baseada em uma ordem pré-formada que só é vista desde os clusters de medidores que são criadores de (suas próprias) realidades. Se você pertence a um desses clusters não conseguirá ver nada diferente do que eles veem, não porque não queira e sim porque está, de certo modo, produzindo o que vê. O papel da doutrina não é explicar a realidade, mas criar uma realidade.
Por isso a democracia não é bem coisa de professores. Por isso não se aprende democracia na academia. Não se trata de ensinar um conteúdo específico (para que alguém possa conhecê-lo) e sim de um deixar-aprender.
AS DOUTRINAS POLÍTICAS
Na verdade só existem três grandes troncos de doutrinas políticas hoje: o marxismo, o conservadorismo e o liberalismo-econômico.
São troncos, não doutrinas específicas, na medida em que existem vários marxismos (os marxianismos do jovem e do velho Marx, o marxismo-leninismo, o marxismo-gramscismo e uma infinidade de variantes como as inventadas pelos filósofos franceses – como o foucaultismo), existem vários conservadorismos (dos laicos aos religiosos e teosóficos: aqueles que adotam uma visão esotérica da história) e existem vários liberalismos-econômicos (os da chamada Escola Austríaca, como o von-misesismo e o hayekismo, os libertarianismos e os individualismos à la Ain Rand et coetera).
O anarquismo original e as diversas formas de libertarianismo não-marxista estão quase extintos ou são vestigiais ou marginais.
Os fascismos são comportamentos políticos que podem ser adotados por quaisquer estatistas, sejam conservadores ou revolucionários. E há várias combinações de conservadorismo com liberalismo-econômico.
Pois bem. Afirmamos aqui que todas essas doutrinas são conservadoras no sentido de que não são inovadoras.
Não raro, revolucionários (marxistas), conservadores (de qualquer matiz) e até uma parte dos liberais-econômicos costumam ter posições conservadoras (no sentido de não-inovadoras). Examinemos dois exemplos:
Conservadores e liberais-econômicos costumam ser contra a doutrinação marxista nas escolas. Tudo bem. Mas a escola (como burocracia do ensinamento, baseada na separação de corpos docente x discente) vai continuar doutrinando – seja qual for o conteúdo hegemônico que está na cabeça dos professores da vez – basicamente infundindo noções de ordem, hierarquia, disciplina, obediência, punição e recompensa e fidelidade impostas top down e matando a criatividade? Ah! Mas isso é necessário, dirão todos. E até mesmo os marxistas (revolucionários) – que, por óbvio, não são contra a doutrinação marxista nas escolas – não concordariam em adotar uma posição contra a escola (visto que nos países onde têm hegemonia a escola continua sendo, basicamente, a mesma escola doutrinadora dos países capitalistas, como já havia percebido, em 1970, o maldito Ivan Illich).
Parte dos liberais-conservadores e quase todos os revolucionários marxistas são a favor do casamento gay (ou de quaisquer combinações formadas por pares LGBT) com a adoção de filhos e tudo mais. Conservadores são contra. Mas a família (como cluster fechado, que privatiza capital social) vai continuar existindo e doutrinando – seja qual for a ideologia de gênero dos pais ou mães – basicamente infundindo noções de ordem, hierarquia, disciplina, obediência, punição e recompensa e fidelidade impostas top down e matando a criatividade? Pronto! Agora todos (ou quase todos) estão novamente juntos para dizer que não se pode criticar a família.
Eis que, quando a questão é o padrão civilizatório (ou a cultura patriarcal), marxistas (revolucionários), conservadores (contrarrevolucionários) e liberais-econômicos (quer se digam ou não libertários), não são inovadores. Os inovadores fazem questionamentos como os dos dois exemplos acima, os conservadores e os liberais-econômicos (ditos de direita) e os revolucionários (ditos de esquerda) não fazem.
Em uma sociedade-em-rede, que está estilhaçando o mundo único – e, pela primeira vez, tornando possível o questionamento da multimilenar cultura patriarcal – não cabem mais narrativas totalizantes, que expliquem tudo. Em primeiro lugar, pelo simples motivo de que elas não podem mais explicar tudo (posto que o todo social que precisavam explicar por meio de uma descrição única, se desfez). Em segundo lugar porque descobriu-se que o comportamento coletivo não pode mais ser explicado a partir do que pensam os indivíduos: independentemente das crenças (ou da adesão à doutrinas ou credos por parte) dos sujeitos, eles se comportam sempre de acordo com os fenômenos interativos que estão ocorrendo nos emaranhados sociais onde estão e são.
Esses credos políticos não são mais necessários, senão apenas para os que acham que precisam acreditar em alguma meganarrativa que explique o mundo para se situar no mundo: são uma espécie de conforto espiritual para os indivíduos, mas não têm poder de determinar o fluxo interativo da convivência social. O problema é que alguns desses credos são claramente avessos à democracia.
Sim, a democracia não precisa de credos e, além disso, falar sobre a democracia não é “fazer” democracia (que pode se exercer, inclusive, com pessoas que são contra a democracia ou que não têm capacidade de explicá-la: a imensa maioria dos atenienses que viveram no século 5 AEC, não sabia justificar, com argumentos, por que a democracia seria preferível, o mesmo valendo para os que vivem em países democráticos atuais). Mas contingentes de pessoas conformados a partir de um pensamento antidemocrático, têm influência negativa sobre a democracia, não em razão do que eles pensam ou falam sobre a democracia e sim das ações concretas de autocratização da democracia que porventura pratiquem.
O liberalismo-político (como o de Spinoza) – essencialmente anti-autocrático – não chegou a ser uma doutrina (no sentido de credo), senão um conjunto de ideias capazes de inspirar (ou melhor, capazes de se sintonizar com) comportamentos políticos compatíveis com a democracia dos modernos, na medida em que não levou à formação de corpos de militantes que praticam a guerra (quente, fria ou como política pervertida como arte da guerra ou continuação da guerra por outros meios) como modo de regulação de conflitos. Este é o ponto. A democracia é um modo não-guerreiro de regulação de conflitos e por isso pode ser definida como um processo de desconstituição de autocracia (já que guerra é autocracia). Todos os que – esposando qualquer doutrina política – não adotam modos guerreiros de regulação de conflitos, podem ser players válidos da democracia. E todos os que – mesmo que sigam a vertente mais anárquica do liberalismo-econômico – formam contingentes para combater, em nome de suas ideias, os que adotam outros credos, realizando ações práticas para tanto e criando lados em confronto, desqualificam-se como atores democráticos.
O liberalismo-político é compatível com a democracia porque está baseado na ideia de que o sentido da política é a liberdade, não a ordem geral que regeria o universo (a criação), a natureza, a sociedade ou o ser humano e nem a ordem do Estado orientado por um conjunto de princípios já estabelecidos ex ante à interação (sejam estes princípios derivados de alguma instância transcendente ou imanente, revelados por deus, desvendados por uma teologia, descobertos por uma filosofia da história ou mesmo pela ciência ao investigar a natureza).
A validação extra-política de qualquer regime político é incompatível com a democracia. Por que? Porque os princípios de qualquer validação extra-política não estão submetidos à interação democrática: eles já valem antes e sempre, independentemente dos fluxos interativos da convivência social que mudam comportamentos e pensamentos. Ideias não mudam comportamentos, só comportamentos mudam comportamentos e, inevitavelmente, pensamentos (mas a recíproca não é verdadeira: se fosse, bastaria doutrinar as pessoas seguindo um codex para construir a boa sociedade, quando a experiência mostra que não é assim, do contrário milênios de pregação religiosa e utópica sobre o bem, o belo e o verdadeiro já teriam construído o paraíso na Terra).
Toda pregação, toda doutrinação, todo seguimento de credos e constituição de corpos de fiéis (e, simultaneamente, de infiéis) são conservadores na medida em que tentam conservar e reproduzir um conteúdo determinado contra a mudança (desse conteúdo), contra o contingente, contra o descoberto, contra o inventado, contra o feito por desejo e sem necessidade, contra o erro, a falha e o acaso que incidem na sempre provisória e precária vida comum.
A democracia, toda vez que acontece (ou seja, toda vez que é ensaiada, sejam quais forem as crenças mais profundas que estão nas cabeças dos que a ensaiam), é inovadora. E é inovadora em relação ao que há de mais antigo a ser conservado: a cultura patriarcal, hierárquica e autocrática, do que chamamos de civilização. Não por ter uma outra cultura (como transmissão não-genética de comportamentos inspirados em um conjunto qualquer de ideias, ou melhor, em circularidades inerentes às conversações que ocorrem no seio dessa cultura e que são capazes de reproduzir um determinado modo de vida ou de convivência social) para colocar no lugar da velha e sim porque é vazia de conteúdos determinados imunes à interação.
A natureza da democracia não é a de ser mais uma edificação para trancar os fluxos ou condicioná-los a ficar rodando da mesma maneira na rede e sim a de ser uma brecha no muro da cultura patriarcal.
Alguns acham que a democracia é assim como um tipo de construção ideológica, que depende de um corpo de crenças teoricamente articulado e do qual se possa inferir consequências. Eles têm uma apreensão cognitivista – e não interativista – da democracia. Superavit de Platão ou deficit de Protágoras.
Isso precisa ser desenvolvido e melhor explicado.
A opção pela democracia não exige a adesão a um corpo de crenças como filtro para transformar caos em ordem, mas em uma ordem estabelecida pregressamente ou antes da interação propriamente política – transcendente, natural ou imanente: seja porque estaria de acordo com desígnios extra-humanos já estabelecidos (supra-humanos ou sobre-naturais) por uma ordem pré-existente, seja porque derivaria da natureza, seja porque se sintonizaria com a marcha da história ou com suas leis. Este parágrafo é muito sintético, mas provavelmente contém tudo (ou quase).
Ou seja, nada de transcendente, natural ou imanente. Em outras palavras:
1) nada de visão esotérica ou religiosa;
2) nada de visão liberal-econômica (segundo a qual existiria algo como uma natureza humana: e. g., a hipótese de que o ser humano – tomado como indivíduo – seria inerentemente ou por natureza (?) competitivo e faria escolhas racionais buscando sempre maximizar a satisfação dos seus interesses ou preferências, ao fim e ao cabo egotistas); e
3) nada de visão determinística (baseada em alguma imanência: a história grávida que vomitaria – por meio das ações humanas – um sentido já existente antes que os seres humanos escolhessem um caminho ou simplesmente fossem para onde querem ir ou não.
DEUS, NATUREZA E HISTÓRIA
Se essas noções – Deus, Natureza e História – forem reificadas para fornecer à política alguma razão, não estamos mais no terreno da política propriamente dita, quer dizer, da democracia (tal como a conceberam ou experimentaram – no caso é a mesma coisa – os democratas atenienses). É por isso que o único sentido compatível com a democracia que se pode atribuir à política é a liberdade.
Do ponto de vista da democracia, liberdade significa que Deus não é capaz de dar nenhum sentido à política, a Natureza (seja o que for) também não é capaz de dar nenhum sentido à política e, ainda, que a História também não é capaz de dar nenhum sentido à política.
Deus
A adesão confessional ou teologal à uma potência extra-humana (como fazem as filosofias religiosas ou teosóficas) capaz de intervir nos assuntos coletivos humanos (ou, mais exatamente, sociais) não pode fornecer uma razão para a política e é por isso que povos como os hebreus (a turba dos hapirus, quer dizer, dos sem-reino que invadiram ou se insurgiram em Canaã na primeira metade do primeiro milênio AEC), que acreditavam num plano divino para a humanidade (ou para o seu próprio povo, tomado como povo de um deus: o seu deus IHVH), mesmo tendo todas as condições objetivas para inventar a democracia (basta ler os relatos da Assembleia de Siquem e 1 Samuel 8), não o fizeram. Isso não tem a ver propriamente com acreditar em deuses (ou em um deus) e sim com contar com esses deuses (ou deus) para intervir nos conflitos humanos, para regular esses conflitos ou para resolver os dilemas da ação coletiva.
Os democratas atenienses não aboliram os deuses (da cidade), pelo contrário: conviveram com eles, mas sem deles esperar nada além da proteção ao funcionamento das suas instituições democráticas nascentes (como o Zeus Agoraios, nume tutelar das conversações na praça do mercado) e de inspiração para as práticas (e procedimentos) democráticos que experimentavam (como a deusa Peitho, a persuasão deificada). Mas eles não substituíram essas instituições e práticas pela intervenção sobre-humana ou sobre-natural (dos seus deuses).
Se há deuses (ou um deus) que intervém nos assuntos propriamente humanos (quer dizer, na rede social), então para nada serve a política como modo de auto-regulação ou de comum-regulação (e nem ela teria surgido no entre-os-humanos, já que o Zoon Politikon – o animal político – é uma invenção de Aristóteles incompatível com a democracia), como uma forma específica de interação (a política). Onde há deuses (ou um deus) intervindo, não pode haver lugar para a liberdade, que é sempre a liberdade de ser infiel a um desígnio, de não seguir um plano (já traçado por qualquer potência humana ou extra-humana), de não se conformar a uma ordem (preexistente, ex ante à interação). Deuses (ou um deus) podem existir, desde que não nos obriguem a ser fiéis a eles (ou a ele) ou aos seus desideratos. A democracia é coisa de kafirs (e por isso lhe é tão avessa a cultura islâmica), é uma desobediência ao que já está disposto, à obrigação de seguir um rumo: porque a liberdade é, fundamentalmente, poder sempre escolher um novo rumo e mudar de rumo, ou melhor, poder não ter rumo, como disse o poeta – Manoel de Barros (2010), em Menino do Mato – “Livre, livre é quem não tem rumo”.
Se há uma ordem, uma hierarquia, uma fraternidade ou sociedade encarregada de conduzir ou orientar coletividades humanas (grupos, cidades, nações, povos) em uma determinada direção, para cumprir algum plano cósmico (engendrado ou não por um deus que apenas quer se reconhecer no espelho da existência ou por vários deuses ou, ainda, por seres superiores não-humanos, autóctones ou alienígenas, do passado, do presente ou vindos do futuro), é a mesma coisa. Todas essas visões esotéricas levam à autocracia, não à democracia. Pois como alguém, na condição humana, poderia ser infiel à vontade ou às leis estabelecidas por esses seres superiores sem violar algum tipo de moral? E como os direitos humanos poderiam se equiparar (ou se contrastar) aos direitos desses seres mais evoluídos ou melhores, mais puros ou mais perfeitos?
Quando Ésquilo (472 AEC), em Os Persas, escreveu que os atenienses (democráticos) “não são escravos nem súditos de ninguém”, ele estava dizendo que eles (como povo, quer dizer, coletivamente) não eram escravos nem súditos de ninguém mesmo: nem de humanos, nem de deuses. E, poderíamos acrescentar, nem de leis naturais. Isso nos leva ao próximo ponto.
Natureza
O estudo da natureza ou os modos de observação-investigação-explicação dos fenômenos naturais que chamamos de ciência (a partir do século 17, mas especialmente na passagem do século 19 para o século 20, quando entraram em cena os epistemólogos racionalistas que acreditaram que a filosofia da ciência era uma espécie de ciência ou de ciência da ciência), também não pode fornecer uma razão para a política. O assunto é difícil porque fomos acostumados a olhar a ciência como uma espécie de pansofia. Mais do que a ciência, a ciência autorizada pela filosofia da ciência foi, por sua vez, autorizada a fornecer uma explicação válida para tudo. E se seus métodos são válidos para tudo, por que não o seriam também para a política?
Ocorre que, se existe uma ciência aplicável à política ou, a rigor, uma ciência política, então não pode haver democracia. Pois neste caso os que possuem a ciência (política) ou agem de acordo com seus métodos válidos (quer dizer, validados por algum tribunal epistemológico válido) não se situarão no mesmo patamar dos demais. Haveria uma desigualdade (não sócio-econômica, mas política) levando diretamente à desliberdade. Como a matéria da política não é a episteme (o conhecimento filosófico ou científico), nem a techné (o conhecimento – ou know how – técnico) e sim a doxa (opinião), então algumas opiniões seriam mais válidas do que outras (aquelas proferidas por quem tem mais conhecimento reconhecido como válido). No limite isso levaria ao governo dos sábios de Platão, baseado numa diferença de conhecimento convertida em separação entre sábios e ignorantes. Os ignorantes seriam governados pelos sábios, independentemente da justeza de suas opiniões e, o que é pior, ao largo do processo interativo de formação da vontade política coletiva. Não haveria propriamente opinião pública, composta por emergência (pois se alguém já pode saber o que é correto, de que valeria o entrechoque e a polinização cruzada de uma variedade de opiniões?) e, assim, também não haveria esfera pública (em termos sociais, quer dizer, geração de commons). Ora, sem isso, não pode haver democracia.
O apelo à natureza ou a introdução de um corpo de crenças derivadas do conhecimento sobre os fenômenos naturais – pouco importa se validadas ou não pela ciência – como recurso para validar uma visão da política, traz problemas semelhantes aos da ideia de um ou vários deuses com papel regulador dos dilemas da ação coletiva. Se a natureza (quer dizer, o conhecimento dos fenômenos naturais) pode dizer o que deve ou não ser feito em termos políticos, então para nada vale a democracia.
Um exemplo de imposição de um corpo de crenças – de “como as coisas são” – pode ser fornecido pelo liberalismo-econômico (sobretudo o da chamada Escola Austríaca: Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk, Ludwig von Mises, Henry Hazlitt, Israel Kirzner, Murray Rothbard e Friedrich Hayek, dentre outros). O individualismo metodológico desses pensadores é tomado como uma ciência, ou seja, é um conhecimento, um saber sobre o indivíduo portador de uma mente (que seria o ser humano) e sobre a ação humana, que seria, por sua vez, capaz de explicar o comportamento coletivo a partir dos comportamentos dos indivíduos. Ora, se existe essa ciência, se é possível adquirir esse conhecimento, então os que são nela versados (nessa ciência) ou possuem tal conhecimento, estão mais preparados do que os demais para entender os processos de regulação de conflitos (a política propriamente dita) e, por decorrência, para intervir de forma correta (ou mais correta) nesses processos. Isso é um cognitivismo (com raízes bem fincadas no meritocratismo e no platonismo), não um interativismo.
Assim, a ideia de uma natureza humana, a ideia de que o ser humano é, por natureza (ou inerentemente) competitivo, a ideia de que é possível explicar o comportamento coletivo a partir do comportamento dos indivíduos, a ideia de que os indivíduos se movem buscando sempre melhorar a sua vida, ou tentando maximizar a satisfação de seus interesses ou, ainda, buscando realizar plenamente suas preferências – ao fim e ao cabo egotistas – todas essas ideias, sejam ou não validadas pela ciência (e boa parte delas não o são, se considerarmos, por exemplo, as ciências da complexidade e a chamada nova ciência das redes, e pelo menos Hayek teve lampejos de presciência – ou seria pré-ciência? – sobre isso), são ideias que em nada favorecem, quando não dificultam, a apreensão da democracia. Em primeiro lugar porque são absolutamente desnecessárias para a opção pela democracia. Em segundo lugar porque erigem uma instância de validação extra-política. Novamente, se há um conhecimento que explica “como as coisas são”, inclusive em termos políticos, quem possui tal conhecimento não se iguala aos que não o possuem – o que gera necessariamente desliberdade.
Não há nada natural na política. A política é um tipo de interação (social). O social não é natural. Não há uma natureza humana, a não ser para descrever características da espécie biológica Homo Sapiens (ou, com boa vontade, do gênero Homo) – que é apenas humanizável, não o humano consumado: com perdão pelo mau-jeito do neologismo, há uma “socialeza” humana (isto é, precisamente, o que significa dizer que não existe nada como o Zoon Politikon aristotélico: não há uma substância política original associada à condição da espécie, mas uma fenomenologia que se manifesta na entreidade, porquanto só se revela quando os humanos interagem uns com os outros).
Os seres humanos tornados políticos (quando interagem coletivamente para regular seus conflitos) não precisam ser fieis a características herdadas da sua suposta natureza, não estão subordinados a qualquer epigênese (como as 8,7 milhões de espécies de seres vivos que existem no planeta Terra), podem ser – na sua esfera propriamente política de ação – infiéis à natureza (no sentido mais ampliado do conceito, de como as coisas são). Do ponto de vista da democracia, assim como os seres políticos não são escravos nem súditos de seres humanos, de deuses ou de leis naturais, também não o são de leis da história. Isso nos leva ao terceiro e último ponto.
História
As visões de que há uma história, de que a história tem leis que podem ser conhecidas por quem tem o método correto de interpretação da história, de que há uma ciência, ou melhor, uma filosofia da história, de que a história vai para algum lugar, em razão de uma imanência (alguma substância que carregaria em seu ventre) e, portanto, de que a história tem um sentido que pode ser apreendido antes dos eventos (que ainda não aconteceram), também leva diretamente à autocracia, não à democracia.
Embora filosofias da história tenham aparecido na antiguidade e na idade média, por exemplo, com Joaquim de Fiore (c.1132-1202), com sua teoria dos três tempos (do Pai, do Filho e do Espírito Santo), inspirando talvez o Sebastianismo e, no Renascimento, com pensadores como Giambattista Vico (1725) e sua Scienza Nuova e ainda que haja sempre uma forte raiz hegeliana na construção posterior de qualquer ontologia da história, o marxismo foi o principal responsável pela difusão de um corpo de crenças que tem como postulado fundamental (evidente por si mesmo, que dispensa provas – só corroborações discursivas) a ideia de que a luta de classes é o motor da história. Daí saem todos (ou quase todos) os marxismos (do marxianismo do primeiro Marx, passando pelo Marx de 1859, ao marxismo-leninismo, ao marxismo-gramscismo e a praticamente todos os outros).
A luta entre grupos sociais (chamados de classes) que move a história pressupõe uma filosofia da história. A história passa a ser, nessa filosofia, uma consequência de algo imanente guardado em seu corpo, que a leva para um lugar (e não para outro). Mas a história (supondo que se possa falar de “a” história, no sentido de uma história – e não se pode) não vai para lugar nenhum. Nós é que vamos, ou não vamos. E vamos ou não vamos escorrendo por creodos que estão presentes no campo social e que dependem das configurações dos fluxos interativos da convivência social. Se acreditamos que existe uma história com um mecanismo embutido que lhe dá sentido, também podemos acreditar que o conhecimento desse mecanismo será capaz de nos revelar as suas leis. E aí já estabelecemos uma distinção geradora de poder, separando os que conhecem essas leis dos que não as conhecem. Os que não as conhecem devem ser então conduzidos pelos que as conhecem para que possa se cumprir o desiderato histórico. Note-se aqui que não é uma interação de opiniões que conduz a história (seja o que for) e sim um saber sobre a história que confere a alguns agentes a capacidade distintiva de orientar os demais. O agente tem a episteme que o coloca num patamar diferente da massa que só possui a doxa. Isto é, rigorosamente falando, um platonismo que, como todo platonismo, só pode levar à autocracia, não à democracia.
Dizendo o mesmo de outra maneira para resumir. Se a história tem um sentido antes dos seres humanos atribuírem-lhe tal sentido com suas ações, então não pode haver liberdade (que é sempre liberdade de atribuir sentidos e de mudar a atribuição de sentidos). Se a história tem um sentido e se esse sentido puder ser conhecido de antemão, então alguns (que conhecem tal sentido) estarão sempre mais corretos do que outros por razões extra-políticas.
É tudo a mesma coisa
Tanto a ciência de deus (ou o conhecimento de desígnios supra-humanos), quanto a ciência da natureza (ou o conhecimento de como as coisas são), quanto a ciência da história (na verdade de qualquer filosofia que lhe dê sentido) são corpos de crenças colocados como filtros para transformar o caos da experiência humana comum em ordem autocrática. É por isso que a adesão à democracia não pode depender dessas crenças (sejam teológicas, teosóficas, científicas ou filosófico-ideológicas). Não pode haver conteúdo a ser assimilado como condição para alguém preferir a democracia à autocracia. Se houver, essa pessoa que se transformou em seguidor de uma visão, será um fiel, não um infiel. E, como tal, será um agente – ou uma peça – de um sistema autocrático.
Eis as razões pelas quais os seguidores de vertentes míticas, sacerdotais e hierárquicas do chamado ocultismo ocidental, assim como os fiéis religiosos do catolicismo tradicional e de outras religiões, sobretudo de religiões políticas como o islamismo, têm tanta dificuldade com a democracia. Embora suas elaborações – e visões de mundo – sejam muito diferentes, de um ponto de vista interativista, essas razões são as mesmas pelas quais seguidores de von Mises e de Marx têm dificuldades com a democracia. Em primeiro lugar porque são seguidores e a democracia é para não-seguidores: é um erro (no script da Matrix), não um acerto, quer dizer, um trilhar por um caminho certo. Em segundo lugar porque, todos eles, colocam a adesão a um codex como condição para se fazer (a correta, a boa, a desejável) política. Mas a democracia não é a política ideal, não é a utopia da política: é justamente o contrário. A utopia da democracia é uma topia: é a política feita pelos seres humanos que erram, aprendem com seus erros e continuam errando e aprendendo quando não há ninguém – ainda bem – para lhes dizer, a partir de qualquer instância extra-política, o que é certo.+
Vale a pena baixar e ler o texto Conservadorismo, liberalismo-econômico e democracia, disponível aqui FRANCO, Augusto (2017) Conservadorismo, liberalismo-econômico e democracia

29 – Como se pode justificar que a democracia é um modo de regulação baseado na construção de commons (ambientes comuns) se o ser humano é inerentemente competitivo e faz escolhas racionais tentando sempre maximizar a satisfação de seus interesses egotistas?
A pergunta contém três pressupostos – apresentados como se fossem verdades evidentes por si mesmas – que precisam ser questionados.
Em primeiro lugar, não há nenhuma evidência – aceitável pela ciência – de que os seres humanos sejam inerentemente (ou por natureza) competitivos. Isso é uma crença que, a despeito de ser muito difundida pelo pensamento econômico ortodoxo, não pode ser tomada como verdade inquestionável. É uma hipótese antropológica que não pode ser verificada. Pelo contrário, temos muitas evidências do oposto. Sem colaboração, nossa espécie não teria chegado até aqui. Sem relações amistosas, compartilhamento de alimentos, linguajear e conversar, não teria surgido o ser humano propriamente dito.
Em segundo lugar, não é certo que nós, os seres humanos, agimos a partir de escolhas racionais. O que se sabe é que agimos a partir de emoções (que são disposições para a ação). Há sempre uma emotional motivation antes da (ou na raiz da) tal rational choise (ou da irrational choisehehe).
Em terceiro lugar, também não é verdade que tentamos sempre maximizar a satisfação de nossos interesses (ao fim e ao cabo egotistas). As ações dos seres humanos são, em boa parte, desinteressadas. Fazemos ou deixamos de fazer qualquer coisa, em grande parte, movidos por nossos desejos – alguns dos quais, inclusive, contrariam nossos interesses egóicos, como se sacrificar para salvar o semelhante de um perigo, amar uma pessoa, atender a alguém que nos pede ajuda sem expectativa de reciprocidade (ou seja, alguém que, sabidamente, não poderá nos retribuir o favor ou auxílio), adotar um animal doméstico abandonado, “perder” tempo ouvindo ou fazendo um relato que em nada poderá nos ajudar em nossos empreendimentos ou trabalhos, contemplar uma paisagem ou nos perder na observação das estrelas.
Seres humanos são humanos justamente porque podem fazer coisas gratuitas e desnecessárias – sem o que não poderia haver liberdade (sim, a liberdade é sempre a liberdade de não seguir um script, de não ser fiel a uma epigênese). Não somos máquinas econômicas que funcionam buscando eficiência. Não somos computadores programados para otimizar preferências.
A democracia é um modo de regulação de conflitos baseado na construção do commons e isso só pode acontecer porque os seres humanos têm a liberdade de construir ambientes comuns, espaços realmente públicos. Se eles estivessem submetidos a uma lei de ferro de sempre levar vantagem, de sempre satisfazer seus próprios interesses egotistas em detrimento dos interesses ou desejos alheios, todo ambiente configurado pelas suas ações seria privado (anticommons). A evidência de que as coisas não são assim é que existem espaços comuns. Do contrário não teria surgido a democracia.
Cabe aqui repetir uma reflexão sobre commons e público do ponto de vista político (sim, esses conceitos não são econômicos e sim políticos).
Só há política propriamente dita quando se forma o commons. O commons é o que há de emergência (e de emergente) no conceito de público. O que do público se forma por emergência é o commons: uma realidade social, não estatal.
O Estado sempre foi uma organização privada, a não ser nas democracias. Estado como ente público é uma realidade de apenas cinco séculos (duzentos anos entre os gregos: de 509 a 322 AEC e mais trezentos com os modernos, a partir do século 17, quando a democracia foi inventada pela segunda vez) contra quase seis milênios de Estado como ente privado e privatizador (cujo papel principal é, exatamente, o de evitar a emergência do commons). Todas as formas de Estado, com exceção da polis ateniense dos séculos 5 e 4 e do Estado-nação europeu moderno – o Estado-templo-palácio sumeriano e as hordas proto-estatais de predadores e senhores, os Estados feudais antigos e os Estados do despotismo oriental, associados ao chamado modo de produção asiático ou hidráulico, as cidades-Estado monárquicas da antiguidade, os Estados imperiais do Oriente e do Ocidente (como Roma), os Estados feudais medievais na Europa e no Japão, os Estados principescos e reais do Renascimento e, finalmente, o Estado-nação europeu moderno, que se universalizou, quando não submetido ou domado pelo fórmula do Estado democrático de direito – todas essas formas de Estado são estruturas privadas e privatizadoras, regidas por dinâmicas autocráticas. Seu objetivo precípuo era (e continua sendo, nas ditaduras contemporâneas) impedir a distribuição da rede social e, com isso, inviabilizar as condições favoráveis à emersão do commons, quer dizer, de uma realidade social capaz de se autorregular pela… política (ex parte populis)!
Portanto, o público não se confunde, nem historicamente, nem conceitualmente, com o estatal, a menos quando há democracia, quer dizer… política! A democracia não é a utopia da política e sim o contrário. O sentido da política é as pessoas se autorregularem, ou seja, conviverem como seres políticos. E por isso as distinções correntes entre política privada (politics) e política pública (policy) merecem ser reexaminadas.
Só há liberdade se a politics puder se exercer, ou seja, se existir política ex parte populis, quando qualquer um do povo (qualquer pessoa) puder fazer política e isso for legítimo e legal. Em regimes autocráticos a política legítima é feita ex parte principis (seja por um monarca, um aiatolá ou um dirigente do partido oficial) e às pessoas (comuns) não cabe praticá-la.
Em geral, nos últimos séculos, a politics é feita por pessoas filiadas a partidos, que são organizações privadas, não públicas. A liberdade de organização partidária é fundamental, pois as pessoas podem se aglomerar em torno de ideias e programas de sua preferência destinados a valer para a comunidade política (a polis, no seu sentido original) como um todo. A premissa de que a competição entre partidos seja capaz de gerar um sentido público (como se a racionalidade do mercado pudesse também presidir outras formas de agenciamento, como o Estado e a sociedade) é uma hipótese incerta, mas geralmente aceita.
Em ditaduras não há liberdade de organização partidária (a não ser “para inglês ver”, para efeitos demonstrativos, de propaganda), pois vigora o regime de partido único fundido ao Estado. Quando há apenas um partido, a policy, a política pública que deveria se destinar a promover o bem comum (ou melhor, que deveria ser um metabolismo do commons) é capturada pela politics, degenerada como política ex parte principis (ocupando então o partido único o papel do príncipe moderno, como queria o autocrata Gramsci), o que resulta, inevitavelmente, numa privatização partidária do público.
Isso não significa, entretanto, que a policy, a política dita pública, a política em geral feita por governos, não possa também ser feita pelas pessoas organizadas em outros entes estatais não governamentais e, ainda, pelas pessoas na sociedade, aglomeradas em organizações que não são partidárias. Pode-se, por exemplo, fazer política comunitária ou política voltada ao desenvolvimento local que não seja política privada. E pode-se fazer também fazer política pública no cenário mais global, como as políticas de defesa dos direitos humanos e de conservação do meio ambiente.
Se a política dita pública só puder ser feita pelo Estado, toda politics não passará de uma via de acesso ao Estado (que deterá então o monopólio do público, mas se isso acontecer o que há de social no público – o commons – desaparecerá para dar lugar ao jogo de interesses privados dos aglomerados que chamamos de partidos, que são organizações pro-estatais ou proto-estatais na medida em que decalcam a organização piramidal do Estado e na medida em que existem para ocupar o Estado e colocá-lo a serviço de seus interesses… privados).+
Talvez seja necessário ler várias vezes os dez parágrafos acima.

30 – Como a democracia pode funcionar se os seus agentes são corruptos (ou tão vulneráveis à corrupção), trabalhando, em grande parte, apenas para garantir interesses e auferir vantagens pessoais ou corporativos em vez de se dedicarem ao bem comum?
Por trás dessa pergunta existem várias ideias equivocadas sobre a democracia.
A primeira (e a principal) delas é que a democracia é um modelo de sociedade ideal e não um processo de desconstituição de autocracia, sempre singular e precário, realizado pelas pessoas realmente existentes, com todos os seus vícios e virtudes, defeitos e qualidades.
A segunda ideia equivocada, em parte derivada da primeira (ou a ela relacionada), é que democracia tem a ver com pureza, honestidade (pessoal). É uma ideia que não percebe que democracia tem a ver com liberdade (liberdade, inclusive, para diminuir a desonestidade ou a chamada corrupção, na política e em outras áreas da atividade humana). Essa ideia não vê que autocracias (ou regimes antidemocráticos) podem ser erigidas por seres humanos (pessoalmente) honestos (em especial, no sentido de não-corruptos).
A terceira ideia equivocada, decorrente da segunda (e relacionada à primeira), é a de que a democracia não pode ser experimentada enquanto as pessoas continuarem sendo egoístas, tentando sempre maximizar a obtenção de seus interesses ou preferências, em detrimento dos demais. Teríamos, primeiro, que realizar uma reforma do ser humano para que ele passasse a ser altruísta para, só então, poder estabelecer um regime democrático; ou seja, nunca. Esta ideia impede a visão de que a democracia, desde que foi inventada pela primeira vez, contou com a participação de pessoas honestas e desonestas sob algum ponto de vista (ou seja, as pessoas realmente existentes, não santos, muito menos anjos ou arcanjos).
Essas três ideias equivocadas sobre a democracia não dão conta de explicar a simples evidência de que nenhum regime democrático se autocratizou, ou seja, virou uma ditadura, em razão do aumento do número de desonestos (ou corruptos) por metro quadrado. Quando isso acontece sempre há um projeto político autocrático em curso, com a participação, inclusive, de pessoas honestas (não-corruptas).
As três ideias equivocadas, comentadas acima, têm uma mesma raiz: a noção maligna de pureza.
De todas as ideias introduzidas pelo patriarcado a mais maligna é a de pureza. Há mundos sutis acima de mundos densos. Os mais altos são mais puros, os seres angélicos são mais puros do que os terrestres, e por aí vai… Não é a toa que deus é chamado de O Altíssimo, o que está longe do comum, o incomum, o que não se configura entre nós (como o espírito santo na visão evangélica), senão acima de nós.
Está tão enraizada essa ideia, posto que repetida durante os últimos cinco a seis milênios, que as pessoas são levadas inconscientemente a preferir o que é puro. O que é puro, entretanto? É o não-contaminado pela interação, é o que pode ser sagrado (quer dizer, separado do outro, do profano, do impuro).
O fundamental é que a ideia de pureza é consonante com o comportamento político que leva à separação. O diferente, em princípio, é um impuro, aquele cujo modo de ser, pelo seu simples existir diverso, constitui uma ameaça ao nosso way of life. Não podemos, portanto, nos deixar contaminar por ele (que deve, então, ser encarado como um potencial inimigo antes de ser aceito como um possível parceiro). Em vez de nos comportarmos segundo a evidência de que o que chamamos de ‘eu’ é ‘um outro’, nos armamos para ficar permanentemente prevenidos contra o outro.
Quando a democracia surge como uma brecha na cultura patriarcal, ela desafia a ideia de pureza. A democracia, desde o início, nunca foi a ideia de um governo dos mais puros (dos não corrompidos) e sim o de qualquer um. A democracia é suja, tão suja quanto qualquer um de nós quando passa o dia ralando pra cima e pra baixo na praça do mercado. Quem precisa de pureza (para, com base nela, legitimar a separação geradora de poder) é a autocracia.
Por isso que a antipolítica robespierriana da pureza é tão avessa à liberdade. Os jacobinos que querem nos purificar a partir da sua “teologia” do bem, destroem o sistema imunológico da democracia (que precisa da “sujeira” para funcionar) substituindo o que é sistêmico por mecanismos artificiais, por uma moral normativa que acaba virando moralismo (que é sempre imoral em política). Se é para separar os bons dos maus não estamos mais no campo da democracia, pois alguém deverá estabelecer ex parte principis, os critérios de pureza, os indicadores de bondade (e maldade).
É aí que aparecem ideias cretinas, como a de limpar o Estado dos maus, dos sujos, dos impuros. Os que defendem essas ideias não confiam nos sistemas de pesos e contrapesos da democracia (ou seja, na interação propriamente política, capaz de compensar ou contrabalançar desvios a partir de uma dinâmica orgânica). Não, eles querem sempre erigir um tribunal ético capaz de separar os ‘do bem’ dos ‘do mal’. Ora, a democracia não aceita tribunais éticos, só jurídicos. O que a justiça julga não é se alguém é bom ou mau e sim se alguém violou as leis.
A democracia não é um regime sem corrupção e sim um regime sem um senhor, mesmo que seja um senhor puro, bom, honesto, capaz de impedir, ao exercer seu governo virtuoso, que os impuros, os maus, os desonestos venham sujar o ambiente que deveria ser sagrado (reservado, separado apenas para os limpos). Pode-se afirmar que todos os jacobinos e moralistas ainda não estão sujos o suficiente para poder assimilar a democracia.
De que ponto de vista podemos afirmar que ideia de pureza é uma ideia maligna? Ora, do ponto de vista da democracia. Porque bom, para a democracia, é tudo que nos faz mais livres. E a ideia de pureza, ao introduzir a separação entre puros e impuros, reduz os graus de liberdade dos que são julgados como impuros, seja eliminando ou restringindo as conexões, seja excluindo nodos, seja reduzindo o número de atalhos entre clusters. Isso não tem nada a ver com obedecer as leis e punir os que as transgridem (o que é correto). Está antes. É uma ideologia, uma visão de mundo selecionadora, julgadora, estabelecida ex ante à interação, que fecha em vez de abrir a possibilidade de ser alterado pelo outro (o outro concreto, com todas as suas sujeiras, imperfeições e curvaturas, o outro realmente existente, não um modelo ideal do ser limpo, perfeito e reto).
FIM
Leia mais em:
http://dagobah.com.br/sem-doutrina-um-curso-de-introducao-a-democracia/




A ROUPA NOVA DO REI

Hans Christian Andersen (1837)

Há muitos e muitos anos atrás, havia um rei tão apaixonado, mas tão apaixonado por roupas novas, que gastava com elas todo o dinheiro que possuía. Pouco se importava com seus soldados, com o teatro ou com os passeios pelos bosques, contanto que pudesse vestir novos trajes. E ele tinha mesmo um para cada hora do dia, tanto que, ao invés de se dizer dele o que se diz de qualquer rei: “O rei está ocupado com seus conselheiros”, por exemplo, dele se dizia sempre a mesma coisa: “0 rei está se vestindo”. Na cidade em que vivia, a vida era muito alegre; todos os dias chegavam multidões de forasteiros para visitá-la, e, entre eles, certa ocasião, chegaram dois vigaristas. Sabendo do gosto do monarca, e tramando dar nele um golpe, fingiram-se de tecelões, e apresentaram-se no palácio dizendo-se capazes de tecer os tecidos mais maravilhosos do mundo. E não somente as cores e os desenhos de seus tecidos eram magníficos, mas também os trajes que faziam possuíam a qualidade especial de se tornar invisíveis para aqueles que não tivessem as qualidades necessárias para desempenhar suas funções e também para aqueles que fossem muito tolos e presunçosos. “Devem ser trajes magníficos —pensou o rei. “E se eu vestisse um deles, poderia descobrir todos aqueles que em meu reino carecem das qualidades necessárias para desempenhar seus cargos. E também poderei distinguir os tolos dos inteligentes. “Sim, estou decidido a encomendar um desses trajes para mim!” Entregou então a um dos tecelões uma grande soma em dinheiro como adiantamento, na expectativa de que assim os dois começassem imediatamente o trabalho. E foi o que aconteceu: depois de receberem uma grande quantidade de seda pura e fio de ouro, material que guardaram em seus alforjes, os dois vigaristas prepararam os teares e fingiram entregarse ao trabalho de tecer, embora não houvesse um só fio nas lançadeiras. “Gostaria de saber como vai o trabalho dos tecelões” —pensou um dia o rei. Todavia, temendo ser ele mesmo um tolo, ou alguém incapaz de exercer a função de rei, desistiu de ir pessoalmente e decidiu mandar outra pessoa em seu lugar. Todos os habitantes da cidade conheciam as maravilhosas qualidades do tecido em questão, e todos, também, desejavam saber, por esse meio, se seus vizinhos ou amigos era tolos. “Mandarei meu fiel primeiro ministro visitar os tecelões”— pensou o rei. “Será o mais capacitado para ver o tecido, pois é um homem muito hábil e ninguém cumpre seus deveres melhor do que ele”. E assim o bom e velho primeiro ministro dirigiu-se ao aposento em que os vigaristas trabalhavam nos teares completamente vazios. “Deus me proteja!” —pensou o ancião, e abrindo bem os olhos pensou “Mas eu não vejo nada!” Os dois vigaristas, então, notando a expressão de espanto no rosto do velho, pedem-lhe que se aproxime e opine acerca do desenho e do colorido do tecido. Mostram-lhe o tear vazio e o pobre ministro, por mais que se esforçasse para ver, não conseguia enxergar coisa alguma, porque não havia nada para ver. “Deus meu! —pensava. “Serei eu tão tolo assim?” E não querendo que ninguém soubesse de sua tolice e menos ainda que o julgasse incapaz de exercer a função de ministro, imediatamente respondeu: “É muito lindo! Que efeito encantador!!” E fitando o tear vazio através de seus óculos: “0 que mais me agrada são os desenhos e as maravilhosas cores que o compõem. Asseguro-lhes que direi ao rei o quanto gosto de seu trabalho!” “Ficamos muito honrados em ouvir tais palavras de vossos lábios, senhor ministro” — replicaram os tecelões. E imediatamente começam a verbalmente descrever os detalhes do complicado desenho e das cores que o formavam. 0 ministro ouviu- os com a maior atenção, com a intenção de repetir essas palavras quando estivesse na presença do rei. Percebendo que seu plano estava dando certo, os dois vigaristas pedem então mais dinheiro, mais seda e mais fio de ouro, para dar prosseguimento a seu trabalho. Porém, assim que recebem o solicitado, guardam-no como antes. Nem um só fio foi colocado no tear, embora eles fingissem continuar trabalhando apressadamente. Passado algum tempo, o rei envia outro fiel cortesão para verificar o progresso do trabalho dos falsos tecelões e a fim de saber se eles demorariam muito para entregar o tecido. A este segundo enviado aconteceu a mesma coisa que com o primeiro: “Não acha que é uma fazenda maravilhosa?” —perguntaram os vigaristas, mostrando e explicando um desenho imaginário e um colorido não menos fantástico, que ninguém conseguia ver. “Sei que não sou tolo” —pensava o cortesão; “mas se não vejo o tecido, é porque não devo ser capaz de exercer minha função... Melhor pois não dar a perceber esse fato.” E assim foi, até que o rei convencido de que ele próprio deveria ver o tal tecido enquanto ainda estivesse no tear, pediu que outros mais cortesãos, dentre os quais o primeiro ministro e o outro palaciano que haviam fingido ver o tecido, o acompanhassem em uma visita aos falsos tecelões. Chegando lá, viu que os dois vigaristas com o maior cuidado trabalhavam no tear vazio, e com grande compenetração. “É magnífico!” —exclamaram o primeiro ministro e o palaciano. “Digne-se Vossa Majestade a olhar o desenho. Que cores maravilhosas!” E apontavam para o tear vazio, pois não tinham dúvidas de que as outras pessoas viam o tecido. “Mas o que é isto?” —pensou o rei. “Não estou vendo nada! Isso é terrível! Serei um tolo? Não terei capacidade para ser rei? Certamente não poderia acontecer-me nada pior.” E assim pensando, exclama: “É realmente uma beleza esse tecido!” “E merece minha melhor aprovação.” E manifestava sua aprovação por meio de alguns gestos, enquanto olhava para o tear vazio, pois ninguém poderia supor que ele não estivesse vendo coisa alguma.

Por sua vez, todos os outros cortesãos olhavam e obviamente também não viam nada. Porém, como nenhum queria passar por tolo ou incapaz, todos fizeram coro às palavras de Sua Majestade. “É uma beleza!” --exclamavam. E aconselharam o rei a mandar fazer uma roupa com aquele tecido maravilhoso, e que a estreasse no grande desfile que se iria realizar daí a alguns dias. Os elogios ao inexistente tecido corriam de boca em boca e toda a cidade estava curiosa e entusiasmada. E o rei condecorou os dois vigaristas com a ordem dos cavaleiros e concedeu-lhes o título de Cavaleiros Tecelões... Na noite anterior ao desfile, os dois vigaristas, querendo que todos testemunhassem seu grande interesse em terminar a roupa do rei, passam a noite toda trabalhando, à luz de dezesseis velas. E fingem tirar a fazenda do tear, e cortá-la com enormes tesouras e costurá-la com agulhas sem linha de espécie alguma até finalmente dizer: “Já está pronto o traje do rei!!” 0 rei, então, acompanhado por seus mais nobres cortesãos, vai ao atelier dos vigaristas, e um deles, levantando um braço, como se segurasse uma peca de roupa, diz: “Aqui estão suas calças. Este é o colete!!! Veja, Vossa Majestade, aqui está o casaco!! Finalmente, dignai-vos a examinar o manto!! Estas peças pesam tanto quanto uma teia de aranha. Quem as usar mal sentirá o seu peso...” E embora ninguém visse nada, todos fingiam ver, enquanto ouviam os vigaristas a descrever as roupas, porque todos temiam ser considerados tolos ou incapazes. “Tirai agora vossas roupas, Majestade --disse um dos falsos tecelões-- e assim poderá experimentar a roupa nova na frente do espelho”. E o rei tirou a roupa que vestia e os impostores fingiram entregar-lhe peça por peça sucessivamente e a ajudá-lo a vestir cada uma delas. “Que bem assenta este traje em Sua Majestade!!!” “Como está elegante!!! Que desenho e que colorido! É uma roupa magnífica!” “Estou pronto” – disse finalmente o rei, completamente nu. “Acham que esta roupa me assenta bem?” E novamente mirou-se no espelho, a fim de fingir que se admirava vestido com a roupa nova. E os camaristas, que deviam carregar o manto, inclinaram-se fingindo recolhê-lo do chão e logo começaram a andar com as mãos no ar, carregando nada, pois também eles não se atreviam a dizer que não viam coisa alguma. À frente o rei andava orgulhoso e todos os que o assistiam das ruas e das janelas, exclamavam: “Como está bem vestido o rei! Que cauda magnífica! A roupa assenta nele como uma luva!!!” Nunca na verdade a roupa do rei alcançara tanto sucesso!! Até que subitamente uma criança, do meio da multidão gritou: O rei está nu!!! “Ouçam! Ouçam o que diz esta criança inocente!” --observou o pai a quantos o rodeavam. Imediatamente o povo começou a cochichar entre si. “0 rei está nu! O rei está nu!!” --começou a gritar o povo. E o rei ouvindo, fez um trejeito, pois sabia que aquelas palavras eram a expressão da verdade, mas pensou: “O desfile tem que continuar!!” E, assim, continuou mais impassível que nunca e os camaristas continuaram, segurando a sua cauda invisível.
Leia mais em:
https://static.poder360.com.br/2018/11/roupa_nova_rei-texto.pdf






O REI ESTÁ NU - História


“O conto A Roupa Nova do Rei (imperador)”








https://www.youtube.com/watch?v=RMje8EpqTUU





Referências


https://youtu.be/n-eoStMliK0
https://www.youtube.com/watch?v=n-eoStMliK0
https://youtu.be/eo6_wP7RMzM
https://www.youtube.com/watch?v=eo6_wP7RMzM&feature=youtu.be
https://youtu.be/n2FQ10sTowg
https://www.youtube.com/watch?v=n2FQ10sTowg
https://youtu.be/6IiD2lpL-aA
https://www.youtube.com/watch?v=6IiD2lpL-aA
https://static.poder360.com.br/2018/11/roupa_nova_rei-texto.pdf
https://youtu.be/RMje8EpqTUU
https://www.youtube.com/watch?v=RMje8EpqTUU

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