Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
segunda-feira, 5 de setembro de 2022
O DOMÍNIO DOS CEGOS:
Sobre héroes
y tumbas
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01/05/2011
O DOMÍNIO DOS CEGOS: os 50 anos de SOBRE HERÓIS E TUMBAS, de Ernesto Sábato
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Nota de 2011– Este ano é comemorado não só o centenário de Ernesto Sábato (que ainda vive), em 24 de junho, como os 50 anos de seu grande romance Sobre heróis e tumbas, que me acompanha há quase 30 anos de forma muito presente, na mesma medida em que A escolha de Sofia. Entre outras experiências de leitura, meu projeto original de mestrado (em 1994) o incluía, e eu dei um curso sobre ele em 2008. A resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de julho de 2002.
Quando se pensa na literatura argentina, dois romances extraordinários logo são lembrados:O jogo da amarelinha (Rayuela, 1963), de Julio Cortázar, e Sobre heróis e tumbas (Sobre héroes y tumbas, 1961, aqui comentado na tradução de Rosa Freire d´Aguiar), de Ernesto Sábato, uma visão apocalíptica da Argentina que ganhou nova tradução no Brasil (houve uma anterior, à qual se pode fazer algumas restrições, de Janer Cristaldo, publicada pela Francisco Alves e também, com uma cuidadosa revisão, pelo Círculo do Livro, a qual eu tive sorte de ler em 1982) num momento em que o país vive um pesadelo de derrocada que parece ter saído do universo sabático.
Segundo o próprio autor (numa entrevista a Emir Rodriguez Monegal), Sobre heróis e tumbas é um “poema metafísico”. É verdade, ainda que seja uma narrativa-síntese do destino da Argentina, ele extrapola essa moldura para se tornar uma grande investigação sobre o Mal, na linha de Dostoievski e de Faulkner. Por concentrar tantas coisas, é difícil falar a seu respeito, ainda mais se levarmos em conta a sua estrutura narrativa: na maior parte das vezes, uma situação está encavalada na outra, criando um efeito de duplicidade: os personagens espelham uns aos outros, todos têm um “duplo” na trama.
O início já é sintomático desse enovelamento dos fatos:Martín conhece Alejandra Vidal Olmos (que assassinará o pai e colocará fogo em si mesma) em 1953 e a revê—para viver os fatos culminantes do enredo—em 1955, mas ao mesmo tempo está conversando a respeito disso anos depois com Bruno, que era apaixonado pela mãe de Alejandra, Georgina (episódio detalhado na última parte do romance).
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Quem são os Vidal Olmo? Uma família antiga que envergonha os ramos mais prósperos da estirpe por insistir em morar num bairro que se proletarizou (Barracas) e é constituída por uma fauna exótica e bizarra: uma Vidal Olmos viveu enclausurada durante décadas guardando a cabeça do pai, que fora decapitado pela polícia do ditador Rosas (e Sobre heróis e tumbas tem como “canto paralelo” a retirada do heróico e patético pelotão do general Lavalle, nas guerras pós-Independência).
Alejandra é a última do clã. Para se ter uma idéia sumária a seu respeito,o autor utiliza a seguinte imagem: nos contos de fada ela seria a princesa e também o dragão. A relação com ela educa sentimentalmente Martín, o atormentado herói em formação do livro (também pudera: cresceu com a mãe contando a ele as várias tentativas para abortá-lo e ele se refere à genitora como “mãe-cloaca”), enquanto ela se encaminha para a destruição, como se fosse uma Antígona perdida na era Perón.
A parte mais famosa do romance é o Relatório sobre os cegos, narrado pelo pai de Alejandra, Fernando Vidal Olmos. Nela ,Sábato radicaliza o clima aterrador do seu romance anterior, O túnel (1948): tudo é paranóia, o mundo se revela uma vasta conspiração labiríntica e o pretenso investigador do Mal é uma figura tão maligna quanto o que investiga. Para Fernando, uma Seita de Cegos domina o universo: os cegos são como que seres zoologicamente diferentes de nós, com aspectos similares aos répteis.
Só para resumir um pouco do intrincado relatório: um dos seus conhecidos, o tipógrafo Celestino Iglesias, perde a visão num acidente (que é ambiguamente contado de forma que o leitor tem a impressão de que foi causado pelo narrador), e Fernando se dedica a vigiá-lo, para assistir à sua “transformação” e poder acompanhar sua cooptação pela Seita, o que levará o pai de Alejandra aos “subterrâneos” de Buenos Aires em páginas excepcionais.
Como se vê, há muitas veredas a seguir em Sobre heróis e tumbas e a obra-prima de Ernesto Sábato não dispensa, apesar de sua densidade psicológica e filosófica, os recursos de suspense, mistério e até melodrama, que reatam a ligação da alta literatura com o folhetim, mas que cabem perfeitamente num romance que explora a fundo o território da dualidade:
“E Martín, que se sentia só, interrogava-se a respeito de tudo: da vida e da morte, do amor e do absoluto, de seu país, do destino do homem em geral. Mas nenhuma reflexão era pura, pois se fazia inevitavelmente a partir das palavras e recordações de Alejandra, em torno de seus olhos cinza-esverdeados, no fundo de sua expressão raivosa e contraditória. E, de repente, ela parecia ser a Pátria. Tudo se misturava em sua mente angustiada e como que nauseada, e tudo rodava vertiginosamente em torno da figura de Alejandra, até que ele pensou em Perón e Rosas, pois aquela moça, súmula contraditória e viva da história argentina, parecia sintetizar tudo o que nela havia de caótico e divergente, de demoníaco e dilacerado, de ambíguo e opaco…”
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segunda-feira, 5 de setembro de 2022
Demétrio Magnoli - Gorbachev foi um herói trágico
O Globo
O último líder soviético desarmou a maior bomba-relógio do século XX
Mikhail Gorbachev desarmou a maior bomba-relógio do século XX. O timoneiro do naufrágio do Estado soviético desviou a nau fracassada dos escolhos da guerra civil e da guerra nuclear. A humanidade deve-lhe isso.
Não foi do jeito que ele queria. Gorbachev engajou-se na reforma da URSS, mas acabou gerenciando sua implosão. Imaginou um país de cidadãos livres, em que a lei prevaleceria; no fim, à sombra de um Z que é meia suástica, a Rússia tornou-se uma autocracia repressiva onde a palavra “paz” foi criminalizada. Sonhou com uma URSS integrada a uma Europa sem alianças militares; hoje, a Rússia putinista está mais isolada da Europa do que nunca, condenando-se a operar como posto de combustíveis da China.
O último líder soviético inspirava-se não em Marx ou Lênin, mas em Vissarion Belinsky (1811-1848) e Alexander Herzen (1812-1870), pensadores russos atraídos pelas ideias liberais e socialistas que sopravam da Europa. Belinsky escreveu uma carta aberta clamando pelo fim da servidão camponesa — e Dostoiévski foi preso por lê-la em eventos públicos. Herzen enxergou o caminho do futuro na Revolução Francesa e semeou as ideias do socialismo agrário russo.
A dignidade do indivíduo: a base da revolta intelectual de Belinsky e Herzen contra o regime czarista foi, também, a fonte das reformas de Gorbachev. A glasnost e a perestroika destinavam-se a explodir o sistema totalitário, instituindo os direitos de cidadania. “Tudo o que não é explicitamente proibido pela lei é permitido” — a sentença de Gorbachev, uma reiteração do óbvio, tinha vibrações revolucionárias na URSS da opressão estatal e do conformismo social.
No início de 1991, Gorbachev cometeu um pecado capital. Violando suas convicções, enviou tanques soviéticos para destituir o governo eleito da Lituânia, que acabara de declarar independência. O gesto brutal extinguiu a chama das reformas.
O derradeiro presidente da URSS não foi deposto. Deixou o poder porque o Estado soviético desapareceu, em dezembro de 1991, na esteira das declarações de independência da Rússia, da Ucrânia e da Belarus. Gorbachev disputou as eleições presidenciais russas de 1996, realizadas em meio a uma paisagem de ruínas, obtendo 0,5% dos votos. Na época, os russos o viam como um tolo, que não usara o poder para fazer fortuna, ou como um néscio, que destruíra o “Império Vermelho”.
A trajetória rumo à autocracia não pode ser explicada sem uma referência ao colossal equívoco geopolítico do Ocidente, que rechaçou a ideia de formular um Plano Marshall para a Rússia. Depois do caos, o poder pousou no colo de um cinzento funcionário da antiga KGB, que se cercou de colegas das agências de inteligência para configurar um Estado policial. Do ponto de vista do nacionalismo grão-russo reorganizado ao redor de Putin, Gorbachev é um traidor da pátria: o promotor da implosão da URSS, “maior catástrofe geopolítica do século XX”.
Na URSS em dissolução, surgiram os magnatas, figuras que se aproveitaram do acesso ao Estado para saquear os bens públicos, acumulando vultosos patrimônios. Gorbachev não participou da farra. Viveu como um cidadão de classe média — e usou o dinheiro recebido pelo Nobel da Paz de 1990 para ajudar a financiar um novo jornal democrático, a Novaya Gazeta. Sete de seus jornalistas foram assassinados desde a ascensão de Putin. Dmitry Muratov, seu editor-chefe, recebeu o Nobel da Paz de 2021. Desde o início da invasão da Ucrânia, o jornal foi impedido de circular na Rússia.
Gorbachev completou sua ruptura com Putin em 2011, acusando-o de “subordinar a sociedade ao Estado”. Acompanhou, com apreensão crescente, os movimentos paralelos de expansão da Otan e de adensamento do revanchismo grão-russo. A guerra, a guerra total — era isso que mais temia.
A morte, por leucemia, de Raisa Gorbachev, amor da sua vida, atingiu-o como um petardo em 1999. A dor não passou nunca. Raisa era de origem ucraniana — e Gorbachev a chamava “minha Ucrânia”. Faz sentido que ele tenha morrido durante a guerra de agressão promovida por um Estado russo ainda incapaz de reconhecer a dignidade do indivíduo.
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Mikhail Gorbachev: Funeral held for last Soviet leader
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https://www.youtube.com/watch?v=ImXlssfw_6A
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