Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
sábado, 24 de setembro de 2022
“ex-presidente” não há!
FOME HÁ
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sexta-feira, 23 de setembro de 2022
José de Souza Martins*- A fome que mutila
Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Há a enganosa suposição de que a fome de ontem pode ser saciada com programas de alimentação de hoje ou de renda adicional de agora
O levantamento, agora divulgado, feito pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e Nutricional), sobre a fome no Brasil, associado a outros dados do momento, como os das várias pesquisas sobre tendências de voto do eleitorado, fazem-nos revelações amargas. Somos um país tristemente à beira do abismo. Um país em que, para muitos, a vida do outro não vale nada. Não só para quem governa como também para uma parcela ponderável dos que votam.
O levantamento aponta que, em 41,3% dos domicílios, os moradores vivem em estado de insegurança alimentar. Em 15,2%, 33 milhões de seres humanos vivem em insegurança alimentar severa, de fome. Juntando-se a insegurança alimentar severa com a insegurança alimentar média (15,5%), 30,7% da população está numa situação alimentar crítica: não tem o que comer ou não tem o minimamente necessário para comer e sobreviver em condições propriamente humanas.
Feita uma desagregação dos dados por variáveis adicionais, os pesquisadores verificaram que falta comida em um em cada três lares com crianças até 10 anos.
No Norte e Nordeste, a situação dessa categoria social é muito mais grave. No Norte a insuficiência de alimentos para todos de uma mesma casa alcança 51,9% dos lares. No Amapá, mais de 60%. No Nordeste, o risco da fome é de 49% em lares com crianças até 10 anos de idade.
No Sul e no Sudeste, os índices parecem melhores. Mas de fato não são. Ali, respectivamente, 43,2% e 38,4% “dos domicílios com crianças menores têm acesso a alimentos em quantidade e qualidade suficiente para todos os moradores”, assinalam Fernanda Mena e Josué Seixas na “Folha de S. Paulo” em extensa análise do levantamento. Em São Paulo e Rio de Janeiro, os índices de lares desse tipo que estão em melhor situação de acesso à alimentação é de 37,6% e 33,3%. Portanto, nas regiões brasileiras mais prósperas, a situação da imensa maioria das famílias com até crianças de até 10 anos é também muito grave.
Há entre nós a enganosa suposição de que a fome de ontem pode ser saciada com programas de alimentação de hoje, ou de renda adicional de agora. No caso de adultos, a mitigação da fome certamente quebranta em algum grau a sensação de estômago vazio. Mas não é isso que acontece com crianças. A fome sonega da criança alimentos fundamentais para sua formação, não só sua sobrevivência. Isso pode ser visto em famílias em que a dieta é culturalmente errada.
Há situações e conjunturas em que a dieta alimentar se torna quantitativa e qualitativamente imprópria e insuficiente. Sou da geração que viveu os primeiros anos de vida na época da Segunda Guerra Mundial. Havia falta de itens alimentares que dependiam de produtos importados, como o trigo. Como tantos outros, somos um país que tem no pão um alimento quase sagrado. O pão estava racionado. Cada família podia comprar apenas um filãozinho de pão.
Alguns anos depois da guerra terminada, eu estava começando a trabalhar, com 11 de anos de idade, e já não havia falta de pão. Eu ia até uma padaria distante, onde o pão saía do forno às duas horas da tarde, para, desde a porta, sentir-lhe o aroma. Eu ali ficava cinco minutos aspirando o pão invisível na tentativa de saciar a fome que deixara marcas profundas em minha memória.
Lá em casa, o mesmo acontecia com a carne. Já no final da guerra, meu pai morreu, vitimado por imprudência hospitalar, de tétano, numa operação de hérnia. Dois anos depois, minha mãe casou de novo e fomos morar na roça, onde passei o 3º e o 4º ano primários.
Eu tinha que caminhar 16 km por dia, entre a ida e a volta da escola. De manhã, uma caneca de café preto com duas colheres de farinha de milho. No almoço, às duas da tarde, arroz, feijão e repolho cru. Carne, só no sábado, dois bifes para quatro pessoas, cortados horizontalmente. Passei por esse regime durante dois anos. Um dia, desmaiei na escola, de fome.
Quando voltamos para o subúrbio operário, as limitações da alimentação continuaram, ainda que atenuadas. A dieta mudara pouco. Comecei a trabalhar numa fábrica clandestina, 8 horas por dia, 6 dias por semana. No dia em que recebi meu primeiro salário, cem cruzeiros, 17% do salário mínimo prescrito por lei para o menor de idade, fui ao bar mais próximo e, em uma hora, gastei metade de um mês de salário com doces e picolés. Eu tinha uma fome insaciável de pão, de carne, mas também de doçura. Quando cheguei em casa, levei uma surra: meu salário não era meu, era da família. Só a fome era minha.
Sinto cheiro de churrasco até onde não há churrasco algum. Em 1976, senti esse cheiro numa rua histórica em Cambridge, na Inglaterra, onde eu era pesquisador visitante. A fome grudara na minha memória e na minha alma.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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vultos da República
PROFISSÃO: EX-PRESIDENTE
Aproxima-se a data em que o presidente Lula começará a medir a sua estatura fora do poder. Encontrará concorrência
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Dorrit Harazim | Edição 46, Julho 2010
Oinóspito Sudão do ditador-presidente Omar al-Bashir não parece ser o lugar mais apropriado para um aposentado americano de 85 anos bater perna. Sobretudo para quem entregou as chaves do último emprego com carteira assinada há quase trinta anos e poderia gozar de pouso tranquilo entre os 609 habitantes de sua cidade natal de Plains, no estado da Geórgia.
Mas Jimmy Carter não é um idoso qualquer. Eleito 39º presidente dos Estados Unidos em 1976, assumiu a Casa Branca com 52 anos de idade e uma visão da História à frente de seu tempo. Ao tentar um segundo mandato, acabou enxotado do poder de forma acachapante e inequívoca – levou uma surra de votos em 44 dos cinquenta estados americanos.
Estava com apenas 57 anos. Formado engenheiro, profissão que exercera, tinha sido também fazendeiro antes de se tornar governador, mas decidiu não retomar nenhum de seus ofícios anteriores. Com tenacidade quase insana, transformou em profissão a condição de ex-presidente e conseguiu fazer, fora do poder, o que pretendeu realizar como chefe de Estado. Ao longo dessa reinvenção de si mesmo, ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2002 e a admiração ilimitada da confraria mundial dos aposentados do poder.
Só que o modelo Jimmy Carter de ser ex-presidente não é para qualquer um. Exige dedicação integral, modéstia, capacidade intelectual e persistência, infinita persistência. É esse buquê de atributos que explica a sua presença num país africano que está em guerra civil há 46 anos e carrega a chaga do maior crime humanitário do século XXI – a matança étnica de talvez meio milhão de civis em Darfur. Ninguém mais se espanta ao ver esse senhor de pele clara, quase translúcida, cabeleira já toda branca e rosto marcado por uma simpática profusão de dentes, estar presente nos cantos mais improváveis do planeta.
Era o primeiro pleito no Sudão em 24 anos, e certamente o mais complexo de ser monitorado. Apesar de envolto em suspeitas, o resultado recebeu a chancela dos observadores comandados por Jimmy Carter, um homem que aprendeu a conviver com o imperfeito, ao invés de perseguir o inatingível. Ele e sua equipe de observadores já monitoraram outras 75 eleições mundo afora – sempre em países raramente frequentados por quem pode evitá-los. O Carter Center, organização concebida por ele próprio na cidade de Atlanta, colado à sua biblioteca presidencial, tem o perfil de seu fundador: é a primeira do gênero. Com dotação inicial de 190 milhões de dólares, possui pessoal e meios capazes de atuar em diversas frentes, como mediar conflitos ou implementar programas de erradicação de doenças. “Todos os presidentes americanos têm um monumento – uma biblioteca contendo seus papéis – mas o Carter tem uma máquina”, diz o admirador Fernando Henrique Cardoso, ex há oito anos. “Carter mostrou quem é depois de deixar a Presidência.”
Bill Clinton, o 42º ocupante da Casa Branca, por sua vez, já tinha mostrado quem era na própria Presidência. A novidade foi descobrir o quanto valia ao sair do poder, aos 54 anos de idade. Pôs lustre e purpurina na profissão de ex-presidente, consequência natural de seus atributos pessoais. Quem, senão ele, seria capaz de arrebanhar 40 milhões de dólares em honorários de palestras, entre 2001 e 2007? No ano de 2006, por exemplo, foram 352 – quase uma palestra por dia. Num sábado de agosto do ano passado, ele quase conseguiu estar em dois lugares ao mesmo tempo. Pouco depois de ser visto entre os 1 500 convidados que faziam genuflexão na missa fúnebre do senador Ted Kennedy, em Boston, ele já havia escapulido para o vizinho Canadá, e falava perante 7 mil pessoas sobre “Abraçar Nossa Humanidade Comum.”
Ninguém, até hoje, suplanta sua maior façanha oratório-financeira. Numa terça-feira de outubro, cinco anos atrás, proferiu uma conferência motivacional para 8 mil executivos de Toronto. Título: “Poder Interior.” Honorários: 350 mil dólares. No dia seguinte, repetiu a apresentação em Calgary por um pouco menos, 300 mil dólares. E uma videoconferência mais curta sobre o mesmo tema, à noite, adicionou outros 125 mil ao pacote. O total faturado naqueles dois dias foi apenas ligeiramente inferior a quatro anos de salário como presidente dos Estados Unidos.
Carisma pessoal à parte, sua estatura como estadista sem mandato não se sustentaria se ele não tivesse uma atuação global concreta como cidadão privado. Clinton seguiu a rota aberta por Jimmy Carter, e optou por fazer história como o ex-presidente que adaptou a filantropia para os tempos modernos. O resultado disso é a Clinton Global Initiative, filhote de sua William J. Clinton Foundation, que entra em seu quinto ano de existência e reúne pessoas – de governos, empresas, universidades, organizações mundiais – dispostas a assumir compromissos. Nos próximos dez anos, a CGI já conseguiu alcançar a quantia estratosférica de 57 bilhões de dólares em promessas de doação subscritas por 1 700 indivíduos e centenas de grupos empresariais.
Tudo, com Bill Clinton, parece assumir escala planetária. Só este ano, por exemplo, ele captou 9 bilhões de dólares tendo como meta a vacinação de 40 milhões de pessoas, geração de 80 milhões de postos de trabalho e escola para 30 milhões de almas criteriosamente mapeadas. Seu foco é definido e direto: identificar necessidades capazes de serem enfrentadas com ações urgentes, soluções claras e de resultados mesuráveis – justamente o mais difícil de conseguir quando se está no poder.
Apartir do meio-dia do próximo dia 1º de janeiro, um sábado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva entrega a casa, a faixa e o poder. Passa a fazer parte de uma confraria à qual ninguém se junta por vontade própria: a dos ex-presidentes da República vivos. A recepção não promete grandes alegrias. “O único que não falou mal de seu antecessor foi Tomé de Souza e, mesmo assim, só por ter sido o primeiro”, brinca José Sarney, o decano do grupo – está há vinte anos fora do Planalto. Sentado em seu vasto gabinete de senador e percorrendo com os olhos a eclética coleção de fotos em que aparece ao lado de potentados do mundo, conclui com melancolia: “O terrível é que a gente nunca pode deixar de ser ex-presidente. Podemos renunciar a tudo, mas continuamos sendo ex-presidentes. A gente passa a ser um grande e profundo encalhe.”
Ao desembarcar na mesma plataforma que José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, o futuro cidadão privado Lula terá inevitavelmente dificuldade em se situar – na vida e na sociedade. Segundo a listagem mais recente da Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e Emprego, elas são 2 511, vão de “abacaxicultor” a “zenji”(missionário), passando por “trabalhador da extração de substâncias aromáticas medicinais e tóxicas em geral”. Mas “ex-presidente” não há. E das 84 profissões regulamentadas no país, só mesmo presidente da República, sem o “ex”.
De início, a legislação brasileira se ocupou somente com a sorte das viúvas dos mandatários da República. Por decreto de 1952, assegurou-lhes uma pensão mensal de 10 mil cruzeiros – equivalente, à época, a quase oito salários mínimos. Passados onze anos, uma resolução da Câmara dos Deputados assinada por Ranieri Mazzilli retomou o tema. A concessão de pensão especial para ex-presidentes e ex-vice-presidentes não poderia ser superior “ao triplo do maior salário mínimo vigente”. O mais extraordinário dessa resolução de 1963 estava no parágrafo seguinte: a pensão se aplicava também a “pessoa que, como cientista, inventor, artista, homem de letras, homem de Estado haja praticado ato de excepcional benemerência ou contribuído com obra ou realizações de grande valor para o acervo cultural, o progresso ou a defesa do país”. Virou bagunça.
O artigo 184 da Emenda Constitucional de outubro de 1969, assinado pelo almirante Augusto Rademaker em nome dos ministros da Junta Militar foi mais certeiro, pois garantia a quem tivesse exercido o cargo em caráter permanente uma pensão vitalícia equivalente aos vencimentos de ministro do Supremo Tribunal Federal. Mas com a mudança da Constituição em 1988, estabeleceu-se que era necessária uma lei específica. Em outras palavras, os ex voltaram à estaca zero, sem direito a qualquer pensão até nova ordem. “O Itamar [Itamar Franco, presidente de outubro de 1992 a dezembro de 1994] até chegou a mandar o texto para o Congresso, mas o PT fez tamanho carnaval que a coisa morreu”, relembra Fernando Henrique Cardoso. “Quando chegou a minha vez”, acrescenta, “decidi não fazer nada para não dar cancha de dizerem que era em proveito próprio. E como o Lula também não mandou, assim ficou.”
Ficou, de acordo com o decreto presidencial 6.381 de dois anos atrás, que o presidente que tiver cumprido o mandato como titular do cargo tem direito aos serviços de quatro servidores para sua segurança e apoio pessoal; dois carros oficiais com motorista (um dos quais é de escolta); dois assessores, do quadro de funcionários comissionados. E, se for solicitado, a emissão de um passaporte diplomático.
No fundo, a estatura e o perfil de um ex-presidente resultam não apenas da bagagem pessoal e dos recursos públicos de que dispõe, como também da forma como foi aposentado do poder. Para o americano Jimmy Carter, a derrota ao tentar a reeleição equivaleu a uma demissão sem justa causa. A frustração por não ter conseguido colocar o país na direção que lhe parecia correta fez com que decidisse transformar a ex-Presidência numa vitrine do que era capaz. E conseguiu. Mas jamais se conformou. “Ter permitido a Ronald Reagan chegar à Presidência foi o meu maior fracasso como chefe da nação”, diz sempre.
Para o maranhense José Sarney, apegado à liturgia de um cargo que venera mas ao qual chegou por puro acidente em 1985 – sem faixa e sem voto, como figurante circunstancial de Tancredo Neves – os cinco anos no poder foram um pesadelo. Moratória, denúncias de corrupção, fracasso de dois Planos Cruzados, inflação que chegou a 2 751%. “Melhor do que ser é já ter sido”, constatou ao final. Passados vinte anos desde que entregou a faixa de seda verde e amarela a seu maior algoz, o jovem governador Fernando Collor, Sarney diz sentir saudade somente da coleção de passarinhos que criou no Palácio da Alvorada.
E desafoga mágoa por não ver reconhecida a sua iniciativa pioneira de preservar a memória presidencial da República. “Minha primeira preocupação foi me legitimar, porque senão eu seria deposto”, rememorou no início de junho em seu gabinete de senador. “Feito isso, me concentrei nas duas áreas que permaneceram em minhas mãos: a política externa, que sempre foi do meu interesse, e a preservação da memória da Presidência. [Sarney se refere à difícil convivência com o deputado Ulysses Guimarães, que tinha o Congresso nas mãos, e depois com a Assembleia Nacional Constituinte.] Nenhum de meus antecessores jamais tinha pensado no valor histórico dessa documentação se tornar acessível ao público. Não tínhamos memória de nada, tudo se perdeu.”
O objetivo era criar uma biblioteca nos moldes americanos, onde cada ex-presidente constrói a sua, mas cuja manutenção do acervo é custeada pelo governo. Com a diferença de que, no Brasil, em vez de construir a biblioteca, o ex-presidente reformou um convento em ruínas, o das Mercês, e o memorial já nasceu em berço histórico. Para isso, Sarney criou um grupo de trabalho no subsolo do Palácio da Alvorada, cujo esforço resultou num arquivo de 400 mil documentos. “Encarreguei um assessor de elaborar uma legislação relativa a isso, e mandei tudo para o Maranhão. Reconheço hoje que a Celina – Celina do Amaral Peixoto, criadora do CPDOC – foi a única voz lúcida do nosso conselho, pois disse que o Maranhão não tinha condições de assimilar esse material”, admite o senador, manuseando uma brochura já amarelada da Fundação. “Aqui você vê o sonho – a realidade foi outra.”
A implosão do projeto começou com o corte da verba de manutenção pelo presidente Itamar Franco. E a falência tornou-se inevitável com a publicação, um ano atrás, no jornal O Estado de S. Paulo, de várias reportagens sobre desvios de recursos da Petrobras para empresas-fantasmas da família Sarney. “A política deturpa tudo”, resigna-se o senador, calejado por mais de meio século de sobrevivência no meio. O que o jornal descreve como lápide de granito preto que marcava o espaço em que seria construído um mausoléu em sua memória, Sarney descreve como “apenas uma pedra preta no patiozinho lá atrás, mais para atrair turista que gosta de ver, é do sentimento humano. Por superstição, mandei até tirar, pois não me parecia nada simpático.” Não se pronunciou sobre o busto de mármore com a sua efígie, também retirado.
Apesar de atrelado quase umbilicalmente à vida política brasileira – já está em seu terceiro mandato de senador pelo Amapá – José Sarney diz que seus planos para a vida na planície eram outros. Convidado a integrar o primeiro clube de ex-presidentes do mundo com a tarefa de debater questões internacionais a portas fechadas, aderiu com entusiasmo. O Inter-Action Council, fundado pelo japonês Takeo Fukuda e pelo ex-chanceler alemão Helmut Schmidt, mantinha três reuniões anuais, que resultavam em documentos encaminhados aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. O primeiro Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares foi gestado, segundo Sarney, entre as quatro paredes da sede novaiorquina que o conselho mantinha, à época, em frente ao prédio das Nações Unidas.
“É uma fundação rica, que paga todas as despesas de seus quarenta membros (um por país), mas começou a perder importância com o fim da Guerra Fria”, lamenta o senador. Apesar de ocupar a cadeira de presidente do Senado Federal, Sarney emite opinião surpreendente sobre o papel que cabe a um ex-presidente. “Depois de deixar o cargo, ele não deveria se candidatar a mais nada e deveria ser obrigado a manter perfil apartidário. Na minha cabeça, eu não poderia mais ser empregado de ninguém, tal a magnitude do cargo.” Lamenta que, após 976 dias de exílio, Juscelino Kubitschek tenha precisado assumir um posto de direção no Banco Denasa de Investimentos, criado com seus genros, e condena a permanência, por uma década, de Ernesto Geisel na presidência da Norquisa, uma empresa do setor químico. “Até o Itamar Franco teve de ser embaixador, subordinado a um ministro e a um presidente. Deu problemas à vontade”, concluiu.
No entender de Fernando Henrique Cardoso, nisso reside, em parte, a dificuldade de todo presidente brasileiro em convocar um ou mais antecessores para desempenhar qualquer missão de caráter nacional. Nos Estados Unidos ninguém se choca ao ver Barack Obama ladeado pelo republicano George W. Bush e o democrata Bill Clinton, pouco antes de despachá-los para um Haiti destroçado, na qualidade de observadores do governo americano. “É que lá existe esse conceito de conselho-presidencial, o que é ótimo. Aqui, poucos assumem a função de ex-presidente e continuam militando em condições diferentes e de status inferior”, diz ele. Nos Estados Unidos, os dois únicos presidentes que seguiram carreira parlamentar após o término de seus mandatos pertenceram ao século XIX: John Quincy Adams ainda serviu no Congresso por dezessete anos e Andrew Johnson retornou ao Senado para um último mandato em 1875.
Sarney participou de vários comitês temáticos e conferências internacionais ao longo dos últimos seis anos. Aos 80 anos, começa a se cansar. “Cada reunião dessas exige muita preparação, pesquisa e estudo e, como sou aplicado, confesso que cansei. Hoje só vou aonde sou convidado, só fico onde sou bem tratado e só me movo se pagarem minha passagem”, conclui com a satisfação de quem encontrou a justa medida, antes de abrir a porta da antessala onde se espreme o habitual aglomerado de figuras à sua espera. “É assim o dia inteiro, inclusive sábados e domingos na casa dele”, informa um assessor.
Marcos Azambuja, apesar de recém-chegado de Cingapura, e com um débito de onze horas de jet lag para descontar, avivou-se no sofá do senhorial apartamento onde mora, no Flamengo, e acionou a memória e a verve. É dele a frase “Os diplomatas são produtores de bullshit, mas não são consumidores.” Foi secretário-geral do Itamaraty, embaixador do Brasil em Buenos Aires e Paris, está aposentado desde 2003, após 45 anos de serviço. Atualmente, aos 75 anos, faz o circuito de palestrante em seminários e conferências globais.
A seu ver, a longevidade tornou-se um dado político moderno e todo presidente deveria meditar sobre o fato de não mais morrer no poder assassinado, de enfarte ou trombose. Em outras palavras, é melhor prever uma existência como ex, visto que a medicina, ao prolongar a vida, não prolongou a mocidade – prolongou apenas a velhice. Aproveita para compartilhar a teoria de sua própria mãe, de 94 anos, segundo a qual você envelhece de baixo para cima – das pernas para a cabeça.
Paralelamente, ocorre mundo afora a chegada ao poder de líderes cada vez mais jovens que, ao esgotarem seus direitos à reeleição, também engrossarão o clube dos ex. Lembra da história da passagem por Roma de Fernando Collor, já presidente eleito mas ainda não empossado. “Nosso embaixador na capital italiana, que tinha sido oficial de gabinete de Jânio Quadros, o qual também estava na cidade, organizou um jantarzinho para ambos.” É Jânio quem inicia o diálogo:
– Presidente, o senhor tão moço para essa função…
Collor não reage, o que leva Jânio a voltar com mais insistência à questão da mocidade de Collor. No terceiro ou quarto “o senhor tão moço…”, Collor responde:
– Desculpe, mas estou chegando à Presidência com a mesma idade que o senhor chegou.
E Jânio, sempre certeiro:
– E deu no que deu!
Na verdade, Jânio Quadros era sete meses mais velho do que Collor – quando renunciou, tinha 44 anos. Fernando Collor foi eleito 32º presidente do Brasil com 40, governou o país durante 932 dias e foi afastado do cargo por ser objeto de processo de impeachment aos 43 anos, 4 meses e 17 dias.
De todo modo, hoje, o senador e candidato a governador que completa 61 anos em agosto parece dar o devido valor a sua carreira precoce. A ponto de cometer uma ligeira incorreção. No seu site em quatro línguas, destaca o fato de que “em 1989, com apenas 39 anos de idade, fui eleito presidente do Brasil, nas primeiras eleições democráticas do país em 29 anos. Eu já tinha sido o prefeito e o governador mais jovem do Brasil.”
Uma das decisões mais inadiáveis que um futuro ex-presidente precisa tomar, ainda como inquilino da República, é para onde ir depois de transmitir o poder. Qualquer que seja a natureza de sua despedida – aclamado ou vaiado – é de bom-tom sair de cena. Na época de Getúlio Vargas, isso era fácil. Bastava ele se deslocar até sua estância gaúcha de São Borja, e o exílio interno estava garantido. Seria necessário ter acesso a um aviãozinho particular – o que poucos tinham – e pousar num campinho improvisado para encontrá-lo.
José Sarney também pôde buscar refúgio na ilha de Curupu, perto de São Luís do Maranhão, de propriedade da família de sua esposa, os Macieira. “Foi a melhor coisa que fiz”, relembra ele, “passei três meses inteiros ali para descansar daquela coisa toda.” Mesmo assim, ao retornar a Brasília, só aceitou fazer sua rentrée no restaurante mais conhecido da capital escoltado por Antonio Carlos Magalhães – temia o risco de ser vaiado em público.
Coube a Fernando Collor, contudo, encontrar o refúgio mais impenetrável para purgar seus demônios interiores sem ter de sair do lugar: ele mesmo. A descrição de suas derradeiras horas no Palácio, quase minuto-a-minuto, foram feitas de próprio punho, quando já se encontrava em Miami. Escrito com o rigor detalhista de um repórter obsessivo – ele é formado em jornalismo e trabalhou na sucursal do Jornal do Brasil, em Brasília –, o relato constitui capítulo já conhecido de seu livro de memórias, que permanece inédito.
Segundo pessoa com acesso franqueado pelo senador, a obra está concluída desde a sua absolvição pelo Supremo Tribunal Federal, tem 640 páginas e continua guardada numa gaveta de casa. De acordo com a mesma fonte, ele a escreveu sozinho, como catarse, em meio a momentos de choro. Ao longo de seus menos de mil dias de Presidência, arquivou muito e fez anotações quase diárias de tudo. Foi aconselhado pelo ex-deputado Thales Ramalho, a quem confiou a primeira leitura, a colocar a obra de molho.
O que poucos sabem ou viram foi sua rotina de quase três meses de coreografia presidencial na Casa da Dinda, onde desembarcou de helicóptero minutos após descer a rampa palaciana sob vaias, já afastado do poder. A casa fica no Setor de Mansões Norte, na beira do Lago Paranoá, e tem um anexo, que, honrando a máxima de que cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, fora previamente transformado em gabinete presidencial do B.
De outubro a dezembro daquele ano de 1992, Fernando Collor de Mello atravessava os jardins da Dinda e saía da residência principal às oito horas da manhã, pontualmente. Sempre de paletó, gravata e penteado impecáveis, dirigia-se para o anexo acompanhado de dois ajudantes de ordens. Tinha sempre um carro preto à porta, como convém a um presidente.
No anexo transformado em gabinete, a ritualística para se fazer receber era semelhante à reservada aos visitantes no Palácio do Planalto: portaria, identificação, espera numa antessala, a informação ocasional de que “ele está despachando” e, por fim, o acesso ao gabinete de ar um tanto caído, mas com a bandeira do Brasil em mastro. Na lapela do ocupante sem poder, repousava o habitual broche em forma da bandeira nacional. Reservava as duas primeiras horas do dia para telefonemas, embora os dois telefones brancos postados sobre a mesa ficassem suspeitamente silenciosos.
Ovisitante diário e talvez único, naqueles primeiros meses de privação do poder, foi o ex-senador pernambucano Ney Maranhão, integrante da chamada tropa de choque do jovem presidente. Em entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, Maranhão revelou que portava uma pistola Anaconda calibre 44 na manhã da cerimônia em que foi afastado do poder, pois temeu que o corredor polonês de manifestantes formado ao pé da rampa degringolasse em violência.
Hoje, aos 82 anos de idade e exonerado do Senado, mantém lealdade ao antigo líder. E este mantém fidelidade inquebrantável ao protocolo, além de gratidão canina a quem lhe permaneceu leal. De tão formal, acabou inventando um termo só usado por ele – o de “senador-ministro” – que utiliza sempre que aplicável, como no caso do senador Francisco Dornelles, ex-ministro da Indústria e Comércio e do Trabalho no governo Fernando Henrique Cardoso.
Por presidir os trabalhos da Comissão de Infraestrutura do Senado, Collor recebe tratamento de “presidente” da maioria dos senadores; já José Sarney o chama assim por ele ter ocupado o posto mais alto da República. “Aprendi na gramática de Eduardo Figueiredo que a forma de tratamento correta é a do cargo mais alto que a pessoa ocupou. Chamo a todos assim. E assim é chamado pelos outros? “Não, os presidentes Itamar e Fernando Henrique me chamam de Sarney”, lamenta.
Seis meses antes da troca de guarda começa o formigamento no palácio. “Sim, o tempo prudencial é seis meses. É quando as pessoas começam a querer saber o que vão fazer da própria vida”, explica o antecessor de Lula. “A coisa começa quando se perdem as ilusões de que o sucessor vai ser do teu time. E mesmo que seja, ao chegar à Presidência não será a mesma pessoa, os laços serão diferentes. Então qualquer assessor fica com as barbas de molho por não saber onde e o que estará fazendo em 2011.” Para o presidente em final de mandato, também começam a rarear as viagens de Estado. Um veterano da carreira explica: “A agenda fica mais fácil, o presidente se torna mais acessível, e a entourage começa a se movimentar. Como em palácio se convive essencialmente com dois tipos de colegas – os diplomatas e os militares – é fácil notar o quanto os diplomatas são mais afoitos – afinal, os bons postos no exterior somem rápido.”
Segundo a memória da maioria dos entrevistados, o Dia D transcorre numa espécie de transe, que só adquire forma e significado definitivos a posteriori. “Temos um passado em comum, a cerimônia teve significado e os dois estavam emocionados”, lembra Fernando Henrique Cardoso ao falar da transmissão da faixa para Lula. “Quando ele me levou até o elevador nos abraçamos e ele me disse baixinho ‘Você deixa aqui um amigo.’ Tenho certeza de que naquele momento ele sentia realmente aquilo. Eu também. Depois vem o depois, e isso é outra história.” O ex-presidente seguiu de carro até a Base Aérea de Brasília para embarcar pela última vez no Boeing presidencial que o depositaria em Cumbica. A despedida dos amigos e assessores se deu ali, e foi igualmente forte.
– De qual rosto na pista se lembra até hoje?
Diante da hesitação na resposta, ouve a pergunta seguinte.
– Quem lhe faria falta, se não embarcasse?
– Um ajudante de ordens, mas ele embarcou comigo.
– Quem faz falta até hoje?
– O Lucena – José Lucena Dantas, chefe de gabinete – … a Ana – Ana Tavares, assessora de imprensa.
Ana Tavares ficara no pé da escada, mão direita no peito, o braço esquerdo erguido em aceno. Missão cumprida – foram vinte anos de convivência.
Ao chegar a São Paulo, o ex-primeiro casal trocou de roupa e voltou ao aeroporto para embarcar para Paris na mesma noite. “Era bom para o recém-empossado Lula que ele não ficasse no Brasil naquele momento. Convinha a ambos. Embora a relação entre eles fosse muito cordial, sempre havia o temor de que algo pudesse dar errado”, garante um amigo de longa data.
Voaram de primeira classe e, ao desembarcar, eram esperados por Marcos Azambuja, então embaixador do Brasil na França, e José Israel Vargas, embaixador junto à Unesco e amigo de faculdade do casal. Embora tivesse direito a levar um guarda-costas na viagem, Fernando Henrique preferiu não fazê-lo. “Seguimos inicialmente para um relais-chateau perto de Chartres, onde passaríamos os dois primeiros dias, e percebi que vários carros da polícia francesa acompanhavam nosso automóvel ao longo do trajeto”, disse. Típica cortesia de membro da confraria – no caso, o presidente Jacques Chirac – que sabe o quanto pode ser doída a perda dos anéis. Naquele momento, não era de cortejo que Fernando Henrique Cardoso mais precisava. Era de espaço.
“Em Paris tudo me parecia muito apertado, sufocante. Vai ver que qualquer lugar, quando comparado ao Alvorada, pareceria pequeno”, admite. Marcos Azambuja relembra esses primeiros dias por um prisma ligeiramente diferente. “Você simplesmente não pode sair da totalidade, da majestade do poder e cair num apartamento muito simpático da avenue Foch, de dois belos quartos, sem uma sensação de estreitamento dramático das suas opções”, garante o diplomata. “Acontece que eu não dispunha de nenhuma verba, de nenhum recurso que me permitisse dizer: ‘Aqui está um carro com motorista à sua disposição 24 horas.’ Se eu fizesse isso, nós dois seríamos atingidos – ele como objeto da mordomia, e eu como intermediário.” O embaixador conseguiu um automóvel emprestado de um amigo, mas Ruth Cardoso decidiu que iriam se locomover de metrô.
“Ruth encarava tudo com grande naturalidade, por ser uma pessoa realmente fiel às matrizes da qual os dois partiram. Ela tinha sido mais impregnada de certas ideias e valores. Ele fez uma viagem na Presidência, ela não”, diagnostica Azambuja.
Foi na ocasião daquela primeira viagem do casal como cidadãos privados que o arguto diplomata diz ter feito uma descoberta: os dois não tinham dinheiro. E o alardeado pão-durismo de Fernando Henrique decorria muito mais da falta de dinheiro do que de avareza. “Ele terminou o mandato com zero de enriquecimento. E depois que ele começou a dar conferências e palestras, passou até a me convidar para jantar fora algumas vezes.”
Oex-presidente conta que ao sair do cargo tinha perto de 20 mil dólares nos Estados Unidos, fruto de conferências e atividades anteriores ao poder. Vendeu o apartamento antigo da rua Maranhão, em São Paulo, e outro em que guardava os livros, antes ocupado pela filha Luciana, para comprar o atual, de 400 metros quadrados. “Só que o produto da venda não dava. Ficou faltando. Foi então que fiz um contrato com a editora Record, que me adiantou perto de 150 mil reais para escrever um livro. Fiquei feliz da vida”, diz.
Ficou estarrecido ao ouvir que Bill Clinton saíra da Presidência com dívidas advocatícias de vários milhões de dólares, decorrentes de seu abortado processo de impeachment e de uma interminável investigação de suas contas no Arkansas. O americano recorreu ao mesmo expediente do seu amigo brasileiro: assinou um contrato para a publicação de suas memórias com a editora Alfred Knopf. Só que, pelo catatau de quase 900 páginas recebido com frieza pela crítica, embolsou um adiantamento de 12,5 milhões de dólares.
Pelo menos até o futuro desembarque de Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso é o único brasileiro a construir um perfil de ex-presidente global. “Eu não sabia que podia ganhar dinheiro com essa coisa de conferência. Não tinha a menor ideia, aliás”, admira-se até hoje. No seu último ano no poder, participou da fundação do prestigioso Clube de Madri, que congrega mais de setenta ex-chefes de Estado e de governo. “Quem entra? Só os que são democratas e o ingresso depende de eleição. O Bush, por exemplo, não está. Do Brasil, só eu”, diz, gabola. Foi o primeiro presidente da entidade, com Bill Clinton na presidência de honra. Reeleito, trouxe para dentro o ex-presidente do Chile, Ricardo Lagos, que começa agora a testar as águas do circuito de conferências. “Eu também era co-chairman do Inter-American Dialogue, de Washington, e passados quatro anos coloquei o Lagos para me substituir nas duas posições. Não há regras para isso, é uma questão de sensibilidade”, ensina.
Experiência é o que não lhe falta. Às vésperas da troca de governo em Santiago, foi dar uns conselhos ao colega. “Olha, Ricardo, não pegue compromissos demais logo no começo, senão não terá tempo para aceitar os convites realmente bons. Ao deixar o poder, todo mundo passa pela angústia do ‘E agora?’, mas se você tiver as conexões certas, haverá excesso de demanda. É sempre assim.”
O “professor” FHC também ensina que é preciso manter certo equilíbro entre trabalho pelas causas gerais e trabalho remunerado. Membro de uma penca de conselhos consultivos – World Resources, Universidade Brown, Fundação Rockefeller, Instituto de Estudos Avançados de Princeton, alguns dos quais não pagam sequer a passagem – decidiu ter chegado a hora de diminuir sua presença nos conselhos. “Difícil é escapulir das homenagens de universidades que querem te dar um título de doutor honoris causa. Como não aceitar? Numa dessas ocasiões, acabei tendo de falar quatro vezes num mesmo dia. É trabalho, e duro. Não posso levar a vida viajando.”
Exatamente há um ano, o ex-presidente teve de ser atendido com urgência no Aeroporto dos Guararapes, em plena madrugada, ao retornar de uma viagem a Angola. Passara mal no meio do Atlântico. Sofrera um ligeiro desmaio, e fora hidratado com soro fisiológico até pousar em São Paulo. Na época tinha 78 anos.
Duas semanas atrás, listou de memória os seus compromissos dali para a frente. Partiria para a África do Sul, ao encontro do grupo que mais o encanta ultimamente – The Elders, Os Anciãos, o clube de líderes fundado em torno de Nelson Mandela, cujos membros são apenas onze. “O convite inclui uma visita a um daqueles parques de animais, mas já fui uma vez e não quero acordar às cinco da manhã para ver elefantes. Vou só para a reunião na sexta, fico lá no fim de semana, e retorno a São Paulo na segunda. Na semana seguinte vou à Espanha para receber um prêmio – desisti de fazer uma palestra em Genebra –, e sigo para a reunião da Fundação Champalimaud, em Portugal. Depois Berlim, para um seminário e, por fim, participo de uma reunião em Londres, na qual o George Soros vai querer saber o futuro das fundações nas quais investiu mais de 5 bilhões de dólares.”
O ponto alto do giro europeu: uma semana de férias em Paris, em companhia do filho, com comemoração moderada pelos 79 anos. Da França seguiu para o Líbano, com retorno ao Brasil marcado para o começo de julho. Impossível foi encaixar a convenção do PSDB – com lançamento oficial da candidatura de José Serra – em agenda tão lotada.
Às onze da manhã de uma sexta-feira recente, Gilberto Carvalho, o chefe de gabinete do presidente Lula, confirma sem querer a Teoria do Formigamento. “A gente já entrou na fase da contagem regressiva e dá uma vontade danada de que o final do ano chegue logo. Essa coisa de que tudo o que acontece no país tem a ver com você traz um cansaço profundo. Bendita seja a alternância!”, comemora, no seu feitio comedido de festejar.
Na parede maior de seu gabinete, o retrato esmaecido de alguém que visivelmente não faz parte do circuito mundial de palestrantes. “Ah, esse é o padre Alfredinho, missionário suíço daqueles radicais. Ele exerceu influência forte na minha vida durante meus anos de seminarista. Alfredinho morreu em 2001, quando morava numa favela em Santo André, onde eu já atuava. Eu o mantenho aí na parede para ele me fiscalizar e não deixar que eu vire pelego”, explica Gilberto.
No dia 15 de dezembro, esse ex-seminarista de 57 anos autorizará a entrada de caminhões de mudança, que deverão levar o acervo presidencial para algum destino. “Por uma regra meio estranha da nossa lei 8.394, de 1991, que disciplina os suvenires privados dos presidentes da República, o titular deve constituir um acervo, e para lá levar tudo o que recebeu – no caso do Lula, chegam aqui uma média de 6 a 8 mil cartas em papel por mês. Presentes, então. A cada viagem são mil rosários, santos, camisas de futebol, símbolos, arte popular, um negócio de maluco. Esse acervo todo, hoje, está muito bem tratado aqui na Presidência – é classificado, informatizado, digitalizado, guardado em áreas climatizadas, então não pode ir para um lugar qualquer. Temos feito pressão.”
Mas Lula adia o máximo possível. “Em dezembro a gente vê. quero continuar trabalhando. não me enche o saco, não quero pensar no futuro.” Há coisas que não adianta querer combinar com o chefe. Ele continua a pregar diariamente a mesma coisa: não quer saber de clima de festa. Quer tudo igual até 31 de dezembro.
Como se vê, a cada quatro ou oito anos, o inquilino que vai desocupar a casa se vê às voltas com o mesmo problema. Segundo Carvalho, Lula queria propor um projeto para a construção de um espaço coletivo capaz de guardar os arquivos pessoais dos presidentes, e cujo acesso seria público. Mas só agora, já no final do mandato, ele admite conversar sobre tudo isso. “Estamos apavorados com a hipótese de ter de alugar um espaço de armazenamento até que fique pronto um espaço nosso”, diz.
Ao contrário de Carvalho, José Sarney aprova e aplaude a forma como o presidente tucano destrinchou a questão. “Ele foi objetivo – passou o pires entre empresários antes de deixar Brasília e arrecadou de 8 a 10 milhões de reais”, diz Sarney. Graças à vaquinha da qual participaram, entre outros, Benjamin Steinbruch e Paulo Piva, o Instituto Fernando Henrique Cardoso foi inaugurado em maio de 2004, com a presença de Bill Clinton e do sociólogo espanhol Manuel Castells. FHC comprou dois andares inteiros no centenário prédio do Automóvel Clube, no centro de São Paulo, com direito à vista panorâmica, de cartão-postal antigo, sobre o Viaduto do Chá. “Dois andares, 1 600 metros quadrados, porteira fechada com todos os móveis e este lindo relógio de pêndulo antigo, tudo por 900 mil reais, não é fantástico?”, pergunta o ex-presidente, orgulhoso de seu tino comercial.
Ironicamente, é no embate em estatura internacional, calculada em termos de qualidade e utilidade pública do acervo presidencial, que Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva se medirão de janeiro em diante. O embaixador Azambuja, sempre ele, arrisca uma previsão. “Tenho a impressão de que Fernando Henrique não imaginou que Lula fosse ter o sucesso internacional que está tendo. Ele previu que, graças a seu magnetismo, Lula iria causar um grande pacto interno, mas não a ponto de se transformar num símbolo mundial. Só que o Lula não opera na área da inteligentsia, que é do Fernando Henrique. O Lula não deve se sentir confortável num seminário ou colóquio, nem se esforçará para participar de uma mesa-redonda. O mundo do Lula é um comício permanente, um palanque. É nesse sentido que o Fernando Henrique tem a guarda de um nicho só dele – o da excelência e credibilidade intelectual. Acredito que ele seja o primeiro presidente do Brasil moderno visto como parte de uma elite pensante. Mas não é a cara do Brasil.”
E o Lula?
“O Lula é uma invenção dele mesmo. Eu diria sem medo de errar que são apenas três as caras brasileiras iconograficamente reconhecidas, cada uma à sua época, é claro: Carmem Miranda, Pelé e Lula. Hoje, você não pode ter uma reunião internacional de mais de dez, doze líderes mundiais, sem a cara do Lula na primeira fila. Ele já faz parte do álbum de família. É um iluminado. Os que são contra ele vão ficando desmoralizados pelos seus sucessos em série, que são muitos. Lula está vivendo uma fase mágica”, conclui o embaixador. O diplomata só não entende como Lula foi cair na casca de banana que é o Irã. “Talvez pelo hábito de reduzir uma questão complexa a coisa simples, só que essa habilidade não se aplica ao Oriente Médio”, pondera.
Gilberto Carvalho já ouviu previsões das mais estratosféricas quanto ao futuro de Lula como ex-presidente. Ainda recentemente, um jornalista lhe assoprou as cifras inebriantes que podem advir do circuito de palestras. Lula ouviu e começou a rir: “Quero ver quanto vão me pagar os sem-terra do Pará, os hansenianos do Amazonas”, teria dito.
Percorrer novamente o caminho parlamentar também está fora de cogitação. “Ele não teve prazer algum naquele mandato”, diz Gilberto.
Tanto Gilberto Carvalho como Marco Aurélio Garcia, o assessor para Assuntos Internacionais do presidente, veem Lula mais inclinado a desempenhar um papel acentuado no continente africano. Isso tem se relevado tanto em conversas informais quanto no mapa geopolítico de seus dois mandatos. Ao assumir o poder, havia dezesseis embaixadas do Brasil na África; hoje são 36. “E ainda há pouco chegou um Sucatão nosso trazendo mais de oitenta técnicos e ministros africanos para conhecer a Embrapa. Eles visitaram uma feira no cerrado e passaram três dias estudando lá eventuais semelhanças com a savana deles. Todos demonstram uma devoção genuína pelo presidente brasileiro”, disse o chefe de gabinete.
Carvalho também acredita que Lula vai sentir muita falta de ser presidente. “Vendo a desenvoltura dele no cenário mundial, até parece que o cara nasceu para isso.” Só que agora chegou a hora de nascer de novo – como ex-presidente.
Dorrit Harazim
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Dorrit Harazim
Trabalhou nos principais veículos da imprensa brasileira e participou da criação da revista Veja e da piauí, na qual foi editora. Ganhou o prêmio Maria Moors Cabot, da Universidade Columbia. É colunista de O Globo e publicou O Instante Certo (Companhia das Letras).
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/profissao-ex-presidente/
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Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
LEI Nº 7.474, DE 8 DE MAIO DE 1986.
Regulamento
Regulamento
Dispõe sobre medidas de segurança aos ex-Presidentes da República, e dá outras providências.
Faço saber que o Congresso Nacional decretou, o Presidente da Câmara dos Deputados no exercício do cargo de Presidente da República, nos termos do § 2º do artigo 59, da Constituição Federal, sancionou, e eu, José Fragelli, Presidente do Senado Federal, nos termos do § 5º do artigo 59, da Constituição Federal, promulgo a seguinte
Art 1º O Presidente da República, terminado o seu mandato, tem direito a utilizar os serviços de 4 (quatro) servidores, destinados a sua segurança pessoal, bem como a 2 (dois) veículos oficiais com motoristas, custeadas as despesas com dotações orçamentárias próprias da Presidência da República.
Art. 1º O Presidente da República, terminado o seu mandato, tem direito a utilizar os serviços de quatro servidores, para segurança e apoio pessoal, bem como a dois veículos oficiais com motoristas, custeadas as despesas com dotações próprias da Presidência da República. (Redação dada pela Lei nº 8.889, de 21.6.1994)
Parágrafo único. Os quatro servidores, bem como os motoristas, de que trata o caput deste artigo, de livre indicação do ex-Presidente da República, ocuparão cargos em comissão, do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores, até o nível DAS-102.4, ou gratificações de representação, da tabela da Presidência da República. (Parágrafo incluído pela Lei nº 8.889, de 21.6.1994)
§ 1o Os quatro servidores e os motoristas de que trata o caput deste artigo, de livre indicação do ex-Presidente da República, ocuparão cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, até o nível 4, ou gratificações de representação, da estrutura da Presidência da República. (Redação dada pela Lei nº 10.609, de 20.12.2002)
§ 2o Além dos servidores de que trata o caput, os ex-Presidentes da República poderão contar, ainda, com o assessoramento de dois servidores ocupantes de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, de nível 5.(Redação dada pela Lei nº 10.609, de 20.12.2002)
Art 2º O Ministério da Justiça responsabilizar-se-á pela segurança dos candidatos à Presidência da República, a partir da homologação em convenção partidária.
Art 3º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art 4º Revogam-se as disposições em contrário.
Senado Federal, em 8 de maio de 1986.
Senador JOSÉ FRAGELLI
Presidente
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 9.5.1986
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A regulamentação da atuação,
dos direitos e dos benefícios de
ex-presidentes da República em
perspectiva comparada
4. Os direitos assegurados a ex-presidentes no Brasil
Comparado com os demais países da amostra selecionada para o
presente estudo, o Brasil apresenta-se como o país que menos benefícios
concede a seus ex-presidentes. A legislação vigente no Brasil basicamente
assegura-lhes segurança, veículos e motoristas para sua mobilidade e
servidores para compor uma equipe de assessoria.
A segurança dos ex-presidentes brasileiros passou a ser garantida com a
promulgação da Lei no
7.474, de 1986. Em seu artigo 1o
, a lei dispunha que,
terminado o mandato, o presidente da República teria direito a “utilizar
os serviços de 4 (quatro) servidores, destinados a sua segurança pessoal,
bem como a 2 (dois) veículos oficiais com motorista, custeadas as despesas com dotações orçamentárias próprias da Presidência da República”.
Em 1994, a Medida Provisória no
498, de 12 de maio, convertida na
Lei no
8.889, de 21 de junho, alterou a configuração daquele benefício.
Segundo Schüler (2008, p. 3), a alteração serviu para ampliar “o escopo
original da colocação de servidores à disposição do ex-mandatário máxi-mo da Nação”, de forma que a lei abrangesse, além da segurança, o apoio
pessoal do ex-presidente. Outrossim, a nova redação deixou claro que os
servidores a serviço de ex-presidente ocupariam cargos em comissão, de
livre nomeação. Textualmente, o novo diploma legal dispunha o seguinte:
“Art. 1o
O Presidente da República, terminado o seu mandato, tem o
direito a utilizar os serviços de quatro servidores, para segurança e apoio
pessoal, bem como a dois veículos oficiais com motoristas, custeadas
as despesas com dotações orçamentárias próprias da Presidência da
República.
Parágrafo único. Os quatro servidores, bem como os motoristas, de que
trata o caput deste artigo, de livre indicação do ex-Presidente da República, ocuparão cargos em comissão, do Grupo Direção e Assessoramento
Superiores, até o nível DAS-102.4, ou gratificações de representação, da
tabela da Presidência da República.”
Uma nova alteração da Lei no
7.474, de 1986, aconteceu em 2002 com
a transformação da Medida Provisória no
76, de 25 de outubro, na Lei no
10.609, de 20 de dezembro, cujo artigo primeiro passou a vigorar com
os seguintes parágrafos:
“Art. 1o ...............................................................................................................
§ 1o
Os quatro servidores e os motoristas de que trata o caput deste artigo,
de livre indicação do ex-Presidente da República, ocuparão cargos em
comissão do Grupo Direção e Assessoramento Superiores – DAS, até o
nível 4, ou gratificações de representação da estrutura da Presidência
da República.
§ 2o
Além dos servidores de que trata o caput deste artigo, os ex-Presidentes da República poderão contar, ainda, com o assessoramento de
dois servidores ocupantes de cargos em comissão do Grupo Direção e
Assessoramento Superiores – DAS, de nível 5.
.........................................................................................................................”.
Com tal alteração, a legislação consolidou a concessão não de um, mas
de três benefícios para os ex-presidentes. Além da segurança, viabilizada
com servidores destinados à segurança pessoal, a legislação garantiu o
transporte pessoal oficial do ex-presidente, juntamente com motoristas
e pessoal especializado para compor uma assessoria.
Todos esses diplomas legais foram devidamente regulamentados por
decretos emitidos pelo Poder Executivo. O último deles, o Decreto no
6.381, de 27 de fevereiro de 2008, regulamentou a atuação dos seguranças
a serem contratados pelos ex-presidentes, detalhando inclusive o tipo de
treinamento de capacitação que deveriam realizar e o porte de arma a
que teriam direito.
A legislação vigente não confere uma pensão aos ex-presidentes brasileiros. Entetanto, o
benefício já foi concedido no passado. Como
lembra Harazim (2010, p. 19), “de início, a legislação brasileira se ocupou somente com a sorte
das viúvas dos mandatários da República. Por
decreto assegurou-lhes uma pensão mensal de
10 mil cruzeiros – equivalente, à época, a quase
oito salários mínimos”.
Em 1963, a Câmara dos Deputados aprovou
a Resolução no
41, que estabelecia normas para
a concessão de pensões especiais. Entre os casos
a serem considerados para tramitação na Câmara, figuravam as pensões para ex-presidente
e para ex-vice-presidente da República, as quais
não podiam exceder ao triplo do maior salário
mínimo vigente no País.
O direito dos ex-presidentes a uma pensão
foi consagrado no período com a sua inclusão
na Constituição de 1967. Com redação dada
pela Emenda Constitucional no
1, de 1969, o art.
184 determinou a concessão do direito à pensão
vitalícia aos ex-presidentes da República, conforme o texto que se segue in verbis:
“Art. 184. Cessada a investidura no cargo
de Presidente da República, quem o tiver
exercido, em caráter permanente, fará jus, a
título de representação, desde que não tenha
sofrido suspensão dos direitos políticos, a
um subsídio mensal e vitalício igual ao vencimento do cargo de Ministro do Supremo
Tribunal Federal.
Parágrafo único. Se o Presidente da República, em razão do exercício do cargo, for
atacado de moléstia que o inabilite para o
desempenho de suas funções, as despesas
de tratamento médico e hospitalar correrão
por conta da União.”
Em 1978, a Emenda Constitucional no
11
alterou a redação original desse dispositivo, dele
retirando a restrição referente à suspensão de
direitos políticos.
A Constituição de 1988 não acolheu qualquer norma referente à pensão para ex-presidentes. Para Schüler (2008, p. 5), “essa omissão
pode ser considerada impeditiva da instituição,
por meio de legislação infraconstitucional, de
subsídio vitalício em favor dos ex-presidentes
da República”. De fato, a posição de Schüler
encontra respaldo em decisões do Supremo
Tribunal Federal acerca da constitucionalidade
de se instituírem pensões semelhantes para ex-
-governadores e ex-prefeitos.
No voto que proferiu, como relator, na Medida cautelar na Ação de Inconstitucionalidade
no
1.461/AP, o Ministro Maurício Correa frisou
que a “nova ordem jurídica instituída pela Carta
de 1988, (...) ao deixar de reproduzir o conteúdo
do artigo 184 da EC no
1/69, não admitiu que a
União suportasse despesas dessa natureza com
aqueles que exerceram a função de Presidente
da República” (SCHÜLER, 2008, p. 5).
Segundo Harazim (2010, p. 20), a instituição
desse benefício vitalício para os ex-presidentes
veio a ser contemplada pelo então Presidente
Itamar Franco, que, segundo Fernando Henrique Cardoso, chegou a enviar um projeto
ao Congresso, mas o empreendimento não
frutificou.
5. Considerações finais
A concessão de direitos e benefícios a ex-
-presidentes é um tema que invariavelmente
suscita questionamentos sobre a propriedade
de tal política numa democracia. Para alguns,
trata-se de privilégios que não deveriam existir.
Para outros, os benefícios deveriam ser condicionados a restrições às atividades a serem
exercidas pelos ex-presidentes. O ex-presidente
e atual senador da República José Sarney, por
exemplo, defende a imposição de restrições às
atividades dos ex-chefes do Poder Executivo.
Em recente entrevista à Folha de S. Paulo, ele foi taxativo ao afirmar que “nós devíamos ter, no Brasil, uma legislação
que não permitisse a nenhum ex-presidente da República, deixando o
governo, que ele voltasse a qualquer cargo eletivo” (RODRIGUES, 2012).
A experiência comparada dos países aqui estudados com a regulamentação dos direitos e da atuação dos ex-presidentes demonstra que nações
de regime presidencialista assumem o desafio de aprovar legislação para
conceder direitos aos seus ex-presidentes, com todas as críticas que tal
decisão possa estimular como forma de aprimorar seus próprios regimes
políticos. Ao aprovar estatutos normatizando os direitos de ex-presidentes, Chile e Estados Unidos, por exemplo, criaram as condições para que
seus ex-mandatários pudessem continuar a desempenhar um importante
papel público em suas sociedades, mesmo que por vias informais.
Ex-presidentes deixam o governo com uma visão nacional e um conhecimento da inserção de seu país no cenário internacional que poucos
detém. O ex-presidente dos Estados Unidos Lyndon Johnson chamou a
essa visão e a esse conhecimento de perspectiva privilegiada, de alguém
que enxerga de um ponto de vista diferenciado. Sarney é da mesma opinião. Para ele, um presidente da República “é detentor de informações
muito preciosas” (RODRIGUES, 2012).
Desperdiçar o manancial de informações e experiências de ex-
-presidentes pouco contribui para fortalecer o processo democrático.
Por outro lado, dotar os ex-presidentes de condições para atuar em prol
da democracia e da sociedade como um todo, aperfeiçoa a Presidência
enquanto instituição, garantindo-lhe a dignidade inerente a um Poder
da República. Outrossim, fortalece a própria democracia ao sinalizar
que a alternância no poder não equivale a uma espécie de ostracismo
ou à punição daqueles que se empenharam como chefes do Executivo.
Esse parece ter sido objetivo da legislação sobre ex-presidentes
promulgada nos países que figuram no presente estudo. O Estatuto
dos Ex-Presidentes do Chile, por exemplo, chega a chamar os direitos
garantidos aos ex-presidentes de “condição de dignidade”. Tal condição
assegura-lhes, inclusive, foro privilegiado.
Com exceção do Brasil, todos concedem pensão a seus ex-presidentes,
além de meios para sua segurança, mobilidade e atuação. Somente a
França dá a opção aos ex-presidentes de assumir uma função vitalícia
oficial, a de membro do Conselho Constitucional. Entretanto, trata-se
de uma opção e não uma imposição. Os ex-presidentes franceses têm o
direito de se recusar a assumir o cargo no Conselho se assim o desejarem,
optando por outras atividades.
Em nenhum caso estudado, deparamo-nos com uma legislação que
restringisse as atividades de ex-presidentes ou condicionasse a concessão
de benefícios ao exercício de atividades predeterminadas em lei. Não há evidências que indiquem que a restrição das atividades de ex-presidentes
contribua para melhorar seu desempenho pós-presidencial. O exemplo
paradigmático de excelência na atuação de um ex-presidente é o do
ex-presidente norte-americano Jimmy Carter, cuja atuação é frequentemente citada como modelar por inúmeros políticos e analistas (CHAMBERS II, 1998, p. 424). Saliente-se que ele não atua sob a imposição de
quaisquer restrições.
Ao deixar o governo, em 1980, após mandato único, Jimmy Carter
criou um Centro dedicado a ações humanitárias, direitos humanos e
promoção da democracia, cujo trabalho no mundo todo o levou a receber o Prêmio Nobel da Paz. No processo, como salienta Chambers II
(1998, p. 424), “Jimmy Carter redefiniu a ex-presidência e estabeleceu
novas dimensões de serviço público para ex-presidentes”. O modelo de
ex-presidência estabelecido por Carter tem sido emulado por vários
outros ex-presidentes, tanto dos Estados Unidos como de outros países.
Segundo Anderson (2010, p. 72), é o caso de Bill Clinton, nos Estados
Unidos, e de Vicent Fox, no México.
Em última análise, a regulamentação dos direitos e da atuação de ex-
-presidentes reflete a visão que a sociedade de cada país tem da própria
instituição da Presidência em determinado momento. Por isso, como se
pode constatar no presente estudo, os padrões de regulamentação variam
de país para país, assim como divergem, dentro de um mesmo país, em
épocas distintas de sua história política.
Referências
https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/51/201/ril_v51_n201_p53.pdf
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