“Liberdade – essa palavra/ que o sonho humano
alimenta/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda”.
domingo, 16 de fevereiro de 2020
- O Estado de S. Paulo
Entende-se o valor da liberdade quando ela é
cerceada pelo arbítrio e pelas intolerâncias
São muitas as referências ao liberalismo
na pauta do debate público. Poucas as considerações mais satisfatórias e
abrangentes sobre seu alcance, como expôs com densidade José Guilherme Merquior
em O Liberalismo - Antigo e Moderno (1991).
Na elucidação conceitual do
liberalismo, a primeira observação é a de que não se circunscreve ao catecismo
simplificador dos seus críticos, que nele identificam, na atual conjuntura,
apenas a defesa do pensamento único da liberdade econômica dos mercados.
São muitos os idiomas do liberalismo e
múltiplos e diversificados os temas dos seus patronos intelectuais. Entre eles,
Immanuel Kant e Adam Smith, Alexander von Humboldt e Alexis de Tocqueville,
Benjamin Constant e John Stuart Mill, Friedrich Hayek e Raymond Aron, Karl
Popper e Isaiah Berlin.
Todos esses autores têm afinidades.
Resultam de uma compartilhada preocupação com a defesa e a realização da
liberdade. Partem de uma visão da sociedade concebida como plural, na qual o
ser humano, com a sua dignidade própria, não se dissolve no todo.
Pressupõem que o mundo não é uma
realidade determinista, mas um conjunto de probabilidades e possibilidades que
estão ao alcance do criativo e inovador exercício das múltiplas dimensões da
liberdade.
É esse terreno comum que permite
inserir esses grandes nomes e suas reflexões no âmbito do liberalismo.
Caracterizam-se, no entanto, por diferenças apreciáveis. É por isso que cabe
falar em liberalismos, no plural, e pontuar que em contraste com a tradição
socialista, na qual avulta a hegemonia de Karl Marx, o panteão do liberalismo,
desde as suas origens e nos seus desdobramentos, é plural. Não é por acaso que
a palavra liberal, como adjetivo, designa a postura de um espírito aberto e não
dogmático.
A dimensão plural do liberalismo
provém do fato de que a liberdade não é una, mas múltipla, e passa pela
política, pela cultura, pelo social e pelo econômico.
Possui, não obstante suas diversas
camadas de significado, uma força de atração motivadora, que Cecília Meirelles
ilumina no Romanceiro da Inconfidência: “Liberdade – essa palavra/ que o sonho
humano alimenta/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda”.
Entende-se o valor da liberdade, que
alimenta o sonho humano, quando ela é cerceada ou corre o risco de ser cerceada
pelo arbítrio da coerção e da prepotência e pelas intolerâncias
discriminatórias.
Foi numa época de avassaladora
denegação da liberdade que Franklin D. Roosevelt, em 1941, enunciou a
importância do alcance de quatro liberdades essenciais: da palavra e expressão,
de crença, de viver sem o império da necessidade e de viver sem medo.
A manifestação de Roosevelt sobre as
quatro liberdades foi uma das fontes inspiradoras da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948, que conferiu dimensão normativa à agenda
internacional e consagrou múltiplas dimensões de liberdade: de ordem pessoal
(artigos 3.º a 11); dos direitos do indivíduo no seu relacionamento com os
grupos a que pertence e às coisas do mundo exterior (artigos 12 e 17); das
faculdades espirituais, das liberdades públicas e dos direitos fundamentais
(artigos 18 a 22); dos direitos econômicos, sociais e culturais (artigos 22 e
27).
Explicita assim tanto a liberdade como
espaço próprio delimitador do grau de interferência na vida das pessoas quanto
a de participação na vida pública, um dos componentes da democracia.
É a preocupação com as múltiplas
dimensões de liberdade que faz com que os pensadores dos liberalismos tenham
como um dos seus temas o papel das instituições que a preservam dos que a
denegam política, econômica e culturalmente. Anoto, a propósito de liberdade
econômica, que os mercados não operam no vazio; por isso o bom funcionamento da
economia requer instituições, como aponta, entre outros, Douglass North.
O liberalismo está na origem do
constitucionalismo, da divisão de Poderes, do Estado de Direito e da tutela dos
direitos humanos. Daí a relevante permanência do seu legado.
Michael Walzer, que enfrentou as
múltiplas dimensões da justiça elaborando seu grande livro sobre as distintas
esferas da justiça, também deu estimulante contribuição à preservação
institucional das liberdades, considerando o liberalismo como a arte da
separação. Assim, a separação Igreja-Estado preserva a liberdade religiosa; a
do público e privado preserva da interferência estatal a família e o indivíduo
e também abre espaço para a liberdade econômica de empreender. A arte da
separação enseja a liberdade acadêmica, do ensino e da pesquisa, que sustenta a
autonomia universitária, assim como a da cultura e da criação artística. A arte
da separação assegura o antidogmatismo que permite a procura da verdade sem o
arbítrio da censura e da imposição de uma “verdade oficial”.
Em síntese, velar e combater pela arte
institucional da separação, inerente aos idiomas dos liberalismos, é o que nos
cabe fazer, com a preocupação do futuro, na atual conjuntura caracterizada por
riscos, internos e externos, aos cerceamentos da liberdade.
*Professor emérito da Faculdade de
Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
http://gilvanmelo.blogspot.com/2020/02/celso-lafer-liberalismoliberalismos.html#more
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