Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
terça-feira, 7 de fevereiro de 2023
O ECONOMISTA,
O rábula Evaristo de Moraes e o médico Nina Rodrigues elaboraram investigações sobre o comportamento criminoso de Marcelino Bispo – autor do atentado contra Prudente de Moraes em 5 de novembro de 1897 – indicando uma questão comum: a responsabilidade penal.
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"lança quebrada"
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terça-feira, 7 de fevereiro de 2023
Luiz Gonzaga Belluzzo** - Tempos difíceis*
Valor Econômico
É irrestrita a presunção a respeito das virtudes dos mercados na condução das economias ao nirvana do racionalismo
Ao assumir o cargo de secretário do Tesouro do governo conservador, David Cameron recebeu de seu antecessor trabalhista, Liam Byrne, um recado curto e grosso: “Meu caro secretário, sinto informar que não há dinheiro”.
A mensagem é simples: se não há dinheiro, corte seus gastos. O neuronavirus tem revelado enorme potencial de letalidade intelectual, ademais de revelar singular capacidade na escolha das vítimas. Os testes confirmam a preferência pelos neurônios do pensamento econômico dominante.
A opinião pública tem sido submetida a um insidioso processo de contaminação. Os especialistas e os comentaristas da mídia repetem, incansáveis, os mantras da austeridade. Ao definir o que estava “errado” e recomendar os remédios, a narrativa busca seletivamente escolher algumas dimensões da economia para imputar a responsabilidade do ocorrido.
Os adeptos da austeridade fiscal e monetária atribuem a David Ricardo a ideia da ineficácia das políticas anticíclicas: os agentes racionais, aqueles que conhecem a estrutura da economia e sua evolução provável, antecipam o aumento de impostos no futuro para cobrir o déficit incorrido agora. Isso resultaria em maiores taxas de inflação, subida das taxas de juro, expansão da dívida pública e necessidade de maiores impostos no futuro.
Na dita Ciência Econômica que prevalece em nossos dias, é geral e irrestrita a presunção a respeito das virtudes do mercados, empenhados em conduzir as economias e as sociedades ao nirvana do naturalismo, racionalismo, individualismo e equilíbrio.
Essa visão da economia padece das certezas do personagem de Charles Dickens na obra-prima “Tempos Difíceis”. “Sr. Thomas Gradgrind. Um homem de realidades. Um homem de fatos e cálculos. Um homem que trabalha de acordo com o princípio de que dois mais dois são quatro, e nada mais, e não pode ser persuadido a permitir nada mais. Sr. Thomas Gradgrind - peremptoriamente, Thomas - Thomas Gradgrind. Com uma régua e uma balança, e a tabuada sempre no bolso, senhor, pronto para pesar e medir qualquer parcela da natureza humana, e dizer o resultado exato. É uma mera questão de números, um caso de simples aritmética”.
As tentativas de estabelecer relações de causalidade em economia, mediante o uso dos necessários procedimentos estatísticos, sobretudo na análise de séries longas, estão sujeitas a muitas restrições de método e de concepção acerca das relações que determinam os movimentos da economia como um todo.
Tais limitações foram apontadas por Keynes em sua crítica ao texto “Statistical Testing of Business Cycles”, do economista holandês Jon Tinbergen, publicado pela Liga das Nações em 1939. Ao tratar das flutuações do investimento, Tinbergen atribui a queda do investimento às flutuações dos lucros. Caem os lucros, definham os investimentos. Keynes pergunta: e se as flutuações dos lucros fossem dependentes das flutuações do investimento, “como, de fato, acontece”?
Vou fazer um reparo ao maior economista do século XX. “Acontece” é a conclusão de um processo complexo. O que “acontece” depende do que “faz acontecer”. Depende, portanto, das hipóteses teóricas que estabelecem a hierarquia das relações que sustenta o movimento do todo.
Keynes encontrou confirmação no desempenho das economias centrais durante os assim chamados 30 anos gloriosos do imediato pós-Guerra. Esse período foi marcado por virtuosa e estável relação entre gasto fiscal, endividamento público e privado e taxas de crescimento. Esse arranjo favoreceu o crescimento dos lucros e dos salários reais, em consonância com os ganhos de produtividade, elevando as receitas fiscais dos governos e estimulando o investimento das empresas.
Os níveis de endividamento do setor privado e do setor público, como proporção do PIB, evoluíram satisfatoriamente, porque as taxas de crescimento elevadas da renda das famílias, dos lucros das empresas e das receitas fiscais dos governos permitiam resultados positivos nos balanços patrimoniais de empresas, famílias e governos.
Keynes nos encaminha ao economista e pensador Joseph Schumpeter e suas divagações a respeito da Visão que constitui o preâmbulo intelectual incontornável da Análise.
“À mistura de percepções que antecedem as Análises chamaremos de Visão ou Intuição do pesquisador. Na prática, é claro, quase nunca começamos do zero porque o ato pré-analítico da Visão não é inteiramente nosso. Começamos a partir do trabalho de nossos antecessores ou contemporâneos ou então a partir das ideias que flutuam ao nosso redor na mente pública. Neste caso, nossa visão também conterá pelo menos alguns dos resultados de análises científicas anteriores. No entanto, este composto ainda é dado a nós e existe antes de começarmos o trabalho científico nós mesmos”.
As concepções ossificadas deixam de examinar o conjunto de relações que estruturam a economia do capitalismo como uma organização econômica, social e política singular, singular porque histórica. Isso significa que essas relações se reproduzem num movimento incessante de diferenciação e autotransformação no interior de sua estrutura. Não há determinismo nem indeterminação: o capitalismo se transforma no processo de reprodução de suas estruturas. A historicidade do capitalismo é a antítese do historicismo vulgar.
Jurgen Habermas sugere que, além de estarem submetidas à confirmação empírica (ou à rejeição), as teorias da sociedade devem estar sujeitas à demonstração de que são “reflexivamente aceitáveis”. A investigação deve compreender não apenas as instituições e práticas sociais, mas também incluir as convicções que os agentes têm sobre a sua própria sociedade - investigar não apenas a realidade social, mas os saberes que se debruçam sobre ela. Uma teoria social é uma teoria a respeito das convicções dos agentes sobre a sua sociedade, sendo ela mesma uma dessas convicções. Os assim chamados cientistas sociais, sobretudo os economistas, costumam descuidar dos fundamentos cognitivos implícitos em seus procedimentos.
* (Homenagem a Charles Dickens)
**Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.
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Mercado vê ata do Copom como trégua entre Campos Neto e Lula
BC acalmou os ânimos do governo, mas disse que tem papel de “mitigar” efeitos inflacionários da política fiscal
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A ata foi mais extensa que a anterior, com 7 páginas e 32 tópicos de comentários; na imagem, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto
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Sérgio Lima/Poder360 - 14.jan.2020
HAMILTON FERRARI
7.fev.2023 (terça-feira) - 13h33
O mercado financeiro avalia a ata publicada pelo Copom (Comitê de Política Monetária) nesta 3ª feira (7.fev.2023) como uma trégua entre os presidentes do Banco Central, Roberto Campos Neto, e da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O texto disse que o pacote fiscal do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, poderá atenuar os estímulos sobre a demanda e reduzir o risco de alta sobre a inflação. Por sua vez, Haddad elogiou o tom “amigável” da ata e afirmou que é o 1º passo para uma relação de harmonia entre as políticas monetárias e fiscais.
Além de afagar o ministro, o Banco Central também afirmou que tem compromisso em levar a inflação para as metas, e que a política monetária é a “variável de ajuste macroeconômico utilizada para mitigar os efeitos porventura inflacionários da política fiscal”.
A ata do BC foi mais extensa. Tem 7 páginas e 32 tópicos de comentários. A anterior, de dezembro de 2022, tinha 6 páginas e 23 tópicos. A autoridade monetária optou por um texto que explica de forma mais analítica as decisões da taxa básica, a Selic.
O economista e ex-diretor do Banco Central, Tony Volpon, disse em seu perfil no Twitter que a ata é correta e didática. O texto é mais explicativo ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que tem criticado a atuação do Banco Central.
“Não que ele vai concordar, faz parte”, disse o analista. “O BC também disse que faz suas projeções baseado em medidas ‘aprovadas por lei’, e admite que se Fernando Haddad passar seu ‘pacote’ que isso vai reduzir o risco de alta da inflação”, completou.
Volpon afirmou que o trecho é um “hasteamento” de uma bandeira branca pelo BC. Lula disse na 2ª feira (6.jan) que o aumento dos juros é uma “vergonha” e que o Brasil tem uma cultura de juros altos. O BC manteve a taxa de juros em 13,75% pela 4ª reunião consecutiva, desde setembro de 2022.
Leia outras vezes em que Lula criticou a taxa básica, o BC e o presidente da autoridade monetária, Roberto Campos Neto:
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BNDES precisa voltar a ser indutor do crescimento, diz Lula; Lula culpa Bolsonaro por dívidas de Cuba e Venezuela com BNDES; Lula quer reunir empresários e bancos para discutir taxa de juros; Lula volta a criticar autonomia do BC e sugere mudança; Lula diz ser “bobagem” achar que BC independente pode “fazer mais”; Lula quer meta de inflação maior para ser mais fácil de cumprir.
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O analista Carlos Macedo, da Warren Investimentos, disse que a mensagem do BC reforça a credibilidade da política monetária e fez “um pequeno aceno para diminuir a temperatura atual”.
“O cenário base é de manutenção da taxa de juros por algum tempo, a menos que as expectativas de inflação subam mais, exigindo um esforço adicional. A evolução do cenário internacional e do debate sobre as novas regras fiscais também serão fundamentais para os próximos [passos] da política monetária”, afirmou.
A Modalmais disse que a ata mantém o tom preocupado em relação às expectativas de inflação, mas aparenta “modular” o discurso “face os comentários” do Poder Executivo.
O economista-chefe da XP, Caio Megale, afirmou que o Copom entende que os acontecimentos recentes, principalmente do lado fiscal, podem atuar no sentido de elevar a taxa de juros neutra, o que exigiria uma elevação nominal da Selic ao longo do tempo. Em contrapartida, reconhece as medidas de Haddad como possíveis fatores que jogam contra a alta dos preços. “A ata é consistente com nosso cenário de taxa Selic estável pelo menos até o final de 2023”, declarou.
O banco GoldmanSachs disse que as declarações do BC são “duras” e que a autoridade monetária fez um grande esforço para comunicar que não vai ser leniente na busca de levar a inflação de volta à meta.
“A declaração de política é consistente com o fato de o Copom permanecer vigilante e conservador […] Em nossa avaliação, o cenário mais provável é que o Copom seja estável, paciente e mantenha a taxa básica de juros na atual postura monetária significativamente restritiva por algum tempo”, disse o relatório.
Análise da Levante disse que o BC dá um “crédito de confiança ao novo governo” com o pacote fiscal anunciado em janeiro. Mas enfatizou que a conclusão da ata é “clara, óbvia e inescapável”.
“Quando os investidores temem a irresponsabilidade fiscal e as autoridades começam a questionar o sistema de metas de inflação, isso eleva a incerteza. Mais incerteza eleva os riscos e os prêmios de risco. Assim, no cenário de um BC independente e atento a seus deveres constitucionais, o recado não poderia ser mais claro: se for preciso, os juros vão subir para conduzir a inflação de volta à meta”, disse.
Relatório do banco BTG Pactual disse que as discussões sobre possíveis mudanças na meta de inflação nos próximos anos e a política fiscal mais expansiva impulsionam a expectativas de inflação.
DIRETORIA DO BC O BC receberá a indicação de 2 nomes para as diretorias de Fiscalização e Política Monetária até o fim de fevereiro. O mercado avalia que não há, no ministério da Fazenda, orientação para mudar o perfil das indicações depois do comunicado do Copom.
Segundo relatório da XP, o governo deve continuar apostando em nome técnico e consensual, ainda que Lula mantenha o embate público para culpar o Banco Central pelo baixo crescimento.
ATA DO COPOM
O Banco Central divulgou a ata do Copom (Comitê de Política Monetária) da última reunião, na 4ª feira (1º.fev), quando decidiu manter a taxa básica, a Selic, em 13,75% ao ano. Eis a íntegra do documento (392 KB).
Havia sinalizado que os juros deverão ficar neste patamar atual por período mais prolongado, até meados de 2024. Analistas avaliaram o texto do anúncio como firme e necessário.
O BC afirmou que a trajetória do IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) piorou desde a penúltima reunião, em 7 de dezembro de 2022.
As projeções do mercado financeiro para a inflação estão em alta, segundo o Boletim Focus. As metas são de 3,25% em 2023, 3% em 2024 e 3% em 2025. O BC tem um intervalo de 1,5 ponto percentual para cumprir a meta. Leia os limites:
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intervalo das metas de inflação do Brasil
em %
ano piso da meta meta teto da meta
2023 1,75 3,25 4,75
2024 1,50 3,00 4,50
2025 1,50 3,00 4,50
fonte: CMN (Conselho Monetário Nacional)
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Desde 28 de outubro de 2022, antes da eleição, as taxas estimadas pelo mercado subiram de 4,94% a 5,78% para 2023, de 3,50% a 3,93% para 2024, e de 3% a 3,5% para 2025.
Passe o cursor para visualizar os percentuais no gráfico abaixo:
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Senado Notícias
Lei da autonomia do Banco Central entra em vigor
Da Redação | 25/02/2021, 10h22 - ATUALIZADO EM 26/02/2021, 13h35
A lei que estabelece a chamada autonomia do Banco Central (Lei Complementar 179) entrou em vigor na quinta-feira (25). Originário do PLP 19/2019, do senador Plínio Valério (PSDB-AM), o texto tem como principal novidade a adoção de mandatos de quatro anos para presidente e diretores da autarquia federal. Esses mandatos ocorrerão em ciclos não coincidentes com a gestão do presidente da República. A nova lei foi sancionada com dois vetos que, na avaliação do autor do projeto, não "mexem na espinhal dorsal da proposta".
Entre outros pontos, o texto, aprovado pelo Senado em novembro de 2020 e pela Câmara em 10 de fevereiro, determina que o presidente da República vai indicar os nomes, que devem ter aprovação do Senado. O indicado para o cargo de presidente do BC assumirá no dia 1º de janeiro do terceiro ano de mandato do presidente da República. Os oito diretores indicados, em caso de aprovação pela Casa, assumirão os mandatos de forma escalonada, de dois em dois e de ano em ano, a começar pelo primeiro ano do mandato do presidente da República. Na prática, esse formato pode fazer com que um presidente da República tenha que conviver com dirigentes indicados por governo anterior.
A partir de agora, o Banco Central passa a ser classificado como autarquia de natureza especial caracterizada pela "ausência de vinculação a ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica". Até então, o BC era vinculado ao Ministério da Economia.
O principal objetivo da instituição continua sendo assegurar a estabilidade de preços, mas também deve zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego.
As metas relacionadas ao controle da inflação anual continuam a cargo do Conselho Monetário Nacional (CMN), e o Banco Central vai ter os mesmos instrumentos atuais de política monetária.
Exoneração
A exoneração do cargo feita pelo presidente da República ocorrerá somente a pedido; por doença que incapacite o titular para o cargo; se houver condenação definitiva por ato de improbidade administrativa ou por crime cuja pena implique proibição de exercer cargos públicos; ou quando o indicado apresentar “comprovado e recorrente desempenho insuficiente”.
Nesse último caso, caberá ao CMN submeter o pedido ao presidente da República, e a exoneração terá de passar também pelo Senado, com quórum de maioria absoluta (41 senadores) para aprovação.
Quando houver vacância do cargo, um substituto poderá ser indicado até a nomeação de novo titular, mas essa substituição terá de passar também pela sabatina dos senadores após indicação da Presidência da República. A posse deve ocorrer em 15 dias após a aprovação.
Relatórios
No primeiro e no segundo semestre de cada ano, o presidente do BC deverá apresentar ao Senado, com arguição pública, relatório de inflação e relatório de estabilidade financeira, explicando as decisões tomadas no semestre anterior.
Após terminar o mandato ou mesmo no caso de exoneração a pedido ou de demissão justificada, fica proibido ao presidente e aos diretores participar do controle societário ou exercer qualquer atividade profissional direta ou indiretamente, com ou sem vínculo empregatício, nas instituições do Sistema Financeiro Nacional por um período de seis meses. Durante esse tempo, a pessoa receberá remuneração compensatória do Banco Central.
Vetos
Um dos vetos do presidente Jair Bolsonaro retirou do texto da nova lei o trecho que impedia presidente e diretores do BC de exercerem qualquer outro cargo, emprego ou função, públicos ou privados, exceto o de professor.
A justificativa do Planalto é que a medida é ampla e inviabilizaria a participação da cúpula do BC em importantes órgãos nacionais e internacionais, como o CMN, o Comitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiro, de Capitais, de Seguros, de Previdência e Capitalização e o Fundo Monetário Internacional.
Também acabou vetado o trecho que impedia presidente e diretores da instituição, bem como cônjuges e parentes até o segundo grau, de manterem participação acionária, direta ou indireta, em instituição do sistema financeiro que esteja sob supervisão ou fiscalização do Banco Central.
Segundo o Planalto, a medida "torna os dirigentes do Banco Central do Brasil responsáveis por condutas de terceiros sobre os quais não têm poder de mando (cônjuge e parentes até o segundo grau do dirigente), trazendo incertezas para o exercício do cargo não relacionados à sua esfera de atuação pessoal”.
Para o autor do projeto, o senador Plínio Valério, os vetos não alteram a substância do projeto original, e a tendência é que sejam mantidos pelo Congresso Nacional.
— Os vetos não são de tanta relevância. Eu não farei nenhum esforço para que sejam derrubados. Não mexe na espinha dorsal — disse à Agência Senado.
Os dispositivos vetados no projeto foram reunidos no Veto 6/21. Para a rejeição de um veto é necessária a maioria absoluta dos votos de deputados e senadores, ou seja, 257 votos de deputados e 41 votos de senadores, computados separadamente em sessão do Congresso Nacional.
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
Saiba mais
Autonomia do Banco Central já é lei
Proposições legislativas
PLP 19/2019
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COMPASSO DE ESPERA
Por que o mercado ignorou o recado do Banco Central e manteve a previsão de queda da Selic em 2023
Divulgação da ata do Copom, prevista para amanhã, pode ter levado parte dos agentes do mercado a aguardar o documento para rever a taxa Selic, mas não é só isso
Ricardo Gozzi
6 de fevereiro de 2023 12:33 - atualizado às 10:03
Montagem mostrando o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, escalando uma montanha, sinalizando o ciclo de alta da Selic, a taxa básica de juros do Brasil, promovido pelo Copom
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Roberto Campos Neto pode passar mais tempo no topo do Monte Selic. Imagem: Unsplash/Agência Brasil; montagem Andre Morais
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A pesquisa Focus do Banco Central (BC) veio à tona na manhã desta segunda-feira com variações residuais nas projeções de inflação (para cima) e do PIB (para baixo) em 2023. O que saltou aos olhos, entretanto, foi o que não se moveu. Pela terceira semana seguida, a mediana das expectativas dos agentes de mercado para a taxa Selic ao fim de 2023 permaneceu em 12,50% ao ano.
Embora esteja acima da projeção de quatro semanas atrás (12,25%), uma leitura fria do resultado sugere que o mercado espera do Comitê de Política Monetária (Copom) do BC cortes da ordem de 125 pontos-base até o fim do ano.
Recorrendo ao dicionário de bancocentralês, pode-se dizer que a expectativa está desancorada. Da realidade.
VEJA TAMBÉM - Lula X Banco Central: quem vence a 'guerra'?
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A dura linguagem do Copom
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Na semana passada, depois de o Copom ter decidido manter a Selic em 13,75% ao ano pelo próximo mês e meio, a dura linguagem do comunicado teve impacto direto sobre a inclinação da curva de juros futuros.
A leitura dos analistas é de que o Copom deve manter a taxa básica de juro em 13,75% ao ano por mais tempo que o esperado anteriormente, retardando assim o início de um futuro alívio monetário.
A queda de braço entre BC e governo
As justificativas do Copom são a desancoragem das expectativas de inflação no longo prazo e o risco fiscal. No entanto, a situação da taxa de juro tem como pano de fundo uma queda de braço entre o Palácio do Planalto e o Banco Central.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já questionou em mais de uma ocasião a autonomia do Banco Central e cobra da autoridade monetária participação em um esforço conjunto em sua tentativa de recuperar a economia.
Para Lula e seus ministros, o novo governo assumiu há pouco mais de um mês e não é responsável pelo atual déficit fiscal nem pelo nível da inflação, motivo pelo qual mereceria um voto de confiança do BC para recolocar a casa em ordem.
Voltando à Focus
Além da taxa Selic, outro foco de tensão entre o novo governo e o BC é a condução do regime de metas de inflação.
Em última instância, uma eventual alteração das metas tem potencial de impacto imediato sobre as expectativas para o IPCA neste e nos próximos anos.
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Mas o que surpreendeu na edição desta semana da Focus foi a permanência da projeção para a Selic no mesmo nível pela terceira semana seguida.
“Essas expectativas são tímidas e ainda não refletem o potencial de revisão que a gente pode encontrar na semana que vem”, afirma Mirella Hirakawa, economista sênior da AZ Quest.
Na avaliação de analistas consultados pelo Seu Dinheiro, o movimento (ou falta de) tem dois motivos principais:
a ata da última reunião do Copom; e
as datas críticas de alimentação da base de dados do BC.
A divulgação da ata da última reunião do Copom, prevista para amanhã, pode ter levado parte dos agentes do mercado a aguardar o documento antes de revisarem suas projeções.
Já a próxima data crítica de alimentação da base de dados é 10 de fevereiro, sexta-feira. É quando os agentes mais bem ranqueados devem enviar suas novas projeções ao BC.
No comunicado divulgado junto com a decisão do Copom, na semana passada, o BC sinalizou que o cenário de referência é insuficiente para ancorar as expectativas às metas de inflação.
A autoridade monetária também recorreu a um dos cenários alternativos para indicar que seu plano de voo para a ancoragem das expectativas poderia incluir a manutenção da taxa Selic a 13,75% ao ano até o terceiro trimestre de 2024.
Na avaliação de Mirella Hirakawa, “o mercado deve migrar para essa manutenção e a gente deve ver revisões mais significantes na semana que vem”.
Ricardo Gozzi
https://www.seudinheiro.com/2023/economia/selic-focus-ata-copom-bc-rsgp/
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O rábula, o médico e o anspeçada suicida: Evaristo de Moraes, Nina Rodrigues e o atentado que abalou a República
Helga Cunha GahyvaSOBRE O AUTOR
Resumo
O rábula Evaristo de Moraes e o médico Nina Rodrigues elaboraram investigações sobre o comportamento criminoso de Marcelino Bispo – autor do atentado contra Prudente de Moraes em 5 de novembro de 1897 – indicando uma questão comum: a responsabilidade penal. Reivindicando adesão aos postulados da antropologia criminal, compartilhavam a convicção de que a responsabilidade penal do anspeçada deveria ser atenuada em função de seu caráter sugestionado. A despeito das semelhanças, o uso específico que cada um deles faz das contribuições da criminologia não nos permitiria identificar diferentes formas de apropriação de igual matriz intelectual? O objetivo deste artigo é analisar as convergências e divergências argumentativas de ambos em suas análises.
antropologia criminal; Primeira República; racialismo; Evaristo de Moraes (1871-1939; Nina Rodrigues (1862-1906
Abstract
The lawyer Evaristo de Moraes and the physician Nina Rodrigues both investigated the criminal behavior of Marcelino Bispo, the perpetrator of an attack against President Prudente de Moraes on November 5, 1897, both highlighting the same issue: criminal responsibility. Speaking out in favor of the precepts of criminal anthropology, they shared the conviction that Bispo’s criminal responsibility should be attenuated in virtue of his suggestible nature. Despite the similarities, could the specific ways they each used the contributions of criminology give us the chance to identify different forms of appropriation of a single intellectual framework? The aim of this study therefore consists of analyzing where the arguments in their respective analyses converged and diverged.
criminal anthropology; First Republic; racialism; Evaristo de Moraes (1871-1939; Nina Rodrigues (1862-1906
O crime
Já foi dito que, em 1897, “a ideia mais em voga foi a do assassinato político” (Carvalho citado em Moraes, 1989a, p.107). Não se trata de mera hipérbole: de fato, os turbulentos eventos que marcaram a gestão de Prudente de Moraes, primeiro presidente civil da então jovem República brasileira, culminaram, em 5 de novembro desse ano, na tentativa de assassinato do chefe do Executivo (Carone, 1971; Penna, 1998). O atentado, apesar de falho em seu objetivo original, vitimou fatalmente o ministro da Guerra, marechal Carlos Bittencourt.
Na ocasião, autoridades e populares juntaram-se no cais Pharoux, atual praça XV, para recepcionar as tropas vitoriosas egressas da Guerra de Canudos. O presidente e seu ministro foram até o paquete Espírito Santo dar pessoalmente as boas-vindas ao general João da Silva Barbosa, comandante da derradeira expedição ao arraial baiano. Na volta, atravessaram a ponte que conduzia do Arsenal de Guerra ao pátio onde se concentrava a multidão. Foram surpreendidos pela ação de Marcelino Bispo de Melo, “pardinho, de 22 anos, imberbe, filho do estado de Alagoas” (Atentado, 6 nov. 1897) e anspeçada da 3a companhia do 10º batalhão de infantaria: ele sacou uma garrucha e atirou contra Prudente de Moraes. A arma falhou, dando oportunidade à reação do coronel Luiz Mendes de Moraes e de Bittencourt. O primeiro conseguiu golpear Marcelino na cabeça, mas o ferimento não foi suficientemente agudo para impedi-lo de esfaquear mortalmente o segundo.
O atentado fornece o pano de fundo sobre o qual versa este artigo. Seu autor, Marcelino Bispo, será alvo da atenção de dois afamados personagens da Primeira República: o médico Raimundo Nina Rodrigues1 e o então rábula Evaristo de Moraes, cuja atuação nos tribunais, à época, já amealhava os méritos que o tornariam “a maior mentalidade de criminologia que o país tem tido em todos os tempos” (Moraes, 1989c, p.230). Com a diferença de apenas dois meses (p.108), ambos publicaram análises sobre o criminoso apontando para uma questão comum: a responsabilidade penal. Evaristo dedicou-se ao caso na qualidade de advogado de defesa, atividade abortada em função do suicídio de Marcelino Bispo, pouco mais de três meses após o crime. Para Nina Rodrigues (1957, p.28), o estudo do caso era mais uma peça na sua batalha contra a “metafísica espiritualista” subjacente ao Código Penal de 1890, alvo de sua crítica pelo menos desde o lançamento, em 1894, de sua obra inaugural, As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (Rodrigues, 1957).
Em 1922, nas suas Reminiscências de um rábula criminalista – livro que, como o título indica, congrega as memórias do já advogado Evaristo –, ele assegurava ao leitor que o estudo do médico maranhense “adotava, precisamente, a mesma orientação, aproveitando os mesmos elementos do inquérito policial e pondo em contribuição os mesmos dados científicos” (Moraes, 1989d, p.108). Ambos reivindicavam adesão aos postulados da escola de antropologia criminal2 – que, em oposição à escola clássica,3 desqualificava o conceito de livre-arbítrio em face dos determinismos de várias ordens que guiariam o comportamento humano, especialmente o criminoso (Schwarz, 1993, p.166) –, afinidade ilustrada, por exemplo, pela coincidência das fontes bibliográficas por eles privilegiadas.4 Como veremos mais adiante, Nina Rodrigues e Evaristo também compartilhavam a convicção segundo a qual a responsabilidade penal de Marcelino Bispo deveria ser atenuada em função de seu caráter sugestionado. Mas, a despeito das flagrantes semelhanças, o uso específico que cada um deles faz das contribuições da antropologia criminal não nos permitiria identificar diferentes formas de apropriação de uma mesma matriz intelectual? Se é bastante conhecida a adesão de Nina Rodrigues aos postulados racialistas, caros ao paradigma cientificista hegemônico, teria o mulato Evaristo incorporado e mobilizado da mesma forma que o médico as teorias da hereditariedade? Por outro lado, Mariza Corrêa (fev. 2006, p.136) assegura-nos que “o Nina Rodrigues especialista na questão racial nasceu muitos anos depois, graças à publicação seletiva de seus trabalhos, feita por seus autoproclamados discípulos”. Assim, o destaque posteriormente atribuído ao tema racial, em sua obra, teria tanto obscurecido sua preocupação fundamental com a saúde pública quanto relegado a segundo plano a consideração de fatores outros que, junto à raça, contribuiriam para a identificação do comportamento criminoso. Nesse sentido, o que poderiam nos dizer sobre as escolhas teóricas de Nina Rodrigues (2006a) os nexos causais estabelecidos em “O regicida Marcelino Bispo”? Não obstante sua adesão quase integral ao cientificismo então vigente (p.137), seria possível identificar, nesse estudo, perspectivas alternativas que permitiriam ponderar o impacto das explicações racialistas em sua obra? Ou, ao contrário, sua “análise médico psicológica” (p.115) do anspeçada suicida corroboraria a supremacia dos fatores hereditários na investigação das motivações criminosas, ilustrando como, no país, a antropologia criminal subordinou as abordagens sociológicas (Alvarez, 2002, p.696)?
Orientadas por tais indagações, as duas próximas seções deste artigo serão dedicadas às análises dos dois estudos em tela, o de Evaristo e o de Nina, respectivamente. Na expectativa de esclarecer as questões já mencionadas, procederemos, na sequência, à comparação entre as duas narrativas.
Do ponto de vista metodológico, a investigação propõe-se a elaborar efeitos de conhecimento a partir de uma escala particular de observação. Inspira-se, assim, na abordagem micro-histórica (Ginzburg, 1989; Revel, 1998), incorporando a sugestão segundo a qual “variar a objetiva não significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto no visor, significa modificar sua forma e sua trama (Revel, 1998, p.20). Não se trata, todavia, de uma oposição entre o particular e o geral, pois a redução da escala é percebida como “modulação particular da história global” (p.28). Nesse sentido, pretende-se revelar como as análises de Evaristo e Nina Rodrigues sobre aquele evento específico contribuem para esclarecer e, ao mesmo tempo, problematizar os modos de circulação e apropriação do paradigma criminológico durante as primeiras décadas da experiência republicana brasileira.
O rábula
Evaristo de Moraes fora designado para defender Marcelino Bispo no conselho de guerra. Nas suas memórias, ele afirma ter aceitado a empreitada “seduzido pelo problema de psicologia criminal” (Moraes, 1989a, p.108) que lhe inspirava o caso. A partir dessa preocupação, elaborou as notas que comporiam sua argumentação no tribunal. Conforme dito anteriormente, o suicídio do réu deu cabo de sua tarefa. Evaristo, entretanto, reconheceu na sua peça de defesa a possibilidade de contribuir para suprir a ausência, no Brasil, “[d]essas obras de imparcial pesquisação criminológica” (Moraes, 1898, p.7). Segundo o rábula, seu “estudo de uma das causas mais célebres deste fim de século” (p.7) reproduzia a prática comum nos “países bem mais cultos”5 (p.5) de aplacar a “legítima curiosidade do povo” (p.6) pelos processos criminais sem abrir mão da “observação calma dos fatos” (p.7). Foi, portanto, para preencher tal carência de análises científicas dos documentos criminais que o rábula transformou suas anotações no opúsculo de sessenta páginas batizado com o nome de seu ex-futuro cliente: Marcelino Bispo: estudo de psicologia criminal (Moraes, 1898).
A argumentação de Evaristo divide-se em quatro partes. Ele avalia, inicialmente, a influência da sugestão hipnótica sobre o comportamento criminoso. Nas duas partes seguintes, analisa separadamente os efeitos sugestivos coletivo e individual que teriam guiado a conduta de Marcelino Bispo. O último capítulo – certamente ausente da versão original – apresenta seu suicídio como consequência lógica da interpretação adotada nas três outras partes: para o rábula, o destino do anspeçada, “última expressão da sua fraqueza moral” (Moraes, 1898, p.26), fora a comprovação científica de suas hipóteses. Vejamos mais detalhadamente como Evaristo constrói sua narrativa.
Sua principal fonte é o relatório policial da investigação sobre o atentado, assinado pelo primeiro delegado auxiliar Vicente Saraiva de Carvalho Neiva e concluído em 10 de janeiro de 1898 (Atentado..., 12 jan. 1898). O resultado do inquérito confirma as suspeitas de complô político surgidas logo após o crime: desde o início, a ação de Marcelino Bispo fora interpretada como “produto de uma conspiração”, desacreditando hipóteses alternativas que atribuiriam seu ato “unicamente ao fanatismo de um louco” (O atentado, 11 nov. 1897). Não à toa, no dia seguinte ao ocorrido, mesmo um jornal oposicionista como O Paiz não se abstinha de questionar:
Estamos em frente de um desavisado, que agiu por inspiração prévia, em um momento de furor, ou esse assassino é um reles instrumento de partidários sem escrúpulos, de demagogos odientos que nos seus cálculos de destruição foram até a violência de atentar contra a existência do Presidente da República? (O atentado, 6 nov. 1897, p.1).6
Se fora Marcelino Bispo “instrumento de exploração política” (Atentado..., 12 jan. 1898), a estratégia de Evaristo aliará os elementos de sugestão direta e indireta subjacentes ao crime – descritos no relatório policial – aos seus conhecimentos de psicologia criminal com fins de “atenuar, em mui alta dose, a responsabilidade do fanático anspeçada” (Moraes, 1989a, p.108).
Para comprovar o caráter sugestionado da ação do assassino, o rábula identifica, primeiramente, as influências do meio social brasileiro, ou seja, o papel da sugestão indireta. Seu objetivo, neste momento, consiste em caracterizar a “atmosfera política em que se tornou possível o atentado de 5 de novembro” (Moraes, 1989a, p.35).
A Revolta da Armada fornece o pano de fundo de sua explicação. O conflito, segundo ele, representou espécie de ponto de inflexão na história pátria: se tínhamos tido “três revoluções sem sangue” (Moraes, 1898, p.27), “assistimos ao irrompimento de ferocidades que não ousaríamos suspeitar dormitassem no caráter brasileiro” (p.28). Evaristo recorre ao conceito de “mimetismo moral”, elaborado por Scipio Sighele, para explicar como se processou tal transformação na índole nacional: se o instinto de conservação leva os indivíduos a adequar-se ao meio social em que vivem, o desenvolvimento do conflito entre florianistas e revoltosos ensinou “o povo, vendo os exemplos vermelhos dos morticínios, a ter desprezo pela vida alheia” (p.37-38).
A exaltação das paixões facciosas sobreviveu à conclusão oficial da revolta, tornando-se o “terrível fermento produtor de todas as nossas desgraças atuais” (Moraes, 1898, p.33). Para o rábula, a exacerbação dos ânimos partidários incensou a associação entre os revoltosos de Canudos e a ameaça de restauração monárquica. De fato, a historiografia sobre o período mostra como, sobretudo a partir do malogro da expedição de Moreira César ao arraial, os jornais de orientação jacobina investiram na denúncia do complô monarquista que estaria por trás da ação dos seguidores de Antônio Conselheiro (Carone, 1971, p.152). Tanto o opúsculo de Evaristo quanto o relatório policial atribuem a esses periódicos radicais papel de destaque na criação de uma atmosfera conspiratória que atingiu certo ponto crítico no episódio do assassinato do coronel Gentil de Castro, proprietário de jornais monarquistas. Tome-se como exemplo A Cidade do Rio: em oito de março de 1897, mesmo dia no qual fora o militar abatido a tiros na estação São Francisco Xavier, o jornal divulgava a “dolorosa notícia do desastre de Canudos” e dizia aos seus leitores que, se “a República tolerou a propaganda dos adversários”, a situação atual exigia a saída da “órbita da tolerância” (Aos heróis, 8 mar. 1897).
O triunfo definitivo sobre Conselheiro e seus discípulos tampouco aliviou as inquietações políticas. Lincoln de Abreu Penna (1998, p.28), em artigo que explora a conjuntura correspondente aos trinta dias que transcorreram entre o êxito governista sobre os sediciosos baianos e o atentado contra a vida de Prudente de Moraes, revela como se formou, nesse breve interstício, “um panorama de visível intolerância entre as partes que se supunham herdeiras da vitória sobre Canudos”.
Evaristo completa sua exposição quanto à ação da sugestão indireta sobre o anspeçada fazendo referência a dois outros eventos inter-relacionados cuja gênese ele atribui, igualmente, às consequências das rivalidades entre florianistas e revoltosos. De um lado, a cisão do Partido Republicano Federal, em meados de 1897: a reação do grupo de Francisco Glicério7 à recondução de Arthur Rios à presidência da Câmara (Carone, 1971, p.159-163) deixara clara a “discordância entre a intransigência radical do chefe do partido e a tolerância conciliadora do Chefe de Estado” (Moraes, 1898, p.33). De outro, o rábula destaca as discussões relativas à concessão de anistia aos militares sediciosos. A questão vinha tencionando as relações entre o governo e a oposição desde 1895. Em outubro deste ano, Prudente de Moraes negocia com o Congresso uma anistia restritiva que permitiria aos revoltosos retornar à ativa dois anos depois (Carone, 1971, p.143). Segundo Evaristo, a aproximação da “data fatal” (Moraes, 1898, p.35) teve impacto decisivo no recrudescimento do clima de intransigência política.
No relatório policial, os autoproclamados herdeiros de Floriano Peixoto são pintados com tintas sectárias. Segundo o delegado, eles creem guardar “o fogo sagrado do santuário fora do qual, a seu ver, estão os inimigos da República” (Atentado..., 12 jan. 1898). Os boatos a respeito do retorno dos militares revoltosos teriam, portanto, contribuído para que, “na carência de meios legais”, esses descontentes acolhessem “a ideia da violência, que tinha de ser tão habilmente inoculada no espírito de Marcelino Bispo” (Moraes, 1898, p.35).
Eis, segundo Evaristo, a caracterização da conjuntura política cujos efeitos guiaram a ação do anspeçada. Ele não fora, entretanto, um “autômato” (Moraes, 1898, p.35). Não se trata, assim, de negar plenamente sua responsabilidade individual, mas de mostrar como a influência do meio social, via contágio, permitiria atenuá-la, tal como ele conclui na sua exposição quanto ao papel da sugestão coletiva sobre o comportamento do assassino:
Quer isto dizer que o espírito público se acostumou ao espetáculo das vinganças partidárias, que desapareceu o respeito à liberdade, coincidindo com o desrespeito à vida, cuja última manifestação foi o sinistro conluio começado na farmácia Pacheco e de que se fez instrumento o desgraçado Bispo (Moraes, 1898, p.40).
Mas, para além dos mecanismos sugestivos indiretos, a análise da conduta do réu demanda a investigação dos efeitos de uma “verdade indiscutível” (Moraes, 1898, p.41): a influência de um indivíduo sobre outro – ou, em outras palavras, a ação da sugestão direta.
Sighele permanece o principal guia de Evaristo. O italiano apropria-se dos conceitos de íncubo e súcubo, próprios à demonologia medieval, para ilustrar o fenômeno por meio do qual o primeiro mobiliza seu prestígio para submeter o súcubo, “fraco e pouco resistente, moralmente falando” (Moraes, 1898, p.43), aos seus desígnios. No caso em questão, tratar-se-ia da associação entre dois indivíduos na qual o sugestionador da atividade criminosa manifestaria domínio cabal sobre o outro, alienando sua personalidade: Diocleciano Mártir e Marcelino Bispo, respectivamente.
Para comprovar sua hipótese, recorre Evaristo, mais uma vez, ao relatório policial. Segundo Vicente Neiva, o silencio inicial do anspeçada quanto às suas motivações indicava o respeito a “um pacto de sangue ... prestado em nome de alguma coisa sagrada” (Atentado..., 12 jan. 1898). As desconfianças oficiais dirigiram-se ao capitão honorário gaúcho Diocleciano Mártir, cuja prisão fora solicitada no dia seguinte ao crime.8 Quando Bispo finalmente rompeu seu sigilo, em 13 de novembro, as autoridades confirmaram que fora o diretor d’O Jacobino o principal responsável pela “sugestão lenta” que tornara “um honesto e bravo soldado um assassino” (Fagulhas, 27 jan. 1898).
Em seu depoimento, o alagoano atestara que, leitor assíduo do periódico editado por Mártir, conseguira, em agosto de 1897, travar contato direto com a liderança jacobina. A partir desse encontro, a história da relação entre ambos se configurou como um lento processo sugestivo por meio do qual o capitão, tornado “senhor absoluto daquele espírito” (José Rodrigues Vellozo citado em Moraes, 1898, p.53), transformara seu admirador em uma “poderosa máquina homicida” (p.50).
Confirmada a hipótese da dupla sugestão, mesmo o suicídio de Bispo não se explicará por razões individuais. Apesar de dominado por uma paixão política, sua ação criminosa fora guiada por determinações alheias. Valorizando a fidelidade que compartilhavam à memória de Floriano Peixoto, Mártir, em um contexto de radicalização política, soubera usar seu prestígio pessoal sobre o anspeçada para torná-lo instrumento de sua volição.
Nesse tipo de sugestão, a consumação do ato conduz à retomada da vontade própria, até então “adormecida por influência estranha” (Moraes, 1898, p.60). Se, como assegura Evaristo, Bispo “aparece à luz da psicologia criminal como um tipo perfeito de sugestionado” (p.66), a recuperação de sua consciência não virá acompanhada de remorso, sentimento que pressupõe discernimento da responsabilidade, mas de uma “dor cruciante” (p.61) que o leva ao suicídio.
Para o rábula, a fortuna do anspeçada confirma a hipótese da escola antropológica italiana segundo a qual a ausência de arrependimento implica a refutação do livre-arbítrio. Deriva daí sua defesa da atenuação da responsabilidade penal de Bispo: ele não poderia sequer se sentir culpado, pois, tal como Otelo, fora vítima de uma “sugestão perversa” dirigida por impulsos alheios (Moraes, 1898, p.66).
O médico
Nina Rodrigues inicia seu estudo sobre o anspeçada suicida qualificando seu crime como movido por uma associação a dois desenvolvida no âmbito de uma “seita política” (Rodrigues, 2006a, p.111). Para tanto, dedica-se à caracterização dos componentes dessa relação: o íncubo, Diocleciano Mártir, e o súcubo, Marcelino Bispo.
Sobre o primeiro, um “degenerado superior”,9 o médico maranhense acentua o sectarismo partidário que lhe fazia reagir violentamente “contra quem quer que não comungasse na temperatura rubra das suas opiniões políticas”. Destaca sua atuação na imprensa, por meio da qual soubera explorar as agitações militares, convertendo a militância florianista em uma “seita intolerante” (Rodrigues, 2006a, p.112).
A ação sugestiva de Mártir sobre Bispo iniciara-se, como notado acima, antes mesmo do contato direto entre eles. Se, tal como sugerira Gabriel Tarde, o conteúdo de um jornal “marca cerebralmente” (Rodrigues, 2006a, p.119) seu público leitor, fora sobretudo por meio das páginas d’O Jacobino que o anspeçada moldara suas convicções políticas. Traduzindo, a seu modo, para “inteligências acanhadas” e “educações incompletas” (p.120), as “doutrinas mais subversivas e conflagradoras” (p.112), o jornal era um daqueles panfletos oposicionistas que, segundo Nina Rodrigues, faziam “da imprensa partidária o pelourinho em que expõem à execração pública os nossos homens de estado” (p.126).
À “sugestão jornalística” (Rodrigues, 2006a, p.119) somaram-se os efeitos da proximidade física. A partir desse encontro, “a história de Marcelino Bispo é a do lento preparo sugestivo do assassinato” (p.121). Para comprovar sua hipótese, o maranhense recorre, assim como Evaristo, a trechos do inquérito policial que, segundo ele, evidenciam o processo por meio do qual o anspeçada se transformou em “prisioneiro moral” (p.113) do capitão gaúcho.
Se Mártir podia ser caracterizado como um “sectário criminoso vulgar” (Rodrigues, 2006a, p.111), a análise médico-psicológica de Bispo demandava investigações mais acuradas, a fim de provar que ele reunia simultaneamente traços comuns aos “regicidas modernos e [a]os súcubos criminosos” (p.111). Trata-se, segundo o médico, de um “regicida por sugestão” (p.118) cujo “delírio místico efêmero e transitório” (p.118) desenvolvera-se no âmbito de uma associação a dois, aliada à “comparticipação indireta do meio social e do momento político do meio social” (p.126).
Evaristo, na primeira nota de rodapé de seu opúsculo, faz referência ao livro de Emmanuel Régis Les régicides dans l’histoire et dans le présent, publicado em 1890, para distinguir os criminosos guiados por desequilíbrio mental daqueles submetidos à influência estranha (Moraes, 1898, p.9). Se Bispo, conforme visto, pertencia, para o rábula, ao segundo grupo, no outro constariam os regicidas. Baseado nessa mesma obra, Nina Rodrigues (2006a, p.115), sem abandonar a hipótese da sugestão alheia, destaca os elementos que enquadrariam o alagoano na primeira categoria: em primeiro lugar, a tenra idade – 22 anos –, quando são mais frequentes as “manifestações da degenerescência”. Em seguida, sua descendência indígena indicaria o “grau de sua impulsividade hereditária” (p.115).10 A execução do crime, em público e sob a luz do dia, também revelava traços comuns aos regicidas. Por fim, apesar do laudo da autópsia de Bispo, conduzida pelo doutor Barata Ribeiro, garantir que “não há, em nenhuma parte do corpo ... estigma de qualquer natureza que seja” (Marcelino Bispo, 26 jan. 1898), Nina Rodrigues – seja por desconfiar dessa informação, seja por desconhecê-la – lamenta a ausência de dados sobre seus estigmas físicos e suas condições mentais. Resta-lhe apelar para fotografias e gravuras, nas quais percebe, nele, “um grande desenvolvimento e saliência da mandíbula, um dos estigmas mais importantes da degeneração criminosa ou mórbida” (Rodrigues, 2006a, p.116). A constatação não o surpreende, afinal, “como todos os regicidas é naturalmente um degenerado” (p.115).
O desequilíbrio mental do anspeçada reforça suas certezas. A ele, aliam-se tanto uma vida instavelmente itinerante, produto dos “instintos nômades de seus avós selvagens” (Rodrigues, 2006a, p.116), quanto aquele misticismo exagerado que alimentava seu culto ao Marechal de Ferro.
O comportamento de Bispo após a execução do atentado, entretanto, afasta-o do tipo clássico de regicida. Ao seu silêncio inicial somou-se um depoimento pouco entusiasmado, marcado pela denúncia dos fomentadores do complô político subjacente à tentativa de assassinato do chefe de Estado. Regicidas, alega Nina Rodrigues (2006a, p.118), “só por exceção têm cúmplices”, pois desejam atribuir exclusivamente a si mesmos a grandiosidade do ato, tal como atesta o alarde com o qual costumam divulgá-lo. Por isso, raramente dão cabo da própria vida: o desejo de glória, aqui, anula o remorso que teria contribuído para o fim trágico de Bispo.
Eliminada a influência de Mártir, desaparecera a obnubilação patológica que provocara o atentado, atestando seu caráter epidérmico. Restou a Bispo, “sob a pressão odiosa do crime praticado” (Rodrigues, 2006a, p.123), entregar-se ao arrependimento e à morte, corroborando a hipótese de que fora regicida por sugestão. Eis a conclusão do estudioso: “E, sem prejuízo do valor sempre incontestável do fator antropológico, na determinação criminosa, assim se confirma aqui a justa sentença de Lacassagne: ‘a sociedade é o caldo de cultura dos seus micróbios criminosos’” (p.126).
Para Nina Rodrigues, o caráter transitório e artificial do delírio do assassino não elimina sua inimputabilidade. Polemizando, novamente, com a escola clássica, para a qual estaria Bispo dirimido de sua responsabilidade legal, o médico assegura defender a solução cara aos criminalistas positivos: reclusão em asilo ou manicômio (Rodrigues, 2006a, p.125).
Iguais, porém diferentes
Conforme indicado anteriormente, Nina Rodrigues e Evaristo constroem suas reflexões sobre Marcelino Bispo baseando-se em fundamentações teóricas semelhantes. Seja via a medicina ou o direito, ambos ilustram o impacto da antropologia criminal sobre a intelectualidade dos primeiros anos republicanos.11 Em outros termos, eles são contemporâneos às tentativas de dilatação do raio de ingerência das ciências médicas sobre o campo do direito.12 Nesse contexto, a valorização da figura do perito torna-se, frequentemente, peça importante nas discussões sobre responsabilidade penal (Mendonça, 2007, p.138), pois as conclusões da criminologia, especial, mas não exclusivamente, em sua versão italiana, apontam para a necessidade de substituição de uma noção abstrata do crime por uma concepção individualizada de criminoso (Darmon, 1991, p.21). Trata-se, em síntese, da condenação do livre-arbítrio – ou, para usar a célebre expressão de Nina, da “ilusão da liberdade” (Rodrigues, 1957, p.60) – em face da descoberta de determinismos capazes de explicar os “crimes sem razão” (Augusto, Ortega, 2011, p.224).
Inspirado nos preceitos da escola clássica, o Código Penal de 1890 condicionava a responsabilidade penal à responsabilidade moral. Consequentemente, a aplicação da pena era submetida ao discernimento do criminoso, tornando-se irrelevante quando destinada àqueles incapazes de compreender os resultados de seus atos (Mendonça, 2007, p.149-150). Em As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (Rodrigues, 1957), o médico maranhense empenhou-se em denunciar os riscos inevitáveis dessa concepção. Seus principais interlocutores,13 chamados à cena já na dedicatória – Lombroso, Ferri e Garofalo, “chefes da Nova Escola Criminalista”, e Lacassagne, “chefe da Nova Escola Médico Legal Francesa” (p.21) –, apoiam-no na tarefa de examinar as causas modificadoras da imputabilidade por meio do estudo das relações entre a responsabilidade penal e os atributos raciais.
Para Nina, a concepção espiritualista, típica da escola clássica, anacronizara-se em face das novas descobertas científicas. A hipótese de “uma alma da mesma natureza em todos os povos” (Rodrigues, 1957, p.28), suposta pelos discípulos de Beccaria, ignoraria a “lei da herança” (p.30), cara aos modernos preceitos evolucionistas:
Não só, portanto, a evolução mental pressupõe nas diversas fases do desenvolvimento de uma raça, uma capacidade cultural muito diferente, embora de perfectibilidade crescente, mas ainda afirma a impossibilidade de suprimir a intervenção do tempo nas suas adaptações e a impossibilidade, portanto, de impor-se, de momento, a um povo, uma civilização incompatível com o grau de seu desenvolvimento intelectual (p.29).
Do ponto de vista penal, o descompasso evolutivo entre as diversas raças humanas originaria diferentes concepções de crime, pois “o direito é um conceito relativo, e variável com as fases do desenvolvimento social da humanidade” (Rodrigues, 1957, p.77). Ou seja, a cada etapa de desenvolvimento moral e intelectual corresponderia uma criminalidade específica. Em agregados etnicamente homogêneos, dotados de “um mesmo grau de cultura mental média” (p.47), justificar-se-ia o livre-arbítrio como fundamento da responsabilidade penal. Não se trata, entretanto, do exemplo brasileiro, cuja população traz a marca da heterogeneidade étnica: “Só podemos falar de um povo brasileiro do ponto de vista político. Do ponto de vista sociológico e antropológico, muito tempo se passará antes de podermos considerar unificada a população do Brasil” (Rodrigues, 2006c, p.103). Nesse caso, “a existência de raças não brancas desmentiria pressupostos fundamentais ao liberalismo” (Ventura, 1991, p.53). Como proceder diante de agregados internamente dissonantes nos quais concepções sociais próprias às raças avançadas são impostas àquelas menos desenvolvidas? A resposta à questão, base de seu estudo sobre as relações entre raças humanas e responsabilidade penal, permite a Nina Rodrigues exercitar convicção reiterada em seu trabalho sobre Lucas da Feira,14 publicado em 1895: “Creio que poucas populações estarão, como a do Brasil, em condições de oferecer à escola criminalista italiana uma confirmação mais brilhante às doutrinas que ela defende” (Rodrigues, 2006c, p.104).
O defeito do Código Penal de 1890 é duplo – e inter-relacionado: ele é nacionalmente unificado e fundamenta a culpa na liberdade do querer individual. No que diz respeito ao primeiro aspecto, sua posição é clara:
Pela acentuada diferença da sua climatologia, pela conformação e aspecto físico do país, pela diversidade étnica da sua população, já tão pronunciada e que ameaça mais acentuar-se ainda, o Brasil deve ser dividido, para os efeitos da legislação penal, pelo menos nas suas quatro grandes divisões regionais, que ... são tão natural e profundamente distintas (Rodrigues, 1957, p.167).15
Essa solução, todavia, condiciona-se ao segundo problema, pois a ciência moderna, comprovando “a subordinação fatal de toda determinação, suposta voluntária, a conexões psíquicas anteriores” (Rodrigues, 1957, p.66), revela como a imposição abrupta de uma civilização superior a negros, índios e mestiços esbarra na “ação necessária do tempo” (p.30), obnubilando sua “consciência do direito e do dever” (p.47). Se o código de 1890 recusou-se a absorver as descobertas científicas, insistindo na associação entre responsabilidade moral e penal, a desarmonia entre a moderna criminologia e a obsolescência da nova legislação ampliaria o raio de ação das causas atenuantes ou dirimentes da responsabilidade penal: “Desde que os alienistas, peritos natos na matéria, se educam todos no espírito positivo e determinista da psicologia moderna... tanto mais numerosas serão as declarações de irresponsabilidade e mais frequente as absolvições” (p.66). O risco, portanto, era o de inundar as ruas de indivíduos perigosos, porém inimputáveis.
Trata-se de faca de dois gumes: por um lado, reconhece Nina Rodrigues (1957, p.163) que, na determinação das penalidades, o critério da defesa social muitas vezes prevalece, efetivamente, sobre o do livre-arbítrio. Por ora, “enquanto aguardamos, pois, que o lento preparo, a evolução natural dos espíritos tornem possível uma execução completa e harmônica das ideias e princípios da escola criminalista positiva” (p.165), o descompasso entre teoria e prática é a salvaguarda da ordem social. Por outro, a adesão do Código Penal à noção de livre-arbítrio, aliado a suas ambiguidades (Augusto, Ortega, 2011, p.225; Mendonça, 2007, p.144-154; Caulfield, 2000, p.73) e à sedução – não de direito, mas de fato – exercida pelas sugestões deterministas nos tribunais, poderia concretizar a impunidade geral temida pelo médico maranhense. Recorrendo a Gabriel Tarde (citado em Rodrigues, 1957, p.67), ele denuncia o risco: “Perante os tribunais, torna-se cada vez mais fácil ao advogado, com os escritos dos alienistas em punho, demonstrar o caráter irresistível das impulsões criminosas que arrastaram o seu cliente; e, tanto para o jurado como para o legislador, a irresponsabilidade do acusado é consequência”.
Decorre dessa apreensão sua condenação à instituição do júri. Na contramão da exigência, cara à antropologia criminal, da figura do julgador ilustrado (Mendonça, 2007, p.178-179), o artigo 113 da lei de organização judiciária estadual, de 15 de julho de 1892 (Rodrigues, 1957, p.185), vedava a inscrição, na lista de jurados, dos “menos incapazes, analfabetos e independentes” (p.186). Assim, “o júri, com todos os defeitos que lhe são inerentes, achou meios, na indiferença e incapacidade da massa da população de se tornar mais perigosa do que em toda a parte” (p.166).
Seus estudos sobre criminosos célebres complementam certas hipóteses levantadas em sua obra inaugural, afinal “o problema não deve ser resolvido em termos gerais de raça, e exige ao contrário que se desça à apreciação e ao exame das individualidades” (Rodrigues, 1957, p.118).16 Por isso, a necessidade de análises específicas sobre personagens como Antônio Conselheiro, Lucas da Feira e Marcelino Bispo.
Arthur Ramos (2006, p.20), no prefácio escrito em 1939 para o livro no qual estão reunidos esses estudos, As coletividades anormais, argumenta que Nina, “preso, embora, às teorias científicas de seu tempo”, marcadas por um “rígido lombrosionismo” (p.18), acentua, em tais análises, o peso dos fatores sociológicos e psicológicos.
De fato, viu-se mais acima que, no seu exame do comportamento do jovem anspeçada, os elementos antropológicos, sem dúvida relevantes, foram fertilizados por um húmus social e político francamente sectário. O menor peso conferido aos critérios biológicos talvez se esclareça pelas ausências: não há referência explícita ao mais conhecido nome da antropologia criminal. Se, indiretamente, Lombroso está presente de várias formas – na busca de Nina Rodrigues pelos estigmas de Bispo, na ênfase no seu comportamento impulsivo e na referência a Laschi, parceiro de Lombroso em Il delito politico (1890) –,17 o efeito da sugestão de Diocleciano Mártir sobre o alagoano pressupunha aquele ambiente de efervescência política tão bem caracterizado no opúsculo de Evaristo.
A se considerar as sugestões presentes em sua obra inaugural, Nina Rodrigues (1957) poderia ter insistido em explicar o comportamento de Bispo em função de suas características hereditárias. Ele traria na sua constituição física e moral as marcas da mestiçagem com o “menos aproveitável de nossos elementos étnicos” (p.144), o índio, justificando tanto sua vida errante, “dada a facilidade com que os já reputados civilizados voltam à vida selvagem” (p.34), quanto a impulsividade que o conduziu ao crime (p.140-141). Em outros termos, se recorresse exclusivamente ao livro de 1894, o médico chegaria à mesma conclusão que defendera cinco anos depois quanto ao justo destino do anspeçada homicida: se “os negros e índios, de todo irresponsáveis em estado selvagem, têm direitos incontestáveis a uma responsabilidade atenuada” (p.123), “os seus mestiços devem ser menos responsáveis do que os brancos civilizados” (p.140).
Nina Rodrigues (2006b, p.42), entretanto, insiste na importância daquele fator sociológico que enfatizara, em 1897, no seu artigo sobre Canudos. De modo semelhante a Bispo, cujo instinto de mestiço degenerado fora fertilizado, convertendo-o em criminoso, pelo radicalismo florianista, Antônio Conselheiro, “seguramente um simples louco” (p.44), não se tornaria o fomentador da loucura epidêmica de Canudos, despertando “as qualidades atávicas do mestiço” (p.51), caso estivessem ausentes “as condições sociológicas do meio em que se organizou” (p.43).18
A atenção de Nina Rodrigues (2006b, p.48) à “psicologia da época e do meio” dialoga com os estudos sobre psicologia coletiva – sobretudo no que tange à imputação de responsabilidade penal aos crimes coletivos –, então desenvolvidos por Scipio Sighele (1954, p.27-74; Gallini, 1988), e com a valorização dos aspectos sociológicos19 no campo da antropologia criminal, sob inspiração, entre os italianos, de Ferri (Corrêa, 2013, p.70; Alvarez, 2002, p.81; Darmon, 1991, p.102) e, do lado francês, da escola médico-legal e antropológica do “milieu social”, de Lyon. Liderados por Alexandre Lacassagne, os franceses reagiram especificamente à teoria atávica do criminoso nato (Mucchielli, 2000, p.63-64; Renneville, 1994, p.193, 1995, p.24) e, de modo geral, ao uso excessivo, entre os conterrâneos de Lombroso, das metáforas biológicas fomentadas pelo conceito darwinista de luta pela vida (Harris, 1993, p.97).
Não se trata de aceitar acriticamente uma suposta oposição rígida entre Lombroso e Lacassagne.20 A despeito de suas respectivas adesões às hipóteses do atavismo e da degenerescência para a explicação do comportamento criminoso (Mucchielli, 2000, p.63), ambos o associam à hereditariedade, ou seja, para o francês, não havia contradição entre sua valorização da ação do meio social e a ideia de um substrato orgânico a guiar os comportamentos desviantes (Renneville, 1995, p.8). Se ele permanece, porém, atribuindo papel de destaque aos elementos biológicos, “a grande diferença em relação a Lombroso é que ele via nas anomalias físicas e psíquicas dos criminosos consequências de um meio social desfavorável ... e não de fatores etiológicos da criminalidade” (Renneville, 1994, p.193).
É sabido, afinal, que o próprio Lombroso (1907), em seu último livro dedicado à criminologia, Le crime: causes et remèdes, de 1899, deixou-se “invadir pelas teses sociológicas” (Darmon, 1991, p.38), complementando os aspectos biológicos de sua teoria com a discussão das causas econômicas e sociais do crime. Mesmo admitindo que “quanto ao criminoso nato, há apenas uma terapêutica paliativa” (Lombroso, 1907, p.VIII), resta, segundo ele, significativo contingente de criminosos potenciais cuja sina pode – e deve – ser alterada por um programa de nourrissage moral.
Trata-se, assim, de amplo movimento por meio do qual as concepções mais propriamente sociológicas ganham destaque nas análises criminológicas.21 No caso do estudo sobre Marcelino Bispo, não é desprezível que Nina Rodrigues o conclua justamente com uma citação de Lacassagne.
Cesare Lombroso aparece na primeira, e já citada, nota de rodapé da peça de defesa de Evaristo, e Sighele, como se viu, constitui um de seus principais fundamentos teóricos. Também o rábula, nos anos 1890, publicara uma série de estudos sobre direito penal nos quais mobilizou intensamente os criminologistas italianos (Mendonça, 2007, p.63). Se o movimento de estreitamento das relações entre medicina e direito conheceu conflitos de atribuição, configurando múltiplos espaços para pelejas entre portadores desses dois saberes (Augusto, Ortega, 2011, p.233), a ciência muitas vezes protagonizou julgamentos. A atuação de Evaristo ilustrava as variadas formas por meio das quais “a linguagem médica era apropriada pelos advogados com o principal intuito de defenderem suas posições” (Paula, 2011, p.192). Na qualidade de advogado de defesa, cabia-lhe mobilizar o arsenal científico para semear suspeitas: “Quando não podia firmar a certeza da inocência, procurava instaurar a dúvida sobre a culpa” (Mendonça, 2007, p.144).
No caso de Bispo, por razões óbvias é impossível saber se Evaristo conseguiria atenuar sua reponsabilidade penal. Mas sua atuação em dois casos envolvendo imigrantes turcos ilustra como o processo de apropriação da ciência nos tribunais, a despeito da insistência do Código Penal no dogma do livre-arbítrio, poderia confirmar as preocupações de Nina Rodrigues quanto ao crescimento da impunidade (Mendonça, 2007, p.267).
O primeiro turco, José, assassinara a esposa no final de 1895. Para seu defensor, a “hereditariedade patológica do uxoricida” (Moraes, 1989b, p.79), causa da “índole doentia do ciumento-alcoólico” (p.78), demandava anulação ou atenuação da responsabilidade penal do réu. Munido de documentos que narravam o comprometedor destino de vários de seus parentes, o rábula assegurava aos presentes o futuro, porém inevitável desenvolvimento da loucura do turco. Suas palavras convenceram o júri e o réu foi absolvido por unanimidade. Alguns dias depois, realizou-se o vaticínio de Evaristo: seu cliente deu entrada no hospício.
Pouco depois de ter o turco assassinado a esposa, um conterrâneo seu fora morto por Laclínio Freire Barbosa. Evaristo o conheceu na prisão, durante visitas ao seu cliente José, e suas características físicas logo chamaram a atenção do rábula: “A face longa, as mandíbulas enormes, a fronte fugidia, as orelhas em asas, o olhar sorno, o riso alvar – tudo indicava um degenerado, tipo imbecil” (Moraes, 1989, p.82). Na qualidade de “curioso em assuntos de psiquiatria” (p.82), decidiu assumir o caso, apesar de suas parcas esperanças quanto à absolvição do réu. Suas expectativas, entretanto, foram positivamente frustradas, pois dois eventos contribuíram para sensibilizar o júri. Primeiramente, recebera ele, pouco antes do julgamento, nova e ampliada edição de O homem delinquente, de Lombroso. Na obra, deparou-se com o retrato de um imbecil nato e homicida cujos traços físicos assemelhavam-se sobremaneira aos de Laclínio. No momento da defesa, “o livro de Lombroso andou de mão em mão, entre os jurados” (Moraes, 1989b, p.82) – vários deles também partícipes do julgamento de José.
Mas, além da obra do italiano, exibira também Evaristo a certidão comprobatória da loucura do primeiro turco, cujos sintomas da doença, outrora prevista pelo seu defensor, manifestaram-se antes da sessão que levou à absolvição de Laclínio por “imbecilidade nativa” (Moraes, 1989b, p.83).22 “A suprema desgraça de um mascate turco trazia, assim, fortíssimos elementos à defesa do matador do outro mascate turco” (p.82).
Por trás das duas absolvições, o reconhecido talento jurídico e retórico de Evaristo exemplificava como os advogados de defesa, muitas vezes, transformaram as convicções da antropologia criminal em “tábua de salvação” (Darmon, 1991, p.175) capaz de dirimir a responsabilidade de seus clientes. No caso dos dois turcos, o rábula se apropriava do arsenal intelectual lombrosiano com o objetivo de impressionar os jurados, ou seja, sua meta passava ao largo da tentativa de produção de conhecimento científico. Ele se empenhava, antes, em mobilizá-lo como “elemento fundamental para a legitimação de opiniões e posições” (Mendonça, 2007, p.182).
Nesse movimento, contudo, o recurso ao clássico de Lombroso fora atípico. Evaristo, ao contrário, subestimava o viés mais propriamente raciológico da criminologia, para o qual as características raciais convertiam-se em importante elemento para atenuação da responsabilidade penal e do qual, como se viu, fora Nina Rodrigues expoente. De modo geral, pode-se dizer que, para ele, “as teorias que associavam raça e responsabilidade penal não parecem ter tido qualquer importância no que concerne à sua atuação no campo jurídico e judicial” (Mendonça, 2007, p.268).
Apesar de o próprio Evaristo, em suas memórias, insistir nas similaridades entre sua abordagem e a de Nina Rodrigues sobre Marcelino Bispo,23 as análises que produziram sobre ele revelam formas distintas de seleção do repertório da antropologia criminal. No primeiro caso, viu-se que a consideração do médico pelos fatores sociológicos alia-se à permanente importância que confere aos elementos étnicos na gênese do comportamento criminoso. Já no opúsculo do rábula, nota-se o silêncio de Evaristo quanto aos atributos raciais de seu cliente. As ausências, mais uma vez, são eloquentes: “A mesma ciência ... que era cultivada como maneira de assegurar um lugar no mundo dos ‘doutos’, de legitimar seu trabalho forense; era também, em muitas de suas vertentes interpretativas, a que desqualificava os indivíduos de sua ‘raça’” (Mendonça, 2007, p.279; destaques no original).
O jovem anspeçada não era um “relativamente distante” turco. Como seu advogado de defesa, ele trazia na pele as marcas da mestiçagem à brasileira. Mas isso, para Evaristo, não tornava seu cliente um degenerado, daí sua recusa a chamá-lo de “regicida”. Bispo fora vítima de efeitos sugestivos que prescindiram daquela “força cega e fatal” (Régis citado em Avelino, 2010, p.10) que Régis identificara na natureza necessariamente degenerada dos regicidas.
A preocupação com os efeitos da mistura racial entre os brasileiros era, sabe-se, característica marcante do ambiente intelectual da Primeira República. Os dilemas quanto à viabilidade de um país miscigenado traduziam-se na polarização entre aqueles que apontavam para a inevitável degeneração de uma nação miscigenada e os que viam no “branqueamento” a otimista possibilidade de ingresso do país no concerto das nações civilizadas – em comum entre as duas correntes, o postulado da superioridade branca (Gahyva, 2010, p.248; Schwarz, 1993, p.208). Se Sílvio Romero – aliás, bastante próximo a Evaristo (Moraes, 1989d, p.214-219, 1933, p.116-123; Mendonça, 2007, p.279-287) – destacava-se dentre os partidários da primeira posição, fora o médico maranhense cético em relação à “ideologia do branqueamento” (Rodrigues, 1957, p.90; Monteiro, 2016, p. 509). Na sua hierarquia racial, os mestiços compunham “categoria intermediária e ambígua” (Corrêa, 2013, p.133) dotada de “potencialidade catastrófica” (Mendonça, 2007, p.270): colonizar, transformando-o, o “mundo dos brancos”.
Para Evaristo, aquele dilema nacional confundia-se com sua própria trajetória pessoal (Mendonça, 2007, p.266). Em momento inspirado, diz sobre si mesmo: “Há indivíduos que, quando nascem, recebem, como presente da sorte, um pau de sebo” (Moraes, 1989c, p.230). Ao atingir seu topo, contrariando uma fortuna supostamente inexorável, ele, metonimicamente, refutava as convicções de Nina.
Considerações finais
A bem-sucedida trajetória de Evaristo poderia enquadrá-lo numa daquelas exceções às quais se refere Nina Rodrigues (1957, p.118) no seu estudo sobre responsabilidade penal. Mas tanto nessa obra quanto na sua análise sobre o destino dos irmãos Rebouças,24 o médico deposita poucas expectativas na efetiva capacidade dos “mestiços de talento” (Rodrigues citado em Corrêa, 2013, p.143; Rodrigues, 2008, p.1161-1162).
Ele parece crer que, ao fim e ao cabo, a sina do mouro Otelo,25 “eloquente atestado dos conhecimentos psicológicos de Shakespeare” (Rodrigues, 1957, p.119), persegue os espíritos miscigenados. Tal como Bispo, o famoso uxoricida fora submetido a intenso processo sugestivo que, partindo do meio externo, encontrou, na sua constituição étnica, “os instintos antigos, cimentados e estratificados pela herança de uma longa cadeia de antepassados, ... de modo a dar ganho de causa e predomínio às impulsões instintivas e indomáveis – criminosas no novo meio –, mas completamente inimputáveis” (p.118-119).
Como se viu anteriormente, é à tragédia shakespeariana que recorre Evaristo para explicar o comportamento do anspeçada. Se na sua interpretação, contudo, “Marcelino Bispo aparece à luz da psicologia criminal como um tipo perfeito de sugestionado” (Moraes, 1898, p.66), não foi sobre um organismo degenerado, mas sobre uma alma apaixonada (p.65) que incidira a ação reiterada de Mártir: “Foi o amor desordenado à memória de um Morto ..., e foi o amor sublime da Pátria e da República, ambos dominadores do espírito do anspeçada, que serviram de alimento à sugestão perversa que o levou ao crime e ao consequente suicídio” (p.66).
No caso de Nina, portanto, o recurso a Otelo ilustra a pregnância das sugestões racialistas em suas reflexões. Viu-se, é verdade, que não se trata de explicação monocausal. Seu estudo sobre Bispo, conforme discutido, aponta para a relevância dos fatores externos na gênese do comportamento criminoso. Mas, se a conjuntura política fomentou a ação do jovem anspeçada, foi graças à habilidade de Mártir em despertar certa espécie de Yago que cada mestiço carrega dentro de si.
Para Evaristo, a associação entre Bispo e Otelo reitera sua convicção quanto à “‘irresponsabilidade penal’ de certos apaixonados” (Moraes, 1933, p.13; destaques no original). Se, em 1898, ele afirmava que “a ciência ... mostra que o amor – em qualquer das suas manifestações – prepara o espírito para as explorações mais perniciosas” (Moraes, 1898, p.66), mais de três décadas após a publicação de sua análise sobre o crime que abalou a República, em A criminalidade passional (Moraes, 1933), ele recupera a análise de Ferri sobre o personagem shakespeariano, insistindo na similaridade entre as paixões românticas e políticas, afinal “o próprio amor, qualquer que seja, é já um produto de sugestão” (p.83).
Nota-se, em suma, que, partindo das mesmas referências teóricas utilizadas por Nina Rodrigues e, como ele, denunciando a “vacilante base psicológica” (Moraes, 1933, p.17) da noção clássica de livre-arbítrio, o rábula, entretanto, pouco adere ao viés raciológico da antropologia criminal. Esse distanciamento talvez seja explicado, em parte, pelo breve comentário do rábula quanto à recorrência “entre povos e raças diferentes e habitantes de regiões extremadas”, daqueles pactos que redundam em homicídio e suicídio por amor: “Tudo demonstra que o coração humano é sempre o mesmo” (p.81).
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1
O estudo foi publicado na Revista Brasileira, 5º ano, t.17, em 1899 (ver Ramos, 2006, p.14).
2
A expressão é aqui utilizada para designar estudos dedicados às características anatômicas, biológicas e sociológicas dos criminosos que, a despeito de suas divergências internas, compartilham certa “communauté de regard”: o olhar médico (Renneville, 1994, p.200-202). Nota-se, também, que “A denominação antropologia criminal, ainda que não tenha precisamente o mesmo significado, é recorrentemente intercambiada com Escola Positiva, tanto pelos seus contemporâneos quanto pelos estudiosos do assunto” (Ferla, 2009, p.23). Para seu mais célebre expoente, Cesare Lombroso, tratar-se-ia de uma “ciência global capaz de produzir um conhecimento homogêneo dos mecanismos dos vivos e ultrapassar fronteira entre ciências da natureza e ciência dos homens” (Coffin, 2017, p.2).
3
“Uma escola jurídico-penal clássica, organizada como tal, jamais existiu. A denominação ‘escola clássica’ foi cunhada por Enrico Ferri e foi adotada, inicialmente, pelos adeptos da escola positivista para indicar os seus opositores e formuladores da doutrina penal anterior” (Dantas, 2013, p.4). Para uma sintética distinção entre as escolas clássica e positiva, ver Cancelli (2001, p.32-33).
4
Todas as referências bibliográficas mobilizadas pelo médico estão presentes no opúsculo redigido pelo rábula, ainda que a recíproca não seja verdadeira, em função da maior abrangência das fontes citadas por Evaristo.
5
Evaristo refere-se diretamente a Itália, França, Portugal e Espanha, “para não sairmos dos países de raça latina” (Moraes, 1898, p.6).
6
Entretanto, ao contrário do que afirmaria o relatório policial, os editores d’O Paiz asseguravam que “vomitaria a mais sórdida das calúnias” aqueles que atribuíssem o atentado à ação da oposição constitucional (O atentado, 6 nov. 1897, p.1).
7
O relatório policial de Vicente Neiva “provocou grande celeuma”, pois envolvia “direta ou indiretamente” importantes personagens da vida política da época, entre elas o vice-presidente, Manoel Vitorino Pereira, e o próprio Glicério, “todos tendo como instrumento o anspeçada Marcelino Bispo” (O atentado, 4 nov. 1898, p.1).
8
Condenado a trinta anos de prisão, Diocleciano Mártir obteve liberdade em 1903.
9
Em artigo publicado em 1899, Nina Rodrigues (2008, p.1161) assegura que, entre os degenerados superiores, é possível diagnosticar “brilhantes manifestações de inteligência”.
10
Mesmo recusando, inspirado em Lacassagne, atribuir exclusivamente à consanguinidade a responsabilidade pela degenerescência, Nina Rodrigues (2008, p.1160) insiste em apontar “como são frequentes as manifestações de degenerescência na população mestiça”.
11
A recepção da criminologia no Brasil difunde-se a partir da Faculdade de Direito do Recife, em meados nos anos 1880. “Após Recife, inúmeros juristas, ao longo da 1ª República, divulgam a criminologia, entre eles, Evaristo de Moraes” (Alvarez, 2002, p.684). Analisando a Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, Schwarz (1993, p.156) destaca, em suas páginas, um “novo tratamento ao crime”, fruto de sua precoce adesão aos postulados evolucionistas, especialmente em suas variações racialistas.
12
Darmon (1991) chamou esse processo de “medicalização da sociedade”, perspectiva endossada, por exemplo, pelas pesquisas de Augusto e Ortega (2011, p.221) e Cancelli (2001, p.24). Questionamentos ao conceito são encontrados nas interpretações de Antunes (1999, p.9-11, 271-275) e, sobretudo, Paula (2011, p.19-29, 266), cujas pesquisas denunciam o hiato entre as ambições médicas e o efetivo alcance de seus projetos de intervenção social. Uma terceira posição, provavelmente mais fértil, posto que cadenciada, guia a reflexão de Ferla (2009, p.42), livrando-o de “dois atalhos sedutores: reconhecer a completa falência do programa-utopia positivista, ou, ao contrário, considerar sua vitória e implementação plena, sem concessões e mediações”.
13
Segundo Mariza Corrêa (2013, p.68), “as opções [teóricas de Nina Rodrigues] mais duradouras parecem ter sido feitas apenas a partir do momento em que tomou conhecimento da obra de Lombroso e seu grupo e dos trabalhos de Lacassagne e sua equipe em Lyon”. Os trabalhos de Gabriel Tarde são outra fonte recorrentemente discutida pelo médico maranhense, conforme acrescenta Corrêa (2013, p.71).
14
O caso de Lucas exemplifica, aliás, a relatividade do conceito de crime: “Logo, Lucas é bem um criminoso para nós outros brasileiros, que vivemos sob a civilização europeia. Na África, ele teria sido, a contrário, um valente guerreiro, um rei afamado” (Rodrigues, 2006c, p.108).
15
A demanda de Nina Rodrigues ilustra, no Brasil, movimento mais amplo, durante o último quartel do século XIX, pela reavaliação dos códigos penais clássicos (Harris, 1993, p.93).
16
Não se trata, para Nina Rodrigues (2008, p.1153), de optar entre uma das duas dimensões, mas de complementar o estudo genérico de características raciais com “observação direta e imediata”.
17
Dada a ausência de referência, não fica claro se a obra de Laschi consultada por Nina Rodrigues é a mesma escrita junto com Lombroso.
18
Nina Rodrigues refere-se, especificamente, à transição do regime monárquico para o republicano.
19
Borlandi (2000, p.9) nota a disputa, entre os antropólogos criminalistas, em relação ao real significado da ideia de “causas sociais”. Mas, apesar de polissêmica, a expressão referia-se, na maior parte dos casos, a questões econômicas.
20
A construção de uma narrativa que os colocava em campos contrários foi, também, parte importante das estratégias de distinção de Lacassagne em relação ao italiano, sobretudo no âmbito dos Congressos de Antropologia Criminal (Harris, 1993, p.100; Mucchielli, 2000, p.66; Renneville, 1995, p.10-14).
21
Não se deve confundir tal valorização dos aspectos sociológicos com o esforço de explicar os fatos sociais a partir de outros fatos sociais, tal como, à época, reivindicava Durkheim. Se, por um lado, a ampliação do raio das causas da criminalidade, no campo da antropologia criminal, pode ser entendida como parte de uma atenção crescente aos fatores sociais, foi também em oposição a essa escola que a doravante vitoriosa sociologia durkheimiana afirmou sua singularidade (Durkheim, 2000, p.67-99; Mucchielli, 2000, p.60; Renneville, 1995, p.27).
22
Mas não foi Laclínio posto em liberdade: “Eu me havia comprometido, com os jurados, a requerer a aplicação do art. 29 do Código Penal, caso absolvessem” (Moraes, 1989b, p.83). O destino do homicida foi o Hospício Nacional dos Alienados.
23
Para os significados da aproximação que cria Evaristo entre seu estudo e o de Nina Rodrigues, ver Mendonça (2007, p.260-265).
24
Se, por um lado, Nina Rodrigues afirma ser Antônio Rebouças, “outro mestiço notável pelo talento”, lembra, em seguida, que ele “morreu de uma mielite e [que] sua degeneração genésica que o tornava um homossexual ativo era notória” (Rodrigues citado em Corrêa, 2013, p.143-144). É ao mesmo Rebouças, “maior rábula brasileiro” (Moraes citado em Mendonça, 2007, p.303), que Evaristo dedica suas memórias. A dedicatória, ausente das edições seguintes, mostra como “na lembrança do rábula que atingira o reconhecimento intelectual, ... Evaristo parecia buscar os atributos que queria comunicar sobre seu passado rabulesco. Entre as identidades estabelecidas, além da rabulice, a raça – outra questão com que, inevitavelmente, ele teve que lidar” (Mendonça, 2007, p.265).
25
Ferri, em Sociologia criminal (1884), já identificava no personagem de Shakespeare “um criminoso passional típico” (Moraes, 1933, p.19).
Datas de Publicação
Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2018
Histórico
Recebido
3 Nov 2016 Aceito
21 Jul 2017
https://www.scielo.br/j/hcsm/a/MTpHgRnyTFM7B5K8rvmzrJR/?lang=pt#
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