Desinteressado de dinheiro, de glória
e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d’alma
[...] É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo
tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie,
mais orgulho de ser homem.∗
“(...) Olga falou aos contínuos,
pedindo ser recebida pelo marechal. Foi inútil. A muito custo conseguiu falar a
um secretário ou ajudante-de-ordens. Quando ela lhe disse a que vinha, a
fisionomia terrosa do homem tornou- se de oca e sob as suas pálpebras correu um
firme e rápido lampejo de espada:
—Quem, Quaresma? disse ele. Um
traidor! Um bandido!
Depois, arrependeu-se da veemência,
fez com certa delicadeza:
—Não é possível, minha senhora. O
marechal não a atenderá. (...)”
Todos os Santos (Rio de Janeiro),
janeiro — março de 1911.
Final de “Triste Fim de Policarpo
Quaresma”
Louco, para ele a vida não valia nada
Para ele a mulher amada
Era seu mundo
Joaquim josé, que também é da silva
xavier
Queria ser dono do mundo
E se elegeu pedro segundo
Não tem uma "viva alma" mais honesta
do que eu neste país, diz Lula.
Presidente Abstrato
Josias de Souza
19/02/2019 00h32
– Via Benett
Natural da cidade de Tombos, o general reside
em Muriaé desde 1970 (Fotos: Arquivo RM)
O general e a esposa Letícia, em solenidade na
qual recebeu o título de Cidadania Honorária de Muriaé, em 2013
Entre diversas ações de destaque, general
Floriano Peixoto comandou a Missão de Paz da ONU no Haiti
O General da reserva, Floriano Peixoto
Vieira Neto, radicado em Muriaé há quase 50 anos, foi nomeado oficialmente para
integrar a equipe de transição do presidente eleito, Jair Bolsonaro. A nomeação
do general foi publicada na edição desta terça-feira (13) do Diário Oficial da
União (DOU).
Nascido na pequena cidade de Tombos,
General Floriano Peixoto reside em Muriaé desde 1970. Pelo Exército Brasileiro,
ele comandou várias ações de destaque que motivaram condecorações no país e no
exterior, como a “Missão de Paz da Organização das Nações Unidas” (ONU), no
Haiti, entre 2009 e 2010.
Em 2013, o general foi agraciado com o
título de “Cidadania Honorária de Muriaé”, concedido pelo Poder Legislativo
Municipal, por indicação do então prefeito, Aloysio Aquino.
Na reserva do Exército desde 2014,
Floriano Peixoto atuou como pesquisador do Instituto Brasil do King's College,
de Londres.
Texto: Rádio Muriaé
Bolsonaro gravou vídeo por exigência de
Bebianno
Josias de Souza 19/02/2019 02h28
O vídeo divulgado por Jair Bolsonaro
após o anúncio oficial da exoneração de Gustavo Bebianno foi gravado por
exigência do ex-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. O blog
apurou que o conteúdo da fala do presidente foi minuciosamente negociado com o
ministro demitido. Bolsonaro mimou Bebianno, recobrindo-o de elogios, no
pressuposto de que receberá em troca o silêncio do ex-coordenador de sua
campanha presidencial.
blob:https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/65db07d8-7a3e-495c-9b00-1838a09d3b9a
Apenas Bolsonaro e Bebianno conhecem
na plenitude os segredos que compartilham. Mas o desfecho da negociação
sinaliza o potencial destrutivo de uma eventual inconfidência. Numa articulação
que teve o ministro Onyx Lorenzonni (Casa Civil) como principal intermediário,
Bebianno esclareceu que não aceitaria calado a "humilhação" de ser
exonerado sob as pechas de desleal, incompetente e corrupto. Inicialmente,
Bolsonaro deu de ombros. Comportava-se como se não tivesse o que recear. As
conversas do final de semana suavizaram-lhe as convicções.
Bebianno exigia algo que se aproximasse
de um pedido de desculpas. Sua principal referência era a entrevista que
Bolsonaro concedera à TV Record na quarta-feira da semana passada, dia 13 de
fevereiro, antes de deixar o hospital Albert Einstein, rumo a Brasília.
Comparado com os termos dessa entrevista, o teor do vídeo pós-demissão
transformou Bolsonaro numa espécia de ex-Bolsonaro. Antes, o presidente dissera
uma coisa. Depois, declarou o seu oposto.
Na conversa com o repórter da Record,
Bolsonaro deu asas à suspeita de envolvimento de Bebianno no escândalo das
candidaturas laranjas do PSL: "Se tiver envolvido, logicamente, e
responsabilizado, lamentavelmente o destino não pode ser outro a não ser voltar
às suas origens". Ao ser questionado se havia conversado com Bebianno, como
o ministro alegara na véspera, o presidente foi categórico: "Mentira”.
Na sequência, Bolsonaro lançou o ainda
ministro no caldeirão em que ardem as biografias carunchadas: "Sabe por
que é mentira? Porque eu determinei que a Polícia Federal investigasse.
Determinei ao Sergio Moro que, dentro da sua esfera de atribuição se fosse
possível investigar, e está sendo investigado. Essa é a resposta que dou para
todos aqueles que tentam praticar corrupção no Brasil.".
blob:https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/cec95f28-a8d6-4b4b-982c-5f22a691183b
No vídeo repassado aos jornalistas na
noite desta segunda-feira (18), um Bolsonaro bem ensaiado, muito diferente
daquele personagem espontâneo das transmissões ao vivo via redes sociais,
ladrilhou com pedrinhas de brilhante o caminho pecorrido por Bebianno desde a
coordenação da campanha presidencial até a poltrona de ministro, passando pelo
período em que exerceu o comando de um PSL cítrico. O que era suspeição virou
crença na "seriedade e qualidade de seu trabalho”.
"Tenho que reconhecer a dedicação
e comprometimento do senhor Gustavo Bebianno à frente da coordenação da
campanha eleitoral em 2018. Seu trabalho foi importante para o nosso êxito.
Agradeço ao senhor Gustavo pelo esforço e empenho quando exerceu a direção nacional
do PSL. E continuo acreditando na sua seriedade e qualidade de seu trabalho.
Reconheço também sua dedicação e esforço durante o período em que esteve no
governo”.
Na prática, Bebianno como que puxou
Bolsonaro para dentro do micro-ondas em que o presidente o havia colocado, numa
ação executada em conjunto com o filho Carlos Bolsonaro. Quem ouve o Bolsonaro
do vídeo desdizendo o presidente da entrevista de seis dias atrás se pergunta:
Mas, afinal, o que levou Bolsonaro a demitir Bebianno? "Razões de foro
íntimo", declarou, enigmático, o porta-voz Otávio do Rêgo Barros.
No vídeo divulgado após o anúncio do
porta-voz, Bolsonaro não desfez o enigma: "…Desde a semana passada,
diferentes pontos de vista sobre questões relevantes trouxeram a necessidade de
uma reavaliação", afirmou o presidente. Que pontos de vista? Não
esclareceu. Quais questões relevantes? Nem sinal. "Avalio que pode ter
havido incompreensões e questões mal entendidas de parte a parte, não sendo
adequados pré-julgamentos de qualquer natureza”.
O presidente da República implacável
com "todos aqueles que tentam praticar corrupção no Brasil" perdeu-se
em algum lugar no trajeto que separa o entrevistado da Record do leitor de
teleprompter desta segunda-feira. Acabrunhado com o resultado de sua metamorfose,
o ex-Bolsonaro se absteve de reproduzir nas redes sociais o vídeo de sua
contrição. Comportou-se como um Narciso que acha feio o que deixou de ser o
espelho dos habitantes de sua bolha no Twitter.
Morre homem identificado como marinheiro de
foto símbolo do fim da 2ª Guerra Mundial
Peritos identificaram George Mendonsa
como o homem flagrado beijando mulher vestida de enfermeira na comemoração do
fim da 2ª Guerra. Ele tinha 95 anos e morreu após sofrer queda na casa de
repouso onde vivia.
Por G1
18/02/2019
15h02 Atualizado há 18 horas
Icônica foto de 14 de agosto de 1945 mostra
marinheiro e mulher vestida de enfermeira se beijando nas comemorações do fim
da Segunda Guerra Mundial. O homem, identificado como George Mendonsa, morreu
aos 95 anos. — Foto: Victor Jorgensen/Arquivo/U.S. Navy
Morreu no domingo (17) o marinheiro
norte-americano George Mendonsa. Ele foi identificado como sendo o homem
fotografado beijando uma mulher na Times Square, em Nova York, na comemoração
do fim da Segunda Guerra Mundial.
Segundo o "Providence
Journal", Mendonsa sofreu acidente na casa de repouso onde vivia, no
nordeste dos Estados Unidos. A família contou ao jornal norte-americano que o
militar caiu, teve uma convulsão e morreu. Ele estava a dois dias de completar
96 anos.
Durante anos, George Mendonsa tentou provar
que era ele o homem na foto aos beijos com mulher vestida de enfermeira no fim
da Segunda Guerra Mundial — Foto: Connie Grosch/Providence Journal via AP
Nas imagens flagradas por Alfred
Eisenstaedt e Victor Jorgensen, um homem vestindo os trajes oficiais da Marinha
dos Estados
Unidos aparece beijando uma mulher com roupa semelhante à das
enfermeiras.
Durante anos, diversos homens e
mulheres contestaram a identidade do casal. Em 2012, porém, peritos observaram
os detalhes dos corpos das duas pessoas e confirmaram que o marinheiro da foto
era, mesmo, Mendonsa – durante anos, o militar tentava convencer a revista Life
de que era ele quem aparecia nas imagens.
Quem é a mulher na foto?
Os peritos também identificaram a
mulher como sendo Greta Zimmer Friedman. Ela trabalhava como assistente de
dentista quando, segundo ela, Mendonsa a agarrou em uma Times Square cheia. Era
14 de agosto de 1945, dia em que o Japão se rendeu aos
Estados Unidos, marco do fim da Segunda Guerra Mundial.
Mendonsa e Friedman não se conheciam.
O militar reconheceu, em entrevistas, que beijou a mulher após tomar bebida
alcoólica nas comemorações do fim do conflito. Friedman confirmou a versão.
"Aquele cara veio, me agarrou e
me beijou. Era apenas alguém festejando muito. Não foi algo romântico",
relatou Friedman à Biblioteca do Congresso em 2005.
Friedman morreu em 2016, vítima de
complicações da idade avançada.
2.Os personagens de Lima Barreto
Desinteressado de dinheiro, de glória
e posição,
vivendo numa reserva de
sonho,adquirira a candura e
a pureza d’alma [...] É raro encontrar
homens assim,
mas os há e, quando se os encontra,
mesmo tocados
de um grão de loucura, a gente sente
mais simpatia
pela nossa espécie, mais orgulho de
ser homem.∗
A literatura de Lima Barreto é
portadora de um sentido de crítica e de denúncia a uma ordem cujos valores ele
considerava deturpados e carregados de preconceitos que escondiam falsos
moralismos. Na realização desta tarefa, de trazer à tona, através da literatura,
as contradições da sociedade em que viveu, os personagens criados pelo escritor
têm fundamental importância.
Lima Barreto valoriza a cuidadosa
construção de seus personagens, fazendo com que eles representem de forma
crítica determinadas situações sociais da realidade. Em seu livro Impressões de
Leitura, o autor mais de uma vez faz elogios a autores que conseguem dar uma
“alma” aos seus personagens, dando-lhes vida, personalidade própria,
diferenciando-os uns dos outros, fazendo-os capazes de comunicar ao leitor “um
sentimento de vida, de realidade”, sugerindo a este o sentimento descrito pelo
autor. Em sua concepção, as circunstâncias da realidade ambiente devem ser
fundamentais para o escritor que, ao abstrair desta, “fabricaria fantoches e
não almas, personagens vivos”. (BARRETO, 1956 a, p.17).
A criação literária, para ele, está
intrinsecamente ligada ao meio no qual é produzida, e Lima Barreto deixa clara
sua convicção de que para escrever é necessário possuir o talento de observador
não só dos indivíduos, mas também da sociedade. Se para ele a literatura
deveria ter a função de ser um instrumento de comunicação entre os homens,
agindo como um meio de compreensão entre os mais diferentes homens, os seus
personagens são, então, “ferramentas” fundamentais nesse objetivo de comunicar
idéias e sentimentos, e mais do que isso, ainda, devem tornar tais idéias e
sentimentos assimiláveis, incorporá-los ao leitor.
∗ BARRETO, 1983, p.49
45
Neste sentido, podemos nos remeter
aqui à idéia de narrador desenvolvida por Walter Benjamin, para quem o
autêntico narrador é aquele que possui “a faculdade de intercambiar
experiências”, e aproximá-la da concepção de literatura defendida por Lima
Barreto, e, conseqüentemente, dos narradores criados por ele, que têm a tarefa de
estabelecer uma comunicação com aqueles que o lêem. Para Benjamin: “O narrador
retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos ouvintes.” (BENJAMIN,
1993, p.201). Segundo ele, “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a
fonte a que recorreram todos os narradores”. A sua análise tem como referência
os inúmeros narradores anônimos, os quais narravam oralmente suas histórias.
Benjamin acreditava que as melhores narrativas escritas são aquelas que menos
se diferenciam destas formas orais de narrativa. E ele destaca dois grupos de
narradores fundamentais, representados por tipos arcaicos, contendo cada um
características próprias: o marinheiro comerciante, que narra histórias vindas
de longe, de muitas viagens; e o camponês sedentário, que conhece bem as
histórias e tradições de seu país.
A importância da habilidade de narrar
experiências, inclusive a própria, no entanto, é comum aos dois, e o
conhecimento das mesmas faz com que tenham uma sabedoria que possibilita que a
sua narração seja uma forma de “conselho” para quem os ouve. Esta é, na visão
de Benjamin, a autêntica narrativa, que, mesmo transposta para a escrita, deve
preservar esta característica, como fica claro na seguinte passagem:
A natureza da verdadeira narrativa tem
sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa
utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão
prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o
narrador é um homem que sabe dar conselhos. (BENJAMIN, 1993, p.200).
Pode-se estabelecer, assim, uma
relação com o ideal barretiano no que diz respeito à literatura, já que para o
autor esta deveria ter um fim utilitário, funcionando como uma força de ligação
entre os homens, levando-os a unirem-se em prol da solidariedade humana,
contribuindo para a sua felicidade. Para Lima Barreto, a
46
literatura é o veículo capaz de
transmitir as mais diversas experiências de uns homens aos outros,
independentemente de raças, classes sociais e até épocas – fazendo com que se
compreendam mutuamente – e, por mais diferentes que sejam, tornando-os “semelhantes
no sofrimento da imensa dor de serem humanos”.
No interior desta concepção, portanto,
aquele que narra deve,
conseqüentemente, ser capaz de
observar e apreender as diferentes experiências, suas próprias e as alheias, e
de comunicá-las transpondo-as para uma esfera moral, como um conselho, algo que
possa ser seguido por todos os seres humanos. O narrador deve possuir a
capacidade de fazer com que as pessoas identifiquem-se com ele de alguma forma
e, a partir daí, possam identificar-se com outras pessoas, percebendo o que
existe em comum entre eles:
Podemos ir mais longe e perguntar se a
relação entre o narrador
e sua matéria – a vida humana – não
seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a
matéria-prima da experiência – a sua e dos outros – transformando-a num produto
sólido, útil e único? (BENJAMIN, 1993, p.221).
Benjamin chama a atenção, ainda, no
seu texto, que, deve ser lembrado aqui, foi escrito em 1936, para o fato de que
a tendência é que este tipo de narrador, próximo daqueles narradores orais já
citados, é desaparecer, pois cada vez mais a idéia de “dar conselhos” parece
antiquada, como resultado de um processo no qual as experiências estão deixando
de ser comunicáveis.
Este processo, segundo ele, tem o seu momento
culminante de evolução quando surge a informação veiculada pela imprensa, a
qual, de acordo com o autor, foi um dos mais importantes instrumentos no que se
refere à consolidação da burguesia. A difusão desta nova forma de comunicação,
que é a informação, é, assim, responsável pelo declínio daquela narrativa
associada à sabedoria, à experiência. A idéia de progresso desvaloriza a
sabedoria adquirida com o tempo, fazendo com que aquele que sabe “dar
conselhos” torne-se inútil.
Nesta perspectiva, Lima Barreto pode
ser visto como um escritor que, embora tenha vivido em um período de grande
valorização do progresso, da novidade, das aparências, manteve, na sua maneira
de conceber a literatura, a essência do “autêntico narrador” apontado por
Benjamin. Sua crença era na possibilidade do entendimento e
47
da solidariedade humana. Ao invés das
distinções e desigualdades sociais que tanto o incomodavam, seu objetivo era
buscar o elemento unificador, que aproximasse os seres humanos uns dos outros,
entendendo a sua literatura como forma de participação na sociedade.
Assim, a recorrência a aspectos
autobiográficos, em sua obra, deve ser entendida sob o seu ponto de vista, e
não como um fator de comprometimento de sua literatura, como pensavam alguns
críticos como José Veríssimo, Medeiros e Albuquerque e João Ribeiro, que
consideravam sua literatura por demais personalista e confessional, como se
fosse apenas um desabafo de suas angústias e frustrações. Ou seja, para ele,
usar suas próprias experiências, sentimentos e pensamentos, poderia contribuir
para que os leitores se identificassem, refletissem sobre suas próprias vidas a
partir da sua narração. A literatura era um meio de “nos revelar uns aos
outros.”
Assim sendo, ainda que o escritor
tenha colocado em seus livros muito de sua própria vida, e que tenha feito seus
personagens viverem muito do que ele próprio viveu, aproveitando neles seus
sentimentos, decepções, angústias, idéias, toda a sua obra literária foi
produzida sendo norteada pela busca de ideais coletivos, voltados para uma
dimensão social, e não para descarregar seus problemas particulares. Esta interpretação
de sua obra como sendo apenas um espaço onde ele externalizava suas frustrações,
restringe-a, ao meu ver, apenas às questões pessoais do autor.
Francisco de Assis Barbosa, na
importante biografia que escreveu sobre Lima Barreto, comete talvez um equívoco
ao afirmar de forma tão categórica a identidade entre obra e autor. Não se
pretende aqui fazer uma crítica ao livro de Francisco Assis Barbosa, de
reconhecida importância; apenas chamar a atenção para o fato de que, ao contrário
de sua interpretação, que vê os personagens de Lima Barreto confundindo-se com
o próprio escritor, como se fossem um só, a abordagem aqui feita pretende interpretar
os personagens como criação do autor, pertencentes a uma esfera ficcional, através
dos quais o escritor realiza sua crítica social.
Ao usar suas próprias experiências
pessoais, idéias ou observações a respeito de acontecimentos históricos e fatos
sociais em suas obras de ficção, o autor parte do particular para o geral,
traduzindo, através da criação artística, o individual para um alcance social.
Como bem observou Antonio Candido: “Elaborou a realidade com um
48
toque que nos faz ler como se fosse
trecho de ficção este retalho onde a dimensão pessoal converge com a visão da
sociedade e a consciência artística, propiciando a realização literária plena.”
(CANDIDO, 1987, p.44). E em outra passagem:
Com efeito, trata-se de um elemento
pessoal que não se perde no personalismo, mas é canalizado para uma
representação destemida e não-conformista da sociedade em que viveu. Espelho contra
espelho é uma das atitudes básicas desse rebelado que fez da sua mágoa uma
investida, não um isolamento. (CANDIDO, 1987, p.50)
2.1. A caminho dos personagens
Dentre a enorme gama de personagens
criados pelo autor de Policarpo Quaresma, os que serão analisados aqui são
aqueles que, na sociedade representada pelo escritor, são vistos como
“esquisitos”, loucos, que levam uma vida “extravagante”, excluídos por não
estarem de acordo com as idéias predominantes no mundo em que vivem, ainda que
não necessariamente no hospício. São estes personagens “inadaptados” em relação
à sociedade, vivendo uma vida isolada, que são incumbidos de transmitir os
valores considerados verdadeiros pelo escritor, como solidariedade,
sinceridade, justiça, em oposição aos valores predominantes na época vistos por
Lima Barreto como deturpados.
De acordo com Nicolau Sevcenko (1999),
todo o universo temático da obra do escritor é composto tendo como questão
central as práticas de coerção, discriminação e marginalização social, podendo
ser interpretado como uma denúncia dos
mecanismos de manutenção de poder,
divulgação da ideologia das classes dominantes, e de marginalização social.
Dentre estes mecanismos destacam-se a imprensa e a ciência, criticadas em
várias obras pelos seus papéis de legitimadoras das teorias e ideologias
opressoras e discriminadoras imperantes na nova sociedade “irredutível, na sua
solidez, para com as individualidades desviantes”.
Para Sevcenko, “os personagens de Lima
Barreto, sem exceção, ou
49
representam as vítimas dessa estrutura
plástica e constringente, ou as formas de consciência e conduta de que ela se
nutre”. (1999, p.174). Os personagens que são vítimas de abominação social são
revestidos de uma dignidade e de uma humanidade superiores, verdadeiros, de
acordo com um ideal humanitário e de uma sociedade justa, ética e solidária
defendido pelo escritor.
O ideal de união e solidariedade humana
almejados pelo escritor ia, portanto, de encontro à realidade na qual vivia,
onde os valores eram outros. Na sua produção literária, esta tensão se reflete,
de acordo com Nicolau Sevcenko, em duas dimensões diferentes, que se relacionam
mutuamente: uma primeira, que diz respeito à temática das instituições de poder
e de suas conseqüências de exclusão social e divisões dentro da sociedade, e
uma segunda que busca, em contrapartida, realçar a dignidade e honestidade dos
desprezados e excluídos, representando o ideal da confraternização e solidariedade
humanas.
Estes, que permanecem durante sua vida
mantendo-se fiéis a valores como a justiça, o respeito aos direitos dos outros,
e valorizando a sua independência de pensar e agir, são, segundo o escritor, os
que sofrem ao chocarem-se com a “brutalidade do nosso viver atual.”
(BARRETO,1998, p.346), tendo dificuldades em viver em um tempo de “hipocrisia e
bajulação, da mediocridade triunfante e da ignorância triunfante”.
2.2. Policarpo Quaresma
Policarpo Quaresma, talvez o mais
conhecido de todos dos personagens de Lima Barreto, protagonista do romance
intitulado Triste fim de Policarpo Quaresma, é um exemplo de como o autor
manifestou alguns de seus ideais e críticas através das criaturas que inventou.
A defesa da valorização da cultura popular brasileira, a denúncia do
autoritarismo do governo de Floriano Peixoto, a questão agrária nacional, a
crítica ao saber de “gabinete” e à instituição psiquiátrica, tudo isso aparece
50
através da vida de Policarpo Quaresma.
O personagem, que inicialmente possuía
uma visão ingênua da realidade, construída a partir de um conhecimento
puramente “livresco”, vai, no decorrer de sua trajetória, defrontando-se com o
mundo real. Este confronto, no entanto, não o faz render-se a ele e aos seus
valores e Policarpo continua seguindo, até a morte, seus ideais em defesa de um
país melhor. Primeiro, é considerado louco e internado no hospício quando,
defendendo um ufanismo ingênuo, assina um requerimento endereçado ao Congresso
Nacional, pedindo que seja decretado o tupi-guarani como língua oficial e
nacional brasileira.
Ao sair do hospício, Quaresma decide
mudar-se para um sítio distante e dedicar-se à agricultura. Embora tenha
desistido da idéia da instauração do tupi-guarani como língua oficial, não
desistiu do seu ideal de lutar por um país melhor, e passa então a cuidar da
terra, acreditando que o investimento na agricultura trará melhoras para
Brasil.
Esta experiência no campo também
fracassa; seu sítio é invadido por formigas saúvas que destroem toda a
plantação. Porém, com ela, Policarpo aprende a valorizar o conhecimento que
existe além dos livros junto com a população rural que, muitas vezes, tinha
mais conhecimento sobre a terra do que ele próprio, que havia estudado tudo nos
livros.
Além disso, o personagem também
consegue ter uma visão crítica da atitude do governo em relação à questão
rural. É, portanto, aquele que é visto pela maioria das pessoas como louco,
esquisito, que percebe o abandono em que viviam as populações rurais, sem ter
uma terra própria para cultivar, sem o apoio do governo para tratar das terras,
enquanto grandes proprietários mantinham terras improdutivas.
Quaresma teve a convicção de que era
preciso novas medidas para dar novas bases à vida agrária e, mais do que isso,
percebeu que o problema não poderia ser resolvido individualmente, mas sim com
mudanças que necessitavam de uma participação de natureza coletiva. De acordo
com Nicolau Sevcenko:
De fato, essa passagem do ufanismo à
lucidez crítica resume a própria trajetória do major Quaresma, símbolo de uma intelectualidade
que reformula suas posturas. Ela implicava sobretudo uma mudança na forma de
olhar, exigindo que se saísse
51
das páginas dos livros e da cultura
letrada, das tribunas, das bibliotecas e dos gabinetes, para um contato direto
com a realidade do país, sua natureza, sua gente, seus campos, suas cidades. A experiência
existencial dessa intimidade com o homem e a terra se encarregaria de
traduzir-se por si mesma em consciência crítica e avaliação das condições reais
do país. (SEVCENKO, 1999, p.178).
A questão agrária, levantada pelo
personagem Quaresma, é uma das importantes questões sociais sobre as quais Lima
Barreto se debruçou. Causava-lhe indignação a concentração de extensas
propriedades rurais nas mãos de alguns poucos proprietários que não as faziam
produtivas, enquanto muitos trabalhadores que viviam no campo não tinham terra
nenhuma que pudessem cultivar. Em um artigo que escreveu três anos depois da
publicação de Triste fim de Policarpo Quaresma, em 1918, o escritor expõe sua
indignação:
Não é possível compreender que um tipo
bronco, egoísta e mau, residente no Flamengo ou em São Clemente, num casarão monstruoso
e que não sabe plantar um pé de couve, tenha a propriedade de quarenta ou sessenta
fazendas nos Estados próximos (...), enquanto, nos lugares em que estão tais
latifúndios, há centenas de pessoas que não tem um palmo de terra para fincar quatro
paus e erguer um rancho de sapê, cultivando nos fundos uma quadra de aipim e
batata doce.( BARRETO, 1956 c, p.90).
Aprofundando ainda mais sua crítica,
Lima Barreto questiona a propriedade privada. Em sua visão, é absurdo que a
comunhão social seja lesada em função da propriedade nas mãos de um único
indivíduo. Seguindo este raciocínio, ele acredita que o indivíduo só deve
conservar para ele aquilo de que necessita para viver bem, para manter a sua
vida e a de sua família. Em outro artigo também de 1918, ele escreve:
Precisamos combater o regímen capitalista na agricultura, dividir a propriedade
agrícola, dar a prioridade da terra ao que efetivamente cava a terra e planta e
não ao doutor vagabundo e parasita, que vive na “Casa Grande”. (BARRETO, 1956
c,.p.133).
Voltando ao Major Quaresma, este,
apesar de sua consciência crítica adquirida com a vivência rural, acaba agindo
mais uma vez de maneira inocente e, confiante na vitória e na validade de seus
ideais, acreditando que estes poderiam ser partilhados por todos, acaba indo
pedir ajuda ao próprio Marechal Floriano Peixoto, para que este
52
dê terras para a população que vive no
campo e ajuda para que esta possa cultivá-la.
O que Policarpo Quaresma recebe como
resposta, porém, é o desprezo pela população rural, considerada composta por
vadios nas palavras do Marechal: “Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr
a enxada na mão de cada um desses vadios?!....Você, Quaresma, é um
visionário.....” (BARRETO, 1983, p.131).
Por fim, depois de lutar ao lado do
Marechal Floriano, ainda impulsionado pelo seu espírito patriótico, Quaresma
passou então a trabalhar como carcereiro. Ao presenciar, porém, a saída de uma
leva de prisioneiros para uma “carniçaria distante”, sentira-se “desafiado nos
seus princípios, na sua solidariedade humana”. Resolveu escrever uma carta ao
presidente, expondo sua indignação, protestando contra a cena que presenciara,
o que acaba por levá-lo à morte pelos fuzis dos soldados de Floriano.
Pouco antes de morrer, o personagem já
aparece desiludido e decepcionado, como mostra uma carta que escreve à irmã:
Além do que, penso que todo este meu
sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido,
e o sangue que derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram
empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e
desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer.....Ninguém compreende o
que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maníaco e a
vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade. (BARRETO,1983,
p.154).
Diante da morte, depois de várias
decepções, o Major Quaresma se rende ao pessimismo e questiona os seus atos, o
seu ingênuo idealismo patriótico que faz com que, agindo de forma inocente pela
última vez, escreva uma carta ao presidente protestando contra a violência que
presenciou, atitude esta que o leva à morte. Suas convicções vão de encontro a
uma realidade dura e brutal, a todo um sistema que pretende padronizar os
indivíduos de acordo com determinados moldes. Embora sua dedicação à pátria,
seu desejo de lutar por melhores condições de vida para todos, e seus ideais
humanitários fossem sinceros e verdadeiros, suas tentativas de concretizar tais
ideais em ações práticas foram todas um fracasso, e o que o personagem acabou conseguindo
foi uma estadia no hospício, sua plantação invadida por formigas e o trágico
fim: o fuzilamento.
53
Nos trechos finais do livro, onde
Quaresma está sozinho na cela esperando ser levado para a morte, fica claro o
questionamento do criador do personagem ao tipo de saber que se restringe ao
“gabinete”, distanciado da realidade social:
Iria morrer, quem sabe se naquela
noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da
miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir
para sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua
virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava,
como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o [...]. O tupi encontrou
a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção.
E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como
diziam os livros. Outra decepção. [...] A pátria que quisera ter era um mito;
era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. (BARRETO, 1983,
p.152).
Assim, Lima Barreto questiona o
desconhecimento da realidade do país e a manipulação política das idéias do
Brasil nação, ridicularizando o conhecimento adquirido através apenas dos
livros, e colocando em discussão a validade de uma cultura obtida em gabinete,
assim como as conseqüências de um patriotismo construído a partir de uma
cultura livresca.
Por outro lado, o autor de Policarpo
Quaresma manifesta algumas de suas críticas à estrutura política e social
brasileira, por intermédio do personagem que é condenado à morte por defender o
que considera justo. Pois, se é possível o questionamento das atitudes ingênuas
de Policarpo, vendo-as como conseqüência de uma cultura unicamente livresca e
distante da realidade concreta, que o fazem incapaz de viabilizar as mudanças
que deseja, ao mesmo tempo, também é inegável a sinceridade e a honestidade com
que o personagem defende e acredita nas suas convicções sobre a importância de
medidas sociais mais justas para aqueles setores menos privilegiados da sociedade.
Policarpo, com todos os seus erros e
dificuldades, mantém, portanto, uma posição que vai de encontro às idéias
políticas dominantes. De acordo com Silviano Santiago, em seu artigo denominado
Uma ferroada no peito do pé, o romance de Lima Barreto é um dos que melhor
tematiza a questão da repressão ao intelectual dissidente. Segundo Silviano
Santiago:
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A força de dissidência não reside
tanto nas ações patrióticas do personagem com vistas a uma mudança radical no
Brasil, mas no fato de Policarpo ter suas ações norteadas por um ideal, e é perseguindo
este ideal que se insurge contra as forças dominantes no contexto sócio –
político e econômico brasileiro. (SANTIAGO, 1982, p.7).
É, portanto, perseguindo seus ideais
que Quaresma insurge-se contra as forças dominantes e vive na própria pele a
repressão. Assim, o seu fracasso está associado também à questão da oposição,
da defesa de idéias e valores opostos às idéias e valores proclamados pela
política dominante. Esta questão aparece em outros romances e contos de Lima
Barreto, onde aquele que é o dissidente é sempre condenado à solidão, ao
isolamento, ou visto como louco. Em relação a Policarpo
Quaresma, Antonio Arnoni Prado
escreveu:
O dado novo é que ao insano está
reservada a tarefa de planejar a reformulação dos costumes, a reforma agrária e
a defesa institucional da nação, sob o olhar indiferente dos homens de bem, mais
preocupados com a promoção funcional, a aposentadoria e o tráfico de
influências [...] E no entanto é esse “Quixote de alma nacional”, como o chamou
M. de Oliveira Lima, que acaba denunciando com o melhor humor o autoritarismo
arbitrário dos golpistas da República, ao pagar com a própria vida a sua
dedicação estouvada à causa da pátria livre.(PRADO, 1989,p.8).
2.3. O Feiticeiro
No conto intitulado O feiticeiro e o
deputado, Lima Barreto narra a estória de um homem que chega em uma cidade
pequena e compra um sítio onde passa a viver sozinho, cultivando sua horta, sem
estabelecer muitas relações com a população local.
Ele passa a ser chamado de
“feiticeiro” devido ao mistério de sua chegada e a “extravagância de sua
maneira de viver”. Era considerado um “habitante singular”.
No seu primeiro ano na cidade, sofreu
a desconfiança geral , “as risotas, as indiretas”, as interrogações em relação
ao seu passado, o que era um mistério para todos. Muitos
55
cochichavam que matara, que roubara,
que falsificara. Tais especulações, porém, não foram adiante, já que o delegado
do lugar, que indagara seus antecedentes, levou a todos confiança no moço.
Assim, depois de algum tempo, a bondade natural do “feiticeiro” para tudo e
para todos acabou desarmando a população, com exceção de duas das autoridades
locais – o médico e o escriturário –, para quem não passava de um louco. “O
feiticeiro, porém, continuava a viver no seu rancho sobranceiro a todos eles.
Opunha às opiniões autorizadas do doutor e do escriturário, o seu desdém soberano
de miserável independente.” (BARRETO, 1982 p.64).
No entanto, a opinião das autoridades
muda quando chega um importante deputado em visita à cidade que, ao se deparar
com o “feiticeiro”, reconhece-o como seu amigo e colega, fazendo com que o
médico e o escriturário descubram que ele era formado. O doutor havia recebido
o deputado com todas as honras, mostrado-lhe todos os recantos mais agradáveis
da cidade. Por fim, quando percebeu que o deputado já estava se cansando,
convidou-o para ir conhecer o “feiticeiro”, com a seguinte frase: “Vamos ver,
doutor, um degenerado que passa por santo ou feiticeiro por aqui. É um dementado
que, se a lei fosse lei, já de há muito estaria aos cuidado da ciência, em
algum manicômio”. (BARRETO, 1982, p.65).
Quando, porém, o médico viu que o
deputado reconheceu o feiticeiro como seu antigo colega, abraçando-o
demoradamente e conversando longamente, logo perguntou ao deputado se aquele
era formado. Com a resposta afirmativa do deputado, o médico diz: “Logo vi
[...] Os seus modos, os seus ares, a maneira com que se porta fizerem-me crer
isso; o povo, porém...”. Ao saber que o feiticeiro era formado e amigo do
deputado, os modos e a maneira de ser deste, que antes denunciavam sua loucura,
passam a ser vistos de outra forma, demonstrando o seu saber.
Pode-se perceber, através deste
exemplo, que a loucura foi usada aqui pelo escritor para questionar os valores
que imperavam na época e que legitimavam a exclusão social. Fica clara, assim,
a crítica de Lima Barreto à supervalorização dos títulos, diplomas e cargos
considerados importantes: tal supervalorização acaba agindo como critério para
o julgamento em relação à sanidade de uma pessoa.
O chamado bacharelismo era visto por
Lima Barreto como mais uma forma de
56
exclusão social que ia se consolidando
na sociedade. O que o incomodava era o fato de que aqueles que obtinham o
título de doutor adquiriam todo o prestígio, honras e privilégios na sociedade,
originados da ciência e saber de que são portadores, mas na verdade quase nunca
correspondiam a este saber de fato. Segundo ele, a maior parte deles era
medíocre intelectualmente e usava o título para “cavar” posições sociais, cargos
na administração pública, regalias e privilégios, ocupando o lugar de outros que,
muitas vezes, são mais inteligentes, honestos e interessados em estudar, mas
que não são doutores. Ele compara o título universitário a um “foral de
nobreza”, emprestando ao sujeito que é dele portador capacidades superiores.
Assim o autor denunciava ainda o elitismo do “doutorismo”, pois apenas os ricos
conseguiam se formar. Em suas próprias palavras:
A maioria dos candidatos ao
“doutorado” é de meninos ricos ou parecidos, sem nenhum amor ao estudo, sem
nenhuma vocação nem ambição intelectual. O que eles vêem no curso não é o
estudo sério das matérias , não sentem a atração misteriosa do saber (...) O que
eles vêem é o título que lhes dá namoradas, consideração social, direito a
altas posições que os diferencia do filho do “Seu” Costa, contínuo de
escritório do poderoso papai. (BARRETO, 1998, p.328.).
Além disso, neste conto, Lima Barreto
ressalta também uma diferença entre o parecer popular e aquele das autoridades.
Para a população, o feiticeiro era um “habitante singular”, que poderia muito
bem continuar vivendo ali entre eles, ainda que de forma isolada. Mas para o
médico da cidade, representante da ciência, aquele homem deveria estar “em
algum manicômio”.
2.4. Fernando e Vicente
A crítica de Lima Barreto ao poder
psiquiátrico – que na sua visão muitas vezes submetia os “doentes” às
arbitrariedades não só médicas mas também policiais, já que em muitos casos a
polícia era encarregada de conduzir os “loucos” ao hospício
57
– pode ser claramente vista no conto
Como o homem chegou.
Neste conto, o escritor descreve, em
tom irônico e mordaz, como um homem que vivia com seu pai em uma chácara nos
confins de Manaus, e dedicava seu tempo ao estudo da Astronomia, passou a ser
visto como louco e foi transportado arbitrariamente pela polícia em um
carro-forte de Manaus ao Rio de Janeiro.
Fernando, o personagem do conto, era
um “ente pacato lá dos confins de Manaus, que tinha a mania de Astronomia e
abandonara, não de todo, mas quase totalmente, a terra pelo céu inacessível”.
Vivia pacatamente com seu pai até que o doutor Barrado, um homem que era
“esforçado para parecer inteligente”, iniciou uma campanha em favor da
internação de Fernando, convencendo a família e os conhecidos de que “o ser
descompassado os envergonhava” e espalhando que Fernando vivia nas tascas com
vagabundos. O doutor supunha que o comportamento de Fernando, que era simples e
desdenhoso pelos mandões, resultasse como uma censura em relação à sua atitude
por demais mesureira com os magnatas. Assim, Barrado conseguiu mover os
simplórios parentes de Fernando:
Em uma terra inteiramente entregue à
chatinagem e à veniaga, Fernando foi tomando a fama de louco, e não era ela sem
algum motivo. Certos gestos, certas despreocupações e mesmo outras manifestações
mais palpáveis, pareciam justificar o julgamento comum; entretanto, ele vivia
bem com o pai e cumpria os seus deveres razoavelmente. Porém, parentes
oficiosos e outros longínquos aderentes entenderam curá-lo, como se se curassem
assomos d’alma e anseios de pensamento. (BARRETO,1993, p.203).
Através dos contatos estabelecidos com
a polícia do Rio de Janeiro, feitos devido aos conhecimentos do doutor Barrado,
Fernando foi então transportado em um carro-forte de Manaus ao Rio de Janeiro,
acompanhado pelo doutor. Depois de alguns dias de viagem, quando conseguiram
uma hospedagem e alimentação, o motorista lembrou a Barrado do “homem que
traziam”. Barrado, sem saber como proceder, sem saber se “essa espécie de
doente comia”, consultou o chefe de polícia no Rio de Janeiro que lhe
respondeu, por telegrama, que “não era do regulamento retirar aquela espécie de
enfermos do carro, o ar sempre lhes fazia mal.” Assim, a viagem seguiu durante
dois anos, com o objetivo único de levar o “homem” ao Rio de Janeiro, sem importar
se ele estava vivo ou morto.
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Esta crítica às arbitrariedades do
poder médico aparece também em seu romance inacabado O Cemitério dos vivos.
Vicente, o personagem do livro, que é internado no Hospício, também é levado
pela polícia em um carro-forte, e registra sua impressão:
É indescritível o que se sofre ali,
assentado naquela espécie de solitária, pouco mais larga que a largura de um
homem, cercado de ferro por todos os lados, com uma vigia gradeada, por onde se
enxergam as caras curiosas dos transeuntes a procurarem descobrir quem é o
doido que vai ali.A carriola, pesadona, arfa que nem uma nau antiga, no
calçamento; sobe,desce, tomba para ali; o pobre-diabo lá dentro, tudo liso, não
tem onde se agarrar e bate com o corpo em todos os sentidos, de encontro às
paredes de ferro [...] Um suplício destes, a que não sujeita a polícia os mais
repugnantes e desalmados criminosos, entretanto, ela aplica a um desgraçado que
teve de ensandecer, às vezes, por minutos... (BARRETO, 1993, p.122).
Este personagem é, sem dúvida,
inspirado em muito da experiência pessoal do próprio Lima Barreto, que começou
a escrever este livro a partir das anotações que fez durante sua passagem pelo
Hospício, e conseguiu transformar esta vivência neste ótimo romance,
infelizmente inacabado.
Vicente era um homem que pretendia ser
escritor, mas tinha conseguido publicar apenas um livro. Embora estudioso,
Vicente, como outros personagens aqui analisados, queria manter a sua autonomia
e independência intelectuais para não ter que abdicar de suas idéias e
opiniões, o que o impedia de se ligar a algum “protetor”.
Criticava, portanto, o “doutorismo”, e
tinha a convicção de que para se dirigir à massa comum de leitores, não deveria
usar nenhum “aparelho rebarbativo e pedante de fraseologia especial”. Ao
contrário, seria muito melhor a produção de livros simples do que “gastar tempo
com obras só capazes de serem entendidas por sabichões enfatuados, abarrotados
de títulos e tiranizados na sua inteligência pelas tradições de escolas e
academias e por preconceitos livrescos e de autoridades.” (BARRETO, 1993,
p.110).
Vicente, em sua estada no Hospício,
aprofunda suas críticas à ciência. Mesmo antes desta sua experiência, ele conta
que desde muito cedo, ao ler em um jornal a defesa de um júri que justificava a
irresponsabilidade do réu usando o argumento
59
científico de que no réu predominava
tara paterna, ele passou a questionar as teorias científicas. Segundo sua
concepção, era mais decente que a ciência reconhecesse sua ignorância diante do
mistério, do que querer mascará-lo com explicações absurdas.
No Hospício, Vicente temeu a
arrogância dos médicos, denunciando a falta de confiança que tinha neles, os
quais, segundo ele, acreditavam demais nas certezas da ciência, pouco exercendo
a crítica e a reflexão, correndo o risco de cometer erros e de submeter os
pacientes à experiências perigosas. Dentro daquela instituição, no entanto, o
personagem conscientiza-se do quanto estava submetido àquele poder:
“Pela primeira vez, fundamentalmente,
eu senti a desgraça e o desgraçado. Tinha perdido toda a proteção social, todo
o direito sobre o meu próprio corpo, era assim como um cadáver de anfiteatro de
anatomia”. (BARRETO, 1992, p.148).
Se o personagem questiona o poder
absoluto dos médicos sobre os “doentes”, por outro lado, no que se relaciona
aos outros internos, Vicente desenvolveu um sentimento de solidariedade,
reforçando o seu ideal de contribuir para o bem da humanidade, e criticando a
visão preconceituosa em relação àqueles que já passaram pelo Hospício, como
pode-se ver na seguinte passagem:
Eu me tinha esquecido de mim mesmo,
tinha adquirido um grande desprezo pela opinião pública, que vê de soslaio, que
vê como criminoso um sujeito que passa pelo Hospício, eu não tinha mais
ambições, nem esperanças de riqueza ou posição: o meu pensamento era para a
humanidade toda, para a miséria, para o sofrimento, para os que sofrem, para os
que todos amaldiçoam.[...]
Eu sentia que interiormente eu resplandecia
de bondade, de sonhos de atingir a verdade, do amor pelos outros, de
arrependimento dos meus erros e um desejo imenso de contribuir para que os
outros fossem mais felizes do que eu. (BARRETO, 1993, p.145).
2.5. Leonardo Flores
Outro personagem, Leonardo Flores, do
romance Clara dos Anjos,é, para muitos críticos, o personagem no qual é
possível reconhecer muitas características do
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próprio Lima Barreto. Leonardo Flores
é um poeta que em tempos remotos conseguiu reconhecimento no Brasil inteiro,
alcançado seu momento de celebridade, e influenciando gerações de poetas que o
seguiram posteriormente. Com o tempo, porém, abatido por desgostos íntimos,
sobretudo pela loucura irremediável de um irmão próximo, entregara-se ao álcool
e transformara-se em “uma triste ruína dehomem, amnésico, semi-imbecializado, a
ponto de não poder seguir o fio da mais simples conversa.” (BARRETO, 1982,
p.53).
Leonardo, embora já tendo sido
recolhido ao hospício algumas vezes devido às suas bebedeiras, e de ser considerado
louco pela maioria das pessoas, nunca permaneceu lá, vivendo pobremente com a
mulher e os filhos. Recusava-se a vincular sua poesia a um objetivo comercial,
e não ganhou dinheiro com os livros que publicou. A poesia, para ele, era a
forma de exprimir suas dores e suas alegrias, e a defendia como um ideal, pelo
qual abandonou todas as honrarias, abriu mão do conforto de sua própria
família. Em suas palavras:
Tudo isto eu fiz com sacrifício de
coisas mais proveitosas, não pensando em fortuna, em posição, em
respeitabilidade. [..] Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos
dos homens, por não compreenderem certos atos desarticulados da minha
existência, entretanto, elevou-me aos meus próprios, perante a minha consciência,
porque cumpri o meu dever, executei a minha missão: fui poeta! Para isto, fiz
todo o sacrifício. A arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente ; e
eu precisava amá-la, porque ela representava, não só a minha Redenção, mas toda
a dos meus irmãos, na mesma dor.Louco?! Haverá cabeça cujo maquinismo impunemente
possa resistir a tão inesperados embates, a tão fortes conflitos, a colisões
com o meio, tão bruscas e imprevistas? Haverá? (BARRETO, 1982, p.82).
Leonardo Flores atribui, aqui, a
loucura à dificuldade de resistir defendendo ideais em meio a choques e
conflitos com uma realidade confinadora, à dificuldade de se manter fiel ao seu
ideal mantendo sua dignidade mas tendo que fazer sacrifícios para isso. Assim
como Vicente, “esquecia-se de si mesmo” para dedicar-se a toda a humanidade.
61
2.6. Ismênia e o gramático Lobo No
romance Triste fim de Policarpo Quaresma, existe uma personagem chamada Ismênia
que enlouquece depois de ter sido abandonada pelo noivo. Desde que o noivo a
abandona, ela entra em um estado de tristeza profunda, não conseguindo mais ver
sentido na própria vida, pois o desaparecimento do noivo significava para ela
que estava condenada a não casar, a “suportar durante toda a existência esse
estado de solteira que a apavorava.” (BARRETO, 1983, p.63): “Sem hábito de
leitura e de conversa, sem atividade doméstica qualquer, ela passava os dias deitada,
sentada, a girar em torno de um mesmo pensamento: não casar.” No início, a família
de Ismênia tem esperança de que ela melhore, mas ela piora cada vez mais, deixando
a família sem saber o que fazer, escondendo de todos o estado da filha, respondendo,
para quem perguntava por ela, que estava melhorando aos poucos, quando a
verdade era outra:
O pudor do pai tinha-o impedido de
dizer toda a verdade. A filha enlouquecera de uma loucura mansa e infantil.
Passava dias inteiros calada, a um canto, olhando estupidamente tudo, com um olhar
morto de estátua, numa atonia de inanimado, como que caíra em imbecilidade; mas
vinha uma hora, porém, em que se penteava toda, enfeitava-se e corria à mãe,
dizendo: “Apronta-me, mamãe. O meu noivo não deve tardar... é hoje o meu
casamento”. (BARRETO, 1983,p.118)
Neste caso, a loucura estava ligada a
um sentimento de incapacidade de cumprir o único papel que a sociedade lhe
reservara: o de esposa. Ismênia não enlouquece porque amava o noivo que a
abandonou, mas porque não podia suportar a vergonha de ficar solteira. Lima
Barreto delegou à personagem Olga, afilhada e amiga de Policarpo Quaresma, a
capacidade de fazer uma reflexão crítica a respeito da situação de Ismênia:
Via bem o que fazia o desespero da
moça, mas via melhor a causa, naquela obrigação que incrustam no espírito das
meninas, que elas se devem casar a todo o custo, fazendo do casamento o pólo e
fim da vida, a ponto de parecer uma desonra, uma injúria ficar solteira. [...].
O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso: é
simplesmente casamento, uma
62
coisa vazia [...]. Graças à frouxidão,
à pobreza intelectual e fraqueza de energia vital de Ismênia, aquela fuga do
noivo se transformou em certeza de não casar mais e tudo nela se abismou nessa
idéia desesperada.( BARRETO, 1983, p.136).
A personagem Ismênia, diferentemente
dos personagens aqui analisados, não vai de encontro aos valores de sua época e
sim, ao contrário, sofre por ter introjetado como valor absoluto a idéia de que
era uma vergonha não casar, e sua vida perde o sentido quando não consegue
corresponder às expectativas da sociedade. De qualquer forma, ainda que de
maneira diferente, Lima Barreto faz, através da personagem Ismênia, um
questionamento de como o casamento era imposto às mulheres naquela sociedade
como única possibilidade de vida, já que a maioria das moças não trabalhava, o
que fazia com que aceitassem sua condição de inferioridade e casassem, muitas
vezes, para cumprir um dever social. Em quase todas as estórias de Lima Barreto,
os casamentos são puramente burocráticos.
Segundo Afonso Marques dos Santos, a
situação de inferioridade da mulher na sociedade brasileira foi um tema
constante em toda a atuação de Lima Barreto na imprensa. Embora o escritor, em
seus artigos publicados nos jornais, tenha sempre se manifestado contra o
feminismo, ao mesmo tempo publicou artigos criticando a recorrente tolerância
com que os júris absolviam os maridos e os amantes uxoricidas.
Sua crítica ao feminismo era por achar
que era um partido político como qualquer outro, o que não o impedia de
protestar em favor das mulheres vítimas de crimes passionais, como se pode ver
no artigo que escreveu em 1919:
Contra um ignóbil estado de espírito
dessa ordem, que tende a se perpetuar entre nós, aviltando a mulher,
rebaixando-a ao estado social da barbaria medieval, de quase escrava, sem
vontade, sem direito aos seus sentimentos profundos, e tão profundos são que
ela joga, no satisfazê-los, a vida; degradando-a à condição de coisa, de animal
doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos, com direito de vida e de morte
sobre ela; não lhes respeitando a consciência e a liberdade de amar a quem lhe
parecer melhor, quando e onde quiser; – contra tão desgraçada situação da nossa
mulher casada, edificada com a estupidez burguesa e a superstição religiosa,
não se insurgem as borra-botas feministas que há por aí. Elas só tratam de
arranjar manhosamente empregos públicos, sem lei hábil que permita. É um
partido de “cavação”, o feminista, como qualquer outro masculino. (BARRETO,
1956 c, p.28).
63
Lima Barreto também via uma relação
entre o casamento e a “superstição do doutor”, quando o marido era alguém que
possuía a importância social de ter um diploma e, para ter mais prestígio
ainda, conseguir ter seu próprio negócio, casava-se com uma moça rica. As
moças, por seu lado, sonhavam em casar com um “doutor”.
Assim, este tipo de casamento, na
visão do escritor, não passava de um contrato de sociedade, onde se combinavam
as crenças difundidas na sociedade, de que o “doutor” e o dinheiro são tudo, e
onde as mulheres eram vistas como parte da propriedade dos maridos, do dote
recebido no casamento.
Diante da repercussão do caso de uma
mulher chamada Julieta Melito, que assassinara o marido em São Paulo, Lima
Barreto se posiciona, mais uma vez, em um artigo de 1918, em defesa das
mulheres, defendendo a idéia de que a esposa havia casado acreditando no ideal
do “doutor”, e descobriu que ele não passava de um caçador de dotes:
Nós temos direito de ter ambições.
(...) O que eu não posso compreender, é que um homem ambicioso, transforme a
sua mulher, em instrumento de sua ambição. (...) Já fui muitas vezes jurado; já
sofri muito por causa disso; mas, se eu fosse escolhido para o júri de Dona
Julieta Melilo, eu a absolveria. Absolvia, minha senhora, porque não gosto
desses seres cheios de títulos, que não amam a mulher a quem eles deviam amor.
(BARRETO, 1956 c, p.113).
Em seu livro Os delírios da razão:
médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro,1830-1930), Magali Engel descreve
dois casos de mulheres que assassinaram os maridos, ocorridos em 1911 e em
1913. Ambas as mulheres passaram por detalhadas avaliações psiquiátricas e,
embora tenham tido o mesmo diagnóstico – histeria –, uma foi condenada para o
resto de sua vida ao confinamento e à exclusão social no hospício, enquanto a
outra foi condenada apenas à “vigilância permanente do olhar distanciado do
médico”, sendo sua doença classificada como “compatível com a vida em
sociedade”. Isto porque Maria Tourinho, aquela que foi condenada a ficar para
sempre reclusa no hospício, em suas declarações, afirmou que vivia em desavença
com o marido e que era vítima de maus tratos e que este dava uma má educação
aos filhos. Tais afirmações, porém, não foram confirmadas pelo depoimento de
parentes (inclusive o filho mais velho do casal).
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Segundo estes depoimentos, Arthur
Tourinho, marido de Maria, era “um excelente pai e marido exemplar, nunca tendo
permitido que sua família passasse qualquer dificuldade material”: “Dessa
forma, o marido de Maria reunia todas as qualidades que, valorizadas por muitos
dos padrões culturais disseminados pela sociedade da época, aproximavam-no da
imagem do homem ideal, bom trabalhador e provedor da família.” (ENGEL, 2001,
p.101). Além disso, o exame de sanidade realizado em Maria pelos médicos
peritos, no qual foram investigados os antecedentes familiares da paciente,
revelaram que seu pai era um “alcoolista inveterado”, o que, para a psiquiatria
da época, significava causa de degeneração mental e epilepsia. Maria foi
submetida, ainda, a um minucioso exame “por meio do qual os médicos buscavam
identificar as características físicas que evidenciassem e comprovassem sua
degeneração mental”.
Para agravar mais ainda o quadro de
Maria, ela freqüentava já há algum tempo um centro espírita, onde ia a
contragosto do marido. De acordo com as notícias publicadas na época a respeito
do caso, o fato de Maria freqüentar o centro espírita é que a tinha feito
assassinar o marido. Assim publicou o jornal O Paiz, em 17 de julho:
“Ela, a criminosa, é uma vítima do
espiritismo, essa ciência oculta que a tantos tem levado ao crime, ao
manicômio”. (ENGEL, 2001, P.98).
Assim, influenciada pelo espiritismo,
o qual era condenado pelo marido, Maria o teria matado sem culpa nem sinais de
arrependimento, o que foi considerado pelos médicos como aspectos importantes
na confirmação de sua doença. Dessa forma, segundo a avaliação médica, os sintomas
registrados tanto nos “antecedentes pessoais” quanto no “exame mental”
denunciavam sinais mórbidos localizados na esfera emocional, como “perda da
afetividade em relação ao marido e, mais grave ainda, em relação aos próprios
filhos”. Os “desvios” da afetividade de Maria estavam ligados também a uma
sexualidade “anômala”: “Nesse sentido, observariam que apesar de Maria ter
afirmado que com o marido era “muito reservada, não se entregando a excessos
sensuais”, havia nela um “fundo erótico que não raro se manifestava”. (ENGEL,
2001, p.102).
Sendo assim, todos os exames
realizados em relação à Maria comprovaram que ela não se ajustava à imagem de
mãe ideal, afetuosa, para quem nada era mais
65
importante do que os filhos. Já o
parecer médico a respeito de Hercília de Paiva Legey foi diferente.
Embora ela também tivesse assassinado
seu marido, mostrou-se logo arrependida e penitenciava-se pelo ato que
cometera. Em seu depoimento, explicou que o marido a submetia a humilhações e
maus tratos, e que desconfiava que ele tinha uma amante, e, no dia do crime,
este havia ameaçado abandoná-la e também os filhos. Hercília, ao contrário de
Maria, declarou que apesar de tudo amava o marido e mostrou ser uma mãe muito
amorosa com os filhos. Diante da ameaça de abandono do marido, ela teria
ameaçado matá-lo se ele “abandonasse os filhos à miséria”. Tudo isto foi interpretado
pelos médicos como extrema manifestação do instinto materno.
Hercília, como Maria, foi
diagnosticada como histérica, porém sua histeria não era incompatível com a
vida em sociedade e ela ficou livre da reclusão no hospício. Magali Engel chama
a atenção ainda para o fato de que:
Para o assassinato de um homem que
cumpria rigorosamente todos os papéis prescritos de acordo com o ideal do
esposo-pai não haveria qualquer indulgência, ao passo que a tentativa de
homicídio de um marido que parecia não se ajustar a estes papéis acabaria sendo
praticamente perdoada. (ENGEL, 2001, p.106).
É possível perceber, assim, como a
psiquiatria conquistava fronteiras abrangentes para a sua intervenção,
incorporando e definindo crenças e valores do senso comum, e revestindo-os de
conteúdo científico.
Outro personagem criado por Lima
Barreto, no qual se vê claramente a crítica do escritor a alguns valores de sua
época, é o velho gramático Lobo, do livro Recordações do escrivão Isaías
Caminha. O livro, como se sabe, mostra o cotidiano de uma redação de um
importante jornal, narrado por Isaías Caminha, onde o autor destila toda a sua
crítica à grande imprensa, que, para ele, era o quarto poder fora da Constituição.
Através da figura de Lobo, personagem que faz todas as correções gramaticais
dos textos redigidos para serem publicados nos jornais, e irritava-se profundamente
com qualquer erro que encontrasse, o escritor questiona o culto exagerado à
linguagem formal, rebuscada, que obedece cegamente às regras formais, e que tem
como preocupação exclusiva a forma. Lobo, assim como Ismênia, não é considerado
louco por ter idéias ou
66
comportamentos de discordância com o
que era tido como padrão de normalidade, mas, ao contrário disto, acaba
enlouquecendo por valorizar demais a perfeição gramatical, ficando preso à
pretensão de uma linguagem perfeita. Além disso, quando por descuido do
responsável pela impressão o jornal era publicado com algum erro de português,
o velho gramático temia sentir-se desmoralizado, achava que iam acusá-lo de
ignorante, pois todos sabiam que era ele quem tinha a responsabilidade pela língua:
A Gramática do velho professor era de
miopia exagerada. Não admitia equivalências, variantes; era um código tirânico,
uma espécie de colete de força em que vestira as suas pobres idéias e queria
vestir as dos outros. Há três ou cinco gramáticas portuguesas, porque há três
ou cinco opiniões sobre uma mesma matéria. Lobo organizara uma série delas
sobre as inúmeras dúvidas nas regras do nosso escrever e do nosso falar e ai de
quem discrepasse no jornal! Era emendado da primeira vez, da segunda
repreendido, da terceira podia ser até despedido, se ele estivesse de mau humor.
(BARRETO, 1976, p.153).
Quando estava de bom humor, Lobo
“tinha curiosas manias. Traduzia de uma língua para outra os provérbios e os
anexins que surgissem na conversa.” (BARRETO, 1976, p.152). Por fim acabaria
enlouquecendo, passando a se recusar a falar e ouvir por não suportar os erros
e não querer ser contaminado por um português que considerava inferior, sendo
recolhido ao hospício:
A sua mania era não falar nem ouvir.
Tapava os ouvidos e mantinha-se calado semana inteira, pedindo tudo por acenos.
Ao médico que lhe perguntou por que assim procedia, explicou, a muito custo:
– Isto não é língua... Não a posso
ouvir... Tudo errado... Que vai ser disto!
– E por que não fala?
– Os erros são tantos, e estão em
tantas bocas, que temo que eles me tenham invadido e eu fale esse calão
indecente.... (BARRETO, 1976, p.187).
67
2.7. Uma opção pelo isolamento
Existem ainda alguns personagens que
não têm relação com a loucura especificamente, mas que seguem a linha da
dissidência intelectual. Optam por viverem isolados, pois não conseguem
adaptar-se a uma sociedade onde a sua honestidade intelectual nada vale, onde
precisam submeter sua inteligência àqueles que consideram menos inteligentes,
mas que alcançaram uma posição de poder.
Considerando-se injustiçados, vivendo
um estranhamento em relação à sociedade, desiludidos, preferem viver isolados
mas independentes, mantendo a sua dignidade. O personagem Hildegrado Brandão,
do conto O único assassinato de Cazuza, é um homem de cinqüenta e poucos anos,
desesperançado, que “depois de violentas crises de desespero, rancor e
despeito, diante das injustiças que tinha sofrido em todas as coisas nobres que
tentara na vida, viera-lhe uma beatitude de santo e uma calma grave de quem se
prepara para a morte”. (BARRETO, 2000, p.56). Hildegrado decidiu isolar-se
depois de ter passado por muitas frustrações em tudo o que tentou na vida. Não
conseguindo formar-se, tentou entrar para o funcionalismo público, mas
desistiu, porque se sentiu injustiçado por ter sido sempre preterido por
colegas inferiores a ele em tudo. Depois arriscou-se na literatura, e muitas
vezes sofreu por ser considerado inferior a certo outro devido a alguns símbolos
de poder e não propriamente por seu trabalho. Assim, ele acabou por se cansar
dos seus insucessos e afastar-se para uma pequena casa que possuía em um subúrbio
longe:
Com alguma renda, tendo uma pequena
casa, num subúrbio afastado, afundou-se nela, aos quarenta e cinco anos, para
nuncamais ver o mundo, como o herói de Júlio Verne, no seu “Náutilus”. Comprou
os seus últimos livros e nunca mais apareceu na rua do Ouvidor. Não se
arrependeu nunca de sua independência e da sua honestidade intelectual. (BARRETO,
2000, p.56).
Em outro conto, denominado Dentes
Negros, Cabelos Azuis, o personagem Gabriel também vivia isolado: “Muito
inteligente para amar a sociedade de que saíra, e muito finamente delicado para
se contentar de tolerado em outra qualquer, Gabriel
68
vivia isolado, bastando-se a si e aos
seus pensamentos, como um estranho anacoreta que fizesse do agitado das
cidades, ermo para seu recolhimento”. (BARRETO, 2000,p.100).
Para o narrador da estória, único
amigo de Gabriel, este possuía uma natureza “dual, bifronte, sendo que os seus
aspectos, por vezes, chocavam-se, guerreavam-se sem nunca se colarem, sem nunca
se justaporem, dando a crer que havia entre as duas partes um vazio”.
(BARRETO,2000, p.101).
O narrador conta que, um dia, ao
chegar à casa de Gabriel, este estava com um novo olhar. Ao invés da sua
tristeza e melancolia de sempre, uma iluminação fazia parte de seu rosto.
Quando perguntou o que ele tinha, Gabriel leu a estória que tinha escrito em
duas dezenas de tiras de papel almaço, cheias de paixão. Era a estória de um
homem que tinha os dentes negros e os cabelos azuis, que sofria por ser hostilizado
e ter que viver isolado, incompreendido, carregando uma “grande mágoa fatal”.
Na estória, este homem, que vagava solitário pelas ruas da cidade, sempre sozinho,
um dia é abordado por um assaltante que, ao perceber a terrível anomalia do personagem
se assusta. Quando percebe que até um assaltante, o qual deveria inspirar medo,
amedronta-se diante dele, homem de dentes negros e cabelos azuis, expressando
grande sofrimento diz: – Pois até tu! Que mais queres de mim?
Percebendo que a expressão do homem
era de choro e denunciava uma grande mágoa, o assaltante passa do sentimento de
medo para o de piedade, e devolve o dinheiro que havia roubado, desculpando-se
e explicando que não era um comum assaltante das ruas, mas que o momento e a
necessidade haviam-no feito. O homem, então, reconhecendo a sincera atitude de
piedade e ternura do assaltante, resolve narrar-lhe a sua “desventura”, “certo
de que naquele indivíduo a ternura não era um jogo de sociedade, nem uma forma
de elegância”, contando-lhe todo o sofrimento por que tem passado:
Eu devia fugir, desaparecer, pois mal
ando passos, mal me esgueiro numa travessa, das gelosias, dos mendigos, dos
cocheiros, da gente mais vil e da mais alta, só uma coisa ouço: lá vai o homem de
cabelos azuis, de dentes negros... É um suplício! Tudo se apaga em mim. Isso
unicamente brilha.[..]. (BARRETO,2000, p.107).
O assaltante tenta animá-lo,
aconselhando: – “Mas trabalha, sê grande...
69
combate”. O homem, porém, continua:
Não percebes que não me é dado
oferecer batalha; que sou como um exército que tem sempre um flanco aberto ao
inimigo? A derrota é fatal. Se ainda me houvesse curvado ao estatuído, podia...Agora....não
posso mais. No entanto tenho que ir na vida pela senda estreita da prudência e
da humildade, não me afastarei dela uma linha, porque à direita há os espeques
dos imbecis, e à esquerda, a mó da sabedoria mandarinata ameaça
triturar-me.Tenho que avançar como um acrobata no arame. Inclino-me daqui,
inclino-me dali; e em torno recebo a carícia do ilimitado, do vago, do imenso...Se
a corda estremece acovardo-me logo, o ponto de mirame surge recordado pelo
berreiro que vem debaixo, em redor dos gritos: homem de cabelos azuis, monstro,
neurastênico. (BARRETO, 2000, p.108).
O personagem Gabriel, que no conto é o
autor desta estória, cria, assim, uma metáfora onde o homem que tem dentes
negros e cabelos azuis carrega o estigma de ser vítima da abominação social, e
acaba despertando em um assaltante um sentimento de ternura e de solidariedade.
O personagem do conto Foi Buscar Lã..., Dr. Campos Bandeira, também é outro que
resolve ir viver isolado em um sítio. Ele era um velho professor jubilado da Escola
Militar, “conhecido pelo seu gênio estranhamente concentrado e sombrio”, sem
amigos, parentes, sem família, sem amantes, há mais de quarenta anos decidira viver
em um sítio pelas bandas de Inhaúma, entregando-se de corpo e alma aos seus trabalhos
de química agrícola. Sempre foi conhecido como “esquisitão”, mas quando, depois
de jubilado, decidiu se estabelecer naquele sítio, todos exclamavam: -Que maluco!
Era um homem de preparo e de espírito;
tudo estudava e tudo conhecia. No sítio, tinha alguns empregados que
trabalhavam na roça e no tratamento de animais, e um serviçal que trabalhava no
interior da casa, chamado “Casaca”, por quem o velho professor tinha muita
consideração, apesar deste quase não fazer nada, “espremido pelo desânimo e
pelo álcool”. Um dia, no entanto, o doutor Campos Bandeira é encontrado
amarrado, amordaçado e quase morto. A polícia, ao investigar, averiguou que
muito dinheiro havia sido roubado e acusou o empregado “Casaca”.
Um importante advogado então, que cada
vez mais ganhava fama na cidade
70
do Rio de Janeiro, é quem se oferece
para defender o empregado. Na descrição do ascendente advogado, chamado
Felismino Praxedes Itapiru da Silva, Lima Barreto faz, mais uma vez, uma
crítica à valorização de títulos e diplomas que não garantem um verdadeiro
saber, assim como ao vocabulário rebuscado que muitas vezes escamoteia a falta
de inteligência, e também a certos hábitos, costumes e objetos que funcionam
como símbolos de superioridade social, como se pode perceber no seguinte
exemplo:
Veio do Norte, logo com a carta de
bacharel, com solene pasta de couro da Rússia, fecho e monograma de prata, chapéu-de-sol
e bengala de castão de ouro, enfim, com todos os apetrechos de um grande
advogado e de um sábio jurisconsulto.[...] Parecia escolher com grande
escrúpulo as suas relações. Nunca se viu com qualquer tipo aboeminado ou mal
vestido.[...]. Eloqüente a seu modo, com voz cantante, senhor de imagens suas
e, sobretudo de alheias, tendo armazenado uma porção de pensamentos e opiniões
de sábios e filósofos de todas as classes, Praxedes conseguia mascarar a
miséria de sua inteligência e a sua falta de verdadeira cultura [...] (BARRETO,
2001, p.1070).
No dia do júri, a sala estava cheia,
pois todos queriam ouvir a grande defesa do importante advogado. Quando este ia
começar sua “estupenda” defesa, o professor Campos Bandeira, que após o
atentado havia passado um ano no hospício e saíra agora recuperado sem que
ninguém soubesse diz: “Senhor juiz, quem quis me matar e me roubou, não foi
este pobre homem que está no banco dos réus; foi o seu eloquente e elegante
advogado.” (BARRETO, 2001, p.1074).
Neste conto, como em outros citados,
Lima Barreto nos apresenta um personagem que é visto como esquisito, louco, que
vive isolado, mas que sustenta uma honestidade e sinceridade intelectuais que
são inexistentes no outro personagem que, a princípio, é bem visto e admirado
pela sociedade. Aqui, mais uma vez, o autor trabalha com duas dimensões: a do
poder, representada pelo personagem do advogado que usa todos os símbolos de
distinção social para legitimá-lo, e àquela outra dimensão que, em
contrapartida, trata da dignidade dos que não são tão bem aceitos assim na
sociedade, e que muitas vezes são vítimas da mentira e do mau caratismo, como o
professor Campos Bandeira, da estória narrada acima.
Assim, como no conto de Machado de
Assis O Alienista, onde o alienista
71
resolve recolher à Casa Verde todos
aqueles que possuíam grandes qualidades, que agiam com escrúpulo, que eram
tolerantes, leais, e muitas outras qualidades, os “loucos” de Lima Barreto
também são aqueles que possuem qualidades, muitos seguem grandes ideais, preocupando-se
com toda a humanidade e outros apenas preferem manter sua independência
intelectual, nem que para isso precisem se isolar da sociedade.
Levando em conta o contexto em que
estão inseridos, dentro da violenta investida do processo modernizador no Rio
de Janeiro, é possível interpretá-los também como uma forma de resistência a
esta modernização, sujeitos, porém, a embates e conflitos.
Vale lembrar, ainda, que Lima Barreto
viveu um momento em que a psiquiatria buscava reforçar sua consolidação, e que
o escritor teve sempre uma visão crítica em relação a ela, o que permitiu que
enxergasse que muitas vezes aqueles que a psiquiatria condenava como loucos não
eram loucos na verdade mas, sim, tinham comportamentos ou idéias considerados
desviantes das normas estabelecidas. Na visão do escritor, a ciência
apropriava-se de teorias marcadas pelo preconceito, transformando o preconceito
em conceito científico. De acordo com Nicolau Sevcenko: “O que lhe causava
consternação e incitava suas diatribes insistentes, era o cunho marcadamente
discriminatório da ciência.” (SEVCENKO, 1999, p.174).
Além disso, ele questionava também a
intervenção da ciência em questões de natureza econômica e social, colocando em
dúvida a eficiência de métodos científicos para a resolução de tais questões.
Estas suas críticas à ciência de modo geral, e mais especificamente à ciência
psiquiátrica, serão aprofundadas no capítulo seguinte. Para o momento, apenas é
importante ressaltar que o seu posicionamento crítico e quase cético em relação
à psiquiatria possibilitou que construísse personagens que eram vistos como
loucos – mas que, na verdade, estavam apenas em discordância com as normas e
idéias estabelecidas – para criticar a sociedade, usando a loucura como estratégia
de reflexão e crítica, e fazendo uma associação entre o processo de modernização
no Rio de Janeiro e a exclusão social.
Através dos personagens, Lima Barreto
promove uma reflexão a respeito da sociedade em que vive, assim como as
relações sociais nela vigentes. Na verdade,
72
quando questiona, a partir dos
personagens apresentados, a questão agrária, o conhecimento livresco, o
“doutorismo”, o poder psiquiátrico, o casamento por puro interesse, a
dificuldade de manter uma independência intelectual, ele está pondo em questionamento
toda uma estrutura social construída sob a égide do capitalismo e conduzida por
uma desenfreada burguesia. O que ele combatia eram todas as formas de opressão
política e social, que impediam o desenvolvimento da liberdade e dos direitos
humanos.
Para ele, a República havia acentuado
o poder do dinheiro, fazendo com que o enriquecimento e o lucro fossem o
objetivo maior a ser alcançado, e com que “todos os meios passassem a ser bons
para se chegar a fortuna e aumentá-la descaradamente.”(BARRETO, 1956 c, p.53).
Como bem observou Nicolau Sevcenko:
Sua linha de análise procura persuadir
os leitores de que o germe de todas essas mudanças indesejáveis se encontra na transmutação
dos valores éticos em valores mercantis, que teria substituído os laços humanos
essenciais pelo poder do dinheiro, sem freio de espécie alguma.(SEVCENKO, 1999,
p.221).
Em alguns artigos que escreveu em
1918, Lima Barreto não nega sua simpatia em relação à Revolução Russa, pois
esta “abala não unicamente os tronos, mas os fundamentos da nossa vilã e ávida
sociedade burguesa.”(BARRETO,1956 c,p.72).E não esconde o desejo de ver um
semelhante movimento aqui, para acabar com “essa chusma de tiranos burgueses,
acocorados covardemente por detrás da Lei”.
O escritor vai mais longe ainda e aponta
algumas medidas práticas que considera fundamentais para iniciar a
transformação social no Brasil: suprimir a dívida interna, confiscar os bens
das ordens religiosas, extinguir os testamentos ou o direito de testar e
estabelecer o divórcio completo e sumário. Estas medidas, segundo ele, de
caráter financeiro mas também social, contribuiriam para uma das mais urgentes
medidas: fazer cessar a fome de enriquecer característica da burguesia. Ele cita
ainda outras medidas como uma revisão nas pensões graciosas, uma reforma cataclismática
no ensino público, e a confiscação de certas fortunas. Além disso, em sua
concepção os recursos do Estado não deveriam prestar-se a determinadas finalidades
como, por exemplo, artimanhas engendradas pelos financistas através de apólices,
títulos, hipotecas, câmbio, etc.
73
Desta forma, todas as medidas
apontadas por ele seguiam um mesmo princípio básico, que era a socialização da
propriedade, a qual deveria ser transformada em bem comum, e não em fonte de
poder e riqueza para poucos privilegiados ou para ordens religiosas, e muito
menos como motivo principal para a realização de casamentos.
Assim, é possível interpretar os
personagens por ele criados como representantes de ideais diferentes dos ideais
burgueses e capitalistas difundidos na primeira República, que trazem à tona as
tensões sociais existentes em uma determinada estrutura social. Se através de
tais personagens inadaptados à sociedade, o autor faz uma crítica a esta
sociedade, ao mesmo tempo também realça, em contrapartida, os valores que
considera fundamentais para uma sociedade melhor.
Nicolau Sevcenko lembra que a
literatura é, antes de mais nada um produto artístico, e que, se por uma lado
esta produção não pode ser dissociada da realidade em que foi produzida, por
outro ela é também um produto do desejo, traduzindo mais um “anseio de mudança
do que os mecanismos de permanência.” (SEVCENKO, 1999, p.20).
Seguindo esta linha de raciocínio,
Policarpo Quaresma, o feiticeiro, Leonardo Flores, Fernando, Vicente, e todos
os outros personagens aqui citados, com exceção de Ismênia que – ao contrário
dos outros sofreu por não conseguir corresponder ao papel que a sociedade lhe
impôs – e do gramático Lobo, são, mais do que vítimas dos mecanismos de
manutenção do poder, portadores de ideais defendidos pelo autor como ética,
justiça, solidariedade, e se vivessem na sociedade desejada pelo autor, seriam
valorizados por suas virtudes e levados a sério, e não desprezados, excluídos ou
considerados loucos. Tais personagens, que defendem suas idéias independentemente
dos valores predominantes, funcionam, então, como uma estratégia para que se
reflita sobre a importância de em determinados momentos da sociedade se ir
contra toda uma ideologia dominante para a construção de uma outra sociedade,
ainda que para isso se pague um preço alto:
A covardia mental e moral do Brasil
não permite movimentos
de independência; ela só quer
acompanhadores de procissão, que só
74
visam lucros ou salários nos
pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e
inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma
idéia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma
pessoa poderosa, trata o agitador de louco. [...] Nunca foram os homens de bom
senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretarias chics que
fizeram as grandes reformas no mundo. Todas elas têm sido feitas por homens, e,
às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos. (BARRETO, 1998, p.377).
Louco
Wilson Batista
Louco, pelas ruas ele andava
O coitado chorava
Transformou-se até num vagabundo
Louco, para ele a vida não valia nada
Para ele a mulher amada
Era seu mundo
Conselhos eu lhe dei
Para ele se aquecer
Aquele falso amor
Ele se convenceu
Que ela nunca mereceu
Nem reparou
Sua grande dor
Que louco!
Composição: Henrique de Almeida /
Wilson Batista
Samba do Crioulo Doido
Sergio Porto
Este é o samba do crioulo doido.
A história de um compositor que
durante muitos anos obedeceu o regulamento,
E só fez samba sobre a história do
brasil.
E tome de incofidência, abolição,
proclamação, chica da silva, e o coitado
Do crioulo tendo que aprender tudo
isso para o enredo da escola.
Até que no ano passado escolheram um
tema complicado: a atual conjuntura.
Aí o crioulo endoidou de vez, e saiu
este samba:
Foi em diamantina onde nasceu j.k.
E a princesa leopoldina lá resolveu se
casar
Mas chica da silva tinha outros
pretendentes
E obrigou a princesa a se casar com
tiradentes
Laiá, laiá, laiá, o bode que deu vou
te contar
Joaquim josé, que também é da silva
xavier
Queria ser dono do mundo
E se elegeu pedro segundo
Das estradas de minas, seguiu p'rá são
paulo
E falou com anchieta
O vigário dos índios
Aliou-se a dom pedro
E acabou com a falceta
Da união deles dois ficou resolvida a
questão
E foi proclamada a escravidão
Assim se conta essa história
Que é dos dois a maior glória
A leopoldina virou trem
E dom pedro é uma estação também
Oô, oô, oô, o trem té atrasado ou já
passou
Composição: Stanislaw Ponte Preta
Sérgio Porto
Referências
https://youtu.be/H6KIR5VRxyM
https://www.youtube.com/watch?v=H6KIR5VRxyMhttps://conteudo.imguol.com.br/blogs/58/files/2019/02/BenettRetrato.png
https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2019/02/19/presidente-abstrato/
http://www.radiomuriae.com.br/noticias/general-floriano-peixoto-de-muriae-e-nomeado-para-equipe-de-transicao-de-bolsonaro
blob:https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/65db07d8-7a3e-495c-9b00-1838a09d3b9a
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https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2019/02/19/bolsonaro-gravou-video-por-exigencia-de-bebianno/
https://s2.glbimg.com/wsqarPRq3sxKh964ME0AwiZfizw=/0x0:2053x2138/2524x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_59edd422c0c84a879bd37670ae4f538a/internal_photos/bs/2019/U/3/KqwT9QSRydkBa6VF10Ug/ap19049512485568.jpg
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https://mail.google.com/mail/u/0/#inbox?projector=1
https://youtu.be/6xUQ7mU2viM
https://www.letras.mus.br/wilson-batista/265224/
https://youtu.be/qbj3LCgjtLM
https://www.letras.mus.br/sergio-porto/1113833/
http://www.radiomuriae.com.br/fotos/49c49aef74763dfec85ec5323784cc65.05.JPG
http://www.radiomuriae.com.br/fotos/33704/06.JPG
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000159.pdf
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