terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Os personagens de Lima Barreto


Desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d’alma [...] É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem.


“(...) Olga falou aos contínuos, pedindo ser recebida pelo marechal. Foi inútil. A muito custo conseguiu falar a um secretário ou ajudante-de-ordens. Quando ela lhe disse a que vinha, a fisionomia terrosa do homem tornou- se de oca e sob as suas pálpebras correu um firme e rápido lampejo de espada:

—Quem, Quaresma? disse ele. Um traidor! Um bandido!

Depois, arrependeu-se da veemência, fez com certa delicadeza:

—Não é possível, minha senhora. O marechal não a atenderá. (...)”
Todos os Santos (Rio de Janeiro), janeiro — março de 1911.
Final de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”

Louco, para ele a vida não valia nada
Para ele a mulher amada
Era seu mundo

Joaquim josé, que também é da silva xavier
Queria ser dono do mundo
E se elegeu pedro segundo
  





Não tem uma "viva alma" mais honesta do que eu neste país, diz Lula.






Presidente Abstrato
Josias de Souza
19/02/2019 00h32

– Via Benett



General Floriano Peixoto, de Muriaé, é nomeado para equipe de transição de Bolsonaro


Natural da cidade de Tombos, o general reside em Muriaé desde 1970 (Fotos: Arquivo RM)


O general e a esposa Letícia, em solenidade na qual recebeu o título de Cidadania Honorária de Muriaé, em 2013

Entre diversas ações de destaque, general Floriano Peixoto comandou a Missão de Paz da ONU no Haiti


O General da reserva, Floriano Peixoto Vieira Neto, radicado em Muriaé há quase 50 anos, foi nomeado oficialmente para integrar a equipe de transição do presidente eleito, Jair Bolsonaro. A nomeação do general foi publicada na edição desta terça-feira (13) do Diário Oficial da União (DOU).

Nascido na pequena cidade de Tombos, General Floriano Peixoto reside em Muriaé desde 1970. Pelo Exército Brasileiro, ele comandou várias ações de destaque que motivaram condecorações no país e no exterior, como a “Missão de Paz da Organização das Nações Unidas” (ONU), no Haiti, entre 2009 e 2010.

Em 2013, o general foi agraciado com o título de “Cidadania Honorária de Muriaé”, concedido pelo Poder Legislativo Municipal, por indicação do então prefeito, Aloysio Aquino.

Na reserva do Exército desde 2014, Floriano Peixoto atuou como pesquisador do Instituto Brasil do King's College, de Londres.

Texto: Rádio Muriaé


Bolsonaro gravou vídeo por exigência de Bebianno
Josias de Souza 19/02/2019 02h28

O vídeo divulgado por Jair Bolsonaro após o anúncio oficial da exoneração de Gustavo Bebianno foi gravado por exigência do ex-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. O blog apurou que o conteúdo da fala do presidente foi minuciosamente negociado com o ministro demitido. Bolsonaro mimou Bebianno, recobrindo-o de elogios, no pressuposto de que receberá em troca o silêncio do ex-coordenador de sua campanha presidencial.


blob:https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/65db07d8-7a3e-495c-9b00-1838a09d3b9a

Apenas Bolsonaro e Bebianno conhecem na plenitude os segredos que compartilham. Mas o desfecho da negociação sinaliza o potencial destrutivo de uma eventual inconfidência. Numa articulação que teve o ministro Onyx Lorenzonni (Casa Civil) como principal intermediário, Bebianno esclareceu que não aceitaria calado a "humilhação" de ser exonerado sob as pechas de desleal, incompetente e corrupto. Inicialmente, Bolsonaro deu de ombros. Comportava-se como se não tivesse o que recear. As conversas do final de semana suavizaram-lhe as convicções.

Bebianno exigia algo que se aproximasse de um pedido de desculpas. Sua principal referência era a entrevista que Bolsonaro concedera à TV Record na quarta-feira da semana passada, dia 13 de fevereiro, antes de deixar o hospital Albert Einstein, rumo a Brasília. Comparado com os termos dessa entrevista, o teor do vídeo pós-demissão transformou Bolsonaro numa espécia de ex-Bolsonaro. Antes, o presidente dissera uma coisa. Depois, declarou o seu oposto.

Na conversa com o repórter da Record, Bolsonaro deu asas à suspeita de envolvimento de Bebianno no escândalo das candidaturas laranjas do PSL: "Se tiver envolvido, logicamente, e responsabilizado, lamentavelmente o destino não pode ser outro a não ser voltar às suas origens". Ao ser questionado se havia conversado com Bebianno, como o ministro alegara na véspera, o presidente foi categórico: "Mentira”.

Na sequência, Bolsonaro lançou o ainda ministro no caldeirão em que ardem as biografias carunchadas: "Sabe por que é mentira? Porque eu determinei que a Polícia Federal investigasse. Determinei ao Sergio Moro que, dentro da sua esfera de atribuição se fosse possível investigar, e está sendo investigado. Essa é a resposta que dou para todos aqueles que tentam praticar corrupção no Brasil.".

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No vídeo repassado aos jornalistas na noite desta segunda-feira (18), um Bolsonaro bem ensaiado, muito diferente daquele personagem espontâneo das transmissões ao vivo via redes sociais, ladrilhou com pedrinhas de brilhante o caminho pecorrido por Bebianno desde a coordenação da campanha presidencial até a poltrona de ministro, passando pelo período em que exerceu o comando de um PSL cítrico. O que era suspeição virou crença na "seriedade e qualidade de seu trabalho”.

"Tenho que reconhecer a dedicação e comprometimento do senhor Gustavo Bebianno à frente da coordenação da campanha eleitoral em 2018. Seu trabalho foi importante para o nosso êxito. Agradeço ao senhor Gustavo pelo esforço e empenho quando exerceu a direção nacional do PSL. E continuo acreditando na sua seriedade e qualidade de seu trabalho. Reconheço também sua dedicação e esforço durante o período em que esteve no governo”.

Na prática, Bebianno como que puxou Bolsonaro para dentro do micro-ondas em que o presidente o havia colocado, numa ação executada em conjunto com o filho Carlos Bolsonaro. Quem ouve o Bolsonaro do vídeo desdizendo o presidente da entrevista de seis dias atrás se pergunta: Mas, afinal, o que levou Bolsonaro a demitir Bebianno? "Razões de foro íntimo", declarou, enigmático, o porta-voz Otávio do Rêgo Barros.

No vídeo divulgado após o anúncio do porta-voz, Bolsonaro não desfez o enigma: "…Desde a semana passada, diferentes pontos de vista sobre questões relevantes trouxeram a necessidade de uma reavaliação", afirmou o presidente. Que pontos de vista? Não esclareceu. Quais questões relevantes? Nem sinal. "Avalio que pode ter havido incompreensões e questões mal entendidas de parte a parte, não sendo adequados pré-julgamentos de qualquer natureza”.

O presidente da República implacável com "todos aqueles que tentam praticar corrupção no Brasil" perdeu-se em algum lugar no trajeto que separa o entrevistado da Record do leitor de teleprompter desta segunda-feira. Acabrunhado com o resultado de sua metamorfose, o ex-Bolsonaro se absteve de reproduzir nas redes sociais o vídeo de sua contrição. Comportou-se como um Narciso que acha feio o que deixou de ser o espelho dos habitantes de sua bolha no Twitter.




Morre homem identificado como marinheiro de foto símbolo do fim da 2ª Guerra Mundial
Peritos identificaram George Mendonsa como o homem flagrado beijando mulher vestida de enfermeira na comemoração do fim da 2ª Guerra. Ele tinha 95 anos e morreu após sofrer queda na casa de repouso onde vivia.
Por G1
18/02/2019 15h02  Atualizado há 18 horas



Icônica foto de 14 de agosto de 1945 mostra marinheiro e mulher vestida de enfermeira se beijando nas comemorações do fim da Segunda Guerra Mundial. O homem, identificado como George Mendonsa, morreu aos 95 anos. — Foto: Victor Jorgensen/Arquivo/U.S. Navy


Morreu no domingo (17) o marinheiro norte-americano George Mendonsa. Ele foi identificado como sendo o homem fotografado beijando uma mulher na Times Square, em Nova York, na comemoração do fim da Segunda Guerra Mundial.
Segundo o "Providence Journal", Mendonsa sofreu acidente na casa de repouso onde vivia, no nordeste dos Estados Unidos. A família contou ao jornal norte-americano que o militar caiu, teve uma convulsão e morreu. Ele estava a dois dias de completar 96 anos.


Durante anos, George Mendonsa tentou provar que era ele o homem na foto aos beijos com mulher vestida de enfermeira no fim da Segunda Guerra Mundial — Foto: Connie Grosch/Providence Journal via AP


Nas imagens flagradas por Alfred Eisenstaedt e Victor Jorgensen, um homem vestindo os trajes oficiais da Marinha dos Estados Unidos aparece beijando uma mulher com roupa semelhante à das enfermeiras.
Durante anos, diversos homens e mulheres contestaram a identidade do casal. Em 2012, porém, peritos observaram os detalhes dos corpos das duas pessoas e confirmaram que o marinheiro da foto era, mesmo, Mendonsa – durante anos, o militar tentava convencer a revista Life de que era ele quem aparecia nas imagens.
Quem é a mulher na foto?
Os peritos também identificaram a mulher como sendo Greta Zimmer Friedman. Ela trabalhava como assistente de dentista quando, segundo ela, Mendonsa a agarrou em uma Times Square cheia. Era 14 de agosto de 1945, dia em que o Japão se rendeu aos Estados Unidos, marco do fim da Segunda Guerra Mundial.
Mendonsa e Friedman não se conheciam. O militar reconheceu, em entrevistas, que beijou a mulher após tomar bebida alcoólica nas comemorações do fim do conflito. Friedman confirmou a versão.
"Aquele cara veio, me agarrou e me beijou. Era apenas alguém festejando muito. Não foi algo romântico", relatou Friedman à Biblioteca do Congresso em 2005.
Friedman morreu em 2016, vítima de complicações da idade avançada.






2.Os personagens de Lima Barreto

Desinteressado de dinheiro, de glória e posição,
vivendo numa reserva de sonho,adquirira a candura e
a pureza d’alma [...] É raro encontrar homens assim,
mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados
de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia
pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem.

A literatura de Lima Barreto é portadora de um sentido de crítica e de denúncia a uma ordem cujos valores ele considerava deturpados e carregados de preconceitos que escondiam falsos moralismos. Na realização desta tarefa, de trazer à tona, através da literatura, as contradições da sociedade em que viveu, os personagens criados pelo escritor têm fundamental importância.
Lima Barreto valoriza a cuidadosa construção de seus personagens, fazendo com que eles representem de forma crítica determinadas situações sociais da realidade. Em seu livro Impressões de Leitura, o autor mais de uma vez faz elogios a autores que conseguem dar uma “alma” aos seus personagens, dando-lhes vida, personalidade própria, diferenciando-os uns dos outros, fazendo-os capazes de comunicar ao leitor “um sentimento de vida, de realidade”, sugerindo a este o sentimento descrito pelo autor. Em sua concepção, as circunstâncias da realidade ambiente devem ser fundamentais para o escritor que, ao abstrair desta, “fabricaria fantoches e não almas, personagens vivos”. (BARRETO, 1956 a, p.17).
A criação literária, para ele, está intrinsecamente ligada ao meio no qual é produzida, e Lima Barreto deixa clara sua convicção de que para escrever é necessário possuir o talento de observador não só dos indivíduos, mas também da sociedade. Se para ele a literatura deveria ter a função de ser um instrumento de comunicação entre os homens, agindo como um meio de compreensão entre os mais diferentes homens, os seus personagens são, então, “ferramentas” fundamentais nesse objetivo de comunicar idéias e sentimentos, e mais do que isso, ainda, devem tornar tais idéias e sentimentos assimiláveis, incorporá-los ao leitor.
BARRETO, 1983, p.49

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Neste sentido, podemos nos remeter aqui à idéia de narrador desenvolvida por Walter Benjamin, para quem o autêntico narrador é aquele que possui “a faculdade de intercambiar experiências”, e aproximá-la da concepção de literatura defendida por Lima Barreto, e, conseqüentemente, dos narradores criados por ele, que têm a tarefa de estabelecer uma comunicação com aqueles que o lêem. Para Benjamin: “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos ouvintes.” (BENJAMIN, 1993, p.201). Segundo ele, “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”. A sua análise tem como referência os inúmeros narradores anônimos, os quais narravam oralmente suas histórias. Benjamin acreditava que as melhores narrativas escritas são aquelas que menos se diferenciam destas formas orais de narrativa. E ele destaca dois grupos de narradores fundamentais, representados por tipos arcaicos, contendo cada um características próprias: o marinheiro comerciante, que narra histórias vindas de longe, de muitas viagens; e o camponês sedentário, que conhece bem as histórias e tradições de seu país.
A importância da habilidade de narrar experiências, inclusive a própria, no entanto, é comum aos dois, e o conhecimento das mesmas faz com que tenham uma sabedoria que possibilita que a sua narração seja uma forma de “conselho” para quem os ouve. Esta é, na visão de Benjamin, a autêntica narrativa, que, mesmo transposta para a escrita, deve preservar esta característica, como fica claro na seguinte passagem:

A natureza da verdadeira narrativa tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. (BENJAMIN, 1993, p.200).
Pode-se estabelecer, assim, uma relação com o ideal barretiano no que diz respeito à literatura, já que para o autor esta deveria ter um fim utilitário, funcionando como uma força de ligação entre os homens, levando-os a unirem-se em prol da solidariedade humana, contribuindo para a sua felicidade. Para Lima Barreto, a

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literatura é o veículo capaz de transmitir as mais diversas experiências de uns homens aos outros, independentemente de raças, classes sociais e até épocas – fazendo com que se compreendam mutuamente – e, por mais diferentes que sejam, tornando-os “semelhantes no sofrimento da imensa dor de serem humanos”.
No interior desta concepção, portanto, aquele que narra deve,
conseqüentemente, ser capaz de observar e apreender as diferentes experiências, suas próprias e as alheias, e de comunicá-las transpondo-as para uma esfera moral, como um conselho, algo que possa ser seguido por todos os seres humanos. O narrador deve possuir a capacidade de fazer com que as pessoas identifiquem-se com ele de alguma forma e, a partir daí, possam identificar-se com outras pessoas, percebendo o que existe em comum entre eles:

Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador
e sua matéria – a vida humana – não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência – a sua e dos outros – transformando-a num produto sólido, útil e único? (BENJAMIN, 1993, p.221).

Benjamin chama a atenção, ainda, no seu texto, que, deve ser lembrado aqui, foi escrito em 1936, para o fato de que a tendência é que este tipo de narrador, próximo daqueles narradores orais já citados, é desaparecer, pois cada vez mais a idéia de “dar conselhos” parece antiquada, como resultado de um processo no qual as experiências estão deixando de ser comunicáveis.
Este processo, segundo ele, tem o seu momento culminante de evolução quando surge a informação veiculada pela imprensa, a qual, de acordo com o autor, foi um dos mais importantes instrumentos no que se refere à consolidação da burguesia. A difusão desta nova forma de comunicação, que é a informação, é, assim, responsável pelo declínio daquela narrativa associada à sabedoria, à experiência. A idéia de progresso desvaloriza a sabedoria adquirida com o tempo, fazendo com que aquele que sabe “dar conselhos” torne-se inútil.
Nesta perspectiva, Lima Barreto pode ser visto como um escritor que, embora tenha vivido em um período de grande valorização do progresso, da novidade, das aparências, manteve, na sua maneira de conceber a literatura, a essência do “autêntico narrador” apontado por Benjamin. Sua crença era na possibilidade do entendimento e

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da solidariedade humana. Ao invés das distinções e desigualdades sociais que tanto o incomodavam, seu objetivo era buscar o elemento unificador, que aproximasse os seres humanos uns dos outros, entendendo a sua literatura como forma de participação na sociedade.
Assim, a recorrência a aspectos autobiográficos, em sua obra, deve ser entendida sob o seu ponto de vista, e não como um fator de comprometimento de sua literatura, como pensavam alguns críticos como José Veríssimo, Medeiros e Albuquerque e João Ribeiro, que consideravam sua literatura por demais personalista e confessional, como se fosse apenas um desabafo de suas angústias e frustrações. Ou seja, para ele, usar suas próprias experiências, sentimentos e pensamentos, poderia contribuir para que os leitores se identificassem, refletissem sobre suas próprias vidas a partir da sua narração. A literatura era um meio de “nos revelar uns aos outros.”
Assim sendo, ainda que o escritor tenha colocado em seus livros muito de sua própria vida, e que tenha feito seus personagens viverem muito do que ele próprio viveu, aproveitando neles seus sentimentos, decepções, angústias, idéias, toda a sua obra literária foi produzida sendo norteada pela busca de ideais coletivos, voltados para uma dimensão social, e não para descarregar seus problemas particulares. Esta interpretação de sua obra como sendo apenas um espaço onde ele externalizava suas frustrações, restringe-a, ao meu ver, apenas às questões pessoais do autor.
Francisco de Assis Barbosa, na importante biografia que escreveu sobre Lima Barreto, comete talvez um equívoco ao afirmar de forma tão categórica a identidade entre obra e autor. Não se pretende aqui fazer uma crítica ao livro de Francisco Assis Barbosa, de reconhecida importância; apenas chamar a atenção para o fato de que, ao contrário de sua interpretação, que vê os personagens de Lima Barreto confundindo-se com o próprio escritor, como se fossem um só, a abordagem aqui feita pretende interpretar os personagens como criação do autor, pertencentes a uma esfera ficcional, através dos quais o escritor realiza sua crítica social.
Ao usar suas próprias experiências pessoais, idéias ou observações a respeito de acontecimentos históricos e fatos sociais em suas obras de ficção, o autor parte do particular para o geral, traduzindo, através da criação artística, o individual para um alcance social. Como bem observou Antonio Candido: “Elaborou a realidade com um

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toque que nos faz ler como se fosse trecho de ficção este retalho onde a dimensão pessoal converge com a visão da sociedade e a consciência artística, propiciando a realização literária plena.” (CANDIDO, 1987, p.44). E em outra passagem:

Com efeito, trata-se de um elemento pessoal que não se perde no personalismo, mas é canalizado para uma representação destemida e não-conformista da sociedade em que viveu. Espelho contra espelho é uma das atitudes básicas desse rebelado que fez da sua mágoa uma investida, não um isolamento. (CANDIDO, 1987, p.50)

2.1. A caminho dos personagens

Dentre a enorme gama de personagens criados pelo autor de Policarpo Quaresma, os que serão analisados aqui são aqueles que, na sociedade representada pelo escritor, são vistos como “esquisitos”, loucos, que levam uma vida “extravagante”, excluídos por não estarem de acordo com as idéias predominantes no mundo em que vivem, ainda que não necessariamente no hospício. São estes personagens “inadaptados” em relação à sociedade, vivendo uma vida isolada, que são incumbidos de transmitir os valores considerados verdadeiros pelo escritor, como solidariedade, sinceridade, justiça, em oposição aos valores predominantes na época vistos por Lima Barreto como deturpados.
De acordo com Nicolau Sevcenko (1999), todo o universo temático da obra do escritor é composto tendo como questão central as práticas de coerção, discriminação e marginalização social, podendo ser interpretado como uma denúncia dos
mecanismos de manutenção de poder, divulgação da ideologia das classes dominantes, e de marginalização social. Dentre estes mecanismos destacam-se a imprensa e a ciência, criticadas em várias obras pelos seus papéis de legitimadoras das teorias e ideologias opressoras e discriminadoras imperantes na nova sociedade “irredutível, na sua solidez, para com as individualidades desviantes”.
Para Sevcenko, “os personagens de Lima Barreto, sem exceção, ou

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representam as vítimas dessa estrutura plástica e constringente, ou as formas de consciência e conduta de que ela se nutre”. (1999, p.174). Os personagens que são vítimas de abominação social são revestidos de uma dignidade e de uma humanidade superiores, verdadeiros, de acordo com um ideal humanitário e de uma sociedade justa, ética e solidária defendido pelo escritor.
O ideal de união e solidariedade humana almejados pelo escritor ia, portanto, de encontro à realidade na qual vivia, onde os valores eram outros. Na sua produção literária, esta tensão se reflete, de acordo com Nicolau Sevcenko, em duas dimensões diferentes, que se relacionam mutuamente: uma primeira, que diz respeito à temática das instituições de poder e de suas conseqüências de exclusão social e divisões dentro da sociedade, e uma segunda que busca, em contrapartida, realçar a dignidade e honestidade dos desprezados e excluídos, representando o ideal da confraternização e solidariedade humanas.
Estes, que permanecem durante sua vida mantendo-se fiéis a valores como a justiça, o respeito aos direitos dos outros, e valorizando a sua independência de pensar e agir, são, segundo o escritor, os que sofrem ao chocarem-se com a “brutalidade do nosso viver atual.” (BARRETO,1998, p.346), tendo dificuldades em viver em um tempo de “hipocrisia e bajulação, da mediocridade triunfante e da ignorância triunfante”.

2.2. Policarpo Quaresma

Policarpo Quaresma, talvez o mais conhecido de todos dos personagens de Lima Barreto, protagonista do romance intitulado Triste fim de Policarpo Quaresma, é um exemplo de como o autor manifestou alguns de seus ideais e críticas através das criaturas que inventou. A defesa da valorização da cultura popular brasileira, a denúncia do autoritarismo do governo de Floriano Peixoto, a questão agrária nacional, a crítica ao saber de “gabinete” e à instituição psiquiátrica, tudo isso aparece

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através da vida de Policarpo Quaresma.
O personagem, que inicialmente possuía uma visão ingênua da realidade, construída a partir de um conhecimento puramente “livresco”, vai, no decorrer de sua trajetória, defrontando-se com o mundo real. Este confronto, no entanto, não o faz render-se a ele e aos seus valores e Policarpo continua seguindo, até a morte, seus ideais em defesa de um país melhor. Primeiro, é considerado louco e internado no hospício quando, defendendo um ufanismo ingênuo, assina um requerimento endereçado ao Congresso Nacional, pedindo que seja decretado o tupi-guarani como língua oficial e nacional brasileira.
Ao sair do hospício, Quaresma decide mudar-se para um sítio distante e dedicar-se à agricultura. Embora tenha desistido da idéia da instauração do tupi-guarani como língua oficial, não desistiu do seu ideal de lutar por um país melhor, e passa então a cuidar da terra, acreditando que o investimento na agricultura trará melhoras para Brasil.
Esta experiência no campo também fracassa; seu sítio é invadido por formigas saúvas que destroem toda a plantação. Porém, com ela, Policarpo aprende a valorizar o conhecimento que existe além dos livros junto com a população rural que, muitas vezes, tinha mais conhecimento sobre a terra do que ele próprio, que havia estudado tudo nos livros.
Além disso, o personagem também consegue ter uma visão crítica da atitude do governo em relação à questão rural. É, portanto, aquele que é visto pela maioria das pessoas como louco, esquisito, que percebe o abandono em que viviam as populações rurais, sem ter uma terra própria para cultivar, sem o apoio do governo para tratar das terras, enquanto grandes proprietários mantinham terras improdutivas.
Quaresma teve a convicção de que era preciso novas medidas para dar novas bases à vida agrária e, mais do que isso, percebeu que o problema não poderia ser resolvido individualmente, mas sim com mudanças que necessitavam de uma participação de natureza coletiva. De acordo com Nicolau Sevcenko:

De fato, essa passagem do ufanismo à lucidez crítica resume a própria trajetória do major Quaresma, símbolo de uma intelectualidade que reformula suas posturas. Ela implicava sobretudo uma mudança na forma de olhar, exigindo que se saísse

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das páginas dos livros e da cultura letrada, das tribunas, das bibliotecas e dos gabinetes, para um contato direto com a realidade do país, sua natureza, sua gente, seus campos, suas cidades. A experiência existencial dessa intimidade com o homem e a terra se encarregaria de traduzir-se por si mesma em consciência crítica e avaliação das condições reais do país. (SEVCENKO, 1999, p.178).
A questão agrária, levantada pelo personagem Quaresma, é uma das importantes questões sociais sobre as quais Lima Barreto se debruçou. Causava-lhe indignação a concentração de extensas propriedades rurais nas mãos de alguns poucos proprietários que não as faziam produtivas, enquanto muitos trabalhadores que viviam no campo não tinham terra nenhuma que pudessem cultivar. Em um artigo que escreveu três anos depois da publicação de Triste fim de Policarpo Quaresma, em 1918, o escritor expõe sua indignação:

Não é possível compreender que um tipo bronco, egoísta e mau, residente no Flamengo ou em São Clemente, num casarão monstruoso e que não sabe plantar um pé de couve, tenha a propriedade de quarenta ou sessenta fazendas nos Estados próximos (...), enquanto, nos lugares em que estão tais latifúndios, há centenas de pessoas que não tem um palmo de terra para fincar quatro paus e erguer um rancho de sapê, cultivando nos fundos uma quadra de aipim e batata doce.( BARRETO, 1956 c, p.90).
Aprofundando ainda mais sua crítica, Lima Barreto questiona a propriedade privada. Em sua visão, é absurdo que a comunhão social seja lesada em função da propriedade nas mãos de um único indivíduo. Seguindo este raciocínio, ele acredita que o indivíduo só deve conservar para ele aquilo de que necessita para viver bem, para manter a sua vida e a de sua família. Em outro artigo também de 1918, ele escreve: Precisamos combater o regímen capitalista na agricultura, dividir a propriedade agrícola, dar a prioridade da terra ao que efetivamente cava a terra e planta e não ao doutor vagabundo e parasita, que vive na “Casa Grande”. (BARRETO, 1956 c,.p.133).
Voltando ao Major Quaresma, este, apesar de sua consciência crítica adquirida com a vivência rural, acaba agindo mais uma vez de maneira inocente e, confiante na vitória e na validade de seus ideais, acreditando que estes poderiam ser partilhados por todos, acaba indo pedir ajuda ao próprio Marechal Floriano Peixoto, para que este

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dê terras para a população que vive no campo e ajuda para que esta possa cultivá-la.
O que Policarpo Quaresma recebe como resposta, porém, é o desprezo pela população rural, considerada composta por vadios nas palavras do Marechal: “Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de cada um desses vadios?!....Você, Quaresma, é um visionário.....” (BARRETO, 1983, p.131).
Por fim, depois de lutar ao lado do Marechal Floriano, ainda impulsionado pelo seu espírito patriótico, Quaresma passou então a trabalhar como carcereiro. Ao presenciar, porém, a saída de uma leva de prisioneiros para uma “carniçaria distante”, sentira-se “desafiado nos seus princípios, na sua solidariedade humana”. Resolveu escrever uma carta ao presidente, expondo sua indignação, protestando contra a cena que presenciara, o que acaba por levá-lo à morte pelos fuzis dos soldados de Floriano.
Pouco antes de morrer, o personagem já aparece desiludido e decepcionado, como mostra uma carta que escreve à irmã:

Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido, e o sangue que derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer.....Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maníaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade. (BARRETO,1983, p.154).
Diante da morte, depois de várias decepções, o Major Quaresma se rende ao pessimismo e questiona os seus atos, o seu ingênuo idealismo patriótico que faz com que, agindo de forma inocente pela última vez, escreva uma carta ao presidente protestando contra a violência que presenciou, atitude esta que o leva à morte. Suas convicções vão de encontro a uma realidade dura e brutal, a todo um sistema que pretende padronizar os indivíduos de acordo com determinados moldes. Embora sua dedicação à pátria, seu desejo de lutar por melhores condições de vida para todos, e seus ideais humanitários fossem sinceros e verdadeiros, suas tentativas de concretizar tais ideais em ações práticas foram todas um fracasso, e o que o personagem acabou conseguindo foi uma estadia no hospício, sua plantação invadida por formigas e o trágico fim: o fuzilamento.

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Nos trechos finais do livro, onde Quaresma está sozinho na cela esperando ser levado para a morte, fica claro o questionamento do criador do personagem ao tipo de saber que se restringe ao “gabinete”, distanciado da realidade social:

Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o [...]. O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. [...] A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. (BARRETO, 1983, p.152).

Assim, Lima Barreto questiona o desconhecimento da realidade do país e a manipulação política das idéias do Brasil nação, ridicularizando o conhecimento adquirido através apenas dos livros, e colocando em discussão a validade de uma cultura obtida em gabinete, assim como as conseqüências de um patriotismo construído a partir de uma cultura livresca.
Por outro lado, o autor de Policarpo Quaresma manifesta algumas de suas críticas à estrutura política e social brasileira, por intermédio do personagem que é condenado à morte por defender o que considera justo. Pois, se é possível o questionamento das atitudes ingênuas de Policarpo, vendo-as como conseqüência de uma cultura unicamente livresca e distante da realidade concreta, que o fazem incapaz de viabilizar as mudanças que deseja, ao mesmo tempo, também é inegável a sinceridade e a honestidade com que o personagem defende e acredita nas suas convicções sobre a importância de medidas sociais mais justas para aqueles setores menos privilegiados da sociedade.
Policarpo, com todos os seus erros e dificuldades, mantém, portanto, uma posição que vai de encontro às idéias políticas dominantes. De acordo com Silviano Santiago, em seu artigo denominado Uma ferroada no peito do pé, o romance de Lima Barreto é um dos que melhor tematiza a questão da repressão ao intelectual dissidente. Segundo Silviano Santiago:

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A força de dissidência não reside tanto nas ações patrióticas do personagem com vistas a uma mudança radical no Brasil, mas no fato de Policarpo ter suas ações norteadas por um ideal, e é perseguindo este ideal que se insurge contra as forças dominantes no contexto sócio – político e econômico brasileiro. (SANTIAGO, 1982, p.7).

É, portanto, perseguindo seus ideais que Quaresma insurge-se contra as forças dominantes e vive na própria pele a repressão. Assim, o seu fracasso está associado também à questão da oposição, da defesa de idéias e valores opostos às idéias e valores proclamados pela política dominante. Esta questão aparece em outros romances e contos de Lima Barreto, onde aquele que é o dissidente é sempre condenado à solidão, ao isolamento, ou visto como louco. Em relação a Policarpo
Quaresma, Antonio Arnoni Prado escreveu:

O dado novo é que ao insano está reservada a tarefa de planejar a reformulação dos costumes, a reforma agrária e a defesa institucional da nação, sob o olhar indiferente dos homens de bem, mais preocupados com a promoção funcional, a aposentadoria e o tráfico de influências [...] E no entanto é esse “Quixote de alma nacional”, como o chamou M. de Oliveira Lima, que acaba denunciando com o melhor humor o autoritarismo arbitrário dos golpistas da República, ao pagar com a própria vida a sua dedicação estouvada à causa da pátria livre.(PRADO, 1989,p.8).

2.3. O Feiticeiro

No conto intitulado O feiticeiro e o deputado, Lima Barreto narra a estória de um homem que chega em uma cidade pequena e compra um sítio onde passa a viver sozinho, cultivando sua horta, sem estabelecer muitas relações com a população local.
Ele passa a ser chamado de “feiticeiro” devido ao mistério de sua chegada e a “extravagância de sua maneira de viver”. Era considerado um “habitante singular”.
No seu primeiro ano na cidade, sofreu a desconfiança geral , “as risotas, as indiretas”, as interrogações em relação ao seu passado, o que era um mistério para todos. Muitos

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cochichavam que matara, que roubara, que falsificara. Tais especulações, porém, não foram adiante, já que o delegado do lugar, que indagara seus antecedentes, levou a todos confiança no moço. Assim, depois de algum tempo, a bondade natural do “feiticeiro” para tudo e para todos acabou desarmando a população, com exceção de duas das autoridades locais – o médico e o escriturário –, para quem não passava de um louco. “O feiticeiro, porém, continuava a viver no seu rancho sobranceiro a todos eles. Opunha às opiniões autorizadas do doutor e do escriturário, o seu desdém soberano de miserável independente.” (BARRETO, 1982 p.64).
No entanto, a opinião das autoridades muda quando chega um importante deputado em visita à cidade que, ao se deparar com o “feiticeiro”, reconhece-o como seu amigo e colega, fazendo com que o médico e o escriturário descubram que ele era formado. O doutor havia recebido o deputado com todas as honras, mostrado-lhe todos os recantos mais agradáveis da cidade. Por fim, quando percebeu que o deputado já estava se cansando, convidou-o para ir conhecer o “feiticeiro”, com a seguinte frase: “Vamos ver, doutor, um degenerado que passa por santo ou feiticeiro por aqui. É um dementado que, se a lei fosse lei, já de há muito estaria aos cuidado da ciência, em algum manicômio”. (BARRETO, 1982, p.65).
Quando, porém, o médico viu que o deputado reconheceu o feiticeiro como seu antigo colega, abraçando-o demoradamente e conversando longamente, logo perguntou ao deputado se aquele era formado. Com a resposta afirmativa do deputado, o médico diz: “Logo vi [...] Os seus modos, os seus ares, a maneira com que se porta fizerem-me crer isso; o povo, porém...”. Ao saber que o feiticeiro era formado e amigo do deputado, os modos e a maneira de ser deste, que antes denunciavam sua loucura, passam a ser vistos de outra forma, demonstrando o seu saber.
Pode-se perceber, através deste exemplo, que a loucura foi usada aqui pelo escritor para questionar os valores que imperavam na época e que legitimavam a exclusão social. Fica clara, assim, a crítica de Lima Barreto à supervalorização dos títulos, diplomas e cargos considerados importantes: tal supervalorização acaba agindo como critério para o julgamento em relação à sanidade de uma pessoa.
O chamado bacharelismo era visto por Lima Barreto como mais uma forma de

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exclusão social que ia se consolidando na sociedade. O que o incomodava era o fato de que aqueles que obtinham o título de doutor adquiriam todo o prestígio, honras e privilégios na sociedade, originados da ciência e saber de que são portadores, mas na verdade quase nunca correspondiam a este saber de fato. Segundo ele, a maior parte deles era medíocre intelectualmente e usava o título para “cavar” posições sociais, cargos na administração pública, regalias e privilégios, ocupando o lugar de outros que, muitas vezes, são mais inteligentes, honestos e interessados em estudar, mas que não são doutores. Ele compara o título universitário a um “foral de nobreza”, emprestando ao sujeito que é dele portador capacidades superiores. Assim o autor denunciava ainda o elitismo do “doutorismo”, pois apenas os ricos conseguiam se formar. Em suas próprias palavras:

A maioria dos candidatos ao “doutorado” é de meninos ricos ou parecidos, sem nenhum amor ao estudo, sem nenhuma vocação nem ambição intelectual. O que eles vêem no curso não é o estudo sério das matérias , não sentem a atração misteriosa do saber (...) O que eles vêem é o título que lhes dá namoradas, consideração social, direito a altas posições que os diferencia do filho do “Seu” Costa, contínuo de escritório do poderoso papai. (BARRETO, 1998, p.328.).
Além disso, neste conto, Lima Barreto ressalta também uma diferença entre o parecer popular e aquele das autoridades. Para a população, o feiticeiro era um “habitante singular”, que poderia muito bem continuar vivendo ali entre eles, ainda que de forma isolada. Mas para o médico da cidade, representante da ciência, aquele homem deveria estar “em algum manicômio”.

2.4. Fernando e Vicente

A crítica de Lima Barreto ao poder psiquiátrico – que na sua visão muitas vezes submetia os “doentes” às arbitrariedades não só médicas mas também policiais, já que em muitos casos a polícia era encarregada de conduzir os “loucos” ao hospício

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– pode ser claramente vista no conto Como o homem chegou.
Neste conto, o escritor descreve, em tom irônico e mordaz, como um homem que vivia com seu pai em uma chácara nos confins de Manaus, e dedicava seu tempo ao estudo da Astronomia, passou a ser visto como louco e foi transportado arbitrariamente pela polícia em um carro-forte de Manaus ao Rio de Janeiro.
Fernando, o personagem do conto, era um “ente pacato lá dos confins de Manaus, que tinha a mania de Astronomia e abandonara, não de todo, mas quase totalmente, a terra pelo céu inacessível”. Vivia pacatamente com seu pai até que o doutor Barrado, um homem que era “esforçado para parecer inteligente”, iniciou uma campanha em favor da internação de Fernando, convencendo a família e os conhecidos de que “o ser descompassado os envergonhava” e espalhando que Fernando vivia nas tascas com vagabundos. O doutor supunha que o comportamento de Fernando, que era simples e desdenhoso pelos mandões, resultasse como uma censura em relação à sua atitude por demais mesureira com os magnatas. Assim, Barrado conseguiu mover os simplórios parentes de Fernando:

Em uma terra inteiramente entregue à chatinagem e à veniaga, Fernando foi tomando a fama de louco, e não era ela sem algum motivo. Certos gestos, certas despreocupações e mesmo outras manifestações mais palpáveis, pareciam justificar o julgamento comum; entretanto, ele vivia bem com o pai e cumpria os seus deveres razoavelmente. Porém, parentes oficiosos e outros longínquos aderentes entenderam curá-lo, como se se curassem assomos d’alma e anseios de pensamento. (BARRETO,1993, p.203).
Através dos contatos estabelecidos com a polícia do Rio de Janeiro, feitos devido aos conhecimentos do doutor Barrado, Fernando foi então transportado em um carro-forte de Manaus ao Rio de Janeiro, acompanhado pelo doutor. Depois de alguns dias de viagem, quando conseguiram uma hospedagem e alimentação, o motorista lembrou a Barrado do “homem que traziam”. Barrado, sem saber como proceder, sem saber se “essa espécie de doente comia”, consultou o chefe de polícia no Rio de Janeiro que lhe respondeu, por telegrama, que “não era do regulamento retirar aquela espécie de enfermos do carro, o ar sempre lhes fazia mal.” Assim, a viagem seguiu durante dois anos, com o objetivo único de levar o “homem” ao Rio de Janeiro, sem importar se ele estava vivo ou morto.

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Esta crítica às arbitrariedades do poder médico aparece também em seu romance inacabado O Cemitério dos vivos. Vicente, o personagem do livro, que é internado no Hospício, também é levado pela polícia em um carro-forte, e registra sua impressão:

É indescritível o que se sofre ali, assentado naquela espécie de solitária, pouco mais larga que a largura de um homem, cercado de ferro por todos os lados, com uma vigia gradeada, por onde se enxergam as caras curiosas dos transeuntes a procurarem descobrir quem é o doido que vai ali.A carriola, pesadona, arfa que nem uma nau antiga, no calçamento; sobe,desce, tomba para ali; o pobre-diabo lá dentro, tudo liso, não tem onde se agarrar e bate com o corpo em todos os sentidos, de encontro às paredes de ferro [...] Um suplício destes, a que não sujeita a polícia os mais repugnantes e desalmados criminosos, entretanto, ela aplica a um desgraçado que teve de ensandecer, às vezes, por minutos... (BARRETO, 1993, p.122).
Este personagem é, sem dúvida, inspirado em muito da experiência pessoal do próprio Lima Barreto, que começou a escrever este livro a partir das anotações que fez durante sua passagem pelo Hospício, e conseguiu transformar esta vivência neste ótimo romance, infelizmente inacabado.
Vicente era um homem que pretendia ser escritor, mas tinha conseguido publicar apenas um livro. Embora estudioso, Vicente, como outros personagens aqui analisados, queria manter a sua autonomia e independência intelectuais para não ter que abdicar de suas idéias e opiniões, o que o impedia de se ligar a algum “protetor”.
Criticava, portanto, o “doutorismo”, e tinha a convicção de que para se dirigir à massa comum de leitores, não deveria usar nenhum “aparelho rebarbativo e pedante de fraseologia especial”. Ao contrário, seria muito melhor a produção de livros simples do que “gastar tempo com obras só capazes de serem entendidas por sabichões enfatuados, abarrotados de títulos e tiranizados na sua inteligência pelas tradições de escolas e academias e por preconceitos livrescos e de autoridades.” (BARRETO, 1993, p.110).
Vicente, em sua estada no Hospício, aprofunda suas críticas à ciência. Mesmo antes desta sua experiência, ele conta que desde muito cedo, ao ler em um jornal a defesa de um júri que justificava a irresponsabilidade do réu usando o argumento

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científico de que no réu predominava tara paterna, ele passou a questionar as teorias científicas. Segundo sua concepção, era mais decente que a ciência reconhecesse sua ignorância diante do mistério, do que querer mascará-lo com explicações absurdas.
No Hospício, Vicente temeu a arrogância dos médicos, denunciando a falta de confiança que tinha neles, os quais, segundo ele, acreditavam demais nas certezas da ciência, pouco exercendo a crítica e a reflexão, correndo o risco de cometer erros e de submeter os pacientes à experiências perigosas. Dentro daquela instituição, no entanto, o personagem conscientiza-se do quanto estava submetido àquele poder:
“Pela primeira vez, fundamentalmente, eu senti a desgraça e o desgraçado. Tinha perdido toda a proteção social, todo o direito sobre o meu próprio corpo, era assim como um cadáver de anfiteatro de anatomia”. (BARRETO, 1992, p.148).
Se o personagem questiona o poder absoluto dos médicos sobre os “doentes”, por outro lado, no que se relaciona aos outros internos, Vicente desenvolveu um sentimento de solidariedade, reforçando o seu ideal de contribuir para o bem da humanidade, e criticando a visão preconceituosa em relação àqueles que já passaram pelo Hospício, como pode-se ver na seguinte passagem:

Eu me tinha esquecido de mim mesmo, tinha adquirido um grande desprezo pela opinião pública, que vê de soslaio, que vê como criminoso um sujeito que passa pelo Hospício, eu não tinha mais ambições, nem esperanças de riqueza ou posição: o meu pensamento era para a humanidade toda, para a miséria, para o sofrimento, para os que sofrem, para os que todos amaldiçoam.[...]
Eu sentia que interiormente eu resplandecia de bondade, de sonhos de atingir a verdade, do amor pelos outros, de arrependimento dos meus erros e um desejo imenso de contribuir para que os outros fossem mais felizes do que eu. (BARRETO, 1993, p.145).

2.5. Leonardo Flores

Outro personagem, Leonardo Flores, do romance Clara dos Anjos,é, para muitos críticos, o personagem no qual é possível reconhecer muitas características do

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próprio Lima Barreto. Leonardo Flores é um poeta que em tempos remotos conseguiu reconhecimento no Brasil inteiro, alcançado seu momento de celebridade, e influenciando gerações de poetas que o seguiram posteriormente. Com o tempo, porém, abatido por desgostos íntimos, sobretudo pela loucura irremediável de um irmão próximo, entregara-se ao álcool e transformara-se em “uma triste ruína dehomem, amnésico, semi-imbecializado, a ponto de não poder seguir o fio da mais simples conversa.” (BARRETO, 1982, p.53).
Leonardo, embora já tendo sido recolhido ao hospício algumas vezes devido às suas bebedeiras, e de ser considerado louco pela maioria das pessoas, nunca permaneceu lá, vivendo pobremente com a mulher e os filhos. Recusava-se a vincular sua poesia a um objetivo comercial, e não ganhou dinheiro com os livros que publicou. A poesia, para ele, era a forma de exprimir suas dores e suas alegrias, e a defendia como um ideal, pelo qual abandonou todas as honrarias, abriu mão do conforto de sua própria família. Em suas palavras:

Tudo isto eu fiz com sacrifício de coisas mais proveitosas, não pensando em fortuna, em posição, em respeitabilidade. [..] Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos dos homens, por não compreenderem certos atos desarticulados da minha existência, entretanto, elevou-me aos meus próprios, perante a minha consciência, porque cumpri o meu dever, executei a minha missão: fui poeta! Para isto, fiz todo o sacrifício. A arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente ; e eu precisava amá-la, porque ela representava, não só a minha Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor.Louco?! Haverá cabeça cujo maquinismo impunemente possa resistir a tão inesperados embates, a tão fortes conflitos, a colisões com o meio, tão bruscas e imprevistas? Haverá? (BARRETO, 1982, p.82).
Leonardo Flores atribui, aqui, a loucura à dificuldade de resistir defendendo ideais em meio a choques e conflitos com uma realidade confinadora, à dificuldade de se manter fiel ao seu ideal mantendo sua dignidade mas tendo que fazer sacrifícios para isso. Assim como Vicente, “esquecia-se de si mesmo” para dedicar-se a toda a humanidade.

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2.6. Ismênia e o gramático Lobo No romance Triste fim de Policarpo Quaresma, existe uma personagem chamada Ismênia que enlouquece depois de ter sido abandonada pelo noivo. Desde que o noivo a abandona, ela entra em um estado de tristeza profunda, não conseguindo mais ver sentido na própria vida, pois o desaparecimento do noivo significava para ela que estava condenada a não casar, a “suportar durante toda a existência esse estado de solteira que a apavorava.” (BARRETO, 1983, p.63): “Sem hábito de leitura e de conversa, sem atividade doméstica qualquer, ela passava os dias deitada, sentada, a girar em torno de um mesmo pensamento: não casar.” No início, a família de Ismênia tem esperança de que ela melhore, mas ela piora cada vez mais, deixando a família sem saber o que fazer, escondendo de todos o estado da filha, respondendo, para quem perguntava por ela, que estava melhorando aos poucos, quando a verdade era outra:

O pudor do pai tinha-o impedido de dizer toda a verdade. A filha enlouquecera de uma loucura mansa e infantil. Passava dias inteiros calada, a um canto, olhando estupidamente tudo, com um olhar morto de estátua, numa atonia de inanimado, como que caíra em imbecilidade; mas vinha uma hora, porém, em que se penteava toda, enfeitava-se e corria à mãe, dizendo: “Apronta-me, mamãe. O meu noivo não deve tardar... é hoje o meu casamento”. (BARRETO, 1983,p.118)

Neste caso, a loucura estava ligada a um sentimento de incapacidade de cumprir o único papel que a sociedade lhe reservara: o de esposa. Ismênia não enlouquece porque amava o noivo que a abandonou, mas porque não podia suportar a vergonha de ficar solteira. Lima Barreto delegou à personagem Olga, afilhada e amiga de Policarpo Quaresma, a capacidade de fazer uma reflexão crítica a respeito da situação de Ismênia:

Via bem o que fazia o desespero da moça, mas via melhor a causa, naquela obrigação que incrustam no espírito das meninas, que elas se devem casar a todo o custo, fazendo do casamento o pólo e fim da vida, a ponto de parecer uma desonra, uma injúria ficar solteira. [...]. O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso: é simplesmente casamento, uma

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coisa vazia [...]. Graças à frouxidão, à pobreza intelectual e fraqueza de energia vital de Ismênia, aquela fuga do noivo se transformou em certeza de não casar mais e tudo nela se abismou nessa idéia desesperada.( BARRETO, 1983, p.136).
A personagem Ismênia, diferentemente dos personagens aqui analisados, não vai de encontro aos valores de sua época e sim, ao contrário, sofre por ter introjetado como valor absoluto a idéia de que era uma vergonha não casar, e sua vida perde o sentido quando não consegue corresponder às expectativas da sociedade. De qualquer forma, ainda que de maneira diferente, Lima Barreto faz, através da personagem Ismênia, um questionamento de como o casamento era imposto às mulheres naquela sociedade como única possibilidade de vida, já que a maioria das moças não trabalhava, o que fazia com que aceitassem sua condição de inferioridade e casassem, muitas vezes, para cumprir um dever social. Em quase todas as estórias de Lima Barreto, os casamentos são puramente burocráticos.
Segundo Afonso Marques dos Santos, a situação de inferioridade da mulher na sociedade brasileira foi um tema constante em toda a atuação de Lima Barreto na imprensa. Embora o escritor, em seus artigos publicados nos jornais, tenha sempre se manifestado contra o feminismo, ao mesmo tempo publicou artigos criticando a recorrente tolerância com que os júris absolviam os maridos e os amantes uxoricidas.
Sua crítica ao feminismo era por achar que era um partido político como qualquer outro, o que não o impedia de protestar em favor das mulheres vítimas de crimes passionais, como se pode ver no artigo que escreveu em 1919:

Contra um ignóbil estado de espírito dessa ordem, que tende a se perpetuar entre nós, aviltando a mulher, rebaixando-a ao estado social da barbaria medieval, de quase escrava, sem vontade, sem direito aos seus sentimentos profundos, e tão profundos são que ela joga, no satisfazê-los, a vida; degradando-a à condição de coisa, de animal doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos, com direito de vida e de morte sobre ela; não lhes respeitando a consciência e a liberdade de amar a quem lhe parecer melhor, quando e onde quiser; – contra tão desgraçada situação da nossa mulher casada, edificada com a estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem as borra-botas feministas que há por aí. Elas só tratam de arranjar manhosamente empregos públicos, sem lei hábil que permita. É um partido de “cavação”, o feminista, como qualquer outro masculino. (BARRETO, 1956 c, p.28).

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Lima Barreto também via uma relação entre o casamento e a “superstição do doutor”, quando o marido era alguém que possuía a importância social de ter um diploma e, para ter mais prestígio ainda, conseguir ter seu próprio negócio, casava-se com uma moça rica. As moças, por seu lado, sonhavam em casar com um “doutor”.
Assim, este tipo de casamento, na visão do escritor, não passava de um contrato de sociedade, onde se combinavam as crenças difundidas na sociedade, de que o “doutor” e o dinheiro são tudo, e onde as mulheres eram vistas como parte da propriedade dos maridos, do dote recebido no casamento.
Diante da repercussão do caso de uma mulher chamada Julieta Melito, que assassinara o marido em São Paulo, Lima Barreto se posiciona, mais uma vez, em um artigo de 1918, em defesa das mulheres, defendendo a idéia de que a esposa havia casado acreditando no ideal do “doutor”, e descobriu que ele não passava de um caçador de dotes:

Nós temos direito de ter ambições. (...) O que eu não posso compreender, é que um homem ambicioso, transforme a sua mulher, em instrumento de sua ambição. (...) Já fui muitas vezes jurado; já sofri muito por causa disso; mas, se eu fosse escolhido para o júri de Dona Julieta Melilo, eu a absolveria. Absolvia, minha senhora, porque não gosto desses seres cheios de títulos, que não amam a mulher a quem eles deviam amor. (BARRETO, 1956 c, p.113).
Em seu livro Os delírios da razão: médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro,1830-1930), Magali Engel descreve dois casos de mulheres que assassinaram os maridos, ocorridos em 1911 e em 1913. Ambas as mulheres passaram por detalhadas avaliações psiquiátricas e, embora tenham tido o mesmo diagnóstico – histeria –, uma foi condenada para o resto de sua vida ao confinamento e à exclusão social no hospício, enquanto a outra foi condenada apenas à “vigilância permanente do olhar distanciado do médico”, sendo sua doença classificada como “compatível com a vida em sociedade”. Isto porque Maria Tourinho, aquela que foi condenada a ficar para sempre reclusa no hospício, em suas declarações, afirmou que vivia em desavença com o marido e que era vítima de maus tratos e que este dava uma má educação aos filhos. Tais afirmações, porém, não foram confirmadas pelo depoimento de parentes (inclusive o filho mais velho do casal).

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Segundo estes depoimentos, Arthur Tourinho, marido de Maria, era “um excelente pai e marido exemplar, nunca tendo permitido que sua família passasse qualquer dificuldade material”: “Dessa forma, o marido de Maria reunia todas as qualidades que, valorizadas por muitos dos padrões culturais disseminados pela sociedade da época, aproximavam-no da imagem do homem ideal, bom trabalhador e provedor da família.” (ENGEL, 2001, p.101). Além disso, o exame de sanidade realizado em Maria pelos médicos peritos, no qual foram investigados os antecedentes familiares da paciente, revelaram que seu pai era um “alcoolista inveterado”, o que, para a psiquiatria da época, significava causa de degeneração mental e epilepsia. Maria foi submetida, ainda, a um minucioso exame “por meio do qual os médicos buscavam identificar as características físicas que evidenciassem e comprovassem sua degeneração mental”.
Para agravar mais ainda o quadro de Maria, ela freqüentava já há algum tempo um centro espírita, onde ia a contragosto do marido. De acordo com as notícias publicadas na época a respeito do caso, o fato de Maria freqüentar o centro espírita é que a tinha feito assassinar o marido. Assim publicou o jornal O Paiz, em 17 de julho:
“Ela, a criminosa, é uma vítima do espiritismo, essa ciência oculta que a tantos tem levado ao crime, ao manicômio”. (ENGEL, 2001, P.98).
Assim, influenciada pelo espiritismo, o qual era condenado pelo marido, Maria o teria matado sem culpa nem sinais de arrependimento, o que foi considerado pelos médicos como aspectos importantes na confirmação de sua doença. Dessa forma, segundo a avaliação médica, os sintomas registrados tanto nos “antecedentes pessoais” quanto no “exame mental” denunciavam sinais mórbidos localizados na esfera emocional, como “perda da afetividade em relação ao marido e, mais grave ainda, em relação aos próprios filhos”. Os “desvios” da afetividade de Maria estavam ligados também a uma sexualidade “anômala”: “Nesse sentido, observariam que apesar de Maria ter afirmado que com o marido era “muito reservada, não se entregando a excessos sensuais”, havia nela um “fundo erótico que não raro se manifestava”. (ENGEL, 2001, p.102).
Sendo assim, todos os exames realizados em relação à Maria comprovaram que ela não se ajustava à imagem de mãe ideal, afetuosa, para quem nada era mais

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importante do que os filhos. Já o parecer médico a respeito de Hercília de Paiva Legey foi diferente.
Embora ela também tivesse assassinado seu marido, mostrou-se logo arrependida e penitenciava-se pelo ato que cometera. Em seu depoimento, explicou que o marido a submetia a humilhações e maus tratos, e que desconfiava que ele tinha uma amante, e, no dia do crime, este havia ameaçado abandoná-la e também os filhos. Hercília, ao contrário de Maria, declarou que apesar de tudo amava o marido e mostrou ser uma mãe muito amorosa com os filhos. Diante da ameaça de abandono do marido, ela teria ameaçado matá-lo se ele “abandonasse os filhos à miséria”. Tudo isto foi interpretado pelos médicos como extrema manifestação do instinto materno.
Hercília, como Maria, foi diagnosticada como histérica, porém sua histeria não era incompatível com a vida em sociedade e ela ficou livre da reclusão no hospício. Magali Engel chama a atenção ainda para o fato de que:

Para o assassinato de um homem que cumpria rigorosamente todos os papéis prescritos de acordo com o ideal do esposo-pai não haveria qualquer indulgência, ao passo que a tentativa de homicídio de um marido que parecia não se ajustar a estes papéis acabaria sendo praticamente perdoada. (ENGEL, 2001, p.106).

É possível perceber, assim, como a psiquiatria conquistava fronteiras abrangentes para a sua intervenção, incorporando e definindo crenças e valores do senso comum, e revestindo-os de conteúdo científico.
Outro personagem criado por Lima Barreto, no qual se vê claramente a crítica do escritor a alguns valores de sua época, é o velho gramático Lobo, do livro Recordações do escrivão Isaías Caminha. O livro, como se sabe, mostra o cotidiano de uma redação de um importante jornal, narrado por Isaías Caminha, onde o autor destila toda a sua crítica à grande imprensa, que, para ele, era o quarto poder fora da Constituição. Através da figura de Lobo, personagem que faz todas as correções gramaticais dos textos redigidos para serem publicados nos jornais, e irritava-se profundamente com qualquer erro que encontrasse, o escritor questiona o culto exagerado à linguagem formal, rebuscada, que obedece cegamente às regras formais, e que tem como preocupação exclusiva a forma. Lobo, assim como Ismênia, não é considerado louco por ter idéias ou

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comportamentos de discordância com o que era tido como padrão de normalidade, mas, ao contrário disto, acaba enlouquecendo por valorizar demais a perfeição gramatical, ficando preso à pretensão de uma linguagem perfeita. Além disso, quando por descuido do responsável pela impressão o jornal era publicado com algum erro de português, o velho gramático temia sentir-se desmoralizado, achava que iam acusá-lo de ignorante, pois todos sabiam que era ele quem tinha a responsabilidade pela língua:

A Gramática do velho professor era de miopia exagerada. Não admitia equivalências, variantes; era um código tirânico, uma espécie de colete de força em que vestira as suas pobres idéias e queria vestir as dos outros. Há três ou cinco gramáticas portuguesas, porque há três ou cinco opiniões sobre uma mesma matéria. Lobo organizara uma série delas sobre as inúmeras dúvidas nas regras do nosso escrever e do nosso falar e ai de quem discrepasse no jornal! Era emendado da primeira vez, da segunda repreendido, da terceira podia ser até despedido, se ele estivesse de mau humor. (BARRETO, 1976, p.153).

Quando estava de bom humor, Lobo “tinha curiosas manias. Traduzia de uma língua para outra os provérbios e os anexins que surgissem na conversa.” (BARRETO, 1976, p.152). Por fim acabaria enlouquecendo, passando a se recusar a falar e ouvir por não suportar os erros e não querer ser contaminado por um português que considerava inferior, sendo recolhido ao hospício:

A sua mania era não falar nem ouvir. Tapava os ouvidos e mantinha-se calado semana inteira, pedindo tudo por acenos. Ao médico que lhe perguntou por que assim procedia, explicou, a muito custo:
– Isto não é língua... Não a posso ouvir... Tudo errado... Que vai ser disto!
– E por que não fala?
– Os erros são tantos, e estão em tantas bocas, que temo que eles me tenham invadido e eu fale esse calão indecente.... (BARRETO, 1976, p.187).

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2.7. Uma opção pelo isolamento

Existem ainda alguns personagens que não têm relação com a loucura especificamente, mas que seguem a linha da dissidência intelectual. Optam por viverem isolados, pois não conseguem adaptar-se a uma sociedade onde a sua honestidade intelectual nada vale, onde precisam submeter sua inteligência àqueles que consideram menos inteligentes, mas que alcançaram uma posição de poder.
Considerando-se injustiçados, vivendo um estranhamento em relação à sociedade, desiludidos, preferem viver isolados mas independentes, mantendo a sua dignidade. O personagem Hildegrado Brandão, do conto O único assassinato de Cazuza, é um homem de cinqüenta e poucos anos, desesperançado, que “depois de violentas crises de desespero, rancor e despeito, diante das injustiças que tinha sofrido em todas as coisas nobres que tentara na vida, viera-lhe uma beatitude de santo e uma calma grave de quem se prepara para a morte”. (BARRETO, 2000, p.56). Hildegrado decidiu isolar-se depois de ter passado por muitas frustrações em tudo o que tentou na vida. Não conseguindo formar-se, tentou entrar para o funcionalismo público, mas desistiu, porque se sentiu injustiçado por ter sido sempre preterido por colegas inferiores a ele em tudo. Depois arriscou-se na literatura, e muitas vezes sofreu por ser considerado inferior a certo outro devido a alguns símbolos de poder e não propriamente por seu trabalho. Assim, ele acabou por se cansar dos seus insucessos e afastar-se para uma pequena casa que possuía em um subúrbio longe:

Com alguma renda, tendo uma pequena casa, num subúrbio afastado, afundou-se nela, aos quarenta e cinco anos, para nuncamais ver o mundo, como o herói de Júlio Verne, no seu “Náutilus”. Comprou os seus últimos livros e nunca mais apareceu na rua do Ouvidor. Não se arrependeu nunca de sua independência e da sua honestidade intelectual. (BARRETO, 2000, p.56).
Em outro conto, denominado Dentes Negros, Cabelos Azuis, o personagem Gabriel também vivia isolado: “Muito inteligente para amar a sociedade de que saíra, e muito finamente delicado para se contentar de tolerado em outra qualquer, Gabriel

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vivia isolado, bastando-se a si e aos seus pensamentos, como um estranho anacoreta que fizesse do agitado das cidades, ermo para seu recolhimento”. (BARRETO, 2000,p.100).
Para o narrador da estória, único amigo de Gabriel, este possuía uma natureza “dual, bifronte, sendo que os seus aspectos, por vezes, chocavam-se, guerreavam-se sem nunca se colarem, sem nunca se justaporem, dando a crer que havia entre as duas partes um vazio”. (BARRETO,2000, p.101).
O narrador conta que, um dia, ao chegar à casa de Gabriel, este estava com um novo olhar. Ao invés da sua tristeza e melancolia de sempre, uma iluminação fazia parte de seu rosto. Quando perguntou o que ele tinha, Gabriel leu a estória que tinha escrito em duas dezenas de tiras de papel almaço, cheias de paixão. Era a estória de um homem que tinha os dentes negros e os cabelos azuis, que sofria por ser hostilizado e ter que viver isolado, incompreendido, carregando uma “grande mágoa fatal”. Na estória, este homem, que vagava solitário pelas ruas da cidade, sempre sozinho, um dia é abordado por um assaltante que, ao perceber a terrível anomalia do personagem se assusta. Quando percebe que até um assaltante, o qual deveria inspirar medo, amedronta-se diante dele, homem de dentes negros e cabelos azuis, expressando grande sofrimento diz: – Pois até tu! Que mais queres de mim?
Percebendo que a expressão do homem era de choro e denunciava uma grande mágoa, o assaltante passa do sentimento de medo para o de piedade, e devolve o dinheiro que havia roubado, desculpando-se e explicando que não era um comum assaltante das ruas, mas que o momento e a necessidade haviam-no feito. O homem, então, reconhecendo a sincera atitude de piedade e ternura do assaltante, resolve narrar-lhe a sua “desventura”, “certo de que naquele indivíduo a ternura não era um jogo de sociedade, nem uma forma de elegância”, contando-lhe todo o sofrimento por que tem passado:

Eu devia fugir, desaparecer, pois mal ando passos, mal me esgueiro numa travessa, das gelosias, dos mendigos, dos cocheiros, da gente mais vil e da mais alta, só uma coisa ouço: lá vai o homem de cabelos azuis, de dentes negros... É um suplício! Tudo se apaga em mim. Isso unicamente brilha.[..]. (BARRETO,2000, p.107).
O assaltante tenta animá-lo, aconselhando: – “Mas trabalha, sê grande...

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combate”. O homem, porém, continua:
Não percebes que não me é dado oferecer batalha; que sou como um exército que tem sempre um flanco aberto ao inimigo? A derrota é fatal. Se ainda me houvesse curvado ao estatuído, podia...Agora....não posso mais. No entanto tenho que ir na vida pela senda estreita da prudência e da humildade, não me afastarei dela uma linha, porque à direita há os espeques dos imbecis, e à esquerda, a mó da sabedoria mandarinata ameaça triturar-me.Tenho que avançar como um acrobata no arame. Inclino-me daqui, inclino-me dali; e em torno recebo a carícia do ilimitado, do vago, do imenso...Se a corda estremece acovardo-me logo, o ponto de mirame surge recordado pelo berreiro que vem debaixo, em redor dos gritos: homem de cabelos azuis, monstro, neurastênico. (BARRETO, 2000, p.108).
O personagem Gabriel, que no conto é o autor desta estória, cria, assim, uma metáfora onde o homem que tem dentes negros e cabelos azuis carrega o estigma de ser vítima da abominação social, e acaba despertando em um assaltante um sentimento de ternura e de solidariedade. O personagem do conto Foi Buscar Lã..., Dr. Campos Bandeira, também é outro que resolve ir viver isolado em um sítio. Ele era um velho professor jubilado da Escola Militar, “conhecido pelo seu gênio estranhamente concentrado e sombrio”, sem amigos, parentes, sem família, sem amantes, há mais de quarenta anos decidira viver em um sítio pelas bandas de Inhaúma, entregando-se de corpo e alma aos seus trabalhos de química agrícola. Sempre foi conhecido como “esquisitão”, mas quando, depois de jubilado, decidiu se estabelecer naquele sítio, todos exclamavam: -Que maluco!
Era um homem de preparo e de espírito; tudo estudava e tudo conhecia. No sítio, tinha alguns empregados que trabalhavam na roça e no tratamento de animais, e um serviçal que trabalhava no interior da casa, chamado “Casaca”, por quem o velho professor tinha muita consideração, apesar deste quase não fazer nada, “espremido pelo desânimo e pelo álcool”. Um dia, no entanto, o doutor Campos Bandeira é encontrado amarrado, amordaçado e quase morto. A polícia, ao investigar, averiguou que muito dinheiro havia sido roubado e acusou o empregado “Casaca”.
Um importante advogado então, que cada vez mais ganhava fama na cidade

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do Rio de Janeiro, é quem se oferece para defender o empregado. Na descrição do ascendente advogado, chamado Felismino Praxedes Itapiru da Silva, Lima Barreto faz, mais uma vez, uma crítica à valorização de títulos e diplomas que não garantem um verdadeiro saber, assim como ao vocabulário rebuscado que muitas vezes escamoteia a falta de inteligência, e também a certos hábitos, costumes e objetos que funcionam como símbolos de superioridade social, como se pode perceber no seguinte exemplo:

Veio do Norte, logo com a carta de bacharel, com solene pasta de couro da Rússia, fecho e monograma de prata, chapéu-de-sol e bengala de castão de ouro, enfim, com todos os apetrechos de um grande advogado e de um sábio jurisconsulto.[...] Parecia escolher com grande escrúpulo as suas relações. Nunca se viu com qualquer tipo aboeminado ou mal vestido.[...]. Eloqüente a seu modo, com voz cantante, senhor de imagens suas e, sobretudo de alheias, tendo armazenado uma porção de pensamentos e opiniões de sábios e filósofos de todas as classes, Praxedes conseguia mascarar a miséria de sua inteligência e a sua falta de verdadeira cultura [...] (BARRETO, 2001, p.1070).

No dia do júri, a sala estava cheia, pois todos queriam ouvir a grande defesa do importante advogado. Quando este ia começar sua “estupenda” defesa, o professor Campos Bandeira, que após o atentado havia passado um ano no hospício e saíra agora recuperado sem que ninguém soubesse diz: “Senhor juiz, quem quis me matar e me roubou, não foi este pobre homem que está no banco dos réus; foi o seu eloquente e elegante advogado.” (BARRETO, 2001, p.1074).
Neste conto, como em outros citados, Lima Barreto nos apresenta um personagem que é visto como esquisito, louco, que vive isolado, mas que sustenta uma honestidade e sinceridade intelectuais que são inexistentes no outro personagem que, a princípio, é bem visto e admirado pela sociedade. Aqui, mais uma vez, o autor trabalha com duas dimensões: a do poder, representada pelo personagem do advogado que usa todos os símbolos de distinção social para legitimá-lo, e àquela outra dimensão que, em contrapartida, trata da dignidade dos que não são tão bem aceitos assim na sociedade, e que muitas vezes são vítimas da mentira e do mau caratismo, como o professor Campos Bandeira, da estória narrada acima.
Assim, como no conto de Machado de Assis O Alienista, onde o alienista

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resolve recolher à Casa Verde todos aqueles que possuíam grandes qualidades, que agiam com escrúpulo, que eram tolerantes, leais, e muitas outras qualidades, os “loucos” de Lima Barreto também são aqueles que possuem qualidades, muitos seguem grandes ideais, preocupando-se com toda a humanidade e outros apenas preferem manter sua independência intelectual, nem que para isso precisem se isolar da sociedade.
Levando em conta o contexto em que estão inseridos, dentro da violenta investida do processo modernizador no Rio de Janeiro, é possível interpretá-los também como uma forma de resistência a esta modernização, sujeitos, porém, a embates e conflitos.
Vale lembrar, ainda, que Lima Barreto viveu um momento em que a psiquiatria buscava reforçar sua consolidação, e que o escritor teve sempre uma visão crítica em relação a ela, o que permitiu que enxergasse que muitas vezes aqueles que a psiquiatria condenava como loucos não eram loucos na verdade mas, sim, tinham comportamentos ou idéias considerados desviantes das normas estabelecidas. Na visão do escritor, a ciência apropriava-se de teorias marcadas pelo preconceito, transformando o preconceito em conceito científico. De acordo com Nicolau Sevcenko: “O que lhe causava consternação e incitava suas diatribes insistentes, era o cunho marcadamente discriminatório da ciência.” (SEVCENKO, 1999, p.174).
Além disso, ele questionava também a intervenção da ciência em questões de natureza econômica e social, colocando em dúvida a eficiência de métodos científicos para a resolução de tais questões. Estas suas críticas à ciência de modo geral, e mais especificamente à ciência psiquiátrica, serão aprofundadas no capítulo seguinte. Para o momento, apenas é importante ressaltar que o seu posicionamento crítico e quase cético em relação à psiquiatria possibilitou que construísse personagens que eram vistos como loucos – mas que, na verdade, estavam apenas em discordância com as normas e idéias estabelecidas – para criticar a sociedade, usando a loucura como estratégia de reflexão e crítica, e fazendo uma associação entre o processo de modernização no Rio de Janeiro e a exclusão social.
Através dos personagens, Lima Barreto promove uma reflexão a respeito da sociedade em que vive, assim como as relações sociais nela vigentes. Na verdade,

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quando questiona, a partir dos personagens apresentados, a questão agrária, o conhecimento livresco, o “doutorismo”, o poder psiquiátrico, o casamento por puro interesse, a dificuldade de manter uma independência intelectual, ele está pondo em questionamento toda uma estrutura social construída sob a égide do capitalismo e conduzida por uma desenfreada burguesia. O que ele combatia eram todas as formas de opressão política e social, que impediam o desenvolvimento da liberdade e dos direitos humanos.
Para ele, a República havia acentuado o poder do dinheiro, fazendo com que o enriquecimento e o lucro fossem o objetivo maior a ser alcançado, e com que “todos os meios passassem a ser bons para se chegar a fortuna e aumentá-la descaradamente.”(BARRETO, 1956 c, p.53). Como bem observou Nicolau Sevcenko:
Sua linha de análise procura persuadir os leitores de que o germe de todas essas mudanças indesejáveis se encontra na transmutação dos valores éticos em valores mercantis, que teria substituído os laços humanos essenciais pelo poder do dinheiro, sem freio de espécie alguma.(SEVCENKO, 1999, p.221).

Em alguns artigos que escreveu em 1918, Lima Barreto não nega sua simpatia em relação à Revolução Russa, pois esta “abala não unicamente os tronos, mas os fundamentos da nossa vilã e ávida sociedade burguesa.”(BARRETO,1956 c,p.72).E não esconde o desejo de ver um semelhante movimento aqui, para acabar com “essa chusma de tiranos burgueses, acocorados covardemente por detrás da Lei”.
O escritor vai mais longe ainda e aponta algumas medidas práticas que considera fundamentais para iniciar a transformação social no Brasil: suprimir a dívida interna, confiscar os bens das ordens religiosas, extinguir os testamentos ou o direito de testar e estabelecer o divórcio completo e sumário. Estas medidas, segundo ele, de caráter financeiro mas também social, contribuiriam para uma das mais urgentes medidas: fazer cessar a fome de enriquecer característica da burguesia. Ele cita ainda outras medidas como uma revisão nas pensões graciosas, uma reforma cataclismática no ensino público, e a confiscação de certas fortunas. Além disso, em sua concepção os recursos do Estado não deveriam prestar-se a determinadas finalidades como, por exemplo, artimanhas engendradas pelos financistas através de apólices, títulos, hipotecas, câmbio, etc.

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Desta forma, todas as medidas apontadas por ele seguiam um mesmo princípio básico, que era a socialização da propriedade, a qual deveria ser transformada em bem comum, e não em fonte de poder e riqueza para poucos privilegiados ou para ordens religiosas, e muito menos como motivo principal para a realização de casamentos.
Assim, é possível interpretar os personagens por ele criados como representantes de ideais diferentes dos ideais burgueses e capitalistas difundidos na primeira República, que trazem à tona as tensões sociais existentes em uma determinada estrutura social. Se através de tais personagens inadaptados à sociedade, o autor faz uma crítica a esta sociedade, ao mesmo tempo também realça, em contrapartida, os valores que considera fundamentais para uma sociedade melhor.
Nicolau Sevcenko lembra que a literatura é, antes de mais nada um produto artístico, e que, se por uma lado esta produção não pode ser dissociada da realidade em que foi produzida, por outro ela é também um produto do desejo, traduzindo mais um “anseio de mudança do que os mecanismos de permanência.” (SEVCENKO, 1999, p.20).
Seguindo esta linha de raciocínio, Policarpo Quaresma, o feiticeiro, Leonardo Flores, Fernando, Vicente, e todos os outros personagens aqui citados, com exceção de Ismênia que – ao contrário dos outros sofreu por não conseguir corresponder ao papel que a sociedade lhe impôs – e do gramático Lobo, são, mais do que vítimas dos mecanismos de manutenção do poder, portadores de ideais defendidos pelo autor como ética, justiça, solidariedade, e se vivessem na sociedade desejada pelo autor, seriam valorizados por suas virtudes e levados a sério, e não desprezados, excluídos ou considerados loucos. Tais personagens, que defendem suas idéias independentemente dos valores predominantes, funcionam, então, como uma estratégia para que se reflita sobre a importância de em determinados momentos da sociedade se ir contra toda uma ideologia dominante para a construção de uma outra sociedade, ainda que para isso se pague um preço alto:

A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos
de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só

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visam lucros ou salários nos pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma idéia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco. [...] Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretarias chics que fizeram as grandes reformas no mundo. Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos. (BARRETO, 1998, p.377).


Louco
Wilson Batista



Louco, pelas ruas ele andava
O coitado chorava
Transformou-se até num vagabundo
Louco, para ele a vida não valia nada
Para ele a mulher amada
Era seu mundo

Conselhos eu lhe dei
Para ele se aquecer
Aquele falso amor
Ele se convenceu
Que ela nunca mereceu
Nem reparou
Sua grande dor
Que louco!
Composição: Henrique de Almeida / Wilson Batista



Samba do Crioulo Doido
Sergio Porto



Este é o samba do crioulo doido.
A história de um compositor que durante muitos anos obedeceu o regulamento,
E só fez samba sobre a história do brasil.
E tome de incofidência, abolição, proclamação, chica da silva, e o coitado
Do crioulo tendo que aprender tudo isso para o enredo da escola.
Até que no ano passado escolheram um tema complicado: a atual conjuntura.
Aí o crioulo endoidou de vez, e saiu este samba:

Foi em diamantina onde nasceu j.k.
E a princesa leopoldina lá resolveu se casar
Mas chica da silva tinha outros pretendentes
E obrigou a princesa a se casar com tiradentes
Laiá, laiá, laiá, o bode que deu vou te contar

Joaquim josé, que também é da silva xavier
Queria ser dono do mundo
E se elegeu pedro segundo
Das estradas de minas, seguiu p'rá são paulo
E falou com anchieta
O vigário dos índios
Aliou-se a dom pedro
E acabou com a falceta
Da união deles dois ficou resolvida a questão
E foi proclamada a escravidão

Assim se conta essa história
Que é dos dois a maior glória
A leopoldina virou trem
E dom pedro é uma estação também
Oô, oô, oô, o trem té atrasado ou já passou
Composição: Stanislaw Ponte Preta Sérgio Porto



Referências

https://youtu.be/H6KIR5VRxyM
https://www.youtube.com/watch?v=H6KIR5VRxyMhttps://conteudo.imguol.com.br/blogs/58/files/2019/02/BenettRetrato.png
https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2019/02/19/presidente-abstrato/
http://www.radiomuriae.com.br/noticias/general-floriano-peixoto-de-muriae-e-nomeado-para-equipe-de-transicao-de-bolsonaro
blob:https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/65db07d8-7a3e-495c-9b00-1838a09d3b9a
blob:https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/cec95f28-a8d6-4b4b-982c-5f22a691183b
https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2019/02/19/bolsonaro-gravou-video-por-exigencia-de-bebianno/
https://s2.glbimg.com/wsqarPRq3sxKh964ME0AwiZfizw=/0x0:2053x2138/2524x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_59edd422c0c84a879bd37670ae4f538a/internal_photos/bs/2019/U/3/KqwT9QSRydkBa6VF10Ug/ap19049512485568.jpg
https://s2.glbimg.com/cBUH_8zoNOjx1loN9fy0go_YvcQ=/0x0:2100x1404/2524x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_59edd422c0c84a879bd37670ae4f538a/internal_photos/bs/2019/y/5/FAxYBCQ6Wf30fXdABzSg/ap19049575076302.jpg
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/02/18/morre-homem-identificado-como-marinheiro-de-foto-simbolo-do-fim-da-2a-guerra-mundial.ghtml
https://mail.google.com/mail/u/0/#inbox?projector=1
https://youtu.be/6xUQ7mU2viM
https://www.letras.mus.br/wilson-batista/265224/
https://youtu.be/qbj3LCgjtLM
https://www.letras.mus.br/sergio-porto/1113833/
http://www.radiomuriae.com.br/fotos/49c49aef74763dfec85ec5323784cc65.05.JPG
http://www.radiomuriae.com.br/fotos/33704/06.JPG

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000159.pdf

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