sábado, 16 de fevereiro de 2019

Da arca brasileira ao trenzinho do caipira...


...nos acordes da lira e da pena do poeta...

Dileta mente

José de Souza Martins*: A arca de Noé brasileira

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

No dia 1º de janeiro de 2003, zarpou, no lago Paranoá, em Brasília, a arca de Luiz Inácio para uma longa viagem, supostamente de quatro anos. Era uma cópia melhorada da arca de Noé. Os Noés brasileiros, da pós-modernidade, têm exigências que o humilde Noé bíblico não tinha.

Saiu lotada e bem abastecida, para indigestas buchadas e rabadas o tempo que durasse a viagem. Ia suprida para que, na própria arca, tivesse início um programa social de "fome zero", que morreria de inanição política.

Apesar das certezas quanto à cor da arca, houve confusão quanto aos rumos. Uns queriam ir para a esquerda, de vermelho rubro, outros, com base num manifesto ao povo brasileiro, queriam ir para a direita, de um vermelho indeciso, de amansar empresário e classe média.

Na hora de atracar, como estava previsto nos bons costumes políticos, ousaram seguir adiante, apesar dos riscos já indicados pelo mensalão. E assim foram indo, até que o excesso de lotação e de desvios afundasse a arca, antes de chegar ao porto seguro de sempre. A arca foi resgatada e enviada a um conceituado estaleiro de arcas presidenciais para os reparos devidos, trocada a cor do vermelho desbotado, preparando-a para novas tripulações e novas viagens.

Espécimes selecionados, os últimos de uma raça quase fossilizada, foram embarcados para preservar o que restava do tempo em que o mundo era mundo. Foi a arca posta a navegar, sob novo comandante. Zarpou no dia 1º de janeiro de 2019.

Como em 2003, essa tampouco achou o rumo, já passados dois meses de navegação. Talvez tenha faltado GPS, perdão, astrolábio na arca. Ou a velha bússola dos rumos e da razão.

Pelo menos não faltará o principal item da nova dieta presidencial. A despensa da arca está bem abastecida com latas de leite condensado. A viagem poderá ser cansativa, mas será doce. Nada de comidas pesadas e gordurosas. A tripulação e o país terão que emagrecer para que a navegação prossiga. A começar pelos aposentados, que dizem pesar muito.

O primeiro problema dessa arca é que tem uma única cabina de comando, mas tem um número excessivo de comandantes, embora só um tenha sido eleito. Nesse caso, todos querem levar a arca para a direita, mas cada qual tem a direita que merece. Existe a direita mística, a direita subserviente ao irmão do norte, a direita pseudofilosófica e, claro, como todas as direitas (e algumas esquerdas), a direita despistada. O que conforta é que o lago é pequeno e os destinos não são muitos. Sempre se chega ao mesmo lugar. A menos que o barco afunde.

Deus é brasileiro, mas há aí um pequeno problema. No barco há adeptos radicais de facções religiosas especializadas em profetizar o passado. Um deles é católico ultramontano. Outra é evangélica exaltada. Poderão descobrir que cada um de nós, com nossas diferenças, eles também, é apenas expressão de alteridade, criada na mediação mesmo de quem não gostamos.

Resta saber qual Bíblia será referência nos desacordos. Temo que a maravilhosa e erudita tradução da versão conhecida como Bíblia de Jerusalém não conste do que, já se percebeu, é a exígua biblioteca de bordo. O mais provável é que tenham levado para lá a Bíblia da popular e arcaica tradução de João Ferreira d'Almeida, do século XVII.

Não sei se tiveram o cuidado de excluir edições mais recentes com erros de impressão, coisa da lucrativa indústria da pressa. E, talvez, para contrapor, uma versão da vulgata, não vá o ultramontanismo cair no engano de se valer de alguma tradução de herege. Terão, ainda, que decidir se vão orar ou rezar. Não importa. O que esperamos é que Deus não os ouça nas intolerantes ideologias que se infiltraram em sua fé simples e sincera

Parece que houve problemas quanto à cor da arca: azul ou rosa? Deve ter havido mais urros do que sussurros para se chegar a um acordo quanto à cor. Partido cromático sempre se divide quanto ao que importa, perdendo-se nas fantasias de um senso comum sem conteúdo. E a pátria da arca que pague o pato.

De qualquer modo, não vazou nenhuma informação confiável quanto à cor dos cômodos da arca. Nem se os meninos ficarão separados das meninas, o que é lícito considerar, devido à relevância que uma tripulante deu ao assunto quanto ao poder da cor na definição da sexualidade das novas gerações.

Enfim, a arca do Paranoá vai navegando, como Deus é servido. Chegará a algum porto, que talvez não seja o do destino. Mas sempre haverá o corpo de bombeiros de Brasília, de prontidão, para salvar eventuais náufragos de aventuras políticas. A grande curiosidade é a relativa a que cor terá a arca quando atracar. E se o Brasil ainda será verde e amarelo e, propriamente, brasileiro e cidadão. Ou apenas um país sem cor nem graça.

*José de Souza Martins é professor de sociologia na USP e membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, publicou “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).




A Arca de Noé
Vinicius de Moraes



Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata

E abre-se a porta da arca
Lentamente surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Vendo ao longe aquela serra
E as planícies tão verdinhas
Diz Noé: "Que boa terra
Pra plantar as minhas vinhas"

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante

E de dentro de um buraco
De uma janela aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta, e o tigre - "Não"

A arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Entre os pulos da bicharada
Toda querendo sair

Afinal com muito custo
Indo em fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida

Longe o arco-íris se esvai
E desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Erguem-se os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
Em meio à noite calada
Ouve-se a fala dos bichos
Na terra repovoada
Composição: Ernst Nahle / Toquinho / Vinícius de Moraes




Adriana Calcanhoto: Trenzinho do Caipira ( Heitor Villa-Lobos/Ferreira Gullar)





HEITOR VILLA LOBOS - O Trenzinho do Caipira


Composição de Heitor Villa Lobos e parte integrante da peça Bachianas Brasileiras nº 2. A obra se caracteriza por imitar o movimento de uma locomotiva com os instrumentos da orquestra. Regente: Sir Eugene Goosens Orquestra Sinfônica de Londres
"O Trenzinho do Caipira" is the composition of Heitor Villa Lobos and an integral part of the piece Bachianas Brasileiras No 2. The work is characterized by imitating the movement of a locomotive with the instruments of the orchestra.



Dileta
Vicente Celestino



Nesta noite prateada
Minha eterna e doce amada
A chamar-te me insinua
Nos acordes desta lira
Que de amor geme e suspira
Ante o albor níveo da lua
O rendado da neblina
Mais parece uma cortina
Numa festa de noivado
A lua é a noiva bela
Recostada na janela
De um palácio constelado

Desperta!
Vem matar o meu desejo
A minh´alma vaga incerta
À procura do teu beijo
Dileta!
Tu formosa e eu poeta
Quero para os tristes versos meus
As rimas dos beijos teus

A natura já me chama
O meu peito já reclama
A quentura dos teus seios
Os astros são já escassos
Vem sufocar-me em teus braços
Antes que eu morra de anseios
As estrelas cintilantes
São lanternas dos amantes
Pelo espaço a flutuar
Como Deus é inspirado!
Inventou para o pecado
Estas noites de luar.

Desperta!
Vem matar o meu desejo
A minh´alma vaga incerta
À procura do teu beijo
Dileta!
Tu formosa e eu poeta
Quero para os tristes versos meus
As rimas dos beijos teus
Composição: Cândido Das Nevesi



Referências

http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/02/jose-de-souza-martins-arca-de-noe.html?m=1
https://youtu.be/nWj3EKH7eRM
https://www.letras.mus.br/vinicius-de-moraes/87204/
https://youtu.be/aofAdH0d85o
http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/02/adriana-calcanhoto-trenzinho-do-caipira.html
https://youtu.be/DC8oFe5bkeY
https://www.youtube.com/watch?v=DC8oFe5bkeY
https://youtu.be/g9V6IC-QXwU
https://www.letras.mus.br/vicente-celestino-musicas/1204509/

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