sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Claro Enigma

----------- No dia em que Garrincha faria 85 anos, relembre o adeus sublime que Drummond ofereceu a Mané Foto de Leandro Stein Leandro Steindomingo, 28 de outubro de 2018 21:55 -------------- Texto publicado originalmente em 20 de janeiro de 2016 ----------- O raciocínio acima do comum se traduzia a cada verso. Poucos poetas em língua portuguesa se comparam a Carlos Drummond de Andrade. A mente esculpia arte em papel e tinta, mas entremeava duras críticas nas estrofes. Poesia da vida, que também servia de óculos para enxergar a realidade. Era a grande maestria do mineiro, conhecedor profundo das palavras, sempre extraindo o melhor significado delas. Drummond, entretanto, não percorreu toda a sua vida de escritor apenas com poemas. Ele também era um cronista de mão cheia, e assinou textos em jornais desde a sua juventude. De 1969 a 1984, publicou semanalmente uma coluna no Jornal do Brasil, onde abordou diversos temas. Inclusive o futebol. Falou de craques, conquistas e vitórias. Mas, em seus últimos meses no periódico, infelizmente se deparou com uma das notícias mais tristes que os apaixonados pelo esporte poderiam ter: o falecimento de Garrincha, em 20 de janeiro de 1983. Mané ganhou uma homenagem à altura da arte que também fazia em campo. Drummond emprestou a contundência de suas palavras para se despedir do eterno camisa 7, falando de seu talento, mas também sem perder o tom crítico pelo contexto ao redor da morte. Certa feita, Garrincha até parecia ter se cruzado com o escritor, já que um tal “anjo torto” o aconselhou no Poema de Sete Faces. Mas, de fato, o ponta direita apareceu algumas vezes nas crônicas do mineiro. E o adeus entre dois dos maiores gênios que o Brasil teve, cada um em sua poesia, não poderia ser mais emblemático. Sublime como os versos de Drummond ou como os dribles de Garrincha. Mané e o Sonho Jornal do Brasil, 22/01/1983 A necessidade brasileira de esquecer os problemas agudos do país, difíceis de encarar, ou pelo menos de suavizá-los com uma cota de despreocupação e alegria, fez com que o futebol se tornasse a felicidade do povo. Pobres e ricos param de pensar para se encantar com ele. E os grandes jogadores convertem-se numa espécie de irmãos da gente, que detestamos ou amamos na medida em que nos frustram ou nos proporcionam o prazer de um espetáculo de 90 minutos, prolongado indefinidamente nas conversas e mesmo na solidão da lembrança. Mané Garrincha foi um desses ídolos providenciais com que o acaso veio ao encontro das massas populares e até dos figurões responsáveis periódicos pela sorte do Brasil, ofertando-lhes o jogador que contrariava todos os princípios sacramentais do jogo, e que no entanto alcançava os mais deliciosos resultados. Não seria mesmo uma indicação de que o país, despreparado para o destino glorioso que ambicionamos, também conseguiria vencer suas limitações e deficiências e chegar ao ponto de grandeza que nos daria individualmente o maior orgulho, pela extinção de antigos complexos nacionais? Interrogação que certamente não aflorava ao nível da consciência, mas que podia muito bem instalar-se no subterrâneo do espírito de cada patrício inquieto e insatisfeito consigo mesmo, e mais ainda com o geral da vida. Garrincha, em sua irresponsabilidade amável, poderia, quem sabe?, fornecer-nos a chave de um segredo de que era possuidor e que ele mesmo não decifrava, inocente que era da origem do poder mágico de seus músculos e pés. Divertido, espontâneo, inconsequente, com uma inocência que não excluía espertezas instintivas de Macunaíma — nenhum modelo seria mais adequado do que esse, para seduzir um povo que, olhando em redor, não encontrava os sérios heróis, os santos miraculosos de que necessita no dia-a-dia. A identificação da sociedade com ele fazia-se naturalmente. Garrincha não pedia nada a seus admiradores; não lhes exigia sacrifícios ou esforços mentais para admirá-lo e segui-lo, pois de resto não queria que ninguém o seguisse. Carregava nas costas um peso alegre, dispensando-nos de fazer o mesmo. Sua ambição ou projeto de vida (se é que, em matéria de Garrincha, se pode falar em projeto) consistia no papo de botequim, nos prazeres da cama, de que resultasse o prazer de novos filhos, no descompromisso, afinal, com os valores burgueses da vida. Não sou dos que acusam dirigentes do esporte, clubes, autoridades civis e torcedores em geral, de ingratidão para com Garrincha. Na própria essência do futebol profissional se instalam a ingratidão e a injustiça. O jogador só vale enquanto joga, e se jogar o fino. Não lhe perdoam a hora sem inspiração, a traiçoeira indecisão de um segundo, a influência de problemas pessoais sobre o comportamento na partida. É pago para deslumbrar a arquibancada e a cadeira importante, para nos desanuviar a alma, para nos consolar dos nossos malogros, para encobrir as amarguras da Nação. Ele julga que entrou em campo a fim de defender o seu sustento, mas seu negócio principal será defender milhões de angustiados presentes e ausentes contra seus fantasmas particulares ou coletivos. Garrincha foi um entre muitos desses infelizes, dos quais só se salva um ou outro predestinado, de estrela na testa, como Pelé. A simpatia nacional envolveu Mané em todos os lances de sua vida, por mais desajustada que fosse, e isso já é alguma coisa que nos livra de ter remorso pelo seu final triste. A criança grande que ele não deixou de ser foi vitimada pelo germe de autodestruição que trazia consigo: faltavam-lhe defesas psicológicas que acudissem ao apelo de amigos e fãs. Garrincha, o encantador, era folha ao vento. Resta a maravilhosa lembrança de suas incríveis habilidades, que farão sempre sorrir a quem as recordar. Basta ver um filme dos jogos que ele disputou: sente-se logo como o corpo humano pode ser instrumento das mais graciosas criações no espaço, rápidas como o relâmpago e duradouras na memória. Quem viu Garrincha atuar não pode levar a sério teorias científicas que prevêem a parábola inevitável de uma bola e asseguram a vitória — que não acontece. Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios. Mas como é também um deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho. Carlos Drummond de Andrade ---------
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----------- sexta-feira, 27 de outubro de 2023 Fernando Gabeira - Crianças não declaram guerra O Estado de S. Paulo Quando o Brasil deixar de presidir o CS da ONU, o que podemos fazer, dentro dos nossos limites, é uma campanha por todas as crianças que vivem em área de guerra Nas duas primeiras semanas de guerra no Oriente Médio, 20 jornalistas foram mortos. Merecem nosso reconhecimento por terem dado a vida fornecendo a matéria-prima para que possamos saber do que se passa no front e tentar entender o futuro deste conflito. Temos mais perguntas do que certezas. Creio que será assim por muito tempo. Não adianta colar nos aparelhos de tevê, ler os principais jornais do mundo, comprar livros – tudo o que conseguimos é uma visão parcial. Mesmo os especialistas que não vivem a realidade cotidiana da região têm dificuldades para interpretá-la fielmente. Meus avôs vieram do Líbano, no princípio do século passado. Já tinham memória de conflitos religiosos. Minha avó tinha uma cruz tatuada no braço e nem sempre a vida foi fácil para os cristãos libaneses. Uma região de antigos conflitos. No momento em que Israel se prepara para uma invasão de Gaza, tento me lembrar de outras guerras urbanas. Será como Faluja ou mesmo Mossul, no Iraque, onde o combate ao Isis superou as expectativas em mortos. Em Faluja, morreu tanta gente que os cemitérios não deram vazão e as pessoas eram enterradas nos jardins das casas. Mossul, além de superar tudo, ainda tinha uma enorme barragem com potencial de inundar o país. Não creio que os exemplos anteriores possam ser avaliados mecanicamente. Gaza tem uma rede de túneis especialmente construída pelo Hamas. Neste momento, as informações indicam que de 15% a 30% das edificações já foram destruídas. A existência desses túneis pode resultar numa destruição que não deixará pedra sobre pedra. Será o fim do Hamas? Naturalmente, o processo de destruição será explorado e a própria juventude árabe estará mais aberta a organizações violentas. Além do mais, alguns dirigentes do Hamas nem vivem em Gaza, preferem Doha, no Catar, um pequeno país com uma altíssima renda per capita anual, em torno de US$ 60 mil. Em caso de vitória de Israel e ampla destruição do Hamas, quem governa a região? A Autoridade Palestina teria condição de fazê-lo, enfraquecida pela corrupção e pela falta de consultas eleitorais? O Hamas também não faz eleições desde 2006. Há dois grandes temas que precisam ser avaliados antes e depois da invasão: a morte de civis e a morte de crianças. Quando se diz que o Hamas não representa a Palestina, muitos não acreditam nisso em Israel. Alguns artigos do Jerusalem Post questionam essa afirmativa. Acham que existe uma forte cumplicidade entre palestinos e o Hamas. Ainda que isso fosse verdadeiro, o problema é que 30% dos habitantes de Gaza são crianças e adolescentes. Eles não têm condições de questionar ou muito menos derrubar um governo indesejado. Numa guerra assimétrica em que a propaganda tem um peso maior que as manobras militares, Israel corre um grande risco com as mortes entre os civis. Além disso, há as crianças. O Brasil fez o que pôde na ONU para atenuar a intensidade do conflito. Não conseguiu. Mas, na voz do presidente Lula, manifestou preocupação com as crianças. Para conseguir alguma coisa, talvez o País tenha de se concentrar num tema: as crianças merecem um enfoque especial. Para começar, há aquelas que dependem de eletricidade nas incubadoras e podem morrer sem ela. Inúmeras atividades hospitalares dependem da gasolina, que não entra. É necessário abrir um corredor também para o combustível. O Hamas pode sequestrá-lo para fins bélicos? Se o fizer, matará as crianças e terá também de responder por isso. Será uma manobra desesperada e o combustível para tocar hospitais é mínimo, se encarado como suprimento bélico. Há crianças raptadas pelo Hamas e crianças presas por Israel na Palestina. Surgiu um movimento para que fossem trocadas, e isso pode ser um caminho para que as crianças sejam afastadas do clima de hostilidade. Mas creio que não bastará. Crianças precisam brincar. E não se brinca com bombas. Inclusive, no passado, uma das mais importantes campanhas contra bombas de fragmentação aconteceu porque ameaçavam as crianças, que as confundiam com brinquedos. O que é possível fazer na Palestina – na Cisjordânia e em Gaza – é criar alguns espaços que as crianças possam frequentar com seus pais, espaços protegidos por acordo internacional, com anuência das partes. A guerra rouba vidas, rouba, em muitos casos, o direito de ir e vir, arrasa com recursos econômicos. Por que a guerra teria também de acabar com a infância de quase 1 milhão de crianças? Por que condená-las à amargura na vida adulta e a alimentar uma predisposição ao ódio e à luta violenta? Quando o Brasil deixar de ter a responsabilidade de dirigir o Conselho de Segurança da ONU, o que podemos fazer, dentro dos nossos limites, é exatamente uma campanha por todas as crianças que vivem em área de guerra. Para ter alguma credibilidade, seria interessante também proibir a exportação de bombas de fragmentação – algo que tentei, por meio de projeto de lei, e fracassei diante do argumento de preservar empregos. E, naturalmente, atacar os problemas internos que fazem, por exemplo, as crianças de grande parte do Rio de Janeiro vítimas dos confrontos em áreas dominadas pelo tráfico e pela milícia. Se não dá para fazer tudo, por que não tentar apenas preservar as novas gerações? ________________________________________________________________________________________ -----------
----------- 6. MEMÓRIA É possível que você já tenha ouvido este singelo poema intitulado “Memória”, publicado em Claro Enigma (1951). O tempo é breve e a vida passa com um piscar de olhos. Quase nada permanece e a memória retém o que é importante para cada pessoa. O resto se perde. Amar o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão. https://quindim.com.br/blog/carlos-drummond-de-andrade/ ________________________________________________________________________________________ ---------
---------- Dario viu tudo. Tinha apenas cinco anos de idade quando a mãe morreu de forma tão trágica. Muito difícil para uma criancinha assimilar. Muito doloroso. Até hoje Dario evita falar sobre o episódio. Todos entendemos. --------- DADÁ E A ‘SOLUCIONÁTICA’ QUE DRUMMOND ADORAVA 4 / MARÇO / 2020 por André Felipe de Lima Poucos são os circos que existem hoje, que encantam crianças e despertam sonhos nelas. Esperança. Raro vê-los nas grandes cidades. Estádio de futebol era igualzinho ao circo de antigamente. Vivia lotado, sobretudo, com crianças. E nem precisava ser Fla-Flu, SanSão, AtleTiba, BaVi ou GreNal. A casa estava sempre cheia. Mas quem atraía essa meninada? Os craques, naturalmente. Alguns deles, nem tão craques assim, mas folclóricos. Jogadores impagáveis, que divertiam com gols e… frases. Nisso, Dario, o “Dadá Maravilha”, foi insuperável. “O povo quer pão, terra e circo. O Dadá dá o circo”. E dava mesmo. Impossível sair do estádio sem rir e se deleitar com os seus gols, uns com a popular paradinha no ar. E tome gol e frase também: “Só existem três coisas que param no ar: beija-flor, helicóptero e Dadá”. E não era galhofa do centroavante, que cumpria o prometido. https://www.museudapelada.com/resenha/dada-e-a-solucionatica-que-drummond-adorava/

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