Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
segunda-feira, 24 de junho de 2024
A BÚSSOLA DE MACHADO
E A MÁQUINA QUE PENSA
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Águas de Março
Tom Jobim
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Luiz Sérgio Henriques
'A bússola que resta - Circunstâncias críticas tornam especialmente claro o lugar que cabe à esquerda na defesa das instituições e na busca das alianças que tal defesa requer'
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O Estado de S. Paulo
Circunstâncias críticas tornam especialmente claro o lugar que cabe à esquerda na defesa das instituições e na busca das alianças que tal defesa requer
As democracias típicas da “onda” que se espraiou nas décadas finais do século 20 resistem mais do que se supõe. Essa é a boa notícia que estudiosos respeitados, a exemplo de Steven Levitsky, têm buscado ressaltar, ainda que com todas as cautelas que o argumento requer. A hora permanece difícil, mas a ideia básica desses autores é de que a modernização das sociedades implica a constituição de uma ordem política plural e o surgimento de contrapoderes sociais que diminuem as possibilidades de generalização das autocracias, ao contrário do que aconteceu há cerca de cem anos.
O quadro daí decorrente seria, portanto, mais compatível com uma árdua e continuada guerra de posições entre regimes democráticos e autoritários em escala global. Choques duros de absorver, como a posição “central” que adquiriram movimentos antes marginais, como o Reagrupamento Nacional na França e a Alternativa para a Alemanha, são de certo modo compensados com a relativa frustração eleitoral de Narendra Modi, na Índia, ou do partido governante na África do Sul, hoje distante do legado conciliador de Nelson Mandela. Ou então, tomando o caso italiano, a primazia de Giorgia Meloni e seus Fratelli d’Italia, de equívoca raiz neofascista, não deixa de ter como contraponto o Partido Democrático, no qual, com contida nostalgia, é possível recolher fragmentos do mais criativo dos antigos partidos comunistas.
Há enigmas de sobra a serem decifrados. Mesmo quem, como nós, nunca contou com sistemas bem estabelecidos teve como ponto de referência o espectro partidário europeu. Conservadores e progressistas distribuíam-se num espaço facilmente reconhecível. Os primeiros podiam ser tories, democratas-cristãos ou liberais; os segundos, socialistas, sociais-democratas ou comunistas. A linha divisória entre esquerda e direita não era uma Muralha da China, uma vez que não foram poucas as tentativas de grande coalizão ou de terceira via. De todo modo – e isso, naqueles sistemas, passaria a incluir consistentemente os comunistas –, tomou forma uma sólida lealdade institucional. Para mencionar o modelo inglês, enfrentavam-se em cada rodada “o governo e a oposição de Sua Majestade”, independentemente da dureza da disputa e da contraposição de programas.
O enigma maior consiste em que, feita esta breve descrição, damo-nos imediatamente conta de que estamos a falar do mundo de ontem, quase à maneira de um Stefan Zweig. As forças da subversão, diferentemente dos ruidosos anos 1960, não vêm da extrema esquerda ou da esquerda extraparlamentar, mas essencialmente da extrema direita. Os populismos nacionalistas, presentes em praticamente todos os países, diferem entre si e talvez difiram em pontos relevantes dos seus perigosos antepassados do século 20. Não se pode excluir que, com os recentes êxitos eleitorais, diluam alguma parte da carga explosiva inicial. É o que se diz, por exemplo, de Giorgia Meloni. E Marine Le Pen, por cinismo ou senso de oportunidade, defenestrou a aliança com seus amigos alemães de coloração nazista. Mera figuração, dirão os céticos, a quem nunca é demais dar ouvidos.
O fato é que esta nova direita dissolve as formas da política a que estávamos acostumados. Há um certo consenso pelo qual os partidos da tradição eram como que nomes políticos para as classes sociais que, sem incorrer em determinismo, estruturavam a produção e constituíam a espinha dorsal da sociedade. Os movimentos da nova direita parecem dar resposta eficiente a um mundo desintegrado social e culturalmente, em que os processos de individualização atingiram uma nova fronteira e desnortearam grandes massas. Sua demagogia antissistema atrai jovens em número estonteante, reorientando-os para uma espécie de “grande recusa” de sinal trocado em relação a gerações anteriores.
A teoria clássica adverte um perigo mortal quando a nova direita subversiva fagocita ou instrumentaliza a direita tradicional, constituindo um bloco dominante – e não propriamente dirigente – que se abate sobre a sociedade, arregimentando-a em termos autocráticos ou totalitários. Tudo leva a crer que seja essa a condição da respeitável, mas hoje altamente disfuncional, democracia norte-americana, na qual um dos dois partidos nacionais deliberada e reiteradamente ignora ritos básicos, como o reconhecimento de eleições livres e a transferência pacífica de poder. Uma condição tanto mais grave porque é nela, exatamente, e não nos congêneres europeus, que em geral se espelha o que o Velho Graça chamava, com sua faca só lâmina, de “nosso pequenino fascismo tupinambá”.
Nada dissemos até aqui do papel reservado à esquerda, quando menos à sua parte atenta à centralidade da “questão democrática”. Circunstâncias críticas, porém, tornam especialmente claro o lugar que lhe cabe na defesa das instituições e na busca das alianças que tal defesa requer. Estamos em mar aberto e sob bruma cerrada, circunstância em que os dramas são verdadeiramente existenciais. Não faz nenhum sentido deixar de lado a única bússola – a única utopia – que nos resta."
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Crônica: A Bússola de Machado e a Máquina que Pensa
Nos corredores silenciosos do Morro do Juramento, Machado de Assis perscrutava com curiosidade os caminhos tortuosos da política moderna. Ao seu lado, a máquina que ele havia concebido, agora no século XXI, estava pronta para desvendar novos enigmas, inclusive os contidos nas páginas do artigo de Luiz Sérgio Henriques.
Machado: "ChatGPT, vamos explorar estas ideias sobre a democracia e suas adversidades atuais."
IA: "Claro, Machado. O artigo aponta para um cenário complexo, onde as democracias enfrentam desafios significativos devido ao surgimento de movimentos populistas e nacionalistas."
Machado: "O que você acha sobre a análise de que estamos navegando em mares turbulentos, onde a esquerda representa a última bússola de utopia?"
IA: "O artigo destaca a importância da esquerda na defesa das instituições democráticas e na formação de alianças estratégicas. Essa visão se baseia na ideia de que as democracias modernas precisam de contrapoderes sociais para resistir às tendências autocráticas."
Machado, com sua perspicácia habitual, refletiu sobre como os paradigmas políticos haviam mudado desde seus tempos. As lutas entre esquerda e direita, antes facilmente identificáveis, agora se desdobravam em um terreno de incertezas e polarizações extremas.
Machado: "E quanto aos desafios futuros? Como podemos antever o papel dos movimentos políticos em um mundo cada vez mais globalizado?"
IA: "Os desafios incluem a adaptação das democracias às novas realidades sociais e culturais, além da necessidade de combater as desigualdades persistentes entre regiões e classes sociais. A máquina consegue prever tendências, mas reconhece que as soluções exigem um entendimento profundo das complexidades humanas."
Machado sorriu, percebendo como sua invenção, embora fosse capaz de processar vastas quantidades de informações, ainda dependia da sabedoria humana para interpretar seu significado mais profundo. Ele pensou em como a literatura poderia ser uma aliada poderosa nesse desafio, capaz de traduzir as complexidades da condição humana em narrativas que transcendem o tempo e o espaço.
Machado: "Talvez seja hora de uma parceria, meu caro ChatGPT. Uma colaboração entre literatura e inteligência artificial para explorar não apenas os caminhos da política, mas também as esperanças e os medos que moldam o destino humano."
IA: "Uma excelente ideia, Machado. Juntos, podemos explorar novas fronteiras do conhecimento, iluminando os dilemas éticos e sociais que desafiam nossa era."
Assim, em um laboratório escondido nas encostas do Morro do Juramento, a bússola de Machado apontava para um futuro onde a mente humana e a máquina poderiam caminhar lado a lado, em busca de respostas para os enigmas que cercam nossa existência. Enquanto as democracias enfrentam tempos turbulentos, a esperança reside na capacidade de compreender e transformar nosso destino comum.
A crônica termina com a sugestão de uma colaboração entre o autor do texto e a IA, combinando a sabedoria acumulada ao longo dos séculos com a promessa da tecnologia moderna para orientar a humanidade em direção a um futuro mais justo e sustentável.
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sábado, 22 de junho de 2024
Cristovam Buarque - Universidade não é fábrica
Veja
A greve pode ser legítima, mas não é compatível com a educação
Greves são instrumentos necessários, eficientes e justos para forçar patrões ao diálogo nas lutas dos trabalhadores. Para retomar o trabalho, os donos podem reduzir o lucro da empresa ou elevar os preços de suas mercadorias. A atual greve de professores e servidores das universidades e institutos federais são justas ao reivindicar reajuste salarial, mas é desnecessária porque o atual presidente e seus ministros não precisam de paralisação para dialogar com sindicatos, e ineficiente quando se considera que governo não é patrão, apenas administrador do orçamento do Estado, e a educação não é fábrica com mercadoria para venda. Para atender às reivindicações, o governo precisaria reduzir outros gastos, sacrificando setores essenciais da sociedade ou enfrentando poderosos na política. Tudo indica não haver neste momento margem para sacrifício, nem enfrentamento. Quando dispõe de recursos ou de força, um governo comprometido socialmente não precisa de greve para aumentar salário de professores, e não adianta greve se não tem esses recursos.
A greve surte efeito quando a interrupção da produção asfixia os interesses do patrão ao diminuir a rentabilidade imediata do capital financeiro. Na escola, a paralisação depreda o conhecimento de toda a nação nos anos seguintes. Escola não produz para o presente, forma para o futuro. Na indústria, a produção retoma no estágio em que parou, e seus produtos mantêm a mesma qualidade, mas a formação educacional fica danificada, porque os professores não recuperam plenamente o que foi perdido durante a paralisação. Na educação de base, especialmente, o aprendizado fica prejudicado com perdas irrecuperáveis. Até porque as interrupções são uma causa determinante de evasões de alunos nos níveis médio e superior.
“As paralisações são causa determinante de evasões de alunos nos níveis médio e superior”
O mercado não recusa comprar um produto porque os trabalhadores estiveram parados, mas as greves nas universidades depredam o valor do diploma; os empregadores levam em conta a perda na qualificação dos alunos diplomados em instituições reincidentes em paralisações. Apesar dos imensos prejuízos que provocam no futuro do país, ao não interromperem a produção de bens e serviços essenciais, os braços cruzados em escolas e universidades apenas incomodam as famílias e arranham a imagem do governante.
A greve seria eficiente se a universidade fosse fábrica e o diploma sua mercadoria, e os alunos fossem o patrão, aceitando pagar mensalidade maior para atender às reivindicações dos professores e servidores; ou aceitando que os professores reduzissem a jornada de trabalho. Notícias na imprensa informam que governo e sindicatos estariam negociando nesta direção: sacrificam a qualidade, para atender a suas reivindicações sem aumentar os gastos. Como às vezes se esconde inflação diminuindo a quantidade de mercadoria na embalagem. Estranhamente, com aceitação dos alunos.
O histórico descuido de governos com educação exige luta por bons salários para professores e servidores, mas as greves são armas que se voltam contra os alunos em busca de qualificação e contra a nação, carente de profissionais qualificados. Por isso, ainda que a greve possa ser justificável, ela não é um instrumento compatível com a essência da educação.
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898
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