GRAHAM GREENE (1904 -1991 | Inglaterra)
Ele era o primeiro a dividir seus livros entre literatura "séria" e o que ele chamava de entertainment - e graças a essa dualidade, ele sempre teve a admiração da crítica e o entusiasmo do leitor comum. Tampouco gostava de ser chamado de um romancista católico: dizia-se um escritor que acontecia de ser católico. Desde os seus primeiros livros, Brighton Rock e A Gun for Sale, Graham Greene namorou com o romance policial e com seu primo-irmão, o romance de espionagem, garantindo seu lugar na história do gênero: O Americano Tranqüilo, O Agente Confidencial, Nosso Homem em Havana, O Terceiro Homem e outros. Sem falar nos seus "seriíssimos" romances, como O Poder e a Glória, The End of the Affair e outros tantos - a maioria transformada em filmes. Greene foi também um humorista, em Viagens com a minha Tia, Monsenhor Quixote. (Vide sua participação em Os Cem Melhores Contos de Humor...) No conto que se vai ler, o autor consegue unir a justiça dos homens com a justiça divina.
Ele era o primeiro a dividir seus livros entre literatura "séria" e o que ele chamava de entertainment - e graças a essa dualidade, ele sempre teve a admiração da crítica e o entusiasmo do leitor comum. Tampouco gostava de ser chamado de um romancista católico: dizia-se um escritor que acontecia de ser católico. Desde os seus primeiros livros, Brighton Rock e A Gun for Sale, Graham Greene namorou com o romance policial e com seu primo-irmão, o romance de espionagem, garantindo seu lugar na história do gênero: O Americano Tranqüilo, O Agente Confidencial, Nosso Homem em Havana, O Terceiro Homem e outros. Sem falar nos seus "seriíssimos" romances, como O Poder e a Glória, The End of the Affair e outros tantos - a maioria transformada em filmes. Greene foi também um humorista, em Viagens com a minha Tia, Monsenhor Quixote. (Vide sua participação em Os Cem Melhores Contos de Humor...) No conto que se vai ler, o autor consegue unir a justiça dos homens com a justiça divina.
Foi o mais estranho julgamento de assassinato a que
já assisti. Chamavam-no de "O Assassinato Peckham" nas
manchetes, ainda que a rua Northwood, onde a velha senhora foi encontrada
espancada até a morte, não ficasse exatamente em Peckham. Não se tratava de um
daqueles casos de prova circunstancial nos quais se sente a ansiedade dos
jurados - porque erros foram cometidos - emudecendo o tribunal como cúpulas de
silêncio. Não, aquele assassino só não tinha sido encontrado com o corpo;
nenhum dos presentes, quando o advogado da Coroa esboçou o caso, acreditou que
o homem no banco dos réus tivesse qualquer chance.
Ele era um homem robusto e pesado, de olhos
esbugalhados e injetados. Todos os seus músculos pareciam estar em suas coxas.
É, um cliente feio, daqueles que não se esquece depressa - e este era um
ponto importante porque a Coroa propôs chamar quatro testemunhas que não o
tinham esquecido, que o tinham visto correndo para longe da pequena casa
vermelha na rua Northwood. O relógio acabara de bater duas da manhã.
A Sra. Salmon, no número 15 da rua Northwood, não
tinha conseguido dormir; ela ouviu uma porta bater e pensou que fosse seu
próprio portão. Foi então até a janela e viu Adams (era este o seu nome) nos
degraus da casa da Sra. Parker. Ele saíra havia pouco e usava luvas. Trazia na
mão um martelo e ela o viu deixá-lo cair nos loureiros junto ao portão da
frente. Mas, antes de ir embora, tinha olhado para cima - para a janela
dela. O instinto fatal que avisa um homem quando é observado o expôs ao olhar
dela à luz de um poste - seus olhos repletos de horror e medo brutal, como os
de um animal quando se brande um chicote. Falei mais tarde com a Sra. Salmon,
que naturalmente, depois do surpreendente veredicto, ficou com medo. Como,
imagino, ficaram todas as testemunhas - Henry MacDougall, que vinha
dirigindo de Benileet para casa tarde da noite e quase atropelou Adams na
esquina da rua Northwood. Adams andava pelo meio da estrada, parecendo
atordoado. E o velho Sr. Wheeler, que era vizinho da Sra. Parker no número 12 e
foi acordado por um ruído - como uma cadeira caindo - através da parede da
casa, fina como papel, e se levantou e olhou fora da janela, da mesma
maneira que a Sra. Salmon tinha feito, viu as costas de Adams e, quando ele se
virou, aqueles olhos esbugalhados. Na Avenida Laurel ele tinha sido ainda visto
por uma outra testemunha - sua sorte estava mesmo péssima; ele poderia
perfeitamente ter cometido o crime em pleno dia.
- Eu entendo - disse o promotor - que a defesa
propõe pleitear erro de identidade. A esposa de Adams lhes dirá que ele estava
com ela às duas da manhã de 14 de fevereiro, mas depois que os senhores
ouvirem as testemunhas da Coroa e examinarem cuidadosamente as feições do
prisioneiro, não acredito que estejam propensos a admitir a possibilidade de um
engano.
Estava tudo feito, você diria, menos o enforcamento.
Depois que a prova formal foi fornecida pelo
policial que encontrou o corpo e o cirurgião que o examinou, foi chamada a Sra.
Salmon. Ela era a testemunha ideal, com seu leve sotaque escocês e sua
expressão de honestidade, preocupação e bondade.
O promotor da Coroa extraiu suavemente a história.
Ela falou com muita segurança. Não havia nela qualquer malícia nem qualquer
sensação de importância por estar ali de pé no Tribunal Criminal Central, com
um juiz de vermelho à espera de suas palavras e os repórteres que as escreviam.
Sim, disse ela, e então havia descido e telefonado para a delegacia de polícia.
- E a senhora vê o homem aqui no tribunal?
Ela olhou diretamente para o homenzarrão no banco
dos réus que a encarou duro com seus olhos de pequinês sem emoção.
- Sim - disse ela -, lá está ele.
- A senhora tem certeza?
Ela disse simplesmente: - Eu não poderia estar
enganada, senhor. Era tudo simples assim.
- Obrigado, Sra. Salmon.
O advogado de defesa subiu para reinquirir. Se a senhora
tivesse coberto tantos julgamentos por assassinato quanto eu, saberia de
antemão que linha ele adotaria. E eu estava certo, até certo ponto.
- Agora, Sra. Salmon, a senhora precisa se lembrar
de que a vida de um homem pode depender de seu testemunho.
- Eu me lembro disto, senhor.
- Sua visão é boa?
- Eu nunca tive que usar óculos, senhor.
- A senhora é uma mulher de cinqüenta e cinco anos?
- Cinqüenta e seis, senhor.
- E o homem que a senhora viu estava do outro lado
da rua?
- Sim, senhor.
- E eram duas horas da manhã. A senhora deve ter
olhos excepcionais, Sra. Salmon.
- Não, senhor. Havia luar e, quando o homem
olhou para cima, a luz do poste batia no seu rosto.
- E a senhora não tem dúvida alguma de que o homem
que a senhora viu é o prisioneiro?
Não consegui entender o que ele pretendia. Ele não
poderia ter esperado qualquer outra resposta senão a que obteve.
- Absolutamente nenhuma, senhor. Não é um rosto que
se esqueça.
O advogado correu os olhos pelo tribunal por um
momento. Então ele disse:
- A senhora se importa, Sra. Salmon, de examinar
novamente as pessoas presentes ao tribunal? Não, não o prisioneiro.
Levante-se, por favor, Sr. Adams - e lá no fundo do tribunal, com o corpo
robusto e pesado e pernas musculosas e um par de olhos esbuga-lhados, estava a
imagem exata do homem no banco dos réus. Até mesmo a roupa era igual - terno
azul apertado e gravata listrada.
- Agora pense com muito cuidado, Sra. Salmon. A
senhora ainda pode jurar que o homem que a senhora viu deixar cair o martelo no
jardim da Sra. Parker era o prisioneiro - e não este homem, que é seu
irmão gêmeo?
Claro que ela não pôde. Ela olhou de um para o outro
e não disse uma palavra.
Lá estava o brutamontes sentado no banco dos réus
com as pernas cruzadas e lá estava ele também de pé no fundo do tribunal, e
ambos encaravam a Sra. Salmon. Ela sacudiu a cabeça.
O que vimos então foi o fim do caso. Não havia uma
testemunha pronta para jurar que aquele era o prisioneiro que havia visto. E o
irmão? Ele tinha seu álibi, também; estava com sua esposa.
E assim o homem foi absolvido por falta de provas.
Mas se - caso tenha cometido o assassinato e não seu irmão - ele foi castigado
ou não, eu não sei. Aquele dia extraordinário teve um final extraordinário. Eu
segui a Sra. Salmon para fora do tribunal e nós ficamos presos na multidão que
esperava, claro, pelos gêmeos. A polícia tentou afugentar a multidão, mas tudo
o que conseguiram fazer foi manter a pista livre para o tráfego. Soube depois
que eles tentaram fazer com que os gêmeos saíssem pela porta dos fundos, mas
não conseguiram. Um deles - ninguém soube o qual - disse: - Eu fui absolvido,
não fui? - e eles saíram com estrondo pela porta da frente. Então aconteceu. Não sei
como, e no entanto eu estava a apenas um metro e pouco de distância. A multidão
se moveu e de algum modo um dos gêmeos foi empurrado para a rua bem na frente
de um ônibus.
Ele guinchou como um coelho e isso foi tudo: estava
morto, seu crânio esmagado da mesma maneira que o da Sra. Parker havia sido.
Vingança divina? Eu gostaria de saber. Lá estava o outro Adams de pé ao lado do
corpo e olhando diretamente para a Sra. Salmon. Ele estava chorando, mas se ele
era o assassino ou o homem inocente ninguém jamais poderá dizer. Mas, se você
fosse a Sra. Salmon, conseguiria dormir à noite?
Tradução de Celina Portocarrero
26/04/2003 - 05h44
Greene
provoca e explora a consciência em "O Condenado"
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
especial para a Folha de S.Paulo
Graham Greene (1904-91) foi um dos mais prolíficos e populares romancistas do século 20. Conseguiu o raro êxito conjunto de vender bem e obter respeito intelectual e ideológico de seus pares. Fazia proselitismo católico, mas era crítico da Igreja de Roma a ponto de ter sido formalmente admoestado pelo Santo Ofício, que condenou o livro "O Poder e a Glória" (40) por ser "paradoxal"
O paradoxismo que assustou os censores do Vaticano já estava em "O Condenado" (Brighton Rock), de 38, o primeiro trabalho de Greene a alcançar sucesso de público e a tratar de maneira explícita das convicções religiosas do autor, que se convertera ao catolicismo 12 anos antes. A segunda edição brasileira de "O Condenado" é lançada pela Globo, com excelente prefácio do crítico da Folha Marcelo Pen e a mesma tradução precisa de Leonel Vallandro da primeira edição (87).
Em "O Condenado", aparecem as duas características básicas que renderam ao escritor inglês o prestígio e a notoriedade de que desfrutou: capacidade de desenrolar uma história simples, instigante e atraente e, ao mesmo tempo, poder de explorar os interiores mais profundos da consciência, dos sentimentos e da moralidade humana. Greene, como provavelmente ninguém mais, pareceu capaz de fazer conviver Dashiell Hammett e Marcel Proust em seus escritos.
O enredo é despretensioso: Pinkie, um adolescente bandido com aspirações a se tornar um líder mafioso na cidade inglesa de Brighton, resolve casar com a garçonete Rose como forma de comprar o silêncio dela sobre um homicídio que ele cometera; outra pessoa que sabia do crime, Ida, tenta perseguir Pinkie e salvar Rose da influência do assassino.
O texto flui com naturalidade, elegância e inteligência. O leitor fica preso à narrativa do suspense, em ritmo perfeito e com descrições atraentes de locais e personagens. Mas, ao contrário dos romances policiais clássicos, o livro introduz questões metafísicas ao lado dos fatos da história de Pinkie, Rose e Ida: a luta entre o bem e o mal, a noção de pecado e castigo, o propósito da vida e da morte. Greene era uma espécie de existencialista católico. Tratava da importância da subjetividade, da liberdade (ou falta de) que cada indivíduo tem para escolher suas alternativas e lidar com as consequências, mas dentro do quadro rígido do dogmatismo católico.
Pinkie e Rose, por exemplo, são dois católicos muito distintos entre si: ele parece só acreditar no Diabo e no Inferno, enquanto ela também crê em Deus e no Paraíso. Já Ida é materialista, preocupada mais com os conceitos humanos de justiça, amor, prazer. Desse triângulo moral saem as idéias que dão ao leitor a chance de refletir sobre seus próprios dilemas e é isso que retira "O Condenado" tanto da categoria das histórias de detetive quanto da de ficção catequética.
O próprio Greene era duro na avaliação de "O Condenado". Ele o colocava na lista de seus livros "de entretenimento". Mas talvez estivesse sendo excessivamente rigoroso com o próprio trabalho. "O Condenado" é um exemplo excelente do seu raríssimo talento para conciliar estilo amigável para as pessoas comuns com conteúdo rico em conceitos complexos que ajudam as pessoas a refletir sobre o mundo e si mesmas.
Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico"
especial para a Folha de S.Paulo
Graham Greene (1904-91) foi um dos mais prolíficos e populares romancistas do século 20. Conseguiu o raro êxito conjunto de vender bem e obter respeito intelectual e ideológico de seus pares. Fazia proselitismo católico, mas era crítico da Igreja de Roma a ponto de ter sido formalmente admoestado pelo Santo Ofício, que condenou o livro "O Poder e a Glória" (40) por ser "paradoxal"
O paradoxismo que assustou os censores do Vaticano já estava em "O Condenado" (Brighton Rock), de 38, o primeiro trabalho de Greene a alcançar sucesso de público e a tratar de maneira explícita das convicções religiosas do autor, que se convertera ao catolicismo 12 anos antes. A segunda edição brasileira de "O Condenado" é lançada pela Globo, com excelente prefácio do crítico da Folha Marcelo Pen e a mesma tradução precisa de Leonel Vallandro da primeira edição (87).
Em "O Condenado", aparecem as duas características básicas que renderam ao escritor inglês o prestígio e a notoriedade de que desfrutou: capacidade de desenrolar uma história simples, instigante e atraente e, ao mesmo tempo, poder de explorar os interiores mais profundos da consciência, dos sentimentos e da moralidade humana. Greene, como provavelmente ninguém mais, pareceu capaz de fazer conviver Dashiell Hammett e Marcel Proust em seus escritos.
O enredo é despretensioso: Pinkie, um adolescente bandido com aspirações a se tornar um líder mafioso na cidade inglesa de Brighton, resolve casar com a garçonete Rose como forma de comprar o silêncio dela sobre um homicídio que ele cometera; outra pessoa que sabia do crime, Ida, tenta perseguir Pinkie e salvar Rose da influência do assassino.
O texto flui com naturalidade, elegância e inteligência. O leitor fica preso à narrativa do suspense, em ritmo perfeito e com descrições atraentes de locais e personagens. Mas, ao contrário dos romances policiais clássicos, o livro introduz questões metafísicas ao lado dos fatos da história de Pinkie, Rose e Ida: a luta entre o bem e o mal, a noção de pecado e castigo, o propósito da vida e da morte. Greene era uma espécie de existencialista católico. Tratava da importância da subjetividade, da liberdade (ou falta de) que cada indivíduo tem para escolher suas alternativas e lidar com as consequências, mas dentro do quadro rígido do dogmatismo católico.
Pinkie e Rose, por exemplo, são dois católicos muito distintos entre si: ele parece só acreditar no Diabo e no Inferno, enquanto ela também crê em Deus e no Paraíso. Já Ida é materialista, preocupada mais com os conceitos humanos de justiça, amor, prazer. Desse triângulo moral saem as idéias que dão ao leitor a chance de refletir sobre seus próprios dilemas e é isso que retira "O Condenado" tanto da categoria das histórias de detetive quanto da de ficção catequética.
O próprio Greene era duro na avaliação de "O Condenado". Ele o colocava na lista de seus livros "de entretenimento". Mas talvez estivesse sendo excessivamente rigoroso com o próprio trabalho. "O Condenado" é um exemplo excelente do seu raríssimo talento para conciliar estilo amigável para as pessoas comuns com conteúdo rico em conceitos complexos que ajudam as pessoas a refletir sobre o mundo e si mesmas.
Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico"
Referências
COSTA, Flávio Moreira da (Org.). Os cem melhores contos de crime
e mistério da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
Disponível em:
<http://livred.info/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-univer.html?page=16>, Acesso em: 25 ago. 2018.
SILVA, Carlos Eduardo Lins da. Folha de S.Paulo, São Paulo, 26 abr. 2014. Opinião, p. A2. NUBLAT, Johanna. Notificação de casos de HIV positivo passa a ser obrigatória. Folha de S.Paulo, São Paulo, 18 jun. 2014. Especial. <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u32419.shtml>, Acesso em: 25 ago. 2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário