sexta-feira, 27 de abril de 2018

18. A TISANA


LEON BLOY (1846-1917 | França) 


Pintor que virou escritor por influência pessoal de Villiers Barbey d'Aurevilly (e literária a partir dos Contos Cruéis), Leon Bloy foi um católico intolerante, amargo, que em vida se incompatibilizou com todo mundo. Isso se reflete no mundo perverso e mesmo torpe de seus contos. Este A Tisana consta de algumas antologias de mistério, e é considerado um pioneiro do gênero, talvez porque mostre o lado negro e aparentemente inusitado dos normais seres humanos.

Jacques sentiu-se simplesmente ignóbil. Era um horror ficar ali, na obscuridade, como um espião sacrílego, enquanto aquela mulher, para ele uma total desconhecida, se confessava.
Mas então teria sido preciso partir imediatamente, assim que o padre de batina chegara com ela, ou, pelo menos, fazer algum ruído para que eles fossem advertidos da presença de um estranho. Agora, era tarde demais, e a terrível indiscrição só poderia se agravar.
Desocupado, procurando, como as centopéias, um lugar fresco no fim daquele dia canicular, ele tivera a fantasia, pouco de acordo com suas fantasias habituais, de entrar na velha igreja, e sentara-se naquele canto escuro, atrás do confessionário, para ali sonhar, com os olhos fixos na grande rosácea que, aos poucos, ia se extinguindo.
Depois de alguns minutos, sem saber como ou por quê, tornava-se a testemunha inteiramente involuntária de uma confissão.
É verdade que as palavras não lhe chegavam claras e que, afinal, ele só ouvia um murmúrio. Mas o colóquio, no final, parecia se animar.
Algumas sílabas, aqui e ali, destacavam-se, emergindo do rio opaco daquela conversa penitencial, e o jovem que, por milagre, era o oposto de um grosseirão, receou na verdade surpreender confissões que não lhe eram evidentemente destinadas.
De repente, esta previsão se realizou. Um violento redemoinho pareceu se criar. As ondas imóveis rugiram dividindo-se, como para deixar surgir um monstro, e o ouvinte, aterrorizado, ouviu estas palavras proferidas com impaciência.
- Estou lhe dizendo, meu pai, que botei veneno na tisana!
Mais nada. A mulher, cujo rosto estava invisível, ergueu-se do genuflexório e, silenciosamente, desapareceu no emaranhado das trevas.
Quanto ao padre, não se movia mais que um morto, e lentos minutos se escoaram antes que ele abrisse a porta e se fosse por sua vez, com o andar pesado de um homem assombrado.
Foi preciso o carrilhão persistente das chaves do sacristão e a ordem de sair, por muito tempo lançada na nave, para que o próprio Jacques se levantasse, tanto estava arrasado com aquela palavra que ecoava nele como um clamor.

***

Ele reconhecera perfeitamente a voz de sua mãe!
Ah! Impossível se enganar! Ele chegara até a reconhecer seu andar quando o vulto de mulher erguera-se a dois passos dele.
Mas então, céus! Tudo desmoronava, tudo sumia, tudo não passava de uma brincadeira monstruosa!
Ele vivia sozinho com aquela mãe, que não via quase ninguém e só saía para ir à missa. Ele se acostumara a venerá-la com toda a sua alma, como um exemplar único de retidão e bondade.
Até onde ele podia ver no passado, nenhuma perturbação, nada de oblíquo, nenhuma dobra, nem um só desvio. Uma bela estrada branca a perder de vista, sob um céu pálido. Pois a existência da pobre mulher havia sido muito melancólica.
Desde o falecimento do marido, morto em Campigny, e de quem o jovem pouco se lembrava, ela não deixara de usar luto, ocupando-se exclusivamente da educação de seu filho, do qual não se afastava nem por um dia. Jamais quis mandá-lo para as escolas, temendo os contatos; ocupara-se por completo de sua instrução, construíra-lhe a alma com pedaços da sua. Este regime provocou nele uma sensibilidade inquieta e nervos singularmente vibrantes que o expunham a dores ridículas, talvez também a verdadeiros perigos.
Quando chegou a adolescência, as traquinagens previstas, que não podia impedir, haviam-na tornado um pouco mais triste, sem alterar sua doçura. Nem censuras nem cenas mudas. Ela aceitara, como tantas outras, o que é inevitável.
Enfim, todos falavam dela com respeito, e somente ele em todo o mundo, seu filho bem-amado, se via hoje forçado a desprezá-la de joelhos e com lágrimas nos olhos, como os anjos desprezariam Deus se ele não mantivesse suas promessas!...
Realmente, era de enlouquecer, era de berrar pelas ruas. Sua mãe! Uma envenenadora! Era insano, era um milhão de vezes absurdo, era absolutamente impossível e, no entanto, era verdade. Não tinha ela mesma acabado de declarar? Ele poderia arrancar os cabelos!
Mas, envenenadora de quem? Oh, Deus! Ele não conhecia uma única pessoa que tivesse morrido envenenada. Não era seu pai, que recebera uma rajada de metralhadora na barriga. Também não era ele que ela tinha tentado matar. Nunca tinha ficado doente, nunca precisara de tisanas e sabia-se adorado. A primeira vez que ele se atrasara à noite, e certamente não fora por coisas decentes, ela mesma adoecera de inquietação.
Seria algum fato anterior ao seu nascimento? Seu pai se casara com ela por sua beleza, quando ela tinha apenas vinte anos. Teria esse casamento sido precedido por qualquer aventura que pudesse implicar num crime?
Não, nem assim. Aquele passado límpido lhe era familiar, havia sido contado cem vezes e os testemunhos eram por demais fiéis. Por que então aquela confissão terrível? Por que, principalmente, oh! por que ele precisara testemunhá-la?
Bêbado de horror e desespero, ele voltou para casa.

***

Sua mãe correu imediatamente para beijá-lo.
- Como você voltou tarde, meu filho querido! E como está pálido! Será que está doente?
- Não - respondeu ele -, não estou doente, mas este calor enorme me cansa e acho que não vou conseguir comer. E a senhora, mamãe, não está se sentindo mal? A senhora saiu, com certeza, em busca de um pouco de ar fresco. Achei que a tinha visto de longe no cais.
- Eu saí, sim, mas você não pode ter me visto no cais. Fui me confessar, o que você não faz mais, desconfio, há muito tempo, seu menino mau.
Jacques espantou-se de não ter sufocado, de não cair para trás, fulminado, como se vê nos bons romances que havia lido.
Então era verdade que ela tinha ido se confessar! Então ele não dormira na igreja e aquela catástrofe abominável não era um pesadelo, como ele, por um minuto, tinha loucamente imaginado.
Ele não caiu, mas ficou muito mais pálido, e sua mãe ficou assustada.
- Mas o que é que você tem, meu filhinho? - disse ela. - Você está mal, você está escondendo alguma coisa de sua mãe. Você deveria ter mais confiança nela, que só ama você e só tem você... Está me olhando de um jeito! Meu tesouro querido... Mas o que você tem afinal? Você está me deixando com medo!...
Ela o tomou amorosamente nos braços.
- Escute bem, menino grande. Eu não sou curiosa, você sabe, e não quero ser seu juiz. Não me diga nada, se não quiser, mas deixe-me cuidar de você. Você vai imediatamente para a cama. Enquanto isto, vou preparar uma boa comidinha bem leve, que eu mesma trarei, não é? E, se você tiver febre esta noite, eu vou fazer uma TISANA...
Jacques, desta vez, caiu no chão.
- Até que enfim! - suspirou ela, um pouco cansada, estendendo a mão para uma campainha.
Jacques sofrera um aneurisma de último grau e sua mãe tinha um amante que não queria ser padrasto.
Este drama simples aconteceu, há três anos, nos arredores de Saint-Germain-des-Prés. A casa que lhe serviu de palco pertence a um empreiteiro de demolições.
Tradução de Celina Portocarrero

Referência

COSTA, Flávio Moreira da (Org.). Os cem melhores contos de crime e mistério da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. Disponível em: < http://livred.info/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-univer.html?page=17
>, Acesso em: 26 ago. 2018.

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