LEON BLOY (1846-1917 | França)
Pintor que virou escritor por influência pessoal de Villiers Barbey d'Aurevilly (e literária a partir dos Contos Cruéis), Leon Bloy foi um católico intolerante, amargo, que em vida se incompatibilizou com todo mundo. Isso se reflete no mundo perverso e mesmo torpe de seus contos. Este A Tisana consta de algumas antologias de mistério, e é considerado um pioneiro do gênero, talvez porque mostre o lado negro e aparentemente inusitado dos normais seres humanos.
Jacques sentiu-se simplesmente ignóbil. Era um
horror ficar ali, na obscuridade, como um espião sacrílego, enquanto aquela
mulher, para ele uma total desconhecida, se confessava.
Mas então teria sido preciso partir imediatamente,
assim que o padre de batina chegara com ela, ou, pelo menos, fazer algum
ruído para que eles fossem advertidos da presença de um estranho. Agora, era
tarde demais, e a terrível indiscrição só poderia se agravar.
Desocupado, procurando, como as centopéias, um lugar
fresco no fim daquele dia canicular, ele tivera a fantasia, pouco de
acordo com suas fantasias habituais, de entrar na velha igreja, e sentara-se
naquele canto escuro, atrás do confessionário, para ali sonhar, com os olhos
fixos na grande rosácea que, aos poucos, ia se extinguindo.
Depois de alguns minutos, sem saber como ou por quê,
tornava-se a testemunha inteiramente involuntária de uma confissão.
É verdade que as palavras não lhe chegavam claras e
que, afinal, ele só ouvia um murmúrio. Mas o colóquio, no final, parecia se
animar.
Algumas sílabas, aqui e ali, destacavam-se,
emergindo do rio opaco daquela conversa penitencial, e o jovem que, por
milagre, era o oposto de um grosseirão, receou na verdade surpreender
confissões que não lhe eram evidentemente destinadas.
De repente, esta previsão se realizou. Um violento
redemoinho pareceu se criar. As ondas imóveis rugiram dividindo-se, como para
deixar surgir um monstro, e o ouvinte, aterrorizado, ouviu estas palavras
proferidas com impaciência.
- Estou lhe dizendo, meu pai, que botei veneno na
tisana!
Mais nada. A mulher, cujo rosto estava invisível,
ergueu-se do genuflexório e, silenciosamente, desapareceu no emaranhado das
trevas.
Quanto ao padre, não se movia mais que um
morto, e lentos minutos se escoaram antes que ele abrisse a porta e se fosse
por sua vez, com o andar pesado de um homem assombrado.
Foi preciso o carrilhão persistente das chaves do
sacristão e a ordem de sair, por muito tempo lançada na nave, para que o
próprio Jacques se levantasse, tanto estava arrasado com aquela palavra que
ecoava nele como um clamor.
***
Ele reconhecera perfeitamente a voz de sua mãe!
Ah! Impossível se enganar! Ele chegara até a reconhecer seu andar quando o vulto de mulher erguera-se a dois passos dele.
Ah! Impossível se enganar! Ele chegara até a reconhecer seu andar quando o vulto de mulher erguera-se a dois passos dele.
Mas então, céus! Tudo desmoronava, tudo sumia,
tudo não passava de uma brincadeira monstruosa!
Ele vivia sozinho com aquela mãe, que não via quase
ninguém e só saía para ir à missa. Ele se acostumara a venerá-la com toda a sua
alma, como um exemplar único de retidão e bondade.
Até onde ele podia ver no passado, nenhuma
perturbação, nada de oblíquo, nenhuma dobra, nem um só desvio. Uma bela
estrada branca a perder de vista, sob um céu pálido. Pois a existência da
pobre mulher havia sido muito melancólica.
Desde o falecimento do marido, morto em Campigny, e
de quem o jovem pouco se lembrava, ela não deixara de usar luto, ocupando-se
exclusivamente da educação de seu filho, do qual não se afastava nem por
um dia. Jamais quis mandá-lo para as escolas, temendo os contatos; ocupara-se
por completo de sua instrução, construíra-lhe a alma com pedaços da sua. Este
regime provocou nele uma sensibilidade inquieta e nervos singularmente
vibrantes que o expunham a dores ridículas, talvez também a verdadeiros
perigos.
Quando chegou a adolescência, as traquinagens
previstas, que não podia impedir, haviam-na tornado um pouco mais triste,
sem alterar sua doçura. Nem censuras nem cenas mudas. Ela aceitara, como tantas
outras, o que é inevitável.
Enfim, todos falavam dela com respeito, e somente
ele em todo o mundo, seu filho bem-amado, se via hoje forçado a desprezá-la
de joelhos e com lágrimas nos olhos, como os anjos desprezariam Deus se ele não
mantivesse suas promessas!...
Realmente, era de enlouquecer, era de berrar pelas
ruas. Sua mãe! Uma envenenadora! Era insano, era um milhão de vezes absurdo,
era absolutamente impossível e, no entanto, era verdade. Não tinha ela
mesma acabado de declarar? Ele poderia arrancar os cabelos!
Mas, envenenadora de quem? Oh, Deus! Ele não
conhecia uma única pessoa que tivesse morrido envenenada. Não era seu pai, que
recebera uma rajada de metralhadora na barriga. Também não era ele que ela
tinha tentado matar. Nunca tinha ficado doente, nunca precisara de tisanas e sabia-se
adorado. A primeira vez que ele se atrasara à noite, e certamente não fora por
coisas decentes, ela mesma adoecera de inquietação.
Seria algum fato anterior ao seu nascimento? Seu pai
se casara com ela por sua beleza, quando ela tinha apenas vinte anos.
Teria esse casamento sido precedido por qualquer aventura que pudesse implicar
num crime?
Não, nem assim. Aquele passado límpido lhe era
familiar, havia sido contado cem vezes e os testemunhos eram por demais fiéis.
Por que então aquela confissão terrível? Por que, principalmente, oh! por que
ele precisara testemunhá-la?
Bêbado de horror e desespero, ele voltou para casa.
***
Sua mãe correu imediatamente para beijá-lo.
- Como você voltou tarde, meu filho querido! E como está pálido! Será que está doente?
- Como você voltou tarde, meu filho querido! E como está pálido! Será que está doente?
- Não - respondeu ele -, não estou doente, mas
este calor enorme me cansa e acho que não vou conseguir comer. E a senhora,
mamãe, não está se sentindo mal? A senhora saiu, com certeza, em busca de um
pouco de ar fresco. Achei que a tinha visto de longe no cais.
- Eu saí, sim, mas você não pode ter me visto no
cais. Fui me confessar, o que você não faz mais, desconfio, há muito
tempo, seu menino mau.
Jacques espantou-se de não ter sufocado, de não cair
para trás, fulminado, como se vê nos bons romances que havia lido.
Então era verdade que ela tinha ido se confessar!
Então ele não dormira na igreja e aquela catástrofe abominável não era um
pesadelo, como ele, por um minuto, tinha loucamente imaginado.
Ele não caiu, mas ficou muito mais pálido, e sua mãe
ficou assustada.
- Mas o que é que você tem, meu filhinho? - disse
ela. - Você está mal, você está escondendo alguma coisa de sua mãe. Você
deveria ter mais confiança nela, que só ama você e só tem você... Está me
olhando de um jeito! Meu tesouro querido... Mas o que você tem afinal? Você
está me deixando com medo!...
Ela o tomou amorosamente nos braços.
- Escute bem, menino grande. Eu não sou curiosa,
você sabe, e não quero ser seu juiz. Não me diga nada, se não quiser, mas
deixe-me cuidar de você. Você vai imediatamente para a cama. Enquanto isto, vou
preparar uma boa comidinha bem leve, que eu mesma trarei, não é? E, se você
tiver febre esta noite, eu vou fazer uma TISANA...
Jacques, desta vez, caiu no chão.
- Até que enfim! - suspirou ela, um pouco cansada,
estendendo a mão para uma campainha.
Jacques sofrera um aneurisma de último grau e sua
mãe tinha um amante que não queria ser padrasto.
Este drama simples aconteceu, há três anos, nos
arredores de Saint-Germain-des-Prés. A casa que lhe serviu de palco pertence a
um empreiteiro de demolições.
Tradução de Celina Portocarrero
Referência
COSTA, Flávio Moreira da (Org.). Os cem
melhores contos de crime e mistério da literatura universal. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2002. Disponível em: < http://livred.info/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-univer.html?page=17
>,
Acesso em: 26 ago. 2018.
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