9.
VOLTAIRE (1694-1778 | França)
Zadig reconheceu que o primeiro mês do casamento é
mesmo, como está escrito no Zenda, a lua-de-mel, e que o segundo é a
lua-de-fel. Viu-se dentro em pouco obrigado a repudiar Azora, que se tornara
dificílima de trato, e buscou refúgio no estudo da natureza. "Ninguém pode
ser mais feliz", dizia ele, "do que um filósofo que lê nesse grande
livro colocado por Deus ante nossos olhos. É dono das verdades que descobre;
alimenta e eleva a alma; vive tranqüilo; nada teme dos homens, e a sua
extremosa mulher não lhe vem cortar o nariz".
Penetrado dessas idéias, retirou-se para uma casa de
campo à margem do Eufrates. Ali, não se preocupava ele em calcular quantas
polegadas de água corriam por segundo sob os arcos de uma ponte, ou se caía
mais uma linha cúbica de chuva no mês do rato do que no mês do carneiro. Não
planejava fabricar seda com teias de aranha, nem porcelana com cacos de
garrafa; mas dedicou-se principalmente ao estudo dos animais e das plantas,
adquirindo em breve uma agudeza que lhe desvendava mil diferenças onde os
outros não viam mais que uniformidade.
Ora, estando um dia a passear pelas proximidades de
um bosque, acorreu-lhe ao encontro um eunuco da rainha, seguido de vários
oficiais que demonstravam a maior inquietação e vagavam de um lado para outro,
como pessoas desorientadas que houvessem perdido a maior preciosidade deste
mundo.
- Jovem - disse-lhe o primeiro eunuco -, não viste o
cão da rainha?
- É uma cadela, e não um cão - respondeu Zadig
discretamente.
- Tens razão - tornou o primeiro eunuco.
- É caçadeira, e por sinal que muito pequena -
acrescentou Zadig.
- Deu cria há pouco; manqueja da pata dianteira
esquerda e tem orelhas muito compridas.
- Viste-a então? - perguntou o primeiro eunuco,
esbaforido.
- Não - respondeu Zadig -, nunca a vi na minha vida,
nem nunca soube se a rainha tinha ou não uma cadela.
Ao mesmo tempo, por um comum capricho da sorte,
sucedeu escapar-se das mãos de um palafreneiro o mais belo exemplar das
cavalariças do rei, extraviando-se nos campos de Babilônia. O monteiro-mor e
todos os outros oficiais corriam à sua procura com mais inquietação do que o
primeiro eunuco em busca da cadela. O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e
perguntou-lhe se acaso não vira o cavalo do rei.
- É - respondeu Zadig - o cavalo de melhor galope;
tem cinco pés de altura e os cascos pequenos; a cauda mede três pés e meio de
comprimento; o freio é de ouro de vinte e três quilates; e as ferraduras de
prata de onze denários.
- Que direção tomou ele? Onde está? - perguntou o
monteiro-mor.
- Não o vi - respondeu Zadig -, nem nunca ouvi falar
nele.
O monteiro-mor e o primeiro eunuco não tiveram mais
dúvidas de que Zadig houvesse roubado o cavalo do rei e a cadela da rainha;
levaram-no perante a assembléia do grande desterham, que o condenou ao knut e a
passar o resto da vida na Sibéria. Mal se encerrara o julgamento, foram
encontrados o cavalo e a cadela. Viram-se os juízes na dolorosa obrigação de
reformar sua sentença; mas condenaram Zadig a desembolsar quatrocentas onças de
ouro, por haver dito que não vira o que tinha visto. Primeiro foi preciso pagar
a multa; depois concederam-lhe licença para se defender perante o conselho do
grande desterham. Zadig falou nos seguintes termos:
- Estrelas de justiça, abismos de ciência, espelhos
da verdade, Ó vós que tendes o peso do chumbo, a dureza do ferro, o fulgor do
diamante e tanta afinidade com o ouro! Já que me é dado falar perante esta
augusta assembléia, juro-vos por Orosmade que jamais vi a respeitável cadela da
rainha, nem o sagrado cavalo do rei dos reis. Eis o que me aconteceu. Passeava
eu pelas cercanias do bosque onde vim a encontrar o venerável eunuco e o
ilustríssimo monteiro-mor, quando vi na areia as pegadas de um animal. Descobri
facilmente que eram as de um cão pequeno. Sulcos leves e longos, impressos nos
montículos de areia, por entre os traços das patas, revelaram-me que se tratava
de uma cadela cujas tetas estavam pendentes, e que portanto não fazia muito que
dera cria. Outras marcas em sentido diferente, que sempre se mostravam no solo
ao lado das patas dianteiras, denotavam que o animal tinha orelhas muito
compridas; e, como notei que o chão era sempre menos amolgado por uma das patas
do que pelas três outras, compreendi que a cadela de nossa augusta rainha manquejava
um pouco, se assim me ouso exprimir. Quanto ao cavalo do rei dos reis, seja-vos
cientificado que, passeando eu pelos caminhos do referido bosque, divisei
marcas de ferraduras que se achavam todas a igual distância. "Eis
aqui", considerei, "um cavalo que tem um galope perfeito." A
poeira dos troncos, num estreito caminho de sete pés de largura, fora levemente
removida à esquerda e à direita, a três pés e meio do centro da estrada.
"Esse cavalo", disse eu comigo, "tem uma cauda de três pés e
meio, a qual, movendo-se para um lado e outro, varreu assim a poeira dos
troncos." Vi debaixo das árvores, que formavam um dossel de cinco pés de
altura, algumas folhas recém-tombadas, e concluí que o cavalo lhes tocara com a
cabeça, e que tinha, portanto, cinco pés de altura. Quanto ao freio, deve ser
de ouro de vinte e três quilates: pois ele lhe esfregou a parte externa contra
certa pedra que eu identifiquei como uma pedra de toque. E, enfim, pelas marcas
que as ferraduras deixaram em pedras de outra espécie, descobri eu que era
prata de onze denários.
Todos os juízes pasmaram do profundo e sutil
discernimento de Zadig, o que logo chegou aos ouvidos do rei e da rainha. Só se
falava em Zadig nas antecâmaras, na câmara e no gabinete; e, embora vários
magos opinassem que o deviam queimar como feiticeiro, ordenou o rei que lhe
restituíssem as quatrocentas onças de ouro em que fora multado. O escrivão, os
meirinhos, os procuradores compareceram em grande pompa à presença de Zadig,
para lhe entregar as suas quatrocentas onças; apenas retiveram trezentas e
noventa e oito para as custas do processo, e os seus ajudantes reclamaram
gratificação.
Zadig compreendeu como era às vezes perigoso ser
demasiado sábio, e jurou consigo que, na próxima ocasião, nada diria do que
acaso houvesse testemunhado.
Essa oportunidade não se fez esperar. Um prisioneiro
de Estado, que fugira, passou pelas janelas de sua casa. Zadig, interrogado,
nada respondeu; mas provaram-lhe que ele olhara pela janela. Foi multado, por
esse crime, em quinhentas onças de ouro, e ele agradeceu a indulgência dos
juízes, segundo o costume de Babilônia. "Como é lamentável, meu
Deus," dizia ele consigo, "ir a gente passear num bosque por onde passaram
a cadela da rainha e o cavalo do rei! Que perigoso chegar à janela! E que
difícil ser feliz nesta vida!"
Tradução de Mário Quintana
“Não há estudo sobre o romance policial que não
mencione, pelo menos, este capítulo de Zadig, ou o Destino como um marco
pioneiro do gênero: a capacidade de se descobrir a verdade pelo simples e
afiado mecanismo mental da dedução, ou da detecção, que está na base das
histórias de detetive. É pelo menos um dos elementos que transformou, por
exemplo, Sherlock Holmes em um substantivo, relativo a alguém que descobre
algum crime ou desvenda algum caso usando apenas a inteligência (leia-se: o
raciocínio lógico). Assim como acontece com centenas, senão milhares, de
detetives do gênero que se seguiram a Auguste Dupin (vide Poe, nesta
antologia). Não por outra razão este capítulo de Voltaire foi parodiado, bem
próximo ao original, por Umberto Eco, no começo de seu O Nome da Rosa.”
ZADIG OU
O DESTINO
ZADIG OU LA DESTINÉE
François Marie Arouet (Voltaire)
Tradução de Paulo Neves
Tradução de Paulo Neves
O Oriente é na França iluminista
O impacto da tradução de As
mil e uma noites para o francês no início do século XVIII foi tal que
desencadeou uma onda de histórias de inspiração oriental, das quais fazem
parte Zadig ou o destino. Ambientada na paisagem árida e bela do
deserto, passando pelo reino da Babilônia, pelos confins do Egito e da Síria, a
jornada do filósofo Zadig – palavra de origem semítica que significa “justo”,
“verídico” – cativa desde o início pelo estilo da narração tal qual Sherazade:
de coração sincero e nobre, Zadig está para se casar com Semira, o melhor
partido da Babilônia, mas uma tragédia chega para acabar com seus planos.
A partir desse ponto, em cada novo capítulo o desafortunado homem tenta ir
contra seu destino, buscando, por meios tortuosos, alcançar a felicidade.
Publicado pela primeira vez em
1747 sob o título de Memnon e somente um ano depois com o
título mais conhecido, Zadig é uma grande crítica aos costumes e às
crenças da época de Luís XV e um exemplo da espirituosidade de Voltaire ao
retratar um homem que é refém da própria sorte.
François-Marie Arouet (1694-1778)
nasceu em Paris. Ensaísta, ficcionista e filósofo, tornou-se conhecido pelo
pseudônimo de Voltaire e ficou célebre pelo engajamento na defesa das
liberdades civis. É autor de Cândido ou o otimismo, Tratado
sobre a tolerância e O filósofo ignorante, todos
publicados na Coleção L&PM POCKET.
Referências
file:///C:/Users/User/Desktop/Os%20100%20Melhores%20Contos%20de%20Crime%20e%20Mist%C3%A9rio%20da%20Literatura%20Universal%20-%20Fl%C3%A1vio%20Moreira%20Da%20Costa.pdf
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/zadig.html
http://www.lpm.com.br/site/default.asp?Template=../livros/layout_produto.asp&CategoriaID=725462&ID=724441
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