MEDEIROS
E ALBUQUERQUE (1867-1934 | Brasil)
Durante
o dia Adão Flores era um gordo como qualquer outro. Sua atividade e seu charme
começavam depois das 22 horas e às vezes até mais tarde. Então era visto
levando seus 120 quilos às boates, bistrôs e inferninhos da cidade,
profissionalmente, pois não só gostava da noite como também vivia dela.
Empresário de modestos espetáculos, era a salvação, a última esperança de cantores,
mágicos, humoristas e dançarinos decadentes. Dizia que se dedicava a esses
náufragos por puro espírito de solidariedade, pilhéria capaz de comover até os
que não tivessem espírito boêmio. Alguns desses artistas haviam tido a sua vez
no passado, pouco ou muito prestígio, até serem abandonados pelo público. Adão
não abandonava ninguém, talvez devido à tão propalada bondade dos obesos.
Com
o tempo, Adão Flores adquiriu outra profissão, paralela à de empresário da
noite, a de detetive particular, mas sem placa na porta e mesmo sem porta,
atividade restrita apenas a cenários noturnos e pessoas conhecidas. Apesar de
agir esporadicamente e circunscrito a poucos quarteirões, Adão Flores começou a
ganhar certa fama graças a um jornalista, Lauro de Freitas, que começava a
fazer dele personagem freqüente em sua coluna, a ponto de muita gente supor
tratar-se de ficção e mais nada.
Adão
Flores apareceu no "Yes Club", cumprindo seu itinerário habitual.
Rara era a noite em que não comparecia ao tradicional estabelecimento da
Bianca, onde seus casos tinham grande repercussão, e onde a seu ver se reuniam
as mais prestativas ninfetas. Mas nem teve tempo de sentar-se. Uma mulher,
nervosíssima, que já o aguardava, aproximou-se dele um tanto ofegante.
-
Lembra-se de mim, Adão?
-
Estela Lins?! Como vai o malandrão do seu marido? Anda sumido!
-
É por causa dele que estou aqui. Adão, você pode me acompanhar? Meu carro está
na porta. É um caso grave.
-
O que aconteceu?
-
Direi tudo no carro.
Julio
Barrios, mexicano, cantor de boleros, fora um dos contratados de Adão que mais
lhe deram dinheiro nos quase dez anos que estivera sob contrato. Seu valor era
contestado por muitos, mas até esses concordavam que o bigodudo era o mais
personalíssimo intérprete de "Perfume de Gardênia", "Total",
"Hoy " e "Somos". Quando o público se cansou dele, Flores
levou-o às churrascarias, salões da periferia e cidades do interior, etapas do
declínio de qualquer cantor. Julio não se abateu totalmente, pois enquanto tivesse
uma mulher apaixonada a seu lado, podia levar a vida.
Estela
dirigia atabalhoadamente um fusca em estado de desmaterialização.
-
Disse que Julio está assustado?
-
Disse apavorado.
-
Por quê?
-
Telefonemas ameaçadores.
-
Quem seria a pessoa?
-
Ele diz que não sabe.
-
Mas você acha que sim.
-
Pode ser algum traficante de drogas.
-
Ora, Julio nunca mexeu com isso. Trabalhamos juntos anos a fio e nunca o vi
cheirar nada suspeito. Sua obsessão sempre foi outra...
O
que o empresário-detetive imaginava era a ameaça de algum marido ou amante
ciumento, daí Julio não revelar nada a Estela, sua terceira ou quarta mulher
desde que chegara ao Brasil. Apesar da decadência artística Julio continuava
bem-sucedido nessa modalidade esportiva. Adão conhecera diversas favoritas do
sultão mexicano, todas apaixonadas e dispostas a dividir com ele o que
faturassem. Aliás, odiava mulheres ociosas e sempre lhes permitia a liberdade
de ir e vir - ao trabalho. Assim, Estela era esteticista com boa clientela;
Glória, a antecessora, possuía um sebo de livros espíritas, e Marusca,
massagista com técnica própria, cuidava da coluna de uma legião de velhos
generosos.
-
Julio sabe que veio me buscar?
-
Sabe. Disse que quer tomar um cuba-libre com você, como nos velhos tempos.
-
Espero que ele não acredite muito na coluna do Lauro de Freitas. Não sou tão
bom detetive assim.
-
Estamos chegando.
Estela
estacionou o carro diante de um pequeno edifício de três andares. O casal
morava no primeiro, cujas luzes estavam acesas. Passaram por um portão de
ferro, atravessaram um pequeno corredor e chegaram à porta do apartamento. A
mulher abriu a porta, acendeu a luz e indicou um velho divã ao empresário. Foi
se dirigindo ao interior do apartamento, anunciando:
-
Adão está aqui, querido!
O
empresário-detetive largou todo o seu peso numa mirrada poltrona, que
protestou, rangendo. Não conhecia aquele apartamento. Julio, sempre que mudava
de mulher, mudava também de endereço. Glória, por exemplo, fora ao supermercado
e ao chegar em casa não o encontrara mais. Marusca não vira mais nem a sombra
dele ao voltar do cabeleireiro. Julio explicava aos amigos que seu coração
sensível não suportava despedidas. Alguns o elogiavam por isso.
-
Quem é o senhor? - Adão ouviu de repente a voz de Estela, vinda do quarto, em
tom de pavor. - O que faz aqui?
Adão
levantou-se: algo de anormal acontecia. Novamente a voz de Estela, agora num
grito: - Juuuulio!
Adão
deu uns passos enquanto Estela aparecia à porta do quarto, tentando dizer
alguma coisa. O detetive entrou precipitadamente. A primeira imagem que viu foi
Julio sobre a cama, ensangüentado.
Estela
apontou para a janela aberta.
-
Ele fugiu!
Adão
correu para a sala e Estela abriu a porta do apartamento. Os dois
precipitaram-se para a rua, ela na frente. Logo adiante havia uma esquina, que
o criminoso já devia ter dobrado. Estela segurou Adão pelo braço.
-
Vamos socorrer Julio.
Regressaram
ao apartamento. A lâmina toda de uma tesoura comprida estava enterrada nas
costas de Julio. O detetive apalpou-lhe o peito. O coração já não batia nem no
ritmo lento do bolero.
Enquanto
a polícia não chegava, Adão dava uma olhada no quarto. Estela, em prantos,
aguardava a presença do cunhado, um de seus únicos parentes. Flores notou que
algumas gavetas de uma cômoda estavam abertas. O criminoso estivera procurando
alguma coisa. No peitoril da janela, um pouco de terra, certamente deixada
pelos sapatos do homem que saltara. E sobre o criado-mudo um copo, o último
cuba-libre que Julio não terminara de beber. Sem gelo. Quem tomaria um Cuba sem
gelo num calor daquele? Foi ao encontro de Estela, na sala, e a achou dobrada
sobre um divã.
-
Gostaria de conversar com o zelador.
-
O prédio não tem zelador, apenas uma faxineira no período da manhã.
-
Acha que poderia reconhecer o homem?
-
Nunca mais o esquecerei - garantiu Estela. - Era baixo, troncudo e tinha os
olhos puxados.
-
Já o vira antes?
-
Não.
Adão
retornou ao quarto para dar mais uma espiada. Dali a instantes a polícia
chegou: um delegado e dois tiras.
-
Não mexi em nada - disse-lhes Flores. - E cuidado com o peitoril da janela. Há
terra de sapato nele. Foi por onde o criminoso fugiu.
-
O senhor o viu?
-
Não, mas dona Estela poderá ajudar a fazer o retrato falado dele. Ela o
encontrou no quarto de Julio.
O
delegado encarou o detetive.
-
Você não é um tal Adão Flores, metido a Sherlock?
-
Sou esse tal, mas vim aqui como amigo, chamado por Estela. Julio tinha recebido
uns telefonemas ameaçadores.
Adão
deixou os tiras trabalharem e saiu do quarto. O criminoso saltara da janela
para um corredor cimentado que rodeava o edifício. Para baixo o santo tinha
ajudado, mas subir pela janela teria sido difícil. Certamente ele tocara a
campainha e entrara pela porta. Antes, porém, pisara em algum jardim, como
atestava a terra do peitoril. Havia jardim à entrada do edifício?
Um
dos tiras apareceu à porta com uma pergunta.
-
O senhor deixou uma ponta de cigarro no cinzeiro? Há duas lá, mas só uma é da
marca que Julio fumava.
-
Só fumo em reuniões ecológicas. O criminoso deve ter tido tempo para fumar um
cigarro. Só pode ter sido ele, pois Estela não fuma.
Adão
permaneceu no apartamento até a chegada da Polícia Técnica, quando Estela Lins,
no bagaço, foi levada pelo cunhado, que, antes de sair, declarou com todas as
letras:
-
Julio bem que mereceu isso. Um vagabundo, um explorador de mulheres! A polícia
não devia perder tempo procurando o assassino.
Já
era madrugada quando Flores retornou ao "Yes Club". Estava cansado,
que ninguém é de ferro. Contou a todos o que sucedera, recebendo em troca uma
informação. Jul io Barrios a parecera por lá, naquela sema na, muito fel iz.
Uma gravadora resolvera lançar um elepê com seus maiores sucessos, Recuerdos,
no qual depositava muitas esperanças. Planejava inclusive pintar os cabelos
para renovar o visual. Estava animadíssimo.
No
dia seguinte, Adão Flores compareceu à polícia para prestar depoimento. Estela,
por sua vez, estava cooperando. O retrato falado do criminoso já estava pronto
e sairia em todos os jornais. O delegado, porém, já manifestava uma suspeita.
-
Não gostei da cara daquele cunhado. Estela pode até estar tentando protegê- lo.
-
Não creio - replicou Adão. - Era apaixonada pelo cantor.
-
Mas amores passam - comentou o delegado. - Como certas modas musicais. .. Adão
Flores foi ao jornal onde trabalhava Lauro de Freitas.
-
Quantos quilos você pesa, Lauro?
-
Acha que estou engordando?
-
Que mal há nisso? Os gordos são belos.
-
Setenta quilos.
-
Então, venha.
-
Onde?
-
Você tem o mesmo peso do homem que matou Barrios, segundo declaração de Estela
na delegacia.
-
E isso me torna um suspeito?
-
Vamos ao apartamento.
À
porta do edifício, Adão identificou-se a um guarda, que vigiava o lugar desde o
assassinato. Não foi fácil convencê-lo a deixar que o detetive e o jornalista
entrassem no apartamento.
-
Estamos aqui. E agora, Adão?
-
Você vai fazer uma coisa, Lauro: saltar do peitoril da janela para o corredor.
Abriram a janela e o jornalista espiou.
-
Altinho. Posso sentar no peitoril?
-
Não, suba nele e salte.
-
E se o pára-quedas não abrir?
-
Não salte ainda. Vou para a sala. Aguarde minhas ordens, então salte e corra
até a entrada do edifício.
Adão
voltou para a sala, deu as instruções e ficou atento. Ouviu o baque dos pés de
Lauro no cimento e, em seguida, seus passos rumo ao portão. Pouco depois, Lauro
voltou à sala.
-
O que quer mais? Sei plantar bananeira.
-
Como atleta amador você não pode ser pago. Mas vou lhe fornecer uma bela
história para sua indigna coluna. Não tire os olhos de mim. Agora vamos à
gravadora Metrópole.
-
Por quê?
-
Porque quero pôr na cadeia a pessoa que matou o melhor intérprete de
"Perfume de Gardênia". Quem fez isso é meu inimigo pessoal. Não se
apaga assim um parágrafo da História.
Adão
e Lauro foram à gravadora, onde o detetive conversou com o diretorartístico.
Sim, Barrios ia gravar mesmo um elepê. Esperavam vendê-lo para uns cem mil
saudosistas. E o homem fez mais, forneceu certo endereço que Flores considerou
importantíssimo.
Quando
os jornais revelaram o assassino de Julio Barrios, a melhor reportagem certamente
foi a de Lauro de Freitas, por dentro de tudo. Adão, claro, ficou muito
orgulhoso com a literatura que o amigo deitou sobre ele. O gordo era um saco de
vaidade. Naquele dia saiu cedo à rua para receber os louros. O porteiro do seu
hotel de duas estrelas foi o primeiro a cumprimentá-lo com uma reverência. Logo
depois gravava uma entrevista para o rádio e uma declaração para a tevê.
Mas
o local onde seus casos mais repercutiam era mesmo o "Yes Club",
sempre ouvidos com degustada atenção por aquela senhora de cabelos prateados e
piteira longa, a Bianca, e pelo grupo de freqüentadores mais íntimos. Aí sim,
Adão assumia por inteiro o phy sique du rôle de detetive internacional. Na
véspera, antes de que os jornais publicassem a solução do enigma, Adão esteve
lá para contar tudo em primeira mão.
-
Em que momento você começou a puxar o fio da meada? - perguntou a dona da casa.
-
Sou um homem do visual, da imagem - disse Flores. - Aquele cuba-libre sem gelo
me chamou logo a atenção. Julio gostava de colocar verdadeiros icebergs nas
suas bebidas. Como não havia mais gelo e o copo voltara à temperatura ambiente,
deduzi que o crime tinha acontecido há algum tempo. Uma hora, talvez. ..
-
Não me parece argumento suficiente para levar a conclusões - disse um homem,
provavelmente um desses invejosos que estão em toda parte.
-
Certamente não foi minha única dedução. Havia aquela tesoura, arma ocasional
demais para servir a um criminoso determinado, que fazia ameaças telefônicas.
O
mesmo freguês, que se recusava a bater palmas para Adão, voltou a obstar:
-
Usar armas da casa é um meio para implicar inocentes. Os romances policiais
sempre relatam coisas assim.
-
Uma tesoura não oferece segurança - replicou Flores. - A não ser que o
criminoso tivesse sido um alfaiate...
Bianca
tinha outra pergunta a fazer:
-
Houve roubo? As gavetas estavam todas abertas, não?
-
Elas não foram simplesmente abertas, algumas estavam vazias. E sabem quem as
esvaziara? O próprio Julio.
-
O que havia nessas gavetas? - perguntaram. - Tóxico?
-
Roupas, simplesmente roupas. Encontrei-as em uma pequena mala. Mas me deixem
prosseguir. O que consolidou minhas suspeitas foi uma questão de acústica.
-
Disse acústica?
-
Disse. Aí o nosso Lauro ajudou muito. Seu peso equivale ao do homem visto por
Estela. Fui com Lauro ao apartamento de Julio e pedi que saltasse da janela e
depois corresse até o portão. Eu me plantei na sala, como na noite do crime. E
ouvi perfeitamente o baque e depois os passos de seus pés no cimento. Como
aquela noite eu não ouvira nada?
-
Então você teve a certeza - adiantou-se Bianca.
-
Faltavam ainda os motivos. Na gravadora fiquei sabendo que Barrios andava
aparecendo na companhia de uma jovem, seu novo amor. E obtive o endereço dela,
pois era para ela que telefonavam quando precisavam contactá- lo. Fui
procurá-Ia. Estava muito assustada com tudo, mas acabou se abrindo. Ela e
Barrios iam viver juntos. Apenas faltava-lhe fazer a mala.
-
E a confissão, veio fácil? - perguntou Branca, equilibrada em sua piteira.
-
Aconteceu na própria polícia onde fora olhar alguns suspeitos na passarela.
Pretexto. O delegado já aceitara meu ponto de vista. Eu próprio lhe contei
minha versão: Estela surpreendera Julio quando jogava roupas na mala para
sumir. Espremeu-o. Ele confessou. Ia deixá-Ia por outra mulher. O amor é algo
inesperado e o coração é fraco. Ela não gostou da letra desse bolero. Julio
vivia praticamente à custa dela. Viu a tesoura sobre a mesa. Golpeou-o pelas
costas. Depois do choque, pensou em livrar a cara. Havia terra numa floreira.
Levou um pouco para o peitoril da janela. Deixou as gavetas abertas como
estavam. E serviu um cuba-libre ao defunto. Antes ou depois lembrou-se de Adão
Flores. Ele tinha mania de bancar o detetive. Julio sempre ria-se disso.
Decidiu ir buscá-lo. Se o encontrasse, a encenação seria perfeita. Quanto à
segunda ponta de cigarro, ela mesma esclareceu que a apanhara no
"Yes", enquanto esperava pelo detetive. Queria que ficasse bem claro
que outra pessoa estivera com Julio. Enquanto isso o gelo do último cuba-libre
derretia, pois o cadáver não podia renová-lo.
-
Ela agiu como uma perfeita atriz - comentou Bianca. - E que grande talento!
Adão Flores concordou:
- Apenas participei como ator convidado.
O ÚLTIMO CUBA-LIBRE
MARCOS REY (1925 –1999 I Brasil)
Há
anos, numa resenha sobre Malditos Paulistas, para a revista Istoé, chamei-o de
"Humphrey Bogart da literatura brasileira". Marcos Rey gostou da
comparação. Porque há alguma coisa de filmes 8, de romances americanos
"baratos" (pulp fiction) da década de 30 (Horace McCoy, por exemplo)
na ficção deste paulista que, além de romancista e contista paulistano como
poucos, foi roteirista de rádio, televisão (a primeira série de O Sitio do
Picapa u Amarelo foi escrita por ele) e cinema. Éd os poucos brasileiros que
enfrentaram o desafio de transformar a "subliteratura" em literatura.
Policial e brasileira, como se vai ver.
A noite dos desesperados - Horace
McCoy
They Shoot Horses, Don't They?
Official Trailer #1 - Bruce Dern Movie (1969) HD
They Shoot Horses Dont They 1969
Sítio do Picapau Amarelo - 1977,
"o começo"
Sítio do Picapau Amarelo -O Saci
Sítio do Pica-Pau Amarelo O Saci
1953 COMPLETO HD
Referência
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