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- Nos sábados fechamos ao meio-dia - disse a loura
do escritório da agência de imóveis. - Assim, se depois disso estiver ainda com
a chave, por favor, deixe-a cair na caixa de correspondência. É a única que
temos, e talvez outras pessoas queiram visitar o imóvel na segunda-feira.
Assine aqui, por favor, senhor.
0 "senhor" fora pronunciado de má vontade,
como um pensamento tardio. 0 tom dela era reprovativo. Não acreditava que ele
fosse comprar o apartamento, não esse velho surrado, com seu ar de afetada e
espúria distinção, a voz secarrona. Na função dela, em pouco tempo adquiria-se
um faro especial para o legítimo interessado. Ernest Gabriel. Um nome estranho,
meio comum e meio fantasioso.
Não obstante, ele pegou a chave com polidez e
agradeceu-lhe o trabalho. Ela pensou que não era trabalho nenhum. Deus sabia
que eram bem poucos os que se interessavam por aquela pequena e sórdida
lixeira, não ao preço que estavam pedindo. Ele podia até ficar uma semana com a
chave, que pouco lhe importaria.
E tinha razão. Gabriel não estava a fim de comprar,
mas somente de ver. Era a primeira vez que voltava ali, desde que tudo acontecera,
dezesseis anos antes. Não vinha como peregrino nem penitente. Chegara movido
por alguma compulsão que não se dera ao trabalho de analisar. Estava indo
visitar seu único parente vivo, uma tia idosa que fora recolhida recentemente a
uma enfermaria geriátrica. Ele nem chegara a perceber que o ônibus passava pelo
apartamento.
De repente, no entanto, rodavam aos solavancos
através de Camden Town, e a rua pareceu-lhe familiar, como uma fotografia
ajustando-se ao foco. Com um estremecimento de surpresa, ele reconheceu a dupla
fachada da loja e do apartamento sobre ela. Havia o anúncio de um agente
imobiliário na janela. Quase sem pensar, ele descera do ônibus na parada
seguinte, voltara para verificar o nome e caminhara cerca de meio quilômetro
até a imobiliária. Aquilo lhe parecera tão natural e inevitável como sua viagem
diária de ônibus para o trabalho.
Vinte minutos mais tarde, introduzia a chave na
fechadura da porta da frente e entrava no vazio abafadiço do apartamento. As
paredes encardidas ainda retinham o cheiro de cozinha. Havia diversos envelopes
espalhados sobre o linóleo gasto, sujos e pisoteados por visitantes anteriores.
A lâmpada pendia nua no vestíbulo, e a porta dando para a sala de estar estava
aberta. À direita ficava a escada, à esquerda, a cozinha.
Gabriel parou um instante, depois foi até a cozinha.
Das janelas, encortinadas até metade com algodão precisando lavar, ele ergueu
os olhos para o grande edifício negro nos fundos do apartamento, uma parede
lisa, com exceção de uma janelinha quadrada bem alta, no quinto pavimento.
Daquela janelinha, dezesseis anos atrás, é que ele espiara Denis Speller e
Eileen Morrisey representarem sua pequena e banal tragédia até o fim.
Gabriel não tinha o direito de espiá-los, como
tampouco tinha qualquer direito de ficar no prédio depois das dezoito horas.
Este havia sido o ponto essencial de seu terrível dilema. Acontecera por acaso.
O Sr. Maurice Bootman o incumbira, como arquivista da firma, de examinar os
papéis do falecido Sr. Bootman na salinha do andar de cima, para o caso de
haver alguma coisa que devesse ser arquivada. Não eram papéis confidenciais ou importantes
- estes já haviam sido examinados pela família e procuradores da firma, meses
antes. Agora tratava-se apenas de uma miscelânea, uma coleção de memorandos
amarelados e antigos, velhas contas, recibos e desbotados recortes de jornal,
que tinham sido enfeixados e colocados na mesa de trabalho do velho Sr.
Bootman. Em vida, ele havia sido um grande colecionador de ninharias.
Entretanto, no fundo da última gaveta do lado
esquerdo Gabriel tinha encontrado uma chave. Foi por casualidade que a
experimentou na fechadura do armário de canto. E, no armário, Gabriel descobriu
a pequena mas selecionada coleção de pornografia do finado Sr. Bootman.
Ele sabia que tinha de ler os livros; não apenas
aproveitando-se de minutos sub-reptícios, com um ouvido atento a pisadas na
escada ou ao gemido do elevador aproximando-se, sempre temendo que fosse notada
a sua ausência da sala de arquivos em que trabalhava. Não, teria que lê-los em
privacidade e sossego. Então, idealizou um plano.
Não foi difícil. Como pessoa de confiança entre os
empregados, ele tinha uma das chaves Yale para a porta lateral onde eram
entregues mercadorias. À noite, era trancada por dentro pelo porteiro, antes de
encerrado seu expediente. Não foi difícil para Gabriel, sempre dos últimos a
sair, encontrar oportunidade de destrancar os ferrolhos, antes de ir embora
pela porta principal, em companhia do porteiro. Arriscava-se a isso apenas um
dia na semana, e o escolhido foi a sexta-feira.
la depressa para casa, fazia sua refeição solitária
ao lado do bico de gás em seu sala-quarto, depois voltava ao prédio e nele
entrava pela porta do lado. Havia necessidade apenas de, na manhã de
segunda-feira, ficar esperando que o escritório abrisse e postar-se entre os
primeiros que entravam, para poder trancar a porta lateral antes que o porteiro
fizesse a visita ritual, a fim de destrancá-Ia para as entregas daquele dia.
Aquelas noites de sexta-feira tornaram-se uma
desesperada, embora vergonhosa, alegria para Gabriel. O padrão era sempre o
mesmo. Ele se sentava encolhido na baixa poltrona de couro do velho Sr. Bootman,
diante da lareira, os ombros encurvados sobre o livro em seu colo, os olhos
acompanhando a poça de luz da lanterna que ia movendo acima de cada página.
Gabriel nunca ousara acender a luz da sala e tampouco usava a lareira a gás,
inclusive nas mais frias noites. Receava que o silvo do fogo pudesse encobrir o
som de pés aproximando-se, que o clarão talvez aparecesse através das grossas
cortinas da janela ou que,
de algum modo, o cheiro do gás pairando ali dentro
até a manhã da segunda feira seguinte o denunciasse. Sentia um medo mórbido de
ser descoberto, mas esse medo aumentava o excitamento de seu secreto prazer.
Foi na terceira sexta-feira de janeiro que os viu
pela primeira vez. Fazia uma noite amena, porém estava nublada e sem estrelas.
A chuva que caíra mais cedo enlameara as calçadas e borrava os garranchos dos
cartazes que anunciavam as manchetes dos jornais. Gabriel limpou os pés
cuidadosamente antes de subir para o quinto andar. A claustrofóbica sala
recendia a azedo e poeira, sendo o ar ali dentro mais frio que o da noite lá
fora. Ele refletiu se ousaria abrir a janela, para deixar penetrar um pouco da
suavidade do céu lavado pela chuva.
Então, viu a mulher. Abaixo dele ficavam as entradas
dos fundos das duas lojas, cada uma encimada por um apartamento. Um dos
apartamentos tinha as janelas tapadas com tábuas, porém o outro dava a
impressão de ser habitado. Chegava-se a ele por um lance de degraus de ferro,
que levavam a um pátio asfaltado. Ele viu a mulher ao clarão de uma lâmpada de
iluminação da rua quando, parada ao pé dos degraus, remexia o interior de sua
bolsa. Então, como que ganhando decisão, ela subiu depressa os degraus e quase
atravessou correndo o pátio, até a porta do apartamento.
Ele espiou, enquanto a mulher se confundia com as sombras
da entrada, girava rapidamente a chave na fechadura e desaparecia de vista.
Gabriel teve tempo apenas de reparar que ela vestia uma capa impermeável de tom
pálido, abotoada até em cima sob uma cabeleira clara, e levava uma sacola de barbante,
como se contendo mantimentos. Aquilo parecia uma chegada em casa
estranhamente furtiva e solitária.
Gabriel esperou. Quase imediatamente viu a luz ser
acesa no aposento à esquerda da porta. Talvez ela estivesse na cozinha. Ele
podia ver-lhe a sombra esfumada indo para cá e para lá, encurvando-se e depois
alongando-se. Adivinhou que a mulher tirava os mantimentos da sacola. Então, a
luz do aposento apagou-se.
Durante alguns instantes o apartamento ficou na
obscuridade. Depois surgiu luz na janela do andar de cima, agora mais viva,
permitindo-lhe ver melhor a mulher. Ela talvez ignorasse o quanto melhor era
percebida. As cortinas estavam fechadas, porém eram finas. Talvez os
proprietários não esperassem ser espionados e tinham ficado descuidados. Embora
a silhueta da mulher fosse apenas um leve borrão, Gabriel podia ver que
carregava uma bandeja Provavelmente ia comer seu jantar na cama. Agora ela se
despia.
Ele podia vê-la erguendo as peças de roupa acima da
cabeça e torcendo-se para ficar livre das meias, depois tirar os sapatos. De
repente, a mulher chegou bem perto da janela, deixando perceptível o contorno
do corpo. Parecia estar vigiando e escutando. Gabriel percebeu que continha a
respiração. Então ela se afastou, e a claridade da luz diminuiu. Sem dúvida apagara
a lâmpada do teto e estava usando a da cabeceira. O aposento agora ficara
iluminado por um clarão rosado e mais suave, dentro do qual a mulher se movia,
insubstancialmente, como um sonho.
Gabriel permaneceu com o rosto pressionado contra a
janela fria, ainda espiando. Pouco depois das vinte horas, o rapaz chegou.
Gabriel sempre pensou nele como "o rapaz". Mesmo daquela distância,
eram aparentes a sua juventude, sua vulnerabilidade. Aproximou-se do
apartamento com mais firmeza do que a mulher, mas também depressa, fazendo uma
pausa no alto dos degraus, como que para avaliar a extensão do pátio lavado
pela chuva.
Ela devia estar esperando que ele batesse à porta.
Deixou-o entrar imediatamente, a porta mal se abrindo. Gabriel sabia que ela estava
nua, quando o deixou entrar. E então, eram duas as sombras no andar de cima,
sombras que se encontravam e separavam, que tornavam a unir-se antes de se
moverem e juntarem, até a cama, saindo do campo visual de Gabriel.
Na sexta-feira seguinte, ele espiou para ver se os
dois apareciam novamente. Eles chegaram, com a mesma regularidade, a mulher
primeiro, às dezenove e vinte, o rapaz quarenta minutos mais tarde. Mais uma
vez Gabriel permaneceu rigidamente atento em seu posto de observação, enquanto
a luz na janela do andar de cima era acesa, depois diminuindo de intensidade.
As duas figuras nuas, vistas difusamente por trás das cortinas, moviam-se de um
lado para outro, juntavam-se e separavam-se, fundiam-se e afastavam-se, na
própria ritualística de uma dança.
Nesta sexta-feira, Gabriel esperou até que eles
fossem embora. O rapaz saiu primeiro, esgueirando-se rapidamente pela porta entreaberta
e quase saltando pelos degraus abaixo, como se em exultante alegria. A mulher o
seguiu cinco minutos mais tarde, trancando a porta ao sair e caminhando a toda
pressa pelo asfalto, de cabeça baixa. Depois disso, ele os espiou todas as
sextas-feiras. Aqueles dois o mantinham mais fascinado do que os livros do Sr.
Bootman. A rotina de ambos praticamente não mudava. Às vezes o rapaz chegava um
pouco atrasado, e Gabriel via a mulher esperando por ele imóvel, por trás das
cortinas do quarto. Também ele ficava com a respiração suspensa, partilhando a
agonia da impaciência da mulher, ansiando para que o rapaz chegasse. Em geral,
ele vinha com uma garrafa debaixo do braço, mas certa semana a trouxera em uma
cesta para vinho, que era carregada com enorme cuidado. Talvez fosse algum
aniversário a comemorar, uma noite especial para eles. A mulher sempre levava a
sacola de mantimentos e sempre os dois comiam juntos no quarto.
Sexta-feira após sexta-feira, Gabriel se postava no
escuro, de olhos fixos naquela janela do andar de cima, esforçando-se em
decifrar os contornos dos dois corpos nus, retratando o que deviam estar
fazendo.
Fazia sete semanas que eles se encontravam, quando
aquilo aconteceu. Nessa noite, Gabriel chegou tarde ao prédio. Seu ônibus
costumeiro não estava rodando e o primeiro a chegar vinha lotado. Quando
finalmente ele chegou ao seu posto de observação, já havia luz acesa no quarto.
Apertou o rosto contra a vidraça, empanando-a com sua respiração quente.
Esfregou-a rapidamente com o punho do casaco, a fim de limpá-la, e tornou a
espiar. Por um momento, julgou que havia duas figuras no quarto, mas aquilo
certamente seria algum truque da luz. O rapaz só deveria chegar daí a uns
trinta minutos, porém a mulher tinha sido pontual, como sempre.
Vinte minutos mais tarde, ele foi ao lavatório, no
andar de baixo. Havia ficado muito mais confiante durante as últimas poucas
semanas e agora se movia pelo prédio, silenciosamente, usando apenas sua
lanterna como luz, mas com quase a mesma segurança de durante o dia. Ao
retornar à janela, seu relógio acabara de marcar as vinte horas e,
inicialmente, imaginou ter perdido a chegada do rapaz. Não, a figura ágil nesse
instante corria pelos degraus acima e cruzava o asfalto até o abrigo da
entrada.
Gabriel ficou espiando, enquanto ele batia e
esperava que a porta se abrisse. Entretanto, ela continuou fechada. A mulher
não apareceu. Havia luz no quarto, mas nenhuma sombra movendo-se atrás das
cortinas. O rapaz tornou a bater. Gabriel chegava a detectar o tremor dos nós
dos dedos contra a porta. Ele esperou de novo. Então, recuando, olhou para a
janela iluminada. Talvez estivesse arriscando-se a um chamado em voz baixa.
Gabriel nada podia ouvir, mas sentia a tensão daquela figura à espera.
O rapaz bateu mais uma vez. E mais uma vez não houve
resposta. Gabriel ficou espiando e sofrendo com ele até que, às vinte horas e
vinte minutos, o rapaz finalmente desistiu e deu meia-volta. Gabriel também
estirou as pernas com cãibras e saiu para a noite. O vento aumentava e uma lua
recente passeava através das nuvens esfiapadas. Começava a esfriar. Ele não
usava casaco, cujo calor lhe fazia falta. Encolhendo os ombros contra a mordida
do vento, compreendeu ser aquela a última sexta-feira que iria ao prédio fora
de horas. Para ele, como para aquele desolado rapaz, isto era o fim de um
capítulo.
Gabriel leu a primeira notícia do assassinato em seu
jornal matinal, a caminho do trabalho na segunda-feira seguinte. Imediatamente
identificou a foto do apartamento, embora lhe parecesse curiosamente estranho,
com o punhado de detetives à paisana conferenciando junto à porta e o
fleumático policial uniformizado no alto dos degraus.
Até aí, a história era superficial. Uma Sra. Eileen
Morrisey, de trinta e quatro anos, havia sido encontrada morta a facadas em um
apartamento de Camden Town, já alta noite de domingo. A descoberta fora obra
dos inquilinos, Sr. e Sra. Kealy, que voltavam de uma visita aos pais do Sr.
Kealy, chegando à casa bem tarde no domingo. A morta, mãe de duas gêmeas com
doze anos, era amiga da Sra. Kealy. O inspetor-chefe, detetive William
Holbrook, estava incumbido da investigação. Sabia-se que a morta havia sido
violentada.
Gabriel dobrou o jornal com o mesmo cuidado de todos
os dias. Naturalmente, teria que contar à polícia o que vira. Não podia deixar
um homem inocente sofrer, pouco importando os inconvenientes para si mesmo. Era
calidamente satisfatória a certeza de sua intenção, de seu espírito público endereçado
à justiça. Pelo restante do dia ele se moveu vagarosa e silenciosamente em
redor de seus arquivos, com a secreta complacência do homem disposto ao
sacrifício.
De algum modo, no entanto, seu plano inicial de
ligar para um posto policial quando fosse para casa deu em nada. Não havia
nenhum motivo para agir precipitadamente. Se prendessem o rapaz, então falaria.
Por enquanto, seria ridículo prejudicar sua reputação e pôr seu emprego em
risco, sem ao menos saber se o rapaz era suspeito. Talvez a polícia nunca
ficasse sabendo de sua existência. Comunicar agora o que sabia poderia apenas concentrar
suspeitas sobre o inocente. Um homem prudente aguardaria. Gabriel decidiu ser
prudente.
O rapaz foi preso três dias mais tarde. Gabriel
tornou a ler a respeito, em seu jornal matutino. Desta vez não havia foto, somente
alguns detalhes. A notícia tinha que competir com a fuga domiciliar de um
membro da sociedade e um grave desastre aéreo, não tendo saído na primeira
página. Dois centímetros e meio de letras impressas saltavam brevemente à
vista: "Denis John Speller, um ajudante de açougueiro, de dezenove anos,
que forneceu um endereço em Muswell Hill, foi hoje acusado pelo assassinato da
Sra. Eileen Morrisey, a mãe das gêmeas de doze anos, esfaqueada na última
sexta-feira, em um apartamento em Camden Town."
Sendo assim, a polícia agora sabia precisamente qual
tinha sido a hora da morte. Talvez fosse o momento de ir procurá-Ia. No
entanto, como ter certeza de que esse Denis Speller era o jovem amante que ele
tinha espiado, naquelas anteriores noites de sexta-feira? Uma mulher daquelas -
bem, poderia ter tido qualquer número de homens. Nenhuma foto do acusado seria
publicada em qualquer jornal, antes do julgamento. Entretanto, mais informações
surgiram da audiência preliminar. Gabriel decidiu esperar por ela. Afinal de
contas o acusado talvez nem fosse levado a julgamento.
Por outro lado, tinha que levar a si mesmo em
consideração. Houvera tempo para refletir em sua posição. Se a vida do jovem
Speller estivesse em perigo, então, claro, Gabriel contaria o que tinha visto.
Isto, no entanto, significaria o fim de seu emprego na Bootman's. Pior ainda,
jamais conseguiria outro. O Sr. Maurice Bootman tomaria providências nesse
sentido. Ele, Gabriel, ficaria estigmatizado como um indivíduo de mente suja,
um voyeur rasteiro, um espreitador que estava desejando comprometer seu meio de
vida com uma ou duas horas lendo um livro censurável e uma oportunidade para
espionar a felicidade de outras pessoas. O Sr. Maurice ficaria aborrecido
demais com a publicidade para perdoar o homem que a provocara.
Além disso, seria alvo de zombaria no restaurante da
firma. O caso se tornaria a melhor pilhéria em muitos anos, cômica, patética e
fútil. O pedante, respeitável e puritano Ernest Gabriel, finalmente descoberto!
Eles nem mesmo lhe dariam crédito por dizer o que sabia. Simplesmente não lhes
ocorreria que ele poderia perfeitamente ter ficado de boca fechada.
Se pelo menos pudesse pensar em um bom motivo para a
sua presença no prédio aquela noite! Entretanto, não havia nenhum. Dificilmente
poderia alegar que ficara para trabalhar até mais tarde, quando fizera toda
questão de sair junto com o porteiro. De nada adiantaria dizer que voltara mais
tarde para atualizar seus arquivos, pois estes sempre estavam em dia, como ele
se orgulhava de apontar. Sua própria eficiência o contrariava. Por outro lado,
Gabriel não era bom em mentiras. A polícia jamais aceitaria sua história sem
investigar. Depois de já terem ficado tanto tempo trabalhando naquele caso, era
difícil acreditar que dessem boa acolhida à sua revelação de novas evidências.
Gabriel podia visualizar o círculo de rostos severos e acusadores, a civilidade
oficial mal dissimulando a aversão e desdém que sentiam. Não fazia sentido
antecipar tal provação, antes de ter certeza dos fatos.
Após a audiência preliminar, no entanto, finda a
qual Denis Speller foi reconduzido à prisão para posterior julgamento, os
mesmos argumentos pareceram igualmente válidos. A esta altura já sabia que
Speller era o amante visto por ele. De fato, nunca houvera muito lugar para
dúvidas. A esta altura, também, os contornos do caso eram aparentes para a
Coroa. A acusação buscaria provar que se tratava de um crime passional e que o
rapaz, atormentado pela ameaça da amante em abandoná-lo, a tinha matado por
ciúmes ou vingança. O acusado, por sua vez, negaria ter entrado no apartamento
aquela noite, insistiria em declarar que tinha batido à porta e ido embora. Só Gabriel
poderia confirmar sua história. Contudo, ainda era prematuro falar.
Ele resolveu esperar pelo julgamento. Dessa maneira,
avaliaria a força da Coroa no caso. Se houvesse uma probabilidade de o veredito
ser "Não Culpado", ele poderia ficar calado. Se a situação ficasse
arriscada, então havia um excitamento, uma medrosa fascinação ante a idéia de
levantar-se em meio ao silêncio do tribunal lotado e dar o seu testemunho
diante de todos os presentes. O questionamento, as críticas e a notoriedade
viriam mais tarde. Ele, no entanto, já teria tido seu momento de glória.
Ficou surpreso e um tanto desapontado pelo tribunal.
Esperara um ambiente mais grandioso, mais dramático para a justiça, do que
aquela sala moderna, prática e séria. Tudo era calmo e ordenado. Não havia uma
multidão à porta, lutando por assento. Aquele nem mesmo era um julgamento
popular.
Deslizando para seu assento na parte dos fundos,
Gabriel espiou em torno, a princípio apreensivamente, depois com mais confiança.
Entretanto, não precisaria preocupar-se. Ali não havia nenhum conhecido. Em
verdade, era um amontoado monótono de pessoas, que dificilmente mereceriam
presenciar, pensou ele, o drama que ia ser representado diante delas. Alguns
dos presentes davam a impressão de que poderiam ser colegas de Spel ler ou
vizinhos de rua. Todos pareciam constrangidos e mostravam o ar levemente
furtivo de quem se encontra em ambientes desacostumados ou intimidantes. Havia
uma mulher magra, de roupas pretas, chorando caladamente em um lenço. Ninguém prestava
atenção nela; ninguém a consolava.
De quando em quando, uma das portas no fundo da sala
se abria silenciosamente e um recém-chegado se esgueirava para seu assento, de maneira
quase furtiva. Quando isto acontecia, a fileira de rostos se virava momentaneamente
para ele, sem interesse, sem identificação, e os olhos voltavam a concentrar-se
na esguia figura ocupando o banco de réus.
Gabriel também olhava fixamente para o acusado. A
princípio, ousava apenas olhares passageiros, desviando o rosto de repente,
como se cada espiada fosse um risco desesperado. Era improvável que os olhos do
prisioneiro encontrassem os seus, que ele soubesse, de algum modo, estar ali o
homem que poderia salvá-lo e, portanto, fazer-lhe um apelo angustiado. Após
arriscar dois ou três espiadas, no entanto, Gabriel percebeu que nada tinha a recear.
Aquela figura solitária não via ninguém, não se preocupava com quem quer que
fosse, além de consigo mesma. Tratava-se apenas de um rapaz desnorteado e aterrorizado,
de olhos voltados para dentro de si próprio, para algum inferno particular. Ele
parecia um animal acuado, sem esperança e chances de fuga.
O juiz era rotundo, de rosto corado, o queixo
mergulhado nas faixas de gordura do pescoço. Tinha mãos pequenas, que
repousavam sobre a mesa à sua frente, exceto quando ele tomava notas. Então, o
Procurador da Coroa parava de falar por um momento, para depois continuar com
mais vagar, como se ansioso em não apressar Sua Excelência, fitando-o como pai
preocupado em explicar algo com lenta deliberação a um filho não muito
inteligente.
Não obstante, Gabriel sabia onde se situava o poder.
As mãos rechonchudas do juiz, entrelaçados os dedos sobre a mesa, como a
paródia de uma criança rezando, tinham a vida de um homem dentro de seu
domínio. Em todo o tribunal havia apenas uma pessoa com mais poder do que
aquela figura de faixa escarlate, importante sob o brasão esculpido. E era ele,
Gabriel. Tal percepção chegou-lhe em um surto de exultação, imediatamente
embriagadora e enchendo-o de satisfação. Ele acalentou consigo mesmo esse
conhecimento, triunfalmente. Era uma nova sensação, aterrorizantemente doce.
Olhou em torno, para os rostos solenes e
observadores, perguntando-se como ficariam eles, caso se pusesse em pé e
declarasse o que sabia. Falaria com firmeza, confiante. Eles não conseguiriam
amedrontá-lo. Diria: "Excelência, o acusado é inocente! Ele bateu à porta
e foi embora. Eu, Gabriel, fui testemunha disso!"
O que aconteceria então? Era impossível prever. O
juiz suspenderia a sessão, para que pudessem ir a seus aposentos e ouvi-Io em
audiência privada? Ou Gabriel seria logo chamado para dar seu depoimento no
banco das testemunhas? Uma coisa era certa -não haveria estardalhaço, nenhuma
histeria.
Entretanto, supondo-se que o juiz se limitasse a expulsá-lo
da sala, e que a autoridade fosse apanhada desprevenida demais para acatar o
que Gabriel tinha dito. Ele podia ver o juiz inclinando-se para diante com
irritação, a mão no ouvido, enquanto os policiais no fundo da sala avançariam
em silêncio para arrastar dali o infrator. Com certeza, naquele calmo e
asséptico ambiente, onde a justiça em si parecia um ritual acadêmico, a voz da
verdade seria uma mera e vulgar intrusão. Ninguém lhe daria crédito. Ninguém o
ouviria. Eles haviam montado aquele elaborado cenário para
que sua peça fosse representada até o fim. Não iriam
agradecer-lhe por estragar tudo agora. O tempo de falar já passara.
Ainda que
acreditassem nele, agora não teria crédito algum por intervir. Seria acusado de
deixar seu depoimento para tão tarde, de permitir que um homem inocente
chegasse tão perto do patíbulo. Isso, se Speller fosse inocente, claro está. E
quem poderia afirmá-lo? Diriam que Speller batera à porta e tinha ido embora, apenas
para voltar mais tarde e praticar o crime. Ele, Gabriel, não ficara na janela o
tempo todo, esperando para ver. Portanto, seu sacrifício seria em vão.
Podia também ouvir as vozes sarcásticas dos colegas
do escritório: "Vá a gente confiar no velho Gabriel, que deixa as coisas
para o último minuto! Covarde nojento! Tem lido muitos livros obscenos
ultimamente, Arcanjo?" A firma o poria no olho da rua sem, ao menos, ele
ter o consolo de fazer boa figura aos olhos do público.
Oh, e ainda motivaria manchetes, sem dúvida. Podia
até imaginá-las: Sensação em Old Bailey {18} Homem Confirma Álibi de Acusado!
Somente, não se tratava de álibi. O que ficaria provado, em realidade? Todos o
encarariam como um infrator da moral e dos bons costumes, um pequeno e patético
voyeur, covarde demais para ter ido à polícia mais cedo. E, ainda assim, Denis
Speller seria enforcado.
Uma vez passado o momento da tentação e já
absolutamente certo de que não ia falar, Gabriel começou a divertir-se. Afinal
de contas, não era todo dia que alguém podia apreciar a justiça britânica em
atividade. Ele ouviu, anotou, avaliou. Aprovou o procurador da Coroa. Com sua
testa alta, nariz aquilino, rosto ossudo e inteligente, parecia muito mais
distinto do que o juiz. Aquela era a aparência que um advogado famoso devia
ter. Ele expunha seu caso sem paixão, quase sem demonstrar interesse.
Entretanto, era assim que funcionava a lei, Gabriel bem sabia. O procurador não
tinha o dever de trabalhar por uma condenação. Seu papel era expor, com
eqüidade e justeza, o caso pela Coroa.
Ele convocou suas testemunhas. Sra. Brenda Kealy,
esposa do inquilino do apartamento. Uma prostitutazinha comum, loura e
elegantemente vestida, se é que Gabriel já vira uma. Oh, ele conhecia bem o
tipo, sem dúvida. Podia adivinhar o que sua mãe diria sobre ela. Qualquer um podia
perceber em que ela estava interessada. E, pelo seu jeito, devia ser
regularmente bem servida também nesse setor. Trajada para um casamento. Uma
leviana, se é que já vira uma!
Fungando em seu lenço, e respondendo às perguntas do
procurador em voz tão baixa que o juiz precisou pedir-lhe que falasse mais
alto, ela disse que sim, que concordara em emprestar o apartamento a Eileen,
nas noites de sexta-feira. Ela e seu marido visitavam os pais dele no Southend,
todas as sextas-feiras. Sempre partiam assim que ele fechava a loja. Não, seu
marido ignorava o arranjo. Ela dera à Sra. Morrisey a chave sobressalente do
apartamento, sem consultá-lo. Que soubesse, não existia outra chave a mais. Por
que fizera isso? Bem, tinha pena de Eileen, que a pressionara. Ela achava que
os Morrisey não viviam bem.
Aqui, o juiz interveio delicadamente, lembrando que
a testemunha devia limitar-se a responder às perguntas do procurador. Ela se
virou para ele.
- Eu estava apenas querendo ajudar Eileen,
Excelência.
Então, surgiu a carta. Foi passada para a lamuriosa
mulher no banco das testemunhas e ela confirmou que a recebera da Sra.
Morrisey. Lentamente, a carta foi recolhida pelo funcionário do tribunal e
majestaticamente transferida ao procurador, que começou a lê-Ia em voz alta:
Brenda querida,
Afinal, estaremos mesmo no apartamento, na
sexta-feira. Achei melhor comunicar-lhe, caso você e Ted mudem seus planos.
Entretanto, definitivamente, será a última vez. George está começando a
desconfiar e devo pensar nas crianças. Eu sempre soube que isto um dia ia
terminar. Obrigada por ter sido tão amiga.
Eileen
A voz comedida, de classe superior, cessou. Olhando
para os jurados, o procurador baixou a carta lentamente. O juiz inclinou a
cabeça e fez outra anotação. Houve um momento de silêncio no tribunal. Então, a
testemunha foi dispensada.
A sessão prosseguiu no mesmo tom. Houve o jornaleiro
do final da Moulton Street que se lembrava de Speller comprando um Evening
Standard pouco antes das vinte horas. O acusado carregava uma garrafa debaixo
do braço e parecia muito satisfeito. Ele não tinha dúvidas de que seu freguês
era o acusado.
Houve a mulher do dono do bar Sol Nascente, na
esquina de Moulton Mews com High Street, que declarou haver servido um uísque
ao prisioneiro, pouco depois de vinte horas e meia. Ele não ficara lá muito
tempo, apenas o suficiente para beber seu uísque. Dava a impressão de muito
perturbado. Sim, ela tinha certeza absoluta de que se tratava do acusado. Um
bom punhado de fregueses poderia confirmar seu depoimento. Gabriel perguntou-se
por que o procurador se preocupara em convocá-los, até perceber que Speller
tinha negado a visita ao Sol Nascente e também negara que precisava de um
drinque.
Houve George Edward Morrisey, descrito como
empregado de uma agência imobiliária, homem de rosto fino, lábios comprimidos,
rígido em seu melhor terno de sarja azul. Ele declarou que seu casamento tinha
sido feliz, que de nada soubera. Sua esposa lhe havia dito que passava as
primeiras horas das noites de sexta-feira aprendendo cerâmica, no Conselho
Municipal da cidade. Soaram risinhos abafados no tribunal. O juiz franziu o
cenho.
Em resposta
às perguntas do procurador, Morrisey disse que ficava em casa, cuidando das
crianças, que ainda eram novas demais para serem deixadas sozinhas à noite.
Sim, permanecera em casa na noite em que sua esposa fora morta. Sua morte fora
um grande abalo para ele. A ligação de sua esposa com o acusado significara um
terrível choque. Ele pronunciou a palavra "ligação" com irado
desprezo, como se ela fosse amarga em sua língua. Nem uma só vez olhou para o
prisioneiro.
Houve a evidência médica - sórdida, específica, misericordiosamente
clínica e breve. A vítima tinha sido violentada e então recebera três
estocadas, através da veia jugular. Houve o depoimento do empregador do
acusado, que contribuiu com uma história vaga e imperfeitamente substanciada a
respeito de um espeto para carne desaparecido. Houve a senhoria do prisioneiro,
testemunhando que ele chegara em casa, na noite do assassinato, parecendo
aflito, não tendo ido trabalhar na manhã seguinte. Alguns fios eram finos.
Alguns, como a evidência do açougueiro, obviamente mostravam pouco peso, mesmo
aos olhos da acusação. Entretanto, quando unidos, iam tecendo uma corda
suficientemente forte para enforcar um homem.
A defesa fez o melhor que pôde, mas o advogado tinha
o ar desanimado de quem sabe estar predestinado ao fracasso. Convocou
testemunhas para afirmarem que Speller era um rapaz dócil e bondoso, amigo
generoso, bom filho e irmão. Os jurados acreditaram nelas. Também acreditaram
que ele havia matado a amante. A defesa convocou o acusado. Speller foi uma testemunha
fraca, inconvincente, quase muda. Gabriel pensou que teria ajudado se o rapaz mostrasse
algum sinal de piedade pela mulher morta. Entretanto, ele parecia tão absorvido
em seu próprio perigo que não sobravam pensamentos para quem quer que fosse. O
perfeito medo expulsa o amor, pensou Gabriel. Ficou satisfeito com o aforismo.
O juiz recapitulou com escrupulosa imparcialidade,
apresentando aos jurados uma exposição sobre a natureza e valor das provas
circunstanciais e uma interpretação da expressão "dúvida razoável".
Foi ouvido com respeitosa atenção. Era impossível adivinhar o que se passava
atrás daqueles doze pares de olhos vigilantes, anônimos. Entretanto, eles não
demoraram muito.
Quarenta minutos após interrompida a sessão, a fim
de que os jurados deliberassem, eles estavam de volta. O prisioneiro reapareceu
no banco dos réus e o juiz formulou a pergunta de praxe. O primeiro jurado deu
a resposta esperada, em voz alta e clara:
- Culpado, Excelência!
Ninguém pareceu surpreso. O juiz explicou ao
prisioneiro que ele havia sido considerado culpado pela morte horrível e
impiedosa da mulher que o tinha amado. Com o rosto tenso e pálido, o
prisioneiro fitava o juiz com olhos arregalados, como se ouvisse apenas pela
metade. A sentença foi pronunciada, tendo soado duplamente horrível, quando
dita naqueles suaves tons judiciais. Gabriel olhou interessado, em busca do
gorro preto mas, com surpresa e certo desapontamento, viu que era apenas um
quadrado de algum tecido preto, pousado inadequadamente no alto da peruca do
juiz. Os jurados receberam agradecimentos. O juiz recolheu suas anotações, como
um negociante limpando sua mesa de trabalho, no final de um dia movimentado. O
tribunal ficou de pé. O prisioneiro foi levado embora. Tudo havia terminado.
O julgamento
provocou poucos comentários no escritório. Ninguém sabia que Gabriel
comparecera. Seu dia de folga "por motivos particulares" fora aceito com
tão pouco interesse quanto qualquer ausência sua anterior. Era demasiado solitário,
demasiado impopular, para ser incluído nos mexericos do escritório. Em sua sala
empoeirada e mal-iluminada, insulado por fi leiras de móveis para arquivos, ele
era um objeto de vaga antipatia ou, no máximo, de piedosa tolerância. A sala
dos arquivos nunca fora um centro para agradáveis conversas de colegas.
Entretanto, ele ouviu a opinião de um membro da firma.
Na véspera do julgamento, o Sr. Bootman entrou no
escritório geral de jornal na mão, enquanto Gabriel distribuía a
correspondência da manhã.
- Vejo que deram um jeito em nosso probleminha local
- disse o Sr. Bootman.
-Aparentemente, o sujeito vai para a forca. Uma boa
coisa também. Parece ter sido a costumeira e sórdida história de paixão
proibida e estupidez geral. Um assassinato absolutamente banal.
Ninguém replicou. O pessoal do escritório permaneceu
em silêncio, depois despertou para a vida. Talvez todos achassem que nada mais
havia para ser dito.
Foi pouco depois do julgamento que Gabriel começou a
sonhar. Era sempre o mesmo sonho, ocorrendo cerca de três vezes na semana. Ele
caminhava com dificuldade por um deserto, debaixo de um sol vermelho-sangue,
tentando chegar a um forte distante. Às vezes conseguia enxergar o forte
claramente, embora este nunca ficasse mais perto. Havia um pátio interno cheio
de gente, uma silenciosa multidão de preto, os rostos voltados para uma
plataforma central. Sobre a plataforma via-se um patíbulo, curiosamente elegante,
com dois grossos postes a cada lado e uma peça atravessada, formando uma
curvatura delicada, da qual pendia a corda da forca.
Como o patíbulo, as pessoas não eram da época
presente. Era um povaréu vitoriano, as mulheres em xales e chapéus, os homens
de cartola ou chapéus coco de abas curtas. Gabriel via sua mãe lá também, o
rosto fino delineado sob o véu de viúva. De repente, ela começava a chorar e,
enquanto chorava, o rosto ia mudando, transformava-se no daquela mulher
lacrimosa do julgamento. Gabriel ansiava chegar até ela desesperadamente,
querendo consolá-la. No entanto, a cada passo, afundava ainda mais na areia.
Agora havia pessoas na plataforma. Uma delas, como
sabia, devia ser o diretor da prisão, de cartola, fraque, suíças e expressão séria.
Suas roupas eram de um cavalheiro vitoriano, mas o rosto sob uma barba
luxuriante era o do Sr. Bootman. Ao lado dele estava o capelão, de batina e
colarinho clerical, ladeado por dois guardas de prisão, os casacos escuros
abotoados até junto ao pescoço. O prisioneiro estava abaixo da corda da forca.
Usava calções e uma camisa aberta ao peito, mostrando um pescoço tão alvo e
delicado como o de uma mulher. Podia ter sido aquele outro pescoço, tão esguio
se mostrava. O prisioneiro cruzava o deserto com o olhar, fitando Gabriel, não
com um apelo desesperado, mas com imensa tristeza nos olhos. E, desta vez,
Gabriel sabia que tinha de salvá-lo, tinha de chegar lá a tempo.
A areia, no entanto, travava seus tornozelos
doloridos e, embora gritasse que estava indo, indo, o vento, como uma quente
rajada de fornalha, dilacerava as palavras de sua garganta ressequida. Suas
costas, arqueadas até quase se dobrarem, estavam empoladas pelo sol. Ele não
usava casaco. De algum modo, preocupava-se irracionalmente com a falta do
casaco, com algo que acontecera àquela peça e que ele precisava lembrar.
Enquanto se arrastava para diante, patinhando no
alagadiço arenoso, ele podia ver o forte tremeluzindo nas ondas do calor.
Depois começou a afastar-se da vista, ficando mais difuso e mais distante, até
finalmente tornar-se apenas um borrão entre as dunas longínquas. Ele ouviu um
grito agudo e desesperador que vinha do pátio - e então acordou , para saber
que tinha sido a sua voz e que ocalor úmido em sua testa era suor, não sangue.
No relativo equilíbrio da manhã, ele analisou o
sonho e percebeu que a cena era a retratada em uma folha informativa vitoriana,
a qual tinha visto certa vez, na vitrine de um livreiro antiquário. Segundo
recordava, ali era mostrada a execução de William Corder, pelo assassinato de
Maria Marten, no celeiro vermelho. A lembrança o consolou. Pelo menos,
continuava em contato com o mundo tangível e sensato.
A tensão, no entanto, evidentemente o estava
deprimindo. Era hora de concentrar a mente em seu problema. Gabriel sempre
tivera uma boa mente, algo benéfico ao seu trabalho. Daí, naturalmente, o
motivo dos demais funcionários se ressentirem com ele. Agora era o momento de
usá-la. Com que se preocupava, exatamente? Uma mulher tinha sido assassinada.
De quem era a culpa? Não havia várias pessoas dividindo a responsabilidade?
Antes de mais nada, aquela loura leviana, por ter
emprestado o apartamento. O marido, capaz de ser iludido com tamanha
facilidade. O rapaz que a afastara de seu dever para com o marido e as filhas.
A própria vítima – principalmente ela. O salário do pecado é a morte. Pois bem,
a mulher recebera o seu salário. Um homem não tinha sido suficiente para ela.
Gabriel tornou a evocar a sombra difusa contra as
cortinas do quarto, os braços erguidos quando a mulher puxara a cabeça do rapaz
para seu seio. Imoral. Repugnante. Imundo. Os adjetivos enodoaram sua mente.
Bem, ela e o amante haviam tido seu divertimento. Era justo que os dois
pagassem por isso. Ele, Ernest Gabriel, não estava preocupado com o fato.
Apenas por mera casualidade os vira, ao espiar por aquela janelinha no alto, somente
por casualidade presenciara Speller batendo à porta, para depois ir novamente embora.
Estava sendo feita justiça. Ele testemunhara Sua
Majestade, a beleza de sua integridade essencial, durante o julgamento de
Speller. Considerava-se parte disso. Se falasse agora, um adúltero poderia até
continuar em liberdade. Seu dever era claro. Desapareceria para sempre a
tentação de falar.
Foi com tal estado de ânimo que Gabriel se juntou ao
pequeno e calado grupo reunido fora da prisão, na manhã da execução de Speller.
Como os demais homens presentes, à primeira batida das oito horas, tirou o
chapéu. Fitando o céu profundo acima dos muros da prisão, ele experimentou de
novo a cálida exultação de sua autoridade e poder. Era de sua parte, por ordem
de Gabriel, que o carrasco sem nome, lá dentro, estava exercendo seu medonho
oficio...
Isso, no entanto, há dezesseis anos. Quatro meses
depois do julgamento, a firma em expansão e cônscia da necessidade de um melhor
endereço, mudara-se de Camden Town para o norte de Londres. Gabriel se mudara
com ela. Era um dos poucos empregados que se lembravam do prédio antigo. Agora,
os funcionários entravam e saiam rapidamente, não havia mais senso de lealdade ao
emprego.
No fim do ano, quando Gabriel aposentou-se, dos dias
da velha Camden Town restavam apenas o Sr. Bootman e o porteiro. Dezesseis
anos. Dezesseis anos do mesmo emprego, do mesmo sala-quarto, da mesma antipatia
meio tolerante dos colegas. Entretanto, ele tivera seu momento de poder.
Recordava-o agora, passeando os olhos pela sórdida salinha de estar com seu
papel de parede se rasgando, suas tábuas manchadas do assoalho. Havia parecido
diferente, dezesseis anos atrás.
Ele recordava a localização do sofá, o lugar exato
em que ela tinha morrido. Recordava outras coisas - o disparar de seu coração,
enquanto cruzava o asfalto; a batida rápida à porta; a intromissão através da
porta entreaberta, antes que ela percebesse não estar recebendo o amante; o
corpo nu que recuava para a sala de estar; o esguio pescoço alvo; o golpe dado
com seu estilete do arquivo, tão fácil como perfurar borracha macia. O aço
penetrara com tanta facilidade, tão docemente.
E havia algo mais que fizera com ela. No entanto,
era melhor não relembrar esse algo. Após isso, ele tornara a levar o estilete
para o escritório e o mantivera sob a torneira do lavatório até não permanecer
mais qualquer mancha de sangue. Então, tornara a colocá-lo na gaveta de sua
mesa de trabalho, com meia dúzia de outros estiletes iguais. Nada mais havia
que pudesse distingui-lo, mesmo a seus olhos.
Tinha sido tudo tão fácil! O único sangue fora um
esguicho em seu punho direito, ao retirar o estilete. E tinha queimado o
casaco, na fornalha do escritório. Ainda recordava o sopro quente em seu rosto,
ao jogá-lo lá dentro, bem como as cinzas espalhadas, como areia, debaixo de
seus pés.
Nada restara para ele, com exceção da chave do
apartamento. Vira-a em cima da mesa da sala de estar e a levara consigo. Agora,
retirando-a do bolso, comparou-a com a que recebera na agência de imóveis,
colocando-as lado a lado sobre a palma aberta. Sim, eram idênticas. Haviam
mandado fazer outra, porém ninguém se preocupara em trocar a fechadura.
Gabriel ficou olhando para a chave, tentando
recordar o excitamento daquelas semanas em que tanto fora juiz como executor.
Entretanto, nada pôde sentir. Fazia muito tempo que ocorrera aquilo. Tinha
cinqüenta anos então; agora estava com sessenta e seis, velho demais para
sentir alguma coisa. Depois recordou as palavras do Sr. Bootman. Afinal de
contas, era um assassinato absolutamente banal.
Na manhã da segunda-feira, quando recolhia a
correspondência na caixa, a jovem da agência de imóveis comentou com o gerente:
- Que curioso! O velhote que pegou a chave para o
apartamento de Camden Town devolveu uma errada. Esta aqui não tem a nossa
etiqueta colada. A menos que ele a tenha arrancado. Ora, mas por que ele faria
isso?
Deixou a chave em cima da mesa do gerente e colocou
diante do homem a pilha de cartas para ele. O gerente olhou casualmente para a
chave. - Seja como for, é a chave certa - trata-se da única desse tipo que
ainda temos. Talvez a etiqueta tenha ficado frouxa e caiu. Você devia colocá-las
com mais cuidado.
- Pois foi o que eu fiz! - protestou a jovem,
ofendida. O gerente pestanejou.
- Pois então torne a etiquetá-Ia, coloque-a de volta
no lugar e, pelo amor de Deus, não crie caso, seja uma boa garota.
Ela tornou a fitá-lo, pronta para replicar. Depois deu
de ombros. Agora que pensava nisso, ele sempre se mostrava um pouco esquisito
sobre aquele apartamento de Camden Town.
- Está bem, Sr. Morrisey - respondeu.
P.D.
JAMES (1920- | Inglaterra)
Embora ela considere o fato de escrever romances
policiais um hobby, o Times de Londres considerou-a "a rainha das
histórias inglesas de detetives". Estreou em 1962, com Cover her Face, e
foi publicada no Brasil pela primeira vez nos anos 70 (Mente Assassina).
Vencedora de alguns prêmios do gênero, entre eles o British Crime Writers, por
duas vezes, criou histórias com o superintente da Scotland Yard Dalgliesh e
outras com uma heroína chamada Cordélia Gray. E, em 2002, ela chega à lista dos
mais vendidos do Brasil com Morte no Seminário.
Tradução
de Luísa Ibafiez
Morre
a escritora inglesa PD James, aos 94 anos
Autora best-seller de mais de 20 livros policiais,
ela criou o detetive Adam Dalgliesh
POR O GLOBO 27/11/2014 11:58 / atualizado 27/11/2014
13:21
A
escritora PD James - Agência O Globo
RIO - Autora de 20 livros policiais, PD James morreu
nesta quinta-feira, aos 94 anos. A escritora estava "tranquilamente em sua
casa em Oxford", segundo seu agente. Seu personagem mais famoso é o
detetive Adam Dalgliesh, que estrelou 14 livros e ajudou a sua criadora a se
tornar uma das mais bem-sucedidas autoras britânicas.
Por meio de suas obras, PD mapeou as transformações
da vida no Reino Unido. Seu livro de estreia, "Cover her face", de
1962, foi comprado pela primeira editora a colocar os olhos sobre o manuscrito
com a história da investigação do assassinato de uma jovem empregada, ocorrido horas
depois de ela anunciar seu casamento com um dos filhos de seus patrões
aristocratas.
O livro foi lançado no Brasil apenas em 1984, pela
editora Francisco Alves, com o título de "A chantagista". Atualmente,
é encontrada no catálogo da Companhia das Letras como "O enigma de
Sally", assim como suas principais obras.
Muitos de seus livros foram adaptados para a TV e o
cinema. "Children of men", de 1992, virou o longa "Filhos da
esperança", de Alfonso Cuarón, de 2006. Estrelado por Clive Owen e
Julianne Moore, o filme foi indicado a três Oscars, incluindo o de melhor
roteiro adaptado.
Nascida em 1920, em Oxford, na Inglaterra, Phyllis
Dorothy James deixou a escola aos 16 anos para acompanhar seu pai em uma
carreira no serviço público. Ela se casou com Ernest White aos 21 anos e se
mudou para Londres, onde deu à luz duas filhas enquanto os alemães bombardeavam
a capital inglesa. O marido voltou da guerra com severos traumas psicológicos,
obrigando PD a cuidar da família, trabalhando em diversos departamentos do serviço
civil britânico, incluindo a polícia.
Com as filhas em um colégio interno e o marido no
hospital, PD começou a dedicar suas noites à escrita, sonho que sempre nutriu.
Dalgliesh nasceu como parte de um exercício para escrever romances
"sérios", como explicou à revista "Paris Review", em 1994.
Sempre apaixonada por histórias policiais, sabia que seria mais fácil encontrar
uma editora se tivesse uma boa história de detetive.
PD costumava dizer que Dalgliesh, um policial
erudito, reunia qualidades "que ela admirava" numa pessoa. Ao mesmo
tempo em que a escritora aumentava seu sucesso, a carreira do Dalgliesh ia
evoluindo, sendo promovido a cada livro.
O sucesso internacional veio na década de 1980, com
"Sangue inocente", sobre uma jovem de 18 anos que tem uma terrível
revelação sobre as origens de sua adoção por uma família aristocrata. Os
direitos do livro foram comprados por £ 380 mil e vendidos para o cinema por £
145 mil, mais do que ela havia ganhado em dez anos de trabalho no Ministério do
Interior. Foi o suficiente para ela se aposentar após 30 anos de serviço e se
dedicar integralmente ao ofício de escrever. "No início daquela semana, eu
estava relativamente pobre e, no fim da semana, eu já não estava mais",
lembrava.
Em entrevista ao GLOBO, em 2012, a escritora
garantiu que não seguiria os passos de Arthur Conan Doyle, autor do mais famoso
detetive britânico, que matou Sherlock Holmes após se cansar do personagem.
"Mas eu não vou fazer isso com Adam Dalgliesh. Ele vai se aposentar. Ele
vai morrer quando eu morrer", afirmou a PD, que escreveu 14 livros
centrados em Dalgliesh. O mais recente é "O paciente privado", de
2008. Seu último romance foi Seu último livro foi "Morte em
Pemberley", lançado em 2011.
PD James: 'Some people find conventions liberating'
PD James: 'Some people find conventions liberating'
Referências
Os 100 Melhores Contos de Crime e Mistério da
Literatura Universal – Flávio Moreira Da Costa
https://oglobo.globo.com/cultura/livros/morre-escritora-inglesa-pd-james-aos-94-anos-14676645
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