Dos mares da
China não mais virão as quinquilharias.
“O espetáculo é baseado em cinco contos do autor, cujo centenário é
também comemorado em 2020. O principal deles é o O Pirotécnico Zacarias.”
CONTO: O PIROTÉCNICO ZACARIAS - MURILO RUBIÃO - COM
INTERPRETAÇÃO/GABARITO
Conto: O PIROTÉCNICO ZACARIAS https://http2.mlstatic.com/o-pirotecnico-zacarias-murilo-rubio-D_NQ_NP_772588-MLB29128518726_012019-F.jpg E se levantará pela
tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e quando te julgares consumido,
nascerás como a estrela-d’alva. (Jó, xi, 17). Raras são as vezes
que, nas conversas de amigos meus, ou de pessoas das minhas relações, não
surja esta pergunta. Teria morrido o pirotécnico Zacarias? A esse respeito as
opiniões são divergentes. Uns acham que estou vivo — o morto tinha apenas
alguma semelhança comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha
morte pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo a quem andam
chamando Zacarias não passa de uma alma penada, envolvida por um pobre
invólucro humano. Ainda há os que afirmam de maneira categórica o meu
falecimento e não aceitam o cidadão existente como sendo Zacarias, o artista
pirotécnico, mas alguém muito parecido com o finado. Uma coisa ninguém
discute: se Zacarias morreu, o seu corpo não foi enterrado. A única pessoa que
poderia dar informações certas sobre o assunto sou eu. Porém estou impedido
de fazê-lo porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela
frente. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e não conseguem
articular uma palavra. Em verdade morri, o
que vem ao encontro da versão dos que creem na minha morte. Por outro lado,
também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com
mais agrado do que anteriormente. A princípio foi azul,
depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas,
de um vermelho 15 compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue
pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem
cor. Quando tudo começava a
ficar branco, veio um automóvel e me matou. — Simplício Santana de
Alvarenga! — Presente! Senti rodar-me a
cabeça, o corpo balançar, como se me faltasse o apoio do solo. Em seguida fui
arrastado por uma força poderosa, irresistível. Tentei agarrar-me às árvores,
cujas ramagens retorcidas, puxadas para cima, escapavam aos meus dedos.
Alcancei mais adiante, com as mãos, uma roda de fogo, que se pôs a girar com
grande velocidade por entre elas, sem queimá-las, todavia. — “Meus senhores: na
luta vence o mais forte e o momento é de decisões supremas. Os que desejarem
sobreviver ao tempo tirem os seus chapéus!” (Ao meu lado dançavam
fogos de artifício, logo devorados pelo arco-íris.) — Simplício Santana de
Alvarenga! — Não está? — Tire a mão da boca,
Zacarias! — Quantos são os
continentes? — E a Oceania? Dos mares da China não
mais virão as quinquilharias. A professora magra,
esquelética, os olhos vidrados, empunhava na mão direita uma dúzia de
foguetes. As varetas eram compridas, tão longas que obrigavam dona Josefina a
ter os pés distanciados uns dois metros do assoalho e a cabeça, coberta por
fios de barbante, quase encostada no teto. — Simplício Santana de
Alvarenga! — Meninos, amai a
verdade! A noite estava escura.
Melhor, negra. Os filamentos brancos não tardariam a cobrir o céu. Caminhava pela
estrada. Estrada do Acaba Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras que
silêncio. O automóvel não
buzinou de longe. E nem quando já se encontrava perto de mim, enxerguei os
seus faróis. Simplesmente porque não seria naquela noite que o branco
desceria até a terra. As moças que vinham no
carro deram gritos histéricos e não se demoraram a desmaiar. Os rapazes
falaram baixo, curaram-se instantaneamente da bebedeira e se puseram a
discutir qual o melhor destino a ser dado ao cadáver. A princípio foi azul,
depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas,
de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso,
com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, quase sem cor. Sem cor
jamais quis viver. Viver, cansar bem os músculos, andando pelas ruas cheias
de gente, ausentes de homens. Havia silêncio, mais
sombras que silêncio, porque os rapazes não mais discutiam baixinho. Falavam
com naturalidade, dosando a gíria. Também o ambiente
repousava na mesma calma e o cadáver — o meu ensanguentado cadáver — não
protestava contra o fim que os moços lhe desejavam dar. A ideia inicial, logo
rejeitada, consistia em me transportar para a cidade, onde me deixariam no
necrotério. Após breve discussão, todos os argumentos analisados com frieza,
prevaleceu a opinião de que meu corpo poderia sujar o carro. E havia ainda o
inconveniente das moças não se conformarem em viajar ao lado de um defunto.
(Nesse ponto eles estavam redondamente enganados, como explicarei mais
tarde.) Um dos moços, rapazola forte e
imberbe — o único que se impressionara com o acidente e permanecera calado e
aflito no decorrer dos acontecimentos —, propôs que se deixassem as garotas
na estrada e me levassem para o cemitério. Os companheiros não deram
importância à proposta. Limitaram-se a condenar o mau gosto de Jorginho —
assim lhe chamavam — e a sua insensatez em interessar-se mais pelo destino do
cadáver do que pelas lindas pequenas que os acompanhavam. O rapazola notou a bobagem
que acabara de proferir e, sem encarar de frente os componentes da roda,
pôs-se a assoviar, visivelmente encabulado. Não pude evitar a
minha imediata simpatia por ele, em virtude da sua razoável sugestão,
debilmente formulada aos que decidiam a minha sorte. Afinal, as longas
caminhadas cansam indistintamente defuntos e vivos. (Esse argumento não me
ocorreu no momento.) Discutiram em seguida
outras soluções e, por fim, consideraram que me lançar ao precipício, um
fundo precipício, que margeava a estrada, limpar o chão manchado de sangue,
lavar cuidadosamente o carro, quando chegassem a casa, seria o alvitre mais
adequado ao caso e o que melhor conviria a possíveis complicações com a
polícia, sempre ávida de achar mistério onde nada existe de misterioso. Mas aquele seria um
dos poucos desfechos que não me interessavam. Ficar jogado em um buraco, no
meio de pedras e ervas, tornava-se para mim uma ideia insuportável. E ainda:
o meu corpo poderia, ao rolar pelo barranco abaixo, ficar escondido entre a
vegetação, terra e pedregulhos. Se tal acontecesse, jamais seria descoberto
no seu improvisado túmulo e o meu nome não ocuparia as manchetes dos jornais. Não, eles não podiam
roubar-me nem que fosse um pequeno necrológio no principal matutino da
cidade. Precisava agir rápido e decidido: — Alto lá! Também
quero ser ouvido. Jorginho empalideceu,
soltou um grito surdo, tombando desmaiado, enquanto os seus amigos, algo
admirados por verem um cadáver falar, se dispunham a ouvir-me. Sempre tive confiança
na minha faculdade de convencer os adversários, em meio às discussões. Não
sei se pela força da lógica ou se por um dom natural, a verdade é que, em
vida, eu vencia qualquer disputa dependente de argumentação segura e
irretorquível. A morte não extinguira
essa faculdade. E a ela os meus matadores fizeram justiça. Após curto debate,
no qual expus com clareza os meus argumentos, os rapazes ficaram indecisos,
sem encontrar uma saída que atendesse, a contento, às minhas razões e ao
programa da noite, a exigir prosseguimento. Para tornar mais confusa a
situação, sentiam a impossibilidade de dar rumo a um defunto que não perdera
nenhum dos predicados geralmente atribuídos aos vivos. Se a um deles não
ocorresse uma sugestão, imediatamente aprovada, teríamos permanecido no
impasse. Propunha incluir-me no grupo e, juntos, terminarmos a farra,
interrompida com o meu atropelamento. Entretanto, outro
obstáculo nos conteve: as moças eram somente três, isto é, em número igual ao
de rapazes. Faltava uma para mim e eu não aceitava fazer parte da turma
desacompanhado. O mesmo rapaz que aconselhara a minha inclusão no grupo
encontrou a fórmula conciliatória, sugerindo que abandonassem o colega
desmaiado na estrada. Para melhorar o meu aspecto, concluiu, bastaria trocar
as minhas roupas pelas de Jorginho, o que me prontifiquei a fazer
rapidamente. Depois de certa
relutância em abandonar o companheiro, concordaram todos (homens e mulheres,
estas já restabelecidas do primitivo desmaio) que ele fora fraco e não
soubera enfrentar com dignidade a situação. Portanto, era pouco razoável que
se perdesse tempo fazendo considerações sentimentais em torno da sua pessoa. Do que aconteceu em seguida
não guardo recordações muito nítidas. A bebida, que antes da minha morte
pouco me afetava, teve sobre o meu corpo defunto uma ação surpreendente.
Pelos meus olhos entravam estrelas, luzes cujas cores ignorava, triângulos
absurdos, cones e esferas de marfim, rosas negras, cravos em forma de lírios,
lírios transformados em mãos. E a ruiva, que me fora destinada, enlaçando-me
o pescoço com o corpo transmudado em longo braço metálico. Ao clarear o dia, saí
da semiletargia em que me encontrava. Alguém me perguntava onde eu desejava
ficar. Recordo-me que insisti em descer no cemitério, ao que me responderam
ser impossível, pois àquela hora ele se encontrava fechado. Repeti diversas
vezes a palavra cemitério. (Quem sabe nem chegasse a repeti-la, mas somente
movesse os lábios, procurando ligar as palavras às sensações longínquas do
meu delírio policrômico.) Por muito tempo se
prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo exterior e os meus olhos, que
não se acomodavam ao colorido das paisagens estendidas na minha frente. Havia
ainda o medo que sentia, desde aquela madrugada, quando constatei que a morte
penetrara no meu corpo. Não fosse o ceticismo
dos homens, recusando-se aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar a
ambição de construir uma nova existência. Tinha ainda que lutar
contra o desatino que, às vezes, se tornava senhor dos meus atos e
obrigava-me a buscar, ansioso, nos jornais, qualquer notícia que elucidasse o
mistério que cercava o meu falecimento. Fiz várias tentativas
para estabelecer contato com meus companheiros da noite fatal e o resultado
foi desencorajador. E eles eram a esperança que me restava para provar quão
real fora a minha morte. No passar dos meses,
tornou-se menos intenso o meu sofrimento e menor a minha frustração ante a
dificuldade de convencer os amigos de que o Zacarias que anda pelas ruas da
cidade é o mesmo artista pirotécnico de outros tempos, com a diferença de que
aquele era vivo e este, um defunto. Só um pensamento me
oprime: que acontecimentos o destino reservará a um morto se os vivos
respiram uma vida agonizante? E a minha angústia cresce ao sentir, na sua
plenitude, que a minha capacidade de amar, discernir as coisas, é bem
superior à dos seres que por mim passam assustados. Amanhã o dia poderá
nascer claro, o sol brilhando como nunca brilhou. Nessa hora os homens
compreenderão que, mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque a minha
existência se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva
ternura dos meus olhos. Murilo
Rubião Entendendo o conto: 01 – Com base na leitura e análise do conto O Pirotécnico Zacarias,
classifique as afirmações seguintes de verdadeiras ou falsas: a) (F) O conto é narrado na terceira pessoa; o
narrador é, pois, onisciente e não participa da história. b) (V) O narrador tem visão limitada dos fatos que
narra. c) (F) O narrador detém-se nos caracteres físicos
das personagens, valorizando cabelos, olhos, cor de pele, estatura. d) (V) Zacarias é personagem densa, esférica, como
perfil psicológico delineado. e) (F) Em todo o conto, Zacarias não consegue
comunicar-se com os vivos, advindo daí sua angústia principal. 02 – Com base na leitura e análise do conto O Pirotécnico Zacarias,
classifique as afirmações seguintes de verdadeiras ou falsas: a) (F) A relação de Zacarias com os vivos, apesar
dos desajustes iniciais, normalizou-se com o tempo. b) (F) As únicas pessoas com quem Zacarias conseguia
comunicar-se eram as moças e os rapazes que o atropelaram. c) (F) A vida que Zacarias levava depois da morte
era inferior à de quando estava vivo, pois as percepções ficaram embaçadas. d) (F) O autor cria um ambiente utópico em que vivos
e ex-vivos convivem sem discriminação. e) (F) Zacarias assistiu ao próprio enterro,
presenciando a despedida de amigos e parentes ao seu cadáver. 03 – No conto O Pirotécnico Zacarias, Murilo Rubião: a) Valoriza
o Realismo Fantástico, criando uma atmosfera em que a vida, depois da morte,
só não segue normal por causa da discriminação dos vivos. b) Cria um cenário
policrômico, descrevendo com muitos detalhes o ambiente citadino. c) Dá ênfase aos
espetáculos em que Zacarias, quando vivo, exibia suas habilidades com o fogo. d) Descreve os
horrores por que os mortos têm que passar quando não conseguem livrar-se do
mundo dos vivos. e) Mostra que os
mortos podem ajudar a desvendar crimes, desde que os vivos acreditem nisso. 04 – Depois do atropelamento, o corpo de Zacarias: a) Foi levado para o
necrotério da cidade. b) Foi entregue à
polícia. c) Foi jogado em um
precipício, à beira da estrada. d) Foi levado direto
para o cemitério e, ali, abandonado. e) Por
sugestão de um dos rapazes, passou a fazer parte do grupo. 05 – Depois de morto; a) O álcool, antes
danoso à saúde de Zacarias, não surtia mais nenhum efeito. b) A
percepção sensorial de Zacarias, incluindo a capacidade de amar, melhorou sensivelmente. c) Zacarias voltou a
trabalhar em um circo, fazendo coisas que, quando vivo, eram impossível de
realizar. d) Zacarias passou a
ser visto apenas pelo grupo de moas e rapazes que o atropelou. e) Zacarias voltou
para os seus familiares, embora ninguém acreditasse que aquele fosse
realmente Zacarias e, sim, uma pessoa muito parecida com o finado. 06 – No conto O Pirotécnico Zacarias, a linguagem de Murilo Rubião: a) É prolixa, com
excesso de adjetivos e com descrições cansativas. b) É extremamente
coloquial, com erros gramaticais. c) É
sóbria, concisa, direta, beirando a gramática culta. d) É romântica, com
descrições exageradas. e) É técnica, com
excesso de termos científicos. |
Fonte:
Armazém do Texto
https://armazemdetexto.blogspot.com/2018/07/conto-o-pirotecnico-zacarias-murilo.html
No
link:
Curta
Temporada apresenta: O Pirotécnico Zacarias
Vamos
assistir neste Curta Temporada o espetáculo O Pirotécnico Zacarias, a nova
montagem da trupe mineira Giramundo, que comemora 50 anos em 2020. Com a meta
de aproximar o teatro de bonecos do cinema e da animação, a peça conta com
projeções de imagens reais e pré-gravadas, em meio a marionetes, máscaras,
sombras e filmes. A mistura de linguagens é usada para dar vida ao realismo mágico
do escritor mineiro Murilo Rubião. O espetáculo é baseado em cinco contos do
autor, cujo centenário é também comemorado em 2020. O principal deles é o O
Pirotécnico Zacarias. A montagem foi adaptada para teatro e dirigida por Marcos
Malafaia, com patrocínio do Centro Cultural Banco do Brasil. Saiba mais: https://tvbrasil.ebc.com.br/curta-tem...
https://www.youtube.com/watch?v=c3jao2DAntA
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