sábado, 21 de novembro de 2020

“...ofereceu o pescoço ao carrasco.

 

...esquecerão, sempre esquecemos.”

 

“O que foi, torna a ser. O que é, perde existência.
O palpável é nada. O nada assume essência.” Goethe

 

Murilo Rubião: Botão-de-Rosa.

 

“Aroma de mirra, de aloés e cássia exala de tuas vestes, desde as casas de marfim.”
Salmos, VLIV, 9.

Quando, numa segunda-feira de março, as mulheres da cidade amanheceram grávidas, Botão-de Rosa sentiu que era um homem liquidado. Entretanto não se preocupou, aborto em pentear os longos cabelos. Concluído o penteado, passou a alisar a barba com uma escova especial umedecida em perfume. Nesse instante ouviu gritos vindos da rua. Não distinguia bem o que gritavam, mas de uma coisa estava certo: vinham pegá-lo. – Deu de ombros e buscou uma fita colorida para prender a cabeleira.
Antes de despir a camisola de seda, escolheu para o dia o seu melhor traje: uma túnica branca, bordada a ouro dos companheiros do conjunto de guitarras – Molinete, Zelote, Judô, Pedro Taguatinga, Simonete, Bacamarte, André-Tripa-Miúda, Íon, Mataqueus, Pisca, Filipeto e Bartô – com os quais acertara novo encontro no Festival. Até lá Taquira teria o filho. (Fora obrigado a separar-se da companheira porque os pais recusaram a recebê-lo em casa, alegando que não eram casados. Teve, à época, vaga premonição de que jamais se reencontrariam.)
Separou as meias, o cinturão de fivela dourada e procurou uma sandália que combinasse com o vestuário. Sua escolha recaiu numa de solas grossas, apropriadas ao péssimo calçamento da cidade.
O clamor crescia lá fora, aumentava-lhe a impaciência: não podiam esperar que acabasse de se aprontar? Ou temiam pela fuga? Malta de ignorantes, como poderia fugir? Antes que apelassem para a força, procurou acalmá-los, mostrando-se na varanda. A turba emudeceu à sua presença. Fez-se um silêncio hostil, os olhos enfurecidos cravados na sua figura tranqüila. Um moleque atirou-lhe uma pedra certeira na testa e a multidão de novo se assanhou: Cabeludo! Estuprador! Piolhento!
Quando compreenderiam? – Retrocedeu até a sala. Não por covardia, apenas para estancar o sangue que começava a descer pela face e certamente lhe mancharia a roupa. Medicava-se ainda e ouviu baterem na porta. Era o sargento, comandante do destacamento, acompanhado de seis soldados e um mandado de prisão. Nem leu o papel. Alçando a mão, num apelo mudo, para que o esperassem, voltou ao quarto. Após jogar suas coisas na maleta, colocar nos dedos os anéis e no pescoço os colares, seguiu os policiais.

A autoridade deles devia ser grande, pois cessaram as vaias, ouvindo-se somente o rosnar de alguns populares. Das sacadas, em todo o percurso, mulheres com os rostos protegidos por máscaras, que ocultavam ansiosas o cortejo. As únicas janelas fechadas pertenciam à resistência dos pais de Taquira.
O delegado, um tenente reformado, recebeu-o com afetada cortesia, indiferente à hostilidade geral contra o prisioneiro:
- O senhor é acusado de estupro e de ter engravidado as... – Interrompeu a frase para atender ao telefone:
- Pronto. Às ordens meritíssimas. Estou atento. Novas diligências? Quantas quiser. Encontraram drogas? Mudarei o rumo dos interrogatórios.
O telefonema perturbara-o. Menos empertigado e sem afetação, voltou-se para o detido:
- Houve um equívoco: você está preso sob suspeita de traficar heroína – Fez uma pequena pausa e, embaraçado, prosseguiu:
- Pode depor sem constrangimento. O seu defensor, Doutor José Inácio – apontava para um rapaz que acabara de entrar na sala – testemunhará a nossa isenção. Queremos a verdade.
A verdade. O que significaria? Tempos atrás lhe fizeram igual pergunta e nada respondera. Também agora, e nos dias subseqüentes, permaneceria calado.
Alheios às perguntas capciosas, Botão só se preocupava com a aflição do seu patrono, talvez a única pessoa a desconhecer que fora designado exclusivamente para dar aparência de legalidade ao processo.
O mutismo do indiciado não irritou o militar. Parecia até agradá-lo. Mandou que o recolhessem ao cárcere. (Antes de acareá-lo com as testemunhas, procederia a outras investigações, visando esclarecer certos pontos obscuros da denúncia.)
O advogado, que permanecera na sala, indagou:
- Por que acusam o meu cliente de traficante de drogas, se antes o incriminavam de estuprador e cúmplice de centenas de adultérios?
- Que ingenuidade, amigo. Você está há pouco tempo entre nós e ignora que aqui só prevalece o Juiz, proprietário da maior parte das casas da cidade, inclusive dos prédios públicos, da companhia telefônica, do cinema, das duas farmácias, de cinco fazendas de gado, do matadouro e da empresa funerária. Se decidiu que esse palhaço cometeu outro delito, não nos cabe discutir e sim preparar as provas necessárias à sua condenação.
- Penso que o meu dever é agir com imparcialidade, conforme declarou anteriormente, e impedir o arbítrio dos poderosos.
Nesse instante, em frente à Delegacia, a população começou a vociferar: Lincha! Mata! Enforca! O oficial parecia se divertir com a situação:
- O seu constituinte não tem muitas chances de sobreviver, Alguém cuidará dele. A Justiça ou o povo.
José Inácio saiu preocupado com a sorte do prisioneiro. Além de ter contra si a animosidade de todos, nem ao menos se declarava inocente. Sua preocupação se transformou em medo ao ver-se encarado pelos homens que se postavam na rua. Olhavam-no carrancudos e silenciosos.
No hotel a recepção não foi melhor. O hoteleiro e os hóspedes, que antes o tratavam com acentuada simpatia, passaram a evitá-lo.
                                                                               ***
Durante a semana tentaram, sem êxito, arrancar uma confissão de Botão-de-Rosa. Mudo e impassível, ouvia desatento o que lhe perguntavam repetidamente:
- Quer falar agora? Quem lhe fornecia os entorpecentes?
O interrogatório não se estendia muito e logo mandavam-no de volta à cela.
Ao chegar a vez das testemunhas, eles asseguravam que no momento da prisão, o indiciado carregava heroína consigo. A polícia deu-se por satisfeita com os depoimentos e considerou-os suficientes para caracterizar o delito. Preenchidas as últimas formalidades, os autos foram remetidos à Justiça.

                                                                            ***
Se para o advogado o inquérito policial transbordava de irregularidades, algumas gritantes, como a ausência do auto de prisão em flagrante, maior escândalo lhe causaria o transcurso de instrução criminal, inteiramente fora das normas processuais. Verificando que seu cliente seria julgado pelo Tribunal do júri, procurou o promotor e lhe disse que iria argüir incompetência de juízo se o réu fosse enquadrado no ritual da lei que tratava de entorpecentes.
- O senhor está pilheriando ou é incompetente. Em que se baseia para usar tão esdrúxulo recurso?
Surpreso com a resposta intempestiva, pediu licença para consultar o Código de Processo Penal, que retirou de uma estante ao lado.
À medida que avançava na leitura, mais chocado ficava, pensando ter em suas mãos uma edição falsificada, ou então nada aprendera nos cursos de Faculdade. Numa pequena livraria comprou u exemplar da Constituição e todos os códigos, porque talvez tivesse que reformular seu aprendizado jurídico.

                                                                             ***
Leu até de madrugada. A cada página lida, se abismava com a preocupação do legislador em cercear a defesa dos transgressores das leis penais. Principalmente no capitulo dos entorpecentes, onde não se permitia apresentar determinados recursos, requer desdobramento. A violação de seus artigos era considerada crime gravíssimo contra a sociedade e punível por tribunal popular. As penas variaram entre dez anos de reclusão, prisão perpétua ou morte.
José Inácio ficou boquiaberto: Pena de morte! Ela fora abolida cem anos atrás! Ou teria estudado em outros livros?
Em compensação, ocorrendo a pena capital, admitia-se apelar para instância superior. Desorientado, abandonou os compêndios.
Passou os dias seguintes a remoer o assunto, enquanto na porta do hotel um número crescente de indivíduos mal-encarados aguardava sua saída, para segui-lo impiedosamente pelas ruas da cidade. Também recebia constantes ameaças pelo telefone e cartas anônimas.
Aos poucos, se acordava, perdia a esperança de conseguir absolver seu constituinte. Na véspera do julgamento, atemorizado, resolveu abandonar a cidade. Tomara as providências para a viagem e só faltava pagar as contas, quando apareceu o delegado:
- Não vai me dizer que pretende escapar ao júri de amanhã? Sua fuga seria uma desconsideração ao Juiz. Aliás, trago um recado dele. Pediu-me para lhe dizer que não gostou de sua displicência na instrução criminal. Espera, daqui pra frente, o exato cumprimento de suas obrigações como defensor do réu – E, dando fim à sua missão, ordenou ao rapaz que guardava as malas do hóspede:
- Leva tudo de volta para cima.
                                                                      ***
A escolta de Botão-de-Rosa encontrou forte resistência para entrar no Fórum. Uma pequena e exaltada multidão, que impedia a passagem, investiu sobre o prisioneiro a bofetadas e pontapés.
Os militares presenciaram, complacentes, o espancamento e só tornaram a decisão de intervir quando viram a vítima sangrar. Violentos, a golpes de sabres, afastaram da porta os desordeiros.
Dentro do edifício deram-se conta de que não podiam introduzir no recinto do tribunal o prisioneiro, tal o estado de suas roupas, rasgadas de cima a baixo.
Alguém, que assistira à agressão da janela de uma casa nas vizinhas, mandou-lhes uma capa feminina para cobrir a nudez de Botão.
                                                                         ***
Sentado no banco dos réus, entre dois soldados, Botão-de-Rosa mal conseguia mover as pálpebras, as pernas começavam a inchar. Levantou-se, arquejante, a uma ordem do Juiz, que de início ao interrogatório de praxe. Nada respondeu e nem poderia fazê-lo caso desejasse. Os lábios estavam intumescidos, os dentes abalados doíam ao contato com a língua.
- Inocente ou culpado? – Foi a última pergunta que lhe fizeram e a repetiu para si mesmo, deixando transparecer alguma turbação no rosto.
O magistrado encerrou a inquirição com uma advertência:
- Embora não esteja obrigado a nos responder, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.
                                                                                 ***
O promotor falava há mais de duas horas. Respirava argumentos, insistia em detalhes insignificantes. Ao notar que ninguém lhe prestava atenção, tratou de terminar o enfadonho discurso com a leitura de uma carta sem assinatura, na qual denunciavam o acusado de traficante de heroína e maconha.
- Uma carta anônima! E essa maconha, não mencionada anteriormente? É um acinte ao tribunal apresentar uma prova desse tipo – aparteou o defensor.
- Ela merece fé. Posso exibir o laudo da perícia, constante de minucioso estudo grafológico, que afirma ser de Judô, um dos componentes do conjunto musical do indiciado, a autoria da denúncia.
- Pobre companheiro – murmurou Botão – deve ter-se vendido por algumas doses de entorpecentes. Não conseguia viver sem a droga. Por que culpá-la, agora? Uma testemunha a menos não o absolveria. – Voltou-se para trás: a formação do grupo com músicos inexperientes, pouco dinheiro, idéias de malucos. As cidades do caminho, aplausos e vaias, a orquestra crescendo. O aparecimento de Taquira. – Esquecera o corpo maltrado e o obrigaram-no a retornar à realidade.
- Senhores jurados, a acusação do Ministério Público, além de inepta, é tendenciosa. O réu não cometeu o delito que lhe atribuem. Poderia, no máximo, ser processado como cúmplice de numerosos adultérios, mas isto não seria conveniente para a cidade, pois a transformaria num imenso antro de cornos. – Era advogado de defesa que discursava e pretendia com a última frase desmascarar os que aplicavam e pretendia com a última frase desmascarar os que aplicavam a justiça no lugar. Surpreendeu-o, entretanto, a repulsa instantânea de assistência e jurados, que avançaram, enraivecidos, em sua direção.
O Juiz fez soar repetidamente a campainha, ameaçando evacuar o recinto. Por fim, com a colaboração dos soldados, conseguiu que todos voltassem a seus lugares.
José Inácio encolhera-se num canto e, convocado a retornar a tribuna, obedeceu amedrontando, disposto a abreviar suas considerações. Falava com cautela, pesando as palavras, algumas ambíguas, as idéias desconcatenadas e a negar crimes que a própria acusação não atribuía ao incriminado.
Havia total descompasso entre o que afirmava e os apartes do promotor:
- Como poderia engravidar meninas de oito e matronas de oitenta anos?
- Protesto! O delito em pauta se refere unicamente a estupefacientes!
- Os casos de gravidez em massa, ocorridos nesta localidade, não podem ser atribuídos ao denunciado.
- antes da vinda desse marginal nosso povo tinha hábitos saudáveis, desconhecia os vícios das grandes metrópoles.

                                                                              ** *
O Presidente do Tribunal leu a sentença que condenava Botão-de-Rosa à pena de morte, a ser cumprida no dia seguinte, e exortou a todos que respeitassem a integridade física do condenado, deixando ao verdugo a tarefa de eliminá-lo.
A recomendação final do magistrado alarmou o defensor: e a sua segurança, quem a garantiria?
O delegado percebeu, de longe, o temor que o afligia e veio a seu encontro:
- Não precisa ter medo. Basta ser compreensivo. O sentenciado só escapará da forca se houver apelação, pois a Suprema Corte tem por norma transformar as penas máximas em prisão perpétua. Se você não recorrer, lhe garantiremos uma rendosa banca de advocacia. A promessa é do Juiz.
José Inácio reviu, mentalmente, as diversas fases do processo, o cerceamento da defesa do réu, permitindo por uma legislação absurda. Sentiu-se na obrigação de apelar e impedir que cometessem terrível iniqüidade. Não havia outra opção, contudo, vacilava. O duro espancamento de seu constituinte deveria ter tomado como um aviso do que lhe poderia acontecer, caso apelasse. E por que trocar as possibilidades de sucesso na sua carreira profissional pela vida de um pobre-diabo que se negava a defender-se e nem se importava com a sua própria condenação? Desistiu do recurso.


                                                                                ***

Além da cama, Botão pouco encontrou na cela. Tinham levado as roupas, os objetos de uso pessoal, inclusive e dentifrício e a escova de dente.
Deitou-se nu e aguardou a noite.
As seis da manhã vieram buscá-lo, porem teve dificuldade em levantar-se. Os membros, ressentidos da surra da véspera, não lhe obedeciam. Para erguer-se, foi necessário a ajuda do carcereiro.
Os soldados, à sua espera numa sala da delegacia, conduziram-no ao local da execução. Caminhada áspera, na qual se empenhou em seguir firme, os ombros erguidos.
Do alto do patíbulo, na praça vazia, pela primeira vez lhe passava a solidão. E os companheiros? E a Taquira?
Abaixou a cabeça: esquecerão, sempre esquecemos.
Jogou longe a capa e, desnudo, ofereceu o pescoço ao carrasco.
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(RUBIÃO, Murilo. "Botão de Rosa". In: O Convidado. 2ed. São Paulo, Edições

Quíron, 1979)

Fonte: O Fantástico Literário na Web

In: http://ofantasticoliterarionaweb.blogspot.com/2011/11/murilo-rubiao-botao-de-rosa.html?m=1

 

 

 

 

 

Comentário do conto "Botão - de - Rosa".


No conto Botão-de-Rosa, Murilo Rubião aborda o tema da Justiça. O personagem central, que tem o mesmo nome do conto, é preso sob a insólita acusação de ter seduzido, estuprado e engravidado todas as mulheres da cidade, ao mesmo tempo. Como escreve Audemaro Taranto Goulart, o Juiz que condena Botão-de-Rosa é uma perfeita metáfora do autoritarismo do indivíduo que estando investido de poder, aproveita-se de sua situação de superioridade para manipular a justiça. Tal figura exemplifica bem a autoridade que exorbita, tão comum no cotidiano de todos. Fica claro que ela não representa a razão, mas, ao contrário, é um exemplo perfeito da desrazão. (In: O Mundo Fantástico de Murilo Rubião. Ed. Lê. Belo Horizonte, 1995).
A narrativa, ao revelar que “quando, numa segunda-feira de março, as mulheres da cidade amanheceram grávidas, Botão-de-Rosa sentiu que era um homem liquidado”, revela também ter havido uma transgressão em termos daquilo que a norma social estipulado: ter engravidado todas as mulheres de uma cidade.
O efeito insólito provoca no leitor a sensação de estranhamento, detém sua atenção e o força a uma leitura ideológica. Aliás, em “O Convidado”- conto de Rubião – a atmosfera geral fica muito mais densa, mais viscosa, se comparada com as narrativas anteriores do autor. A sensação sinistra consegue atingir efeitos sociais bem mais corrosivos. O elemento confirmador dessa possibilidade crítica é o julgamento de Botão-de-Rosa. As argumentações para provar ou não sua inocência perdem totalmente o sentido tradicional; não pela inverossimilhança que elas propõem (Ex. ”As penas variavam entre dez anos de reclusão, prisão perpétua ou morte. José Inácio ficou boquiaberto. Pena de morte! Ela fora abolida cem anos atrás! Ou teria estudado em outros livros?”), mas pela aguda crítica que o texto propõe. Uma leitura linear de um processo judicial semelhante (que conduziria ao inevitável questionamento: inocente ou culpado?) fica totalmente diluída e abafada pela leitura subjacente. O que interessa é o modo pelo qual o julgamento se articula, desencadeando a percepção de uma denúncia implícita ao texto. Ex.: “Se [o juiz] decidiu que esse palhaço cometeu outro delito, não nos cabe discutir e sim preparar as provas necessárias à sua condenação”.
A rejeição de Botão-de-Rosa por parte do povo provoca nos leitores uma crítica aguda à atitude responsável por esta rejeição. “Antes da vinda desse marginal nosso povo tinha hábitos saudáveis, desconhecia os vícios das grandes metrópoles.” A inversão é latente. Quem acaba sendo marginalizado pela crítica é o “povo” e não o “marginal”.
O código religioso, que permeia toda a obra de Murilo Rubião através das epígrafes bíblicas, como unidades redutoras dos contos, ressurge com toda sua força em Botão-de-Rosa. A associação com a figura de Cristo é imediata e inevitável. Seja através de suas ações como dos seus atributos. (As roupas são os primeiros indícios caracterizadores: “longos cabelos”, “túnica branca”, “sandália”, etc.) Os seus “companheiros do conjunto de guitarras” são exatamente doze, simbolizando os apóstolos. Mais ainda, Botão-de-Rosa é traído por um deles (restaurando-se assim a tradição da figura de Judas), e o seu comportamento obedece ao mais elevado dos estoicismos (“um pobre diabo que de negava a defender-se e nem se importava com sua própria condenação”), enquanto sua morte catalisa os pecados do homem (no caso, ironicamente descritos na gravidez das mulheres), e sua pureza, referencializada através do próprio nome, se manifesta simbolicamente no despojamento total revelado pelo momento de sua morte: “desnudo, ofereceu o pescoço ao carrasco”.
Deste modo, vemos como o fantamasgórico e o inverossímil encobrem subtextos que elucidam possibilidades de leitura. E não seria ousado afirmar que o texto “fantástico”, em Murilo Rubião, mascara a mais realista das literaturas.
________________________________________________
Autoria do comentário: Jorge Schwartz. In: Do fantástico como máscara, p. 13 e 14

Fonte: O Fantástico Literário na Web

In: http://ofantasticoliterarionaweb.blogspot.com/2011/11/comentario-do-conto-botao-de-rosa.html?m=1

 

 

 

 

 

Estratégias narrativas dos novos discursos fantásticos na contística de Murilo Rubião, como via de escape aos interditos dos duros anos da ditadura militar brasileira, em “Botão de Rosa”, de O convidado (1974)

Autores

·         Flavio GarcíaUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)http://orcid.org/0000-0003-0761-8092

DOI: 

https://doi.org/10.11606/issn.2316-9826.literartes.2016.115129

Palavras-chave: 

Discurso fantástico, mecanismos de construção narrativa, ditadura militar brasileira, Murilo Rubião.

RESUMO

 O discurso fantástico, conforme Todorov e demais estudiosos dessa vertente ficcional, é considerado uma via de escape aos interditos de diferentes entraves da censura. A crítica brasileira é unânime em inscrever a obra de Murilo Rubião (1916 – 1991) nessa vertente literária. “Botão de Rosa”, conto de seu livro O convidado (1974), ilustraria o primeiro decênio da ditadura militar, instaurada em 1964, expondo mazelas dos duros anos da ditadura militar brasileira, que durou vinte e um anos, somente sendo suplantada em 1985. Nesse, o autor exporia sua visão crítica ao regime. Os mecanismos de construção narrativa empregados por Rubião,nesse seu conto, desnudam situações insólitas do regime ditatorial.

BIOGRAFIA DO AUTOR

Flavio García, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra (UC, 2016), pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2012) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2008); Doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio, 1999); Mestre pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 1995); Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Bolsista PROCIÊNCIA (UERJ/FAPERJ); Coordenador do Seminário Permanente de Estudos Literários da UERJ (SePEL.UERJ), do Núcleo de Estudos do Fantástico da UERJ (NEF.UERJ) e da Unidade de Desenvolvimento Tecnológico Laboratório Multidisciplinar e Multiusuário de Semiótica (UDT-LABSEM); Co-coordenador de Dialogarts Publicações; Editor, juntamente com a Profa. Dra. Darcilia Simões, do Caderno Seminal Digital e, juntamente com o Prof. Dr. Júlio França, da Revista Abusões.

REFERÊNCIAS

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BESSIÈRE, Irène. El relato fantástico: forma mixta de caso y adivinanza. In: ROAS, David (intr., compil. e bibl.). Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/ Libros, 2001, p. 83-104.

CAMPRA, Rosalba. Territorios de la ficción – lo fantástico. Salamanca: Renacimiento, 2008.

CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: Educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática,1987, p. 199-215.

CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

FURTADO, Filipe. Os discursos do metaempírico. In: SEIXO, Maria Alzira (Org.). O fantástico na arte contemporánea. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1992, p. 51-57.

FURTADO, Filipe. Fantástico (modo).E-Dicionário de Termos Literários.In: Carlos Ceia (coord.), 2009.Disponível em:http://www.edtl.com.pt.Acessado em: 26-07-2011.

GINWAY, Mary Elizabeth.Visão alienígena: ensaio sobre ficção científica brasileira. São Paulo: Devir, 2010.

GORDON, Andrew M. Introdução. In: GINWAY, M. Elizabeth. Visão alienígena: ensaio sobre ficção científica brasileira. São Paulo: Devir, 2010, p. 11-14.

PRADA OROPEZA, Renato. El discurso fantástico contemporáneo: tensión semántica y efecto estético. In: Semiosis, Tercera época, 2, (3), p. 54-76, enero-junio, 2006.

RUBIÃO, Murilo. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

RUBIÃO, Murilo. As unhas. In: GARCÍA, Flavio; BATALHA, Maria Cristina. Murilo Rubião 20 anos depois de sua morte. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013, p. 125-130.

ROAS, David. Tras los límites de lo real. Una definición de lo fantástico. Madrid: Páginas de Espuma, 2011.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.

 

 

 

 


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PUBLICADO

2016-12-27

COMO CITAR

GARCÍA, F. Estratégias narrativas dos novos discursos fantásticos na contística de Murilo Rubião, como via de escape aos interditos dos duros anos da ditadura militar brasileira, em “Botão de Rosa”, de O convidado (1974). Literartes[S. l.], n. 6, p. 26-45, 2016. DOI: 10.11606/issn.2316-9826.literartes.2016.115129. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/literartes/article/view/115129. Acesso em: 21 nov. 2020.

Fomatos de Citação

EDIÇÃO        

n. 6 (2016): Fantástico e imaginário: dossiê Murilo Rubião e seus arredores

 

Artigos mais lidos pelo mesmo(s) autor(es)

In:

https://www.revistas.usp.br/literartes/article/view/115129

 

 

 

 

A presença de dualidades em Murilo Rubião

Profa. Dra. Edilene Gasparini Fernandes1 (UNIFASS)

Resumo:

 

Analisando a idéia de constituição do sujeito ao longo dos séculos percorremos um caminho cujo desfecho se dá no desmonte que Adorno propõe a respeito da teoria luckaksiana do reflexo. O objetivo desse traçado é abordar a visão do sujeito autor e a sua relação com a obra que produz. A partir desse caminho crítico, elegemos analisar 3 contos de Murilo Rubião - Botão-de-rosa, Os comensais e O bloqueio - selecionados a partir da presença, neles, de algum aspecto que remeta sua leitura para o campo do político e cuja produção coincide com o período em que o Brasil foi governado por militares. Embora tematicamente homogêneos esses textos se configuram de forma diferente. A bipolaridade neles anuncia uma dupla perspectiva enunciativa, porém intercomunicante entre si.

 

Palavras-chave: contos fantásticos e estranhos; dualidades; sujeito; político

Fonte: XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil

In: https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/008/EDILENE_FERNANDES.pdf

 

 

 

 

A cidade e o fantástico na obra de Murilo Rubião

Nilson Guimarães Doria

 

Resumo

 

Murilo Rubião é sem dúvida um dos nomes mais representativos do gênero fantástico da literatura brasileira. Talvez a pouca extensão de seu trabalho como contista tenha colaborado para torná-lo pouco conhecido do grande público, talvez a crítica severa que em muitas e nem sempre veladas ocasiões o acusou de plágio de Kafka o tenham assim tornado. Assim como Kafka, Rubião retratou a realidade do cotidiano de uma forma fantástica, quase-mágica, muito embora realista. Realidade e fantasia unem-se na obra de ambos os autores, fundem-se, ora por eles tornarem o impossível verossímil, ora por tornarem o hodierno inacreditável, inaceitável apesar de verdadeiro. Interessa-nos aqui realçar a abordagem fantástica que Murilo Rubião faz das cidades, de seu cotidiano e seu modo de funcionamento, e é aí que sua proximidade de Kafka se torna valiosa, pois se Rubião é pouco conhecido, Kafka não o é, o que torna mais fácil ao leitor compreender o universo de Rubião. A dinâmica das cidades e os absurdos com os quais se confrontam os protagonistas dos cinco contos aqui selecionados para proceder à análise - A Cidade, O Edifício, A Fila, Os Dragões e Botão-de-Rosa - são extremamente semelhantes àqueles encontrados por Josef K. em O Processo, ou ainda pelo agrimensor K. de O Castelo. O que procuraremos abordar é tanto a verossimilhança dos eventos fantásticos narrados por Rubião quanto o aspecto mágico de eventos absurdos porém hodiernos. O objetivo deste trabalho é indicar onde o realismo mágico de Murilo Rubião desvela aquilo que muitas vezes se esconde ao estudioso das cidades, seja ele o urbanista, o psicólogo, o historiador, o arqueólogo: o cotidiano. O cotidiano e suas contradições, em especial a contradição inerente aos projetos ou idéias de cidades e as cidades enquanto tais, onde as pessoas não só habitam, transitam, ou visitam, mas, antes de tudo, vivem.

 

Palavras-chave

 

Murilo Rubião; Franz Kafka; cidade

 

Texto completo:

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Fonte: Mnemosine

Capa > v. 1, n. 2 (2005) > Doria

UERJ

In:

https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41383

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