...esquecerão,
sempre esquecemos.”
“O que foi, torna a ser. O que é, perde
existência.
O palpável é nada. O nada assume essência.” Goethe
Murilo Rubião:
Botão-de-Rosa.
“Aroma de mirra,
de aloés e cássia exala de tuas vestes, desde as casas de marfim.”
Salmos, VLIV, 9.
Quando, numa segunda-feira de março, as mulheres da cidade amanheceram
grávidas, Botão-de Rosa sentiu que era um homem liquidado. Entretanto não se
preocupou, aborto em pentear os longos cabelos. Concluído o penteado, passou a
alisar a barba com uma escova especial umedecida em perfume. Nesse instante
ouviu gritos vindos da rua. Não distinguia bem o que gritavam, mas de uma coisa
estava certo: vinham pegá-lo. – Deu de ombros e buscou uma fita colorida para
prender a cabeleira.
Antes de despir a camisola de seda, escolheu para o dia o seu melhor traje: uma
túnica branca, bordada a ouro dos companheiros do conjunto de guitarras –
Molinete, Zelote, Judô, Pedro Taguatinga, Simonete, Bacamarte,
André-Tripa-Miúda, Íon, Mataqueus, Pisca, Filipeto e Bartô – com os quais
acertara novo encontro no Festival. Até lá Taquira teria o filho. (Fora
obrigado a separar-se da companheira porque os pais recusaram a recebê-lo em
casa, alegando que não eram casados. Teve, à época, vaga premonição de que
jamais se reencontrariam.)
Separou as meias, o cinturão de fivela dourada e procurou uma sandália que
combinasse com o vestuário. Sua escolha recaiu numa de solas grossas,
apropriadas ao péssimo calçamento da cidade.
O clamor crescia lá fora, aumentava-lhe a impaciência: não podiam esperar que
acabasse de se aprontar? Ou temiam pela fuga? Malta de ignorantes, como poderia
fugir? Antes que apelassem para a força, procurou acalmá-los, mostrando-se na
varanda. A turba emudeceu à sua presença. Fez-se um silêncio hostil, os olhos
enfurecidos cravados na sua figura tranqüila. Um moleque atirou-lhe uma pedra
certeira na testa e a multidão de novo se assanhou: Cabeludo! Estuprador!
Piolhento!
Quando compreenderiam? – Retrocedeu até a sala. Não por covardia, apenas para
estancar o sangue que começava a descer pela face e certamente lhe mancharia a
roupa. Medicava-se ainda e ouviu baterem na porta. Era o sargento, comandante
do destacamento, acompanhado de seis soldados e um mandado de prisão. Nem leu o
papel. Alçando a mão, num apelo mudo, para que o esperassem, voltou ao quarto.
Após jogar suas coisas na maleta, colocar nos dedos os anéis e no pescoço os
colares, seguiu os policiais.
A autoridade
deles devia ser grande, pois cessaram as vaias, ouvindo-se somente o rosnar de
alguns populares. Das sacadas, em todo o percurso, mulheres com os rostos
protegidos por máscaras, que ocultavam ansiosas o cortejo. As únicas janelas
fechadas pertenciam à resistência dos pais de Taquira.
O delegado, um tenente reformado, recebeu-o com afetada cortesia, indiferente à
hostilidade geral contra o prisioneiro:
- O senhor é acusado de estupro e de ter engravidado as... – Interrompeu a
frase para atender ao telefone:
- Pronto. Às ordens meritíssimas. Estou atento. Novas diligências? Quantas
quiser. Encontraram drogas? Mudarei o rumo dos interrogatórios.
O telefonema perturbara-o. Menos empertigado e sem afetação, voltou-se para o
detido:
- Houve um equívoco: você está preso sob suspeita de traficar heroína – Fez uma
pequena pausa e, embaraçado, prosseguiu:
- Pode depor sem constrangimento. O seu defensor, Doutor José Inácio – apontava
para um rapaz que acabara de entrar na sala – testemunhará a nossa isenção.
Queremos a verdade.
A verdade. O que significaria? Tempos atrás lhe fizeram igual pergunta e nada
respondera. Também agora, e nos dias subseqüentes, permaneceria calado.
Alheios às perguntas capciosas, Botão só se preocupava com a aflição do seu
patrono, talvez a única pessoa a desconhecer que fora designado exclusivamente
para dar aparência de legalidade ao processo.
O mutismo do indiciado não irritou o militar. Parecia até agradá-lo. Mandou que
o recolhessem ao cárcere. (Antes de acareá-lo com as testemunhas, procederia a
outras investigações, visando esclarecer certos pontos obscuros da denúncia.)
O advogado, que permanecera na sala, indagou:
- Por que acusam o meu cliente de traficante de drogas, se antes o incriminavam
de estuprador e cúmplice de centenas de adultérios?
- Que ingenuidade, amigo. Você está há pouco tempo entre nós e ignora que aqui
só prevalece o Juiz, proprietário da maior parte das casas da cidade, inclusive
dos prédios públicos, da companhia telefônica, do cinema, das duas farmácias,
de cinco fazendas de gado, do matadouro e da empresa funerária. Se decidiu que
esse palhaço cometeu outro delito, não nos cabe discutir e sim preparar as
provas necessárias à sua condenação.
- Penso que o meu dever é agir com imparcialidade, conforme declarou
anteriormente, e impedir o arbítrio dos poderosos.
Nesse instante, em frente à Delegacia, a população começou a vociferar: Lincha!
Mata! Enforca! O oficial parecia se divertir com a situação:
- O seu constituinte não tem muitas chances de sobreviver, Alguém cuidará dele.
A Justiça ou o povo.
José Inácio saiu preocupado com a sorte do prisioneiro. Além de ter contra si a
animosidade de todos, nem ao menos se declarava inocente. Sua preocupação se
transformou em medo ao ver-se encarado pelos homens que se postavam na rua.
Olhavam-no carrancudos e silenciosos.
No hotel a recepção não foi melhor. O hoteleiro e os hóspedes, que antes o
tratavam com acentuada simpatia, passaram a evitá-lo.
***
Durante a semana tentaram, sem êxito, arrancar uma confissão de Botão-de-Rosa.
Mudo e impassível, ouvia desatento o que lhe perguntavam repetidamente:
- Quer falar agora? Quem lhe fornecia os entorpecentes?
O interrogatório não se estendia muito e logo mandavam-no de volta à cela.
Ao chegar a vez das testemunhas, eles asseguravam que no momento da prisão, o
indiciado carregava heroína consigo. A polícia deu-se por satisfeita com os
depoimentos e considerou-os suficientes para caracterizar o delito. Preenchidas
as últimas formalidades, os autos foram remetidos à Justiça.
***
Se para o advogado o inquérito policial transbordava de irregularidades,
algumas gritantes, como a ausência do auto de prisão em flagrante, maior
escândalo lhe causaria o transcurso de instrução criminal, inteiramente fora
das normas processuais. Verificando que seu cliente seria julgado pelo Tribunal
do júri, procurou o promotor e lhe disse que iria argüir incompetência de juízo
se o réu fosse enquadrado no ritual da lei que tratava de entorpecentes.
- O senhor está pilheriando ou é incompetente. Em que se baseia para usar tão
esdrúxulo recurso?
Surpreso com a resposta intempestiva, pediu licença para consultar o Código de
Processo Penal, que retirou de uma estante ao lado.
À medida que avançava na leitura, mais chocado ficava, pensando ter em suas
mãos uma edição falsificada, ou então nada aprendera nos cursos de Faculdade.
Numa pequena livraria comprou u exemplar da Constituição e todos os códigos,
porque talvez tivesse que reformular seu aprendizado jurídico.
***
Leu até de madrugada. A cada página lida, se abismava com a preocupação do
legislador em cercear a defesa dos transgressores das leis penais.
Principalmente no capitulo dos entorpecentes, onde não se permitia apresentar
determinados recursos, requer desdobramento. A violação de seus artigos era
considerada crime gravíssimo contra a sociedade e punível por tribunal popular.
As penas variaram entre dez anos de reclusão, prisão perpétua ou morte.
José Inácio ficou boquiaberto: Pena de morte! Ela fora abolida cem anos atrás!
Ou teria estudado em outros livros?
Em compensação, ocorrendo a pena capital, admitia-se apelar para instância
superior. Desorientado, abandonou os compêndios.
Passou os dias seguintes a remoer o assunto, enquanto na porta do hotel um
número crescente de indivíduos mal-encarados aguardava sua saída, para segui-lo
impiedosamente pelas ruas da cidade. Também recebia constantes ameaças pelo
telefone e cartas anônimas.
Aos poucos, se acordava, perdia a esperança de conseguir absolver seu
constituinte. Na véspera do julgamento, atemorizado, resolveu abandonar a
cidade. Tomara as providências para a viagem e só faltava pagar as contas,
quando apareceu o delegado:
- Não vai me dizer que pretende escapar ao júri de amanhã? Sua fuga seria uma
desconsideração ao Juiz. Aliás, trago um recado dele. Pediu-me para lhe dizer
que não gostou de sua displicência na instrução criminal. Espera, daqui pra
frente, o exato cumprimento de suas obrigações como defensor do réu – E, dando
fim à sua missão, ordenou ao rapaz que guardava as malas do hóspede:
- Leva tudo de volta para cima.
***
A escolta de Botão-de-Rosa encontrou forte resistência para entrar no Fórum.
Uma pequena e exaltada multidão, que impedia a passagem, investiu sobre o
prisioneiro a bofetadas e pontapés.
Os militares presenciaram, complacentes, o espancamento e só tornaram a decisão
de intervir quando viram a vítima sangrar. Violentos, a golpes de sabres,
afastaram da porta os desordeiros.
Dentro do edifício deram-se conta de que não podiam introduzir no recinto do
tribunal o prisioneiro, tal o estado de suas roupas, rasgadas de cima a baixo.
Alguém, que assistira à agressão da janela de uma casa nas vizinhas,
mandou-lhes uma capa feminina para cobrir a nudez de Botão.
***
Sentado no banco dos réus, entre dois soldados, Botão-de-Rosa mal conseguia
mover as pálpebras, as pernas começavam a inchar. Levantou-se, arquejante, a
uma ordem do Juiz, que de início ao interrogatório de praxe. Nada respondeu e
nem poderia fazê-lo caso desejasse. Os lábios estavam intumescidos, os dentes
abalados doíam ao contato com a língua.
- Inocente ou culpado? – Foi a última pergunta que lhe fizeram e a repetiu para
si mesmo, deixando transparecer alguma turbação no rosto.
O magistrado encerrou a inquirição com uma advertência:
- Embora não esteja obrigado a nos responder, o seu silêncio poderá ser
interpretado em prejuízo da própria defesa.
***
O promotor falava há mais de duas horas. Respirava argumentos, insistia em
detalhes insignificantes. Ao notar que ninguém lhe prestava atenção, tratou de
terminar o enfadonho discurso com a leitura de uma carta sem assinatura, na
qual denunciavam o acusado de traficante de heroína e maconha.
- Uma carta anônima! E essa maconha, não mencionada anteriormente? É um acinte
ao tribunal apresentar uma prova desse tipo – aparteou o defensor.
- Ela merece fé. Posso exibir o laudo da perícia, constante de minucioso estudo
grafológico, que afirma ser de Judô, um dos componentes do conjunto musical do
indiciado, a autoria da denúncia.
- Pobre companheiro – murmurou Botão – deve ter-se vendido por algumas doses de
entorpecentes. Não conseguia viver sem a droga. Por que culpá-la, agora? Uma
testemunha a menos não o absolveria. – Voltou-se para trás: a formação do grupo
com músicos inexperientes, pouco dinheiro, idéias de malucos. As cidades do
caminho, aplausos e vaias, a orquestra crescendo. O aparecimento de Taquira. –
Esquecera o corpo maltrado e o obrigaram-no a retornar à realidade.
- Senhores jurados, a acusação do Ministério Público, além de inepta, é
tendenciosa. O réu não cometeu o delito que lhe atribuem. Poderia, no máximo,
ser processado como cúmplice de numerosos adultérios, mas isto não seria
conveniente para a cidade, pois a transformaria num imenso antro de cornos. –
Era advogado de defesa que discursava e pretendia com a última frase
desmascarar os que aplicavam e pretendia com a última frase desmascarar os que
aplicavam a justiça no lugar. Surpreendeu-o, entretanto, a repulsa instantânea
de assistência e jurados, que avançaram, enraivecidos, em sua direção.
O Juiz fez soar repetidamente a campainha, ameaçando evacuar o recinto. Por
fim, com a colaboração dos soldados, conseguiu que todos voltassem a seus
lugares.
José Inácio encolhera-se num canto e, convocado a retornar a tribuna, obedeceu
amedrontando, disposto a abreviar suas considerações. Falava com cautela,
pesando as palavras, algumas ambíguas, as idéias desconcatenadas e a negar
crimes que a própria acusação não atribuía ao incriminado.
Havia total descompasso entre o que afirmava e os apartes do promotor:
- Como poderia engravidar meninas de oito e matronas de oitenta anos?
- Protesto! O delito em pauta se refere unicamente a estupefacientes!
- Os casos de gravidez em massa, ocorridos nesta localidade, não podem ser
atribuídos ao denunciado.
- antes da vinda desse marginal nosso povo tinha hábitos saudáveis, desconhecia
os vícios das grandes metrópoles.
** *
O Presidente do Tribunal leu a sentença que condenava Botão-de-Rosa à pena de
morte, a ser cumprida no dia seguinte, e exortou a todos que respeitassem a
integridade física do condenado, deixando ao verdugo a tarefa de eliminá-lo.
A recomendação final do magistrado alarmou o defensor: e a sua segurança, quem
a garantiria?
O delegado percebeu, de longe, o temor que o afligia e veio a seu encontro:
- Não precisa ter medo. Basta ser compreensivo. O sentenciado só escapará da
forca se houver apelação, pois a Suprema Corte tem por norma transformar as
penas máximas em prisão perpétua. Se você não recorrer, lhe garantiremos uma
rendosa banca de advocacia. A promessa é do Juiz.
José Inácio reviu, mentalmente, as diversas fases do processo, o cerceamento da
defesa do réu, permitindo por uma legislação absurda. Sentiu-se na obrigação de
apelar e impedir que cometessem terrível iniqüidade. Não havia outra opção,
contudo, vacilava. O duro espancamento de seu constituinte deveria ter tomado
como um aviso do que lhe poderia acontecer, caso apelasse. E por que trocar as
possibilidades de sucesso na sua carreira profissional pela vida de um
pobre-diabo que se negava a defender-se e nem se importava com a sua própria
condenação? Desistiu do recurso.
***
Além da cama, Botão pouco encontrou na cela. Tinham levado as roupas, os
objetos de uso pessoal, inclusive e dentifrício e a escova de dente.
Deitou-se nu e aguardou a noite.
As seis da manhã vieram buscá-lo, porem teve dificuldade em levantar-se. Os
membros, ressentidos da surra da véspera, não lhe obedeciam. Para erguer-se,
foi necessário a ajuda do carcereiro.
Os soldados, à sua espera numa sala da delegacia, conduziram-no ao local da
execução. Caminhada áspera, na qual se empenhou em seguir firme, os ombros
erguidos.
Do alto do patíbulo, na praça vazia, pela primeira vez lhe passava a solidão. E
os companheiros? E a Taquira?
Abaixou a cabeça: esquecerão, sempre esquecemos.
Jogou longe a capa e, desnudo, ofereceu o pescoço ao carrasco.
---------------------------------------------
(RUBIÃO, Murilo. "Botão de Rosa". In: O Convidado. 2ed. São
Paulo, Edições
Quíron, 1979)
Fonte: O Fantástico Literário na
Web
In: http://ofantasticoliterarionaweb.blogspot.com/2011/11/murilo-rubiao-botao-de-rosa.html?m=1
Comentário do
conto "Botão - de - Rosa".
No conto Botão-de-Rosa, Murilo Rubião aborda o tema da Justiça. O
personagem central, que tem o mesmo nome do conto, é preso sob a insólita
acusação de ter seduzido, estuprado e engravidado todas as mulheres da cidade,
ao mesmo tempo. Como escreve Audemaro Taranto Goulart, o Juiz que condena
Botão-de-Rosa é uma perfeita metáfora do autoritarismo do indivíduo que estando
investido de poder, aproveita-se de sua situação de superioridade para
manipular a justiça. Tal figura exemplifica bem a autoridade que exorbita, tão
comum no cotidiano de todos. Fica claro que ela não representa a razão, mas, ao
contrário, é um exemplo perfeito da desrazão. (In: O Mundo Fantástico de Murilo
Rubião. Ed. Lê. Belo Horizonte, 1995).
A narrativa, ao revelar que “quando, numa segunda-feira de março, as mulheres
da cidade amanheceram grávidas, Botão-de-Rosa sentiu que era um homem
liquidado”, revela também ter havido uma transgressão em termos daquilo que a
norma social estipulado: ter engravidado todas as mulheres de uma cidade.
O efeito insólito provoca no leitor a sensação de estranhamento, detém sua
atenção e o força a uma leitura ideológica. Aliás, em “O Convidado”- conto de
Rubião – a atmosfera geral fica muito mais densa, mais viscosa, se comparada
com as narrativas anteriores do autor. A sensação sinistra consegue atingir
efeitos sociais bem mais corrosivos. O elemento confirmador dessa possibilidade
crítica é o julgamento de Botão-de-Rosa. As argumentações para provar ou não
sua inocência perdem totalmente o sentido tradicional; não pela
inverossimilhança que elas propõem (Ex. ”As penas variavam entre dez anos de
reclusão, prisão perpétua ou morte. José Inácio ficou boquiaberto. Pena de
morte! Ela fora abolida cem anos atrás! Ou teria estudado em outros livros?”),
mas pela aguda crítica que o texto propõe. Uma leitura linear de um processo
judicial semelhante (que conduziria ao inevitável questionamento: inocente ou
culpado?) fica totalmente diluída e abafada pela leitura subjacente. O que
interessa é o modo pelo qual o julgamento se articula, desencadeando a
percepção de uma denúncia implícita ao texto. Ex.: “Se [o juiz] decidiu que
esse palhaço cometeu outro delito, não nos cabe discutir e sim preparar as
provas necessárias à sua condenação”.
A rejeição de Botão-de-Rosa por parte do povo provoca nos leitores uma crítica
aguda à atitude responsável por esta rejeição. “Antes da vinda desse marginal
nosso povo tinha hábitos saudáveis, desconhecia os vícios das grandes
metrópoles.” A inversão é latente. Quem acaba sendo marginalizado pela crítica
é o “povo” e não o “marginal”.
O código religioso, que permeia toda a obra de Murilo Rubião através das
epígrafes bíblicas, como unidades redutoras dos contos, ressurge com toda sua
força em Botão-de-Rosa. A associação com a figura de Cristo é imediata e
inevitável. Seja através de suas ações como dos seus atributos. (As roupas são
os primeiros indícios caracterizadores: “longos cabelos”, “túnica branca”,
“sandália”, etc.) Os seus “companheiros do conjunto de guitarras” são
exatamente doze, simbolizando os apóstolos. Mais ainda, Botão-de-Rosa é traído
por um deles (restaurando-se assim a tradição da figura de Judas), e o seu
comportamento obedece ao mais elevado dos estoicismos (“um pobre diabo que de
negava a defender-se e nem se importava com sua própria condenação”), enquanto
sua morte catalisa os pecados do homem (no caso, ironicamente descritos na
gravidez das mulheres), e sua pureza, referencializada através do próprio nome,
se manifesta simbolicamente no despojamento total revelado pelo momento de sua
morte: “desnudo, ofereceu o pescoço ao carrasco”.
Deste modo, vemos como o fantamasgórico e o inverossímil encobrem subtextos que
elucidam possibilidades de leitura. E não seria ousado afirmar que o texto
“fantástico”, em Murilo Rubião, mascara a mais realista das literaturas.
________________________________________________
Autoria do comentário: Jorge Schwartz. In: Do fantástico como máscara, p. 13 e
14
Fonte: O Fantástico Literário na
Web
In: http://ofantasticoliterarionaweb.blogspot.com/2011/11/comentario-do-conto-botao-de-rosa.html?m=1
Estratégias
narrativas dos novos discursos fantásticos na contística de Murilo Rubião, como
via de escape aos interditos dos duros anos da ditadura militar brasileira, em
“Botão de Rosa”, de O convidado (1974)
Autores
·
Flavio GarcíaUniversidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ)http://orcid.org/0000-0003-0761-8092
DOI:
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9826.literartes.2016.115129
Palavras-chave:
Discurso
fantástico, mecanismos de construção narrativa, ditadura militar brasileira,
Murilo Rubião.
RESUMO
O
discurso fantástico, conforme Todorov e demais estudiosos dessa vertente
ficcional, é considerado uma via de escape aos interditos de diferentes
entraves da censura. A crítica brasileira é unânime em inscrever a obra de
Murilo Rubião (1916 – 1991) nessa vertente literária. “Botão de Rosa”, conto de
seu livro O convidado (1974), ilustraria o primeiro decênio da
ditadura militar, instaurada em 1964, expondo mazelas dos duros anos da
ditadura militar brasileira, que durou vinte e um anos, somente sendo
suplantada em 1985. Nesse, o autor exporia sua visão crítica ao regime. Os
mecanismos de construção narrativa empregados por Rubião,nesse seu conto,
desnudam situações insólitas do regime ditatorial.
BIOGRAFIA DO AUTOR
Flavio García, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Pós-Doutor
pela Universidade de Coimbra (UC, 2016), pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS, 2012) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ, 2008); Doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio, 1999); Mestre pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 1995);
Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ);
Bolsista PROCIÊNCIA (UERJ/FAPERJ); Coordenador do Seminário Permanente de
Estudos Literários da UERJ (SePEL.UERJ), do Núcleo de Estudos do Fantástico da
UERJ (NEF.UERJ) e da Unidade de Desenvolvimento Tecnológico Laboratório
Multidisciplinar e Multiusuário de Semiótica (UDT-LABSEM); Co-coordenador de
Dialogarts Publicações; Editor, juntamente com a Profa. Dra. Darcilia Simões,
do Caderno Seminal Digital e, juntamente com o Prof. Dr. Júlio França, da
Revista Abusões.
REFERÊNCIAS
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BESSIÈRE, Irène. El
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2009.Disponível em:http://www.edtl.com.pt.Acessado em:
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GINWAY, Mary
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Introdução. In: GINWAY, M. Elizabeth. Visão alienígena: ensaio sobre ficção
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Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
RUBIÃO, Murilo. As
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TODOROV, Tzvetan.
Introdução à literatura fantástica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
https://www.revistas.usp.br/public/journals/111/cover_issue_8677_pt_BR.png
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PUBLICADO
2016-12-27
COMO CITAR
GARCÍA, F. Estratégias narrativas
dos novos discursos fantásticos na contística de Murilo Rubião, como via de
escape aos interditos dos duros anos da ditadura militar brasileira, em “Botão
de Rosa”, de O convidado (1974). Literartes, [S. l.],
n. 6, p. 26-45, 2016. DOI: 10.11606/issn.2316-9826.literartes.2016.115129.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/literartes/article/view/115129.
Acesso em: 21 nov. 2020.
Fomatos de Citação
EDIÇÃO
n. 6 (2016): Fantástico e imaginário: dossiê Murilo
Rubião e seus arredores
Artigos mais
lidos pelo mesmo(s) autor(es)
- Flavio García, Marisa Martins
Gama-Khalil, A ficção e o fantástico — entrevista com David
Roas , Literartes: n. 7 (2017): Fantástico e imaginário:
reflexões contemporâneas
In:
https://www.revistas.usp.br/literartes/article/view/115129
A
presença de dualidades em Murilo Rubião
Profa. Dra.
Edilene Gasparini Fernandes1 (UNIFASS)
Resumo:
Analisando
a idéia de constituição do sujeito ao longo dos séculos percorremos um caminho
cujo desfecho se dá no desmonte que Adorno propõe a respeito da teoria
luckaksiana do reflexo. O objetivo desse traçado é abordar a visão do sujeito
autor e a sua relação com a obra que produz. A partir desse caminho crítico,
elegemos analisar 3 contos de Murilo Rubião - Botão-de-rosa, Os comensais e O
bloqueio - selecionados a partir da presença, neles, de algum aspecto que
remeta sua leitura para o campo do político e cuja produção coincide com o
período em que o Brasil foi governado por militares. Embora tematicamente
homogêneos esses textos se configuram de forma diferente. A bipolaridade neles
anuncia uma dupla perspectiva enunciativa, porém intercomunicante entre si.
Palavras-chave: contos fantásticos e estranhos;
dualidades; sujeito; político
Fonte: XI
Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a
17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil
In: https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/008/EDILENE_FERNANDES.pdf
A cidade e o
fantástico na obra de Murilo Rubião
Nilson Guimarães
Doria
Resumo
Murilo Rubião é sem dúvida um dos
nomes mais representativos do gênero fantástico da literatura brasileira.
Talvez a pouca extensão de seu trabalho como contista tenha colaborado para
torná-lo pouco conhecido do grande público, talvez a crítica severa que em
muitas e nem sempre veladas ocasiões o acusou de plágio de Kafka o tenham assim
tornado. Assim como Kafka, Rubião retratou a realidade do cotidiano de uma
forma fantástica, quase-mágica, muito embora realista. Realidade e fantasia
unem-se na obra de ambos os autores, fundem-se, ora por eles tornarem o
impossível verossímil, ora por tornarem o hodierno inacreditável, inaceitável
apesar de verdadeiro. Interessa-nos aqui realçar a abordagem fantástica que
Murilo Rubião faz das cidades, de seu cotidiano e seu modo de funcionamento, e
é aí que sua proximidade de Kafka se torna valiosa, pois se Rubião é pouco
conhecido, Kafka não o é, o que torna mais fácil ao leitor compreender o
universo de Rubião. A dinâmica das cidades e os absurdos com os quais se confrontam
os protagonistas dos cinco contos aqui selecionados para proceder à análise - A Cidade, O Edifício, A Fila, Os Dragões
e Botão-de-Rosa - são extremamente semelhantes àqueles
encontrados por Josef K. em O Processo, ou ainda pelo agrimensor K. de O Castelo.
O que procuraremos abordar é tanto a verossimilhança dos eventos fantásticos
narrados por Rubião quanto o aspecto mágico de eventos absurdos porém
hodiernos. O objetivo deste trabalho é indicar onde o realismo mágico de Murilo
Rubião desvela aquilo que muitas vezes se esconde ao estudioso das cidades,
seja ele o urbanista, o psicólogo, o historiador, o arqueólogo: o cotidiano. O
cotidiano e suas contradições, em especial a contradição inerente aos projetos
ou idéias de cidades e as cidades enquanto tais, onde as pessoas não só
habitam, transitam, ou visitam, mas, antes de tudo, vivem.
Palavras-chave
Murilo Rubião; Franz Kafka; cidade
Texto completo:
Fonte: Mnemosine
Capa > v. 1, n. 2 (2005) > Doria
UERJ
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