Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
domingo, 19 de maio de 2024
PRIMAVERA
"O Medo de Amar É o Medo de Ser Livre"
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Jean-Baptiste Debret . O Velho Orfeu Africano. Oricongo, 1826
Museus Castro Maya - IPHAN/MinC (Rio de Janeiro, RJ)
Fonte : https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra61280/o-velho-orfeu-africano-oricongo
✵✵✵
MEUS AMORES3
Pretidão de amor,
Tão leda figura
Que a neve lhe jura,
Que mudara a cor.
Camões — Endechas
1
Meus amores são lindos, cor da noite
Recamada de estrelas rutilantes;
Tão formosa crioula, ou Tétis negra,
Tem por olhos dois astros cintilantes.
2
Em rubentes granadas embutidas
Tem por dentes as pérolas mimosas,
Gotas de orvalho que o inverno gela
Nas breves pétalas de carmínea rosa.
3
Os braços torneados que alucinam,
Quando os move perluxa com langor.
A boca é roxo lírio abrindo a medo,
Dos lábios se distila o grato olor.
4
O colo de veludo Vênus bela
Trocara pelo seu, de inveja morta;
Da cintura nos quebros há luxúria
Que a filha de Cineras não suporta.
5
A cabeça envolvida em núbia trunfa,
Os seios são dois globos a saltar;
A voz traduz lascívia que arrebata,
– É coisa de sentir, não de contar.
6
Quando a brisa veloz, por entre anáguas
Espaneja as cambraias escondidas,
Deixando ver aos olhos cobiçosos
As lisas pernas de ébano luzidas.
7
Santo embora, o mortal que a encontra pára,
Da cabeça lhe foge o bento siso;
Nervosa comoção as bragas rompe-lhe,
E fica como Adão no Paraíso.
8
Meus amores são lindos, cor de noite,
Recamada de estrelas rutilantes;
Tão formosa creoula, ou Tétis negra,
Tem por olhos dois astros cintilantes.
9
Ao ver no chão tocar seus dois pés mimosos,
Calçando de cetim alvas chinelas,
Quisera ser a terra em que ela pisa,
Torná-las em colher, comer com elas.
10
São minguados os séculos para amá-la,
De gigante a estrutura não bastara,
De Marte o coração, alma de Jove,
Que um seu lascivo olhar tudo prostrara.
11
Se a sorte caprichosa em vento, ao menos,
Me quisesse tornar, depois de morto;
Em bojuda fragata o corpo dela,
As saias em velame, a tumba em porto,
12
Como os Euros, zunindo dentre os mastros,
Eu quisera açoitar-lhe o pavilhão;
O velacho bolsar, bramir na proa,
Pela popa rojar, feito em tufão.
13
Dar cultos à beleza, amor aos peitos,
Sem vida que transponha a eternidade,
Bem que mostra que a sandice estava em voga
Quando Uranus gerou a humanidade.
14
Mas já que o fato iníquo não consente,
Que o amor, além da campa, faça vaza,
Ornemos de Cupido as santas aras,
Tu feita em fogareiro, eu feito em brasa.
1. Esse poema tornou-se célebre graças a Manuel Bandeira que o incluiu em sua Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica (1937), por considerá-lo a “melhor sátira da poesia brasileira”.
2. Nota de rodapé de Luiz Gama no poema “Lá vai verso!”, na edição de 1859:
«Caiumbas = danças animadas, às quais presidem os seres transcendentais.»
3. Na sua Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica (1937), o poeta Manuel Bandeira confessou sua admiração pelas quadras perfeitas, “no fundo e na forma” do poema “Meus amores”.
Poemas de Luiz Gama
Luiz Gama
https://www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/biblioteca/textos-literarios/845/poemas-de-luiz-gama
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A Oliver, meu filho...
Quando entrar setembro, e a boa nova andar
nos campos...
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Sol de Primavera Beto Guedes
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Regina Côrtes
Sol de Primavera
Composição: Beto Guedes / Ronaldo Bastos
Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos
Quero ver brotar o perdão onde a gente plantou juntos outra vez
Já sonhamos juntos semeando as canções no vento
Quero ver crescer nossa voz no que falta sonhar
Já choramos muito, muitos se perderam no caminho
Mesmo assim não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer
Sol de primavera abre as janelas do meu peito
a lição sabemos de cor
só nos resta aprender...
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Cumprir com nosso dever: o único caminho
seguro na vida.
Lukács, Die Seele und die Formen
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A relação sujeito-objeto na Estética de Georg Lukács:
reformulação e desfecho de um projeto interrompido
Rainer Patriota
BELO HORIZONTE
2010
RESUMO
Discernir e expor o núcleo categorial da estética de maturidade do filósofo húngaro Georg
Lukács é o objetivo do presente trabalho. Objetivo que, conforme se mostra aqui, implica
no resgate da obra de juventude do autor, em particular, de seus manuscritos inacabados de
estética produzidos em Heidelberg entre 1912-1918. Neste sentido, a estética marxista é
entendida e examinada como reformulação e desfecho do projeto interrompido de
Heidelberg, pois, em ambas, o centro categorial é a determinação da autonomia da arte
enquanto sujeito-objeto idêntico. No entanto, se na primeira estética Lukács tenta
transplantar o princípio hegeliano para o contexto da filosofia transcendental do
neokantismo (sob influência decisiva de Lask), na segunda estética, este transplante é
conduzido sob bases materialistas (Marx), em razão do que, contrariamente ao dualismo
transcendental sustentado no passado, são estabelecidas relações genéticas e interativas
entre o plano da vida cotidiana (empírica) e o plano (normativo) da arte.
Palavras chaves: Lukács; estética; neokantismo; marxismo; Hegel; relação sujeito-objeto.
ABSTRACT
The aim of this paper is to identify and show the categorical center of the Hungarian
philosopher Georg Lukács´ late Aesthetic. For such purpose, will be recover his early work,
especially, his unfinished manuscript of aesthetics written in Heidelberg at the period of
1912-1918. The Marxist Aesthetics is seen and inquired at as a reformulation and
conclusion of the interrupted Heidelberg project. In fact, both aesthetics try to determine
the autonomy of art as a kind of a subject-object identity. But if in the former Lukács
searches to transplant this Hegelian principle to the context of the neo-Kantian philosophy
(strongly influenced by Lask), in the latter the transplantation is accomplished on
materialistic ground (Marx) against the transcendental dualism of the past. As a result,
genetics and interactive relations are produced between the realm of daily life and the
normative realm of art.
Key-words: Lukács; Aesthetics; Neokantism; Marxism; Hegel; subject-object relationship.
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LUIZ GAMA E A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA I CANAL LIVRE
Band Jornalismo
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Transmissão ao vivo realizada há 11 horas #Bandjornalismo
O Canal Livre do próximo domingo é uma aula de história do Brasil. Na semana do 136º aniversário da abolição da escravatura no país, o programa celebra a vida e a luta de um dos mais importantes abolicionistas brasileiros - se não o maior deles - o jornalista, escritor e advogado Luiz Gama.
O Canal Livre recebe a historiadora Ligia Fonseca Ferreira, umas das maiores especialistas na obra do nosso personagem e o historiador Bruno Rodrigues de Lima, que acabou de lançar o livro "Luiz Gama contra o Império - A luta pelo Direito no Brasil da Escravidão".
O BandNews TV transmite o Canal Livre às 20h, com a apresentação de Rodolfo Schneider e participação dos jornalistas Fernando Mitre e Sérgio Gabriel. #Bandjornalismo
https://www.youtube.com/watch?v=-asb21R6W98
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A catarse e o conceito de autonomia
...o autenticamente verdadeiro não é um esquema geral, mas
individual: caminhos próprios para o efetivo.
Lukács, Gelebtes Denken
Em História e consciência de classe, Lukács se referiu à arte como uma esfera de
especial significado para a compreensão do problema da reificação: ao estabelecer um
vínculo profundo entre forma e conteúdo, entre a atividade subjetiva e a matéria irracional,
ela cria um domínio situado além dos limites do racionalismo moderno, revelando ao
mundo a possibilidade de uma existência humana plena de sentido, onde os homens
figurariam como produtores autoconscientes de si mesmos. Contra o pensamento formal, o
“princípio da arte” não se detém diante de nenhuma limitação, não teme os contrários e não
admite a indiferença entre eles:
Esse princípio é a criação de uma totalidade concreta em virtude de
uma concepção de forma orientada justamente para o conteúdo
concreto do seu substrato material, capaz, por conseguinte, de
dissolver a relação “contingente” dos elementos com o todo, de
superar a contingência e a necessidade como contrários simplesmente
aparentes540.
Mas a tentativa moderna de criar, a partir da atividade estética, um antídoto para dissolver
as petrificações do mundo fragmentado – para destituir o império das coisas e firmar o
mundo unificado dos homens –, não poderia ter êxito. Nisso, os limites de sua validade
estavam, desde o princípio, fixados. O ideal proclamado por Schiller de uma humanidade
que se realiza pelo “jogo”, assim como todas as concepções românticas sobre esta
problemática, não passam de quimeras. O que a arte, como campo de realização da unidade
sujeito-objeto, prova existir como possibilidade, só é passível de realização através da
transformação das condições sociais, da eliminação da estrutura reificada da economia
capitalista. Pois, como esclareceu Marx, a origem e o motor da reificação não estão no
sujeito, mas na relação objetiva imposta pelo trabalho alienado.
540 LUKÁCS, 2003, pp. 287-88.
254
Em relação ao pensamento anterior de Lukács, esta perspectiva é, ao mesmo tempo,
um salto e uma continuação. Como vimos, na estética de juventude os fundamentos
ontológicos do autor foram extraídos da filosofia neokantiana, de Lask em particular, onde
vida empírica e atividade normativa se excluem por princípio. Por um lado, forma e
matéria, embora articuladas, permanecem estranhas uma a outra, pois a matéria é sempre
um dado irracional. Por outro lado, já em Teoria do Romance surge a tentativa de superar
esta irracionalidade e de encontrar o caminho para a unidade entre a vida e o sentido, de
tornar o sentido imanente à realidade prática cotidiana. Esta contradição confere um timbre
inequivocamente autobiográfico à crítica que, em História e consciência de classe, é
dirigida à tradição filosófica alemã:
Ora, a grandeza, o paradoxo e a tragédia da filosofia clássica alemã
consistem no fato de que ela não faz desaparecer – como Espinosa –
todo dado [a matéria irracional] por trás da arquitetura monumental
das formas racionais criadas pelo entendimento, mas, pelo contrário,
preserva no conceito o caráter irracional do dado inerente ao
conteúdo desse conceito e se esforça, todavia, superando esta
constatação, para erigir o sistema541.
Lukács foi talvez o mais típico protagonista deste drama, sobretudo por tê-lo
percorrido até o fim, instaurando a contradição e superando-a continuamente. À síntese
Kant-Hegel da primeira estética, ainda subsumido à “atitude contemplativa” do
“racionalismo formal”, segue-se a síntese Hegel-Marx de HCC, onde a tese do sujeitoobjeto idêntico, embora tenha possibilitado a construção de uma concepção sistemática,
projetaria uma sombra sobre as conexões materiais e estabeleceria uma identidade idealista
e dogmática entre consciência e natureza. Será apenas nos anos 30, com a descoberta dos
Manuscritos de Paris, que Lukács chegará a uma reflexão homogênea e unívoca. Desde
então, pautado por pressupostos estritamente materialistas, Lukács construirá lentamente os
pavimentos de seu grande e definitivo edifício intelectual, de sua teoria sistemática. É como
se agora Lukács reunisse numa nova “síntese dialética”, numa Aufhebung, as duas sínteses
anteriores: por um lado, é preservada a “irracionalidade do dado”, ou seja, a natureza é
entendida como base inderivável, não passível de dedução, portanto, como alteridade
insuperável; por outro, esta natureza não se impõe como limite fixo para o conhecimento do
541 Ibid, pp. 252-53.
255
mundo dos homens, muito menos para a instituição de uma “racionalidade formal”, isto é,
de uma concepção que oponha dualística e reificadamente a natureza ao espírito. Através
do trabalho, o homem se apossa intelectual e praticamente da matéria natural e lhe dá um
sentido humano, transformando-a – não sem contradições e conflitos – em um mundo
próprio dos homens.
De fato, a permanente humanização do homem a partir da conquista e assimilação
da natureza não é, para Lukács, um processo retilíneo, mas um movimento desigual e
contraditório que gera não apenas ganhos, mas também perdas profundas ao devir-homem
do homem. Se, em 1918, Lukács adere ao comunismo, é não tanto por reconhecer a lógica
desta contradição, mas, sobretudo, por aspirar a uma era de mudanças intensas, de onde o
homem sairia remodelado e apto a governar os rumos de sua história. Governo impossível
pelos métodos da economia de mercado, uma vez que aqui não são as necessidades e
potencialidades humanas que definem as regras do processo social, mas sim o movimento
abstrato do sistema de trocas, onde o homem se insere como um fator mercantil,
subordinado e desprovido de valor intrínseco. A dissolução da produção fetichista não
instaura o sujeito-objeto idêntico, mas implementa a racionalização do domínio primordial
da existência, assegurando ao sujeito – ao homem – o controle necessário sobre seu objeto
– a realidade sócio-econômica.
***
A remissão de todos os fenômenos espirituais ao movimento metabólico entre
homem e natureza teria conseqüências amplas não apenas para a intelecção do processo
histórico de organização prática da vida, mas também para a compreensão da estética. Mais
do que nunca, Lukács irá assinalar os limites da atividade artística diante da lógica global
da vida. Porém, estes limites não serão entendidos da mesma forma como na juventude.
Sabemos que Lukács alicerça a arte nas necessidades da vida cotidiana, o que significa
impingir-lhe uma finalidade “prática”. Ora, isso poderia suscitar inquietações a respeito da
aplicabilidade do conceito de autonomia à estética tardia do filósofo húngaro: não haveria
aqui uma subordinação da arte a finalidades que lhe são extrínsecas, num visível retrocesso
em relação à estética de juventude, que separa claramente a arte das demais atividades? A
256
pergunta se justifica, tanto mais porque na obra tardia o autor não se vale do termo
“autonomia”, preferindo “peculiaridade”, embora, a princípio, não haja uma diferença
conceitual entre ambos. O que se pretende com o conceito de autonomia é demonstrar o
princípio específico – peculiar – que rege um determinado fenômeno, delimitando-o assim
dos demais. Recapitulemos sumariamente.
O conceito de autonomia teve em Kant o grande impulso moderno. Sua teoria das
faculdades procurou delimitar com rigor as esferas da teoria, da moral e da estética,
fundando-as, respectivamente, no entendimento, na razão e na faculdade do juízo542. Kant
logra precisar estas demarcações abandonando o suposto racionalista clássico (idealismo
objetivo) em proveito de uma concepção dualista transcendental, que opõe natureza e razão,
empiria e aprioridade. No que diz respeito à estética, especificamente, Kant distingue
completamente o belo do útil e do agradável, definindo o primeiro como “o que apraz
universalmente sem conceito”543.
Vimos no capítulo 4, que o jovem Lukács refuta o modo como Kant desenvolve sua
teoria, advogando, contra este, uma concepção centrada na própria obra e não no juízo. A
esfera estética determina-se como vivência de objetos estéticos que existem
constitutivamente e não apenas reflexivamente, isto é, não apenas pela referência externa
do sujeito que formula um juízo de gosto. Apropriando-se do procedimento
fenomenológico de Hegel, não obstante, mantendo-se sobre bases transcendentais, Lukács
traça as linhas divisórias entre as esferas normativas a partir da relação sujeito-objeto. A
arte é sujeito-objeto idêntico, vivência normativa. Esta definição, por sua vez, não
transforma a arte em metafísica, visto que a vivência estética não é vivência do absoluto,
mas a vivência como vivência. Daí se segue o conceito de “mal-entendido”: toda vivência
é, por princípio, incomunicável, de forma que entre a obra e a subjetividade se abre um
abismo intransponível. A autonomia da arte – sua diferenciação em relação à vivência
místico-metafísica – é garantida por este abismo.
Ora, em que pesem as ambigüidades dessa formulação, Lukács dissociava a arte não
apenas da metafísica e das esferas normativas (ética e teoria), mas também da vida prática
cotidiana (império do útil e do agradável). A arte, em sua autonomia, eleva-se a um cume
542 KANT, 1995, p. 42. 543Ibid., p. 64.
257
de onde não se pode enxergar a vida real, embora nele o homem vivencie – por um malentendido – um mundo configurado para atender aos anseios mais profundos da
subjetividade.
Não é esse o caminho da estética marxista. Aqui, como foi amplamente exposto e
discutido, a vivência da obra de arte é concebida como autoconsciência. O mundo
configurado pela obra é o mundo do homem em suas infinitas facetas. É a vivência do
humano – de sua essência – através da concretude dos entes individuais realizados nas
obras. Entes que são essenciais, pois expressam em si tendências significativas para o
homem, essenciais porque expandidos, aprofundados, individualizados para além da
abstração da mera particularidade (Partikularität). Disso se segue que, do ponto de vista do
conteúdo, a diferença entre a arte e a vida é apenas de grau: aquela atualiza potencialidades
dadas na vida mesma, fazendo acordar o que efetivamente existe sob formas adormecidas,
em estado embrionário e latente. No entanto, essa diferença quantitativa gera uma mutação
em termos qualitativos. A realização desse conteúdo só é possível na medida em que o
artista se lança num árduo trabalho de elaboração formal sobre a matéria vital. As
categorias da vida sofrem alterações através deste trabalho, assumindo funções novas.
Recorde-se, por exemplo, que a evocação, na comunicação cotidiana, como
entonação da voz, gesto etc., está diretamente ligada à tentativa de mover o interlocutor a
uma determinada ação ou reação. Esta função persuasiva da evocação desaparece na arte,
cedendo lugar a um efeito evocativo distinto, sem referência às práticas imediatas, sem
nenhuma “mensagem” específica. Na arte, a evocação de sentimentos se realiza de forma
distinta e assume um outro caráter: seu papel não é mover o receptor nesta ou naquela
direção, mas fazê-lo sentir certos afetos, cuja força propulsora, determinada pela riqueza de
conteúdo esteticamente condensada na obra, o impele a enxergar melhor a si próprio, a
ampliar sua autoconsciência. Neste sentido, pode-se dizer que o despertar de paixões e
afetos é, na esfera estética, uma finalidade em si mesma, na medida em que, do lado do
receptor, isso corresponde a uma vivência. Os sentimentos despertados pela obra de arte
cumprem a finalidade estética no momento em que são vividos.
Mas isso parece contradizer o que acabamos de afirmar mais acima e que, em parte,
até já demonstramos no decorrer de nossa exposição: que a estética marxista de Lukács
estabelece vínculos profundos entre a arte e a vida concreta, coadunando-as a partir de
258
interesses reais e práticos do ser social. Há de fato uma contradição em jogo: pois a
vivência estética, na intensidade e completude de sua orgânica, é, por um lado, finalidade
que se cumpre em si mesma, mas, por outro, uma vez que nela a subjetividade é brindada
com uma riqueza de afetos que retroagem sobre sua personalidade de forma absolutamente
incomum, arrancando-a temporariamente do curso normal da vida, esta vivência propiciada
pela arte deixa de ser algo fechado sobre si mesmo para se abrir à vida real, impondo-lhe,
por assim dizer, um desafio.
É na elucidação do conceito de catarse estabelecido pelo autor da Estética que
haveremos de descobrir o sentido concreto desta questão e do problema da autonomia. É do
que trataremos agora no espaço destas considerações finais.
***
Vimos que na estética de Heidelberg, Lukács nega haver qualquer relação de
identidade entre a subjetividade estética (criativa e receptiva) e a obra. O “mal-entendido”
fixa conceitualmente esta ruptura. Também já tratamos das motivações e dos pressupostos
que estão na origem desta concepção, da mesma forma que a contrastamos com a nova
formulação do problema na estética de maturidade. Aqui a relação sujeito-objeto é
entendida geneticamente a partir da vida, sem qualquer intervenção de elementos
transcendentais, apriorísticos. A subjetividade estética resulta de um desdobramento da
subjetividade “normal”, cristalizando-se na obra como expressão desta elevação. Embora
não se possa falar de uma identidade imediata, perfeita, entre a subjetividade do artista (o
artista como homem) e a subjetividade tornada sujeito-objeto idêntico na obra, a
subjetividade estética, é impróprio e falseador cavar um fosso entre ambas. O salto
qualitativo da subjetividade que se faz estética não implica num corte metafísico com a sua
origem empírico-cotidiana.
Nas reflexões suplementares sobre o problema da relação sujeito-objeto no capítulo
10 da Estética, Lukács repõe uma importante consideração, aclarando e arrematando o que
fora antes exposto: a arte pressupõe uma subjetividade substancial, ao mesmo tempo em
que a substancialidade do artista se realiza e confirma apenas pelo processo de objetivação
rumo à obra. No trabalho de criação, o artista torna-se o que ele já é, portanto, o que ele
encontra na sua obra é a si mesmo, sua subjetividade no estado máximo de
259
desenvolvimento das potencialidades que lhe subjazem. Não há aqui nenhum “malentendido”, nenhum salto mortal, desligando o sujeito criador de sua obra. Pelo contrário, a
subjetividade do artista não só é mediação e pressuposto para a composição do sujeitoobjeto estético, como também se efetiva e revela neste resultado:
Só quando o sujeito criador é capaz de conceber a referencialidade
dos objetos ao homem (ao gênero humano) como síntese das próprias
determinações intrínsecas destes e, ao mesmo tempo, capaz de fazer
desenvolver organicamente as reações do homem a seu mundo
circundante, partindo de uma substância ativa unitária que abarca
tudo isso, só então pode surgir este equilíbrio tenso entre
subjetividade e objetividade como uma nova síntese unitária e
imediata, substancial e evocativa. E por mais complicado que seja
sua gênese a partir do sujeito criador, por mais que um salto
qualitativo separe e vincule a uma só tempo a criação e a obra, tem
que haver nos pressupostos subjetivos tendências que correspondam
muito amplamente a esta [obra], se é que o salto há de realmente
produzir uma autêntica obra de arte544.
A arte não só pressupõe vida substancial como também é seu exercício e confirmação. Ou
ainda: a substancialidade artística é a substancialidade do homem. Não é à toa que,
novamente, Lukács mencione Goethe e Gorki como figuras exemplares do que chama de
“homem como núcleo (Kern)”, por oposição ao “homem como casca (Schale)”545. O
primeiro é aquele cuja vida se faz substancial e que por isso mesmo pode, enquanto artista,
produzir obras de significado durável:
Uma arte autêntica e rica – disse Gorki em certa ocasião – não pode
nascer senão de uma vida rica. Esta riqueza, como é natural, não tem
porque se revelar necessariamente na agitação externa da vida, mas
tem que estar vivamente presente na vivência do mundo e, em
conseqüência da proporcionalidade correta entre subjetividade e
objetividade, tem que formar com o sujeito algo substancial para que
a obra possua a substância imprescindível para sua autenticidade. A
pergunta “quem reflete a realidade?” não pode de modo algum ser
separada da questão sobre o que é refletido e como é refletido; essa
inseparabilidade é uma questão de princípio546.
544 LUKÁCS, 1981a, I, p. 746. 545 Ibid., passim. 546 Ibid., pp. 746-47.
260
O que Lukács denomina de “proporcionalidade correta entre subjetividade e
objetividade” não é diverso do que no ensaio sobre Gorki foi apresentado como “cultura da
vida” e que, em outros ensaios desta fase, será tratado como “personalidade harmoniosa”.
Ora, Lukács nunca admitiu que a fragmentação, o desespero, a excentricidade, etc.,
porquanto reflitam tendências fortes da modernidade, devessem ser tomados por qualidades
ideais de um artista. A seu ver, ainda que a arte possa surgir em tais condições, o resultado
final, na melhor das hipóteses, será sempre problemático e duvidoso. Em primeiro lugar, a
“missão desfetichizadora da arte”547 realiza-se apenas quando os conflitos e situações
retratados assumem a forma de processo social, isto é, quando as relações entre os fatos
externos e a interioridade são postos categorialmente em seus nexos reais, como momentos
articulados de um todo. Uma exigência que nos remete diretamente ao que, em História e
consciência de classe, Lukács definiu como a virtude fundamental do proletariado e do
método marxista: “a dissolução das formas fetichistas das coisas em processos que se
desenrolam entre os homens e se objetivam em relações concretas entre eles (...)548”. No
plano estético, isto significa dissipar qualquer névoa de mistério que se forme em torno dos
dramas subjetivos, tornando o abstrato concreto e dando uma expressão clara dos elos entre
subjetividade e objetividade, interioridade e exterioridade. Em segundo lugar, a arte não
deve apenas refletir as condições sociais de um tempo, expondo cruamente os aspectos
subjetivos tornados típicos em determinados ambientes, mas também trazer à tona – de
forma articulada, isto é, como “mundo” – o sentido humano que lhe falta, superando-o, com
isso, de forma crítica. Não há crítica estética sem uma evocação realista das possibilidades
humanas presentes nas condições retratadas, ainda que estas possibilidades figurem apenas
sob a forma de uma sincera, mas impotente, revolta, como em Kafka:
Isto distingue, por exemplo, O processo de Kafka do Molloy de
Beckett; em O processo, o incógnito absoluto do homem particular
aparece como uma anormalidade indignante da existência, como algo
que evoca a indignação, ainda que negativamente, sobre a base do
destino e da sorte do gênero; ao passo que Beckett se instala, autosatisfeito, na particularidade fetichizada e absolutizada (...). A
aparente profundidade de um Beckett não é mais do que um estático
547 Ibid., p. 660 et seq. 548Id., 2003, p. 370.
261
se ater a certos sintomas da superfície imediata que oferece o
capitalismo de nossos dias549.
Embora Kafka não seja capaz de compreender causalmente a estrutura reificada da
sociedade descrita por ele, de tornar transparentes as causas sociais do absurdo que se
instalou na vida e aprisionou seu sentido, sua reação é de revolta, uma revolta que não
permite embelezamentos nem adaptação cínica, mas que se explicita de forma dura,
desdobrada, e por isso verdadeiramente trágica. O mesmo não pode ser dito do fluxo
abstrato de associações de Sammuel Beckett. O que falta a Beckett, segundo Lukács, não é
apenas uma articulação concreta entre o “interno e o externo”, entre subjetividade e
condições objetivas (estas reduzidas praticamente a zero em suas obras), mas também o
assomo de uma atitude insubmissa, que denuncie e enfrente a realidade mórbida descrita.
Para Lukács, este tipo de literatura é a atualização e a exacerbação de um desvio em
direção ao niilismo e ao patológico, inaugurado pelas estéticas naturalistas do final do
século XIX. A recusa destas tendências é um traço típico de sua reflexão, desde os
começos. Recorde-se o que já mostramos a propósito de Teoria do romance: lá o Niels
Lyhne, de Jacobsen, fora criticado em termos muito próximos ao que se pode ver na áspera
crítica ao escritor irlandês. Trata-se do mesmo problema: não existe arte sem exposição
concreta e afirmação crítica da vida. Afirmação que começa na própria cotidianidade do
artista, em sua luta pessoal contra o decadentismo e a auto-degradação niilista, ou seja,
contra aquilo que Lukács mais tarde irá definir como o predomínio dos particularismos
(Partikularität) sobre a autêntica particularidade (Besonderheit)
550. Não surpreende que
esta idéia tenha ganhado vultosa expressividade na fase final do filósofo, o que se pode
deduzir não apenas de certos momentos temáticos da Estética e do projeto irrealizado da
Ética, mas também do capítulo de encerro da obra sobre a qual Lukács vinha trabalhando
nos últimos anos de vida: a Ontologia do ser social.
Ora, depois de tratar dos grandes complexos categoriais – trabalho, reprodução e
ideologia –, o autor põe sob o foco de sua analítica o problema capital dos estranhamentos,
conduzindo-se através dele para o âmbito onde a ação individual é momento predominante.
É extremamente sintomático que, em suas críticas ao manuscrito, os alunos mais próximos
549LUKÁCS, 1981a, I, p. 757. 550 Segundo Lukács (1981a, I, pp.198-209), a particularidade (Besonderheit) é a categoria chave da
individualidade (que se desenvolve como singular pelo universal) tanto na arte quanto também na vida.
262
de Lukács (Heller, Ferenc Féher, Márkus e Vajda) tenham se declarado em desacordo com
“a concepção fundamental” deste capítulo, entendendo que o mestre se equivocara ao
conceber os estranhamentos como um fenômeno “referido apenas aos indivíduos” e ao
“identificar a luta contra o estranhamento como a luta contra as projeções subjetivas do
estranhamento, onde este último (...) é igualado à luta do singular contra seu próprio
estranhamento”. E acrescentam:
Também consideramos, no mundo do estranhamento, a luta contra
seus efeitos – o atrofiamento da personalidade etc. – como um
momento importante. Mas esta não é a luta contra meu próprio
estranhamento. O companheiro Lukács vai muito longe – sobretudo
no primeiro caso – quando afirma: O individuo singular,
independentemente de sua situação social concreta, também é capaz
de superar seus próprios estranhamentos. Mas isso só pode significar
a superação do estranhamento no nível da consciência551.
Sem pretender sequer esboçar este conjunto de problemas, impróprio ao contexto presente,
convém apenas observar que Lukács, ao contrário do que entenderam seus críticos, não
reduz os estranhamentos a um fenômeno individual, subjetivo, mas o considera como um
fenômeno de origem econômico-social cujos efeitos, por se darem predominantemente no
âmbito das alternativas cotidianas, ficam diretamente referidos ao âmbito da ação
individual. Certo ou errado, o capítulo sobre os estranhamentos abrevia um tema central a
que Lukács pretendia se devotar em sua Ética, antes de se deixar arrastar pelas conexões de
maior abrangência do ser social: o tema da individuação no mundo capitalista. Além disso,
não há nada de novo na discussão da Ontologia sobre os estranhamentos, a não ser o
esforço para atualizar e tornar conceitualmente mais clara uma problemática que, desde os
ensaios dos anos 30, vinha sendo tratada predominantemente a partir dos problemas
literários, o que ensejava análises particularizadas em torno de tipos humanos singulares e
representativos552.
Depois de tudo o que já foi discutido aqui, não pode haver dúvidas de que o
problema dos estranhamentos está profundamente ligado ao da catarse. Se Lukács condena
a arte de vanguarda – e isso já foi amplamente mostrado – é porque, a seu ver, nela projeta-
551 FEHÉR; HELLER et. al. In: DANNEMANN (Org.), 1986, p.251. 552 Cf. por exemplo, LUKÁCS, Faust-Studien (Estudos sobre o Fausto), 1965.
263
se, sem expressão crítica e substancial, uma sensibilidade estranhada, representativa apenas
da realidade imediata da vida capitalista. Essa arte não desvenda a lógica dos
estranhamentos, mas paira sobre seus efeitos e a mistifica, propagando um falso
inconformismo, falso porque não reconhece alternativas concretas, individualizadas, antes
rebaixam a realidade ao nível de uma inviabilidade crônica e irremediável. Mas, como se lê
na Ontologia, os estranhamentos, embora decorrentes de processos sociais complexos, não
exercem uma coerção absoluta sobre os indivíduos, pois eles “nunca abraçam a inteira
totalidade do ser social do homem”553. Esta é uma outra forma de dizer que os indivíduos –
seres complexos – também são responsáveis pelo que são. E Lukács o afirma sem meias
palavras. Apesar de extenso, é preciso citar na íntegra a seguinte passagem:
A adaptação comporta simplesmente um deixar-se levar pela
correnteza, ao passo que a vontade de resistir implica escolhas
repetidas, submetidas a um contínuo reexame (ou, pelo menos vistas
com profundidade) e, se necessário for, devem ser realizadas na vida
através da luta. Por exemplo, o indivíduo da sociedade de classes está
desde o nascimento inserido, como complexo, em um complexo que
impele espontaneamente ao estranhamento. Contra tal multiplicidade
de forças ele deve mobilizar, em nome da própria defesa, as próprias
forças. De cada personalidade, de cada etapa do seu
desenvolvimento, pode-se, portanto, dizer que ele é o produto de sua
própria atividade e o ponto de partida de seu ulterior
desenvolvimento. Todavia, também este notável papel das forças
pessoais no processo de emancipação do processo de estranhamento
não põe jamais o indivíduo em antítese abstrata com a sociedade (...).
Ao contrário, aquilo que chamamos de forças próprias tem as suas
raízes na personalidade originária (mas desenvolvidas em interação
com a sociedade) do indivíduo em questão. Todavia, o seu avançar
ou regredir ocorrem no âmbito de um ininterrupto processo de
apropriação dos resultados passados e presentes do desenvolvimento
da sociedade. Aquilo que agora é o conteúdo da vida do indivíduo,
isto é, a convicção (que pode ser uma simples sensação ou uma vaga
idéia) da realidade da generidade para-si, é também a arma mais
eficaz contra o estranhamento que lhe pode estar disponível. Só esta
luta, o seu progredir e regredir, constitui o modo de ser do
estranhamento. A sua imediata imobilidade é, tão só, uma
aparência554.
553 LUKÁCS, 1984, p. 572. 554 Ibid, p. 616.
264
Eis uma tarefa que cabe aos próprios indivíduos: resistir às tendências que cerceiam
e desfibram o sentido de suas vidas. Cabe a eles se deixarem manipular ou não, lutarem
pelo cultivo de si ou perderem-se na lassidão etc. A humanização não é obra apenas das
forças estruturais, dos processos sócio-econômicos, aos quais cada um se vê coagido a
submeter-se desde que vem ao mundo. Também os indivíduos fazem parte ativa desta luta,
reagindo às circunstâncias que a vida lhes obriga a viver. Mas para que esta luta, a luta pela
interiorização da generidade, ou seja, pela humanização de si, possa ser travada e
sustentada, é imprescindível ter ao alcance um horizonte de prospecção. Aos artistas –
assim como aos intelectuais – Lukács atribui uma responsabilidade social, um
compromisso para com a causa da humanização. É dever de ambos se rebelar contra o
sistema manipulador e dar aos homens, com sua obras, uma esperança mínima, uma
perspectiva, ainda que individual. Perspectiva que o artista põe a descoberto na medida em
que afirma criticamente a vigência do humano na história e no presente reificado, na
medida em que suas criações dão vida a sentimentos autênticos, os quais, não importando o
quão raro estes possam ser, constituem-se como possibilidades intrínsecas do ser social555.
A catarse – e chegamos, enfim, ao núcleo de nossas considerações – é a vivência
desta possibilidade concreta tornada realidade estética, deste dever-ser que, na obra
plasmada, apresenta-se como ser consumado. De fato, o dever-ser é uma categoria que diz
menos respeito à obra do que à recepção estética. Na obra, o ser é a categoria central, mas
um ser que, diante da vida real, metamorfoseia-se em dever-ser. Sobre esta ambivalência,
diz Lukács :
Inclusive quando a arte – na poesia ou na música, por exemplo –
contrapõe aparentemente ao homem um mundo do dever, este mundo
toma na arte a forma de um ser cumprido, e o homem que vive a
segunda imediaticidade da obra pode entrar em relação com esse
555 Mihály Vajda (1992, p.118), comparando a atitude que o jovem Lukács manifesta num texto de 1910
(Ästhetische Kultur) com a de seu período de maturidade, marcado pela adesão ao marxismo, escreveu: “Ele
acentua mesmo a possibilidade e o valor da auto-realização, com a esperança de que os homens que forjaram
sua própria cultura pudessem se tornar modelo para outros homens. Mas ele o faz sem se importar em saber
se, por isso, a época da consumada pecaminosidade poderia ser superada. Um momento extraordinário de seu
percurso intelectual. No fim, porém, como sabemos, ele permaneceu incapaz de separar as duas exigências”.
Ora, essa opinião de Vajda parece não levar em conta justamente a atenção devotada pelo velho Lukács à
responsabilidade que cada indivíduo possui frente ao seu próprio destino, uma responsabilidade a que
correspondem (em maior ou menor medida) alternativas particulares de desenvolvimento, cujas possibilidades
de efetivação ganham na obra de arte uma ampla visibilidade, bem como um caráter paradigmático. O velho
Lukács separa, sim, a exigência de transformação individual (profundamente ligada à “cultura estética”) da
social, ainda que tenha como horizonte final de seus ideais a perspectiva de uma emancipação coletiva.
265
mundo como se ele fosse seu mundo próprio. Só no depois do efeito
reaparece o caráter de dever-ser; mas também nisso coincidem as
grandes obras de arte, independentemente de que seu conteúdo inclua
ou não um dever-ser: até a canção mais pastoral ou o idílio mais
simples expressam, em certo sentido, um dever-ser, dirigem-se ao
homem da cotidianidade com a exigência de que ele alcance também
a unidade e a altura realizadas na obra. É o dever de toda vida
plena556.
A arte não é um “discurso elevado”, um aconselhamento otimista, um postulado
abstrato, mas um veículo de vivências ricas e concretas. Ela cria mundos autônomos e nisso
reside sua força. Talvez seja essa a invariável mais decisiva no ideário estético de Lukács.
A arte como mundo próprio dos homens. Se rememorarmos mais uma vez os fundamentos
que sustentaram a primeira estética, compreenderemos facilmente que, nela, a catarse não
podia ter lugar. Nesta época, a vida prática parecia condenada a uma imutabilidade
metafísica, diante da qual a arte resplandecia como contraste alentador e portal para a
dimensão normativa de um mundo capaz de corresponder aos anseios nostálgicos da
subjetividade. Mas não havia fluxo metabólico entre um plano e outro. A dualidade entre
normatividade e empiria tornava incogitável a autêntica vivência catártica. Pois a catarse,
no sentido acima exposto, implica na retroação da vivência estética sobre a subjetividade
ativa do cotidiano. Neste sentido, se a estética marxista representa uma ruptura tenaz com o
passado heidelbergiano, talvez ela possa simbolizar um retorno à perspectiva de 1904,
quando Lukács e alguns outros estudantes fundam o Teatro Thalia com o objetivo de
encenar, a preços módicos, peças “de esquerda” – Ibsen, Hebbel etc. – para as classes mais
desfavorecidas de sociedade húngara.
A catarse consiste no efeito desencadeado pela obra de arte sobre a subjetividade do
receptor, sendo, assim, a conseqüência e desfecho da autêntica experiência estética. E tal
como as demais categorias da arte, também ela encontra nas vivências cotidianas sua base e
origem. A especificidade da catarse estética consiste no fato de que, através da forma
artística, o efeito catártico produzido pela obra torna-se qualitativamente superior,
penetrando na subjetividade com uma força, uma clareza e precisão de sentidos que
raramente acontece na vida mesma. Ela nasce do direcionamento evocativo próprio da obra.
Toda verdadeira obra de arte orienta as vivências do receptor, conduzindo sua atenção pela
556 LUKÁCS, 1981a, I, pp. 481-82.
266
homogeneidade do meio estético específico de cada arte, seja o som, a imagem ou a
palavra. Esta homogeneidade, com alto poder de concentração conteudística, arrebata o
homem de sua vida prática, põe em suspenso seus interesses imediatos, entregando-lhe em
troca uma vivência purificada, filtrada pela atividade do artista, pelo criador, o qual, sendo
um autêntico artista, sabe conferir a sua criação uma unidade evocativa de profundos
significados humanos. Do homem inteiro da vida cotidiana – isto é, com interesses práticos
que brotam da totalidade de sua personalidade – surge o homem inteiramente entregue à
vivência homogênea, concentrada, delimitada formal e conteudisticamente, da obra de arte.
Uma entrega que redunda em nova posse espiritual. Nos termos do próprio autor:
O poder evocativo-condutor do meio homogêneo penetra na vida
anímica do receptor, subsume seu modo habital de considerar o
mundo, impele-o sobretudo para um novo ‘mundo’, preenche-o com
novos conteúdos – e com conteúdos vistos sob uma nova ótica – e
justamente por isso ele se dispõe a assimilar este ‘mundo’ com a
mente e os sentidos renovados e rejuvenescidos. A transformação do
homem inteiro em homem inteiramente efetua aqui uma ampliação e
um enriquecimento na forma e no conteúdo de sua psique. Novos
conteúdos desembocam nele, enriquecendo assim seu tesouro
vivencial. Enquanto ele é orientado pelo meio homogêneo da obra
para acolhê-la, para apropriar-se do novo conteúdo, simultaneamente
suas faculdades perceptivas se desenvolvem, permitindo-o
reconhecer e fruir enquanto tais novas formas de objetivação, relação
etc557.
Mas a catarse não seria possível se este novo universo anímico que se ergue frente
ao receptor não fosse ao mesmo tempo profundamente pessoal, familiar, se nele a
subjetividade receptiva não encontrasse, numa referencia direta, aspectos essenciais de sua
própria pessoa. Neste sentido, pode-se dizer que a obra de arte surge frente ao sujeito como
uma “identidade de identidade e não-identidade”. Sua resultante é a imagem ampliada e
crítica da própria individualidade, onde ser e dever-ser, formando uma unidade concreta,
descortinam um campo concreto de possibilidades humanas a um só tempo próximo e
distante, próprio e alheio, capaz de espelhar o que cada homem, a partir de sua realidade
especifica, é efetivamente como ser singular e, ao mesmo tempo, o que ele também não é,
mas que, por seu pertencimento ao gênero, pode e deve ser:
557 Ibid, p.768.
267
A catarse consiste em que o homem confirme o essencial de sua
própria vida precisamente pelo fato de vê-la em um espelho que o
comove, que o envergonha pela sua grandeza, que mostra sua
fragmentação, a insuficiência, a incapacidade de realização de sua
própria existência. A catarse é a vivência da realidade intrínseca da
vida humana, cuja comparação com a realidade cotidiana produz,
pelo efeito da obra, uma purificação das paixões que se transforma
em ética já no Depois da obra558.
O reconhecimento de um “depois”, pelo qual a catarse escoa na vida, separa
radicalmente o pensamento de Lukács da teoria kantiana do “desinteresse”. Ora, a arte é
uma atividade interessada, tanto para quem cria quanto para quem frui. A contemplação
estética, decerto, pressupõe uma suspensão temporária dos interesses práticos, mas não
implica na ausência de motivações concretas e interesses humanos mais amplos. Esta
percepção, segundo Lukács, por sua evidência empírica, esteve no centro das principais
correntes estéticas da história:
As tendências vivas e progressivas na estética, como a orientação na
Antiguidade e no Iluminismo, a dos democratas revolucionários
russos etc., colocaram sempre no primeiro plano o grande papel
social da arte, o que não só está documentado por uma prática
milenar, como também é convincentemente dedutível da essência
estética, desde que se aclare sem preconceitos e suficientemente a
relação entre a vivência estética e seu Depois na vida559.
É fundamental atentar para o fato de que a catarse não é, por si mesma, uma
categoria ética, mas estende uma ponte, ou melhor, cria uma zona de interseção entre
estética e ética. A ética é conduta efetiva e ação, a catarse, vivência sensível e emocional
desencadeada por um tipo de reflexo da realidade. No âmbito das experiências morais, a
comoção catártica é um episódio isolado e, ainda que legítimo, não goza de nenhuma
prerrogativa, uma vez que à ética importa, sobretudo, a consistência da decisão. Lukács
distingue enfaticamente o arrebatamento passional circunstancial dos sentimentos
firmemente morais:
558 Ibid., II, p. 377. 559 Ibid., I, p. 771.
268
Pois é claro que na regulação da vida humana pela ética, a conversão
catártica não constitui mais do que um caso limite no sistema das
decisões éticas possíveis; junto a ela – para não destacar mais que
uma questão importante – são possíveis resoluções sem emotividade
que produzem atitudes éticas tão fortes, duradouras e firmes quanto
as comoções catárticas, e, em muitos caso, mais que estas. É
essencial ao ético que a tenacidade conseqüente seja
hierarquicamente superior a todo entusiasmo, por apaixonado,
sincero e profundamente sentido que seja560.
Este problema, que aflora brevemente no contexto temático da catarse, não recebeu os
desdobramentos que merecia, pois Lukács, como sabemos, não escreveu sua acalentada
Ética. No entanto, fica claro que o autor não atribui às paixões um primado no plano da
vida prática, o que não implica numa concepção racionalista. O que está posto aqui não é
uma oposição entre razão e sentimento, mas sim o problema do entusiasmo como motor das
ações. No trecho seguinte ao acima citado, pode-se ler:
Por isso se encontra sempre na ética uma permanente desconfiança a
respeito do entusiasmo, justamente caracterizado neste sentido por
Dostoievski com a expressão: “heroísmo precipitado”. Também a
poesia exprimiu com freqüência essa desconfiança; basta recordar a
magnífica descrição que dedica Tolstoi às figuras de Karenin, Ana e
Wronski, que reunidos junto ao leito de Ana, vivem uma catarse
autêntica e profundamente sentida, ficam convencidos sinceramente
de que podem transformar os fundamentos de sua conduta de vida, e
logo voltam a afundar-se pouco a pouco, irresistivelmente, por obra
de sua cotidianidade psíquica, em suas velhas formas de existência561.
É a “cotidianidade psíquica”, a personalidade constituída, e não as paixões, em geral
fugazes, que rege o comportamento. Isso tem conseqüências imediatas sobre a questão da
catarse: os sentimentos desencadeados pela obra de arte, por mais veementes e profundos
que sejam, não implicam numa transformação da personalidade do receptor, não fazem dele
um homem moralmente melhor, mais íntegro e corajoso etc. A começar pelo fato de que a
catarse não é um fenômeno unívoco, mas antes reveste formas diversas e suscita reações
que também se diversificam de acordo com a personalidade e as circunstâncias do receptor.
Lukács não passa por alto a complexidade deste fenômeno. Ao contrário, ele observa que
560 Ibid., p. 781. 561 Ibid., p. 781.
269
artistas importantes, como Goethe e Brecht, questionaram a salubridade e o valor dos
efeitos catárticos. Isso tem razões práticas, pois a catarse pode provocar reações negativas,
como aquela que notabilizou a primeira recepção do Werther entre os jovens alemães,
motivo pelo qual Goethe se viu compelido a escrever um poema de advertência, onde seu
personagem, o próprio Werther, ao final, ordena aos leitores: “Sê homem e não me segue”
(Sei ein Mann, und folge mir nicht nach)
562. Já Thomas Mann e Herman Hesse se
indagaram sobre os efeitos possivelmente deletérios da música563. O próprio Lukács, no
capítulo sobre a música de sua Estética, mostra que, devido ao caráter puramente interior
do conteúdo musical, que se fixa numa “objetividade indeterminada”, abstrata, a catarse
que nasce dela (trata-se da “música pura”, isto é, sem texto564) tende irresistivelmente a
uma duplicidade problemática: por um lado, ao “liberar” os sentimentos que na vida
mesma, em grande parte por conta dos estranhamentos sociais, não podem se expandir ou
se realizar, a música propicia, com intensidade incomum, a vivência de uma dimensão
humana vital; por outro, esta liberação pode facilmente impelir a subjetividade para o
universo fechado de sua Partikularität, dissociando-a do mundo, alienando-a565. Mas
também é possível que uma obra de arte cale tão fundo na alma do sujeito que frui,
encontrando-o tão receptivo a ela e numa ocasião tão propícia a mudanças, que a catarse
vivida por ele represente um verdadeiro rito de passagem para uma vida completamente
nova.
O essencial à catarse reside na sua capacidade de despertar nos sujeitos a
consciência sensível de que a vida individual e a vida do gênero não são dissociáveis, mas
interdependentes. Desta consciência pode nascer um ímpeto de renovação, um germe de
mudança, uma tendência em direção a objetivos mais amplos, humanamente significativos
e salutares. De fato, não cabe ao artista predicar normas de conduta, mas refletir critica e
amplamente a lógica e o pulso da vida. As verdadeiras obras de arte não são ilustrações
moralistas nem instrumentos de propaganda ideológica, ainda que possam conter elementos
562 GOETHE apud LUKÁCS, 1981a, I, p. 782. 563 Ibid., pp. 784-85. 564 Lukács não deu atenção à música que se liga à poesia, ignorando todo o período musical anterior a Bach,
período profundamente fundado nessa relação. Para a música que brota junto com o canto, a catarse irrompe
de forma muito determinada, já que a vivência do receptor é aqui conduzida pelas vias de uma mimese
musical particularizada pela força de concreção da voz poética. Sobre essa relação, consulte-se o elucidativo e
alentado estudo de Ibaney Chasin (2009) sobre a música de Claudio Monteverdi.
565 Ibid., II, p. 380.
270
dessa natureza e ser, eventualmente, interpretadas desse modo. O fundamental, no entanto,
é que através dela os indivíduos são impelidos a estabelecer uma visão crítica de si mesmos
a partir do núcleo de sua existência. Neste sentido, diz o autor:
(...) o que temos chamado de núcleo do homem é precisamente o elo
mediador mais importante entre a personalidade humana e a
humanidade nela, entre suas emanações internas e as que vêm de
fora, ao passo que as tendências que temos definido como casca do
homem, pelo domínio dos falsos extremos na subjetividade e na
objetividade, do centro até a periferia, conduzem à mera
particularidade e à abstração que a complementa polarmente566.
A arte evoca nos indivíduos esta dimensão “nuclear”, convocando-os e desafiandoos a desenvolverem sua personalidade no sentido de suas melhores possibilidades. Sabemos
que, para Lukács, este desenvolvimento é o processo pelo qual o homem singular, sem
abdicar de suas próprias inclinações e necessidades pessoais, toma para si as tarefas do
gênero, vivenciando-as como tarefas de sua pessoa, descobrindo os laços que unem sua
vida à vida do gênero. Assim, o movimento ético que surge como postulado da vivência
catártica realiza-se no “depois” da vivência apenas quando o sujeito da recepção se decide a
isto567. Neste caso, o sujeito apropria-se efetivamente de uma vivência humana
significativa, integrando-a emocionalmente ao seu processo de vida e construção como uma
aquisição permanente. A eticidade “conforme o ser”, já o sabemos, mas convém repetir,
implica na atualização contínua, cotidiana, de tomadas de decisão referidas à própria
generidade e, conseqüentemente, comprometidas com a superação da mera Partikularität,
566 Ibid., I, p. 754. 567 Talvez se possa caracterizar um pouco melhor esta relação entre decisão ética e experiência estética em
Lukács com uma remissão ao pensamento de Schiller, com o qual a estética tardia do filósofo húngaro
apresenta, sob determinados aspectos, um inegável parentesco. Para Schiller, o comportamento ético apóia-se
sobre decisões racionais, que são, no sentido de Kant, a autodeterminação livre da vontade, ou seja,
independente de inclinações e paixões. No entanto, diferentemente de Kant, Schiller elabora um ideal de
exemplaridade moral muito próximo ao ideal do humanismo clássico alemão, sublinhando não o momento
isolado da decisão, mas sim a personalidade total na confluência de suas disposições anímicas. À arte caberia
justamente promover esta confluência, afastando os obstáculos do homem físico para que a decisão no plano
ético se faça mais espontânea e desimpedida. Cf. SCHILLER, 1990;1980. Veja-se ainda o estudo de
BARBOSA, R. In: Kriterion, 2005. Não é absolutamente casual que Lukács, referendando este ideal
humanista, cite, em sua Estética, a máxima de Lessing, segundo a qual é missão da arte “transformar as
paixões em disposições virtuosas” (LUKÁCS, 1981, I, p.622). O próprio Lukács, em 1935, escreveu um
longo ensaio sobre Schiller, onde analisou detalhadamente a problemática de sua educação estética no
contexto da Aufklärung. Cf. Zur Ästhetik Schillers. In: LUKÁCS, 1954.
271
isto é, de interesses com valor apenas imediato, sem conexão com a totalidade da própria
existência.
Totalidade que potencialmente se constitui em muitas direções. Isso quer dizer que
o desenvolvimento ético do homem como ser genérico é simultaneamente a formação de
sua multilateralidade, pois a individuação se constitui apenas pela vivência concreta de
relações concretas. Toda vivência e toda relação transpassa no plano da singularidade. No
entanto, recapitule-se: para Lukács, o processo civilizatório necessariamente acarreta
fragmentações e contradições para a vida individual, de forma que a efetivação de uma
personalidade harmoniosa e plural, sobretudo na fase avançada do capitalismo, só pode ser
estipulada como ideal aproximativo. Um ideal – e aqui se faz uma nova ponte entre estética
e ética – que encontra na arte, tomada em sua pluralidade, uma forte aliada, pois cada obra
de arte é, na sua singularidade, a consumação de uma realização individual de valor
universal, um elo desta cadeia infinita da totalidade das experiências humanas:
Na pluralidade das artes e das obras individuais se objetivam a
unidade e a totalidade verdadeiras do homem em todos os seus
aspectos: sua existência e seu efeito, sempre dado ao menos
potencialmente, mostram que esse ideal não se realiza nunca de todo,
mas que não contém nada de transcendente (tão-pouco um dever-ser
transcendente), mas que é reflexo da existência real, da real evolução
da humanidade. A pluralidade das artes e das obras individuais
expressa, por um lado, a consumação interna de diversas relações
deste tipo com a realidade, sua infinitude intensiva e, portanto, sua
orientação à totalidade do homem – precisamente na forma do
homem inteiramente tomado – e, por outro lado e ao mesmo tempo, o
fato de que o homem não pode realizar em cada caso mais do que
uma dessas relações, o fato de que o modo geral de sua realização é
extraordinariamente múltiplo, ao passo que o modo concreto é
simplesmente infinito568.
Se a arte reflete a vida, é natural que a pluralidade seja uma determinação de seu ser.
Pluralidade que se manifesta nos tipos (literatura, música, arquitetura etc.), nos gêneros
(específicos de cada tipo de arte) e na própria constituição singular, pois cada obra é um
“mundo próprio”, autônomo, reflexo particular do mundo, que se põe pela singularidade de
sua constituição interna absolutamente única e insuperável. A identidade de cada obra é a
568Ibid., p. 775.
272
identidade das vidas nela consubstanciadas artisticamente e sua vivência receptiva constitui
invariavelmente “um passo de aproximação à multilateralidade do homem”569. Portanto,
aproximação de si mesmo, descoberta de si enquanto ser genérico, partícipe de um mundo
plural em suas formas de ser, mundo, pois, das individualidades.
Existe, ademais, um outro aspecto desta pluralidade. Toda obra de arte se constitui
de “camadas”. Para o receptor, isso significa a possibilidade de sempre redescobrir uma
obra já conhecida e aprofundar-se em seus meandros a cada novo envolvimento com ela. A
isso corresponde uma categoria fundamental do comportamento receptivo: o Antes. A
relação do sujeito com a obra está condicionada pelas suas vivências anteriores, pela sua
experiência e sensibilidade formadas. É a partir desta base que a obra ganha significado
para ele, que as “camadas” (Schichten) objetivamente acumuladas na obra podem se fazer
visíveis, atuando catarticamente sobre a sua personalidade. Um dos traços que distingue as
grandes obras é a riqueza de “camadas” formativas de sua estrutura. Com isso, pode-se
entender mais concretamente a essência do processo receptivo: ele nasce da relação entre o
mundo do sujeito receptivo e o mundo configurado da obra. Diz Lukács:
Depende em grande parte do Antes do receptor a questão de qual é a
“camada” da obra que exercerá sobre ele o efeito mais direto; e
depende, ao contrário, da universalidade e da intensidade da
conformação quantas outras “camadas” vibram nessa impressão
imediata, mesmo sem a consciência do receptor570.
Com o conceito de pluralidade, o que vem à tona é a predominância do momento
individual na esfera estética. Cada obra singular realiza, amplia e modifica, as leis do seu
gênero e da arte em sua universalidade. E é neste sentido que, para Lukács, nenhuma
generalização estética pode ultrapassar a dimensão singular das obras de arte e subsumi-la
sob a universalidade da lei571. Há uma simetria estrutural entre a arte e vida real dos
indivíduos: em cada obra, por processos de criação singulares, surge um mundo único,
irrepetível, povoado por tipos que, embora perdurem como protótipos de comportamentos e
destinos humanos, são sempre radicalmente individuais, podendo, graças a isso, sensibilizar
569Ibid., loc.cit. 570 Ibid. p. 801. 571 Cf. Ibid., p. 584 et seq.
273
os homens e alargar-lhes a trilha da sua própria individuação, este tecido urdido de muitos
fios, constituído de modo plural, onímodo.
Disso decorre o vínculo profundo e indissolúvel, fixado pela catarse, entre a esfera
estética e a esfera da ética, o que, a nosso ver, não fere o estatuto de autonomia da obra de
arte. Sua normatividade, no contexto da estética de Lukács, é exclusiva e deriva de uma
base própria. Base, porém, em última instância, comum às demais esferas, como a ética e a
ciência, já que se trata aqui do ser social. Como vimos, a diferenciação entre elas ocorre no
interior dessa identidade, não impedindo a formação de zonas de transição e, muito menos,
a sua interação dinâmica. Neste sentido, Lukács também assinala que entre a ciência e a
arte são inconcebíveis linhas fronteiriças absolutamente definidas e fixas572. Sob esta ótica,
o problema clássico da autonomia se desfaz pela rigidez de sua própria colocação, já que,
na realidade, não existem fenômenos puros.
A autonomia da arte pressupõe, pois, sua vinculação às demandas do ser social.
Pressupõe, assim, unidade de conteúdo e forma, ou melhor, a constituição de uma
objetividade que imediatamente evoque a dimensão subjetiva da realidade, que seja sujeitoobjeto idêntico. Somente uma tal plenitude de determinações materiais e acabamento
formal pode se fazer viver como “mundo próprio” e elevar o receptor acima da sua empiria,
de sua mera particularidade, despertando-o para afetos catárticos a respeito de si mesmo e
impondo-lhe o desafio ético de sua própria realização, isto é, de seu processo de autodesdobramento e aproximação contínua à universalidade multiforme do ser social. Assim
como a ciência, também a arte encontra na vida – nas necessidades da vida – sua norma,
origem e fim.
572 Ciência e arte não só estão mescladas nas origens, como a separação posterior entre elas cria espaços de
confluência. Esse problema é discutido em detalhes no capítulo 3 da Estética.
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/ARBZ-85KH2Z/1/tese_rainer.pdf
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Beto Guedes | Outros Clássicos (Show Completo)
Biscoito Fino
Show "Outros Clássicos", de Beto Guedes.
1 - O Medo de Amar É o Medo de Ser Livre
2 - Olhos de Jade
3 - Um Sonho Pra Viver
4 - Rio Doce (Part. Célio Balona)
5 - Quatro (Part. Célio Balona)
6 - Boa Sorte
7 - Só Primavera
8 - Luz e Mistério (Part. Daniela Mercury)
9 - Meu Ninho (Part. Daniela Mercury)
10 - Nena
11 - Tudo Em Você
12 - A Página do Relâmpago Elétrico
13 - Tanto
14 - Veveco, Panelas e Canelas
15 - O Amor Não Precisa Razão
16 - Balada dos 400 Golpes
17 - Lágrima de Amor
https://www.youtube.com/watch?v=jc4sUJz-Qro
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