quarta-feira, 3 de julho de 2024

A ÉTICA DA VERDADE

Comunicação bem feita melhora tudo, diz Haddad sobre queda do dólar ESTADÃO CONTEÚDO há 14 horas ----------
----------
------------ Quando as luzes se apagam, de David F. Sandberg ------------ Cena: Um salão iluminado por luzes frias. Duas poltronas estão dispostas no centro do palco, com uma mesa pequena entre elas. Nas poltronas, sentam-se Immanuel Kant e Benjamin Constant. Eles estão vestidos com trajes do século XVIII. A luz se intensifica sobre os dois, destacando-os do resto do palco. Um narrador entra em cena e se posiciona ao lado, preparando o público para o debate. Narrador: (Com voz clara e pausada) Senhoras e senhores, bem-vindos ao debate entre dois gigantes da filosofia moral: Immanuel Kant, defensor da ética deontológica, e Benjamin Constant, crítico da inflexibilidade moral. O tema de hoje é: "A Ética da Verdade". Agora, testemunhem um confronto de ideias no estilo brechtiano, onde a forma dramática nos leva a uma profunda reflexão. (O narrador sai de cena, a luz sobre Kant e Constant intensifica-se.) Kant: (Com postura rígida, voz firme) Senhor Constant, a moralidade não pode ser sujeita às flutuações das circunstâncias. A verdade é um imperativo categórico, uma lei moral que deve ser seguida sem exceção. Mentir é sempre moralmente errado, independentemente das consequências. Constant: (Levemente inclinado para a frente, expressão pensativa) Herr Kant, aprecio a clareza de sua posição, mas a vida não é tão simples. Se a verdade causaria um mal maior, como podemos ignorar o impacto de nossas ações? Por exemplo, se um assassino perguntasse onde se esconde uma vítima, não deveríamos proteger a vida, mesmo que isso envolva uma mentira? Kant: (Ergue uma sobrancelha, a voz ganha intensidade) A veracidade é a base da justiça e da confiança. Mentir, mesmo para proteger alguém, mina a integridade moral. A universalização da mentira destruiria a confiança mútua, fundamental para a coexistência humana. Constant: (Balança a cabeça, tom conciliador) Herr Kant, compreendo sua preocupação com a universalização. No entanto, proponho que os deveres morais devem ser considerados em contexto. A moralidade absoluta que o senhor defende pode levar a injustiças. A vida exige flexibilidade. Kant: (Aproxima-se, com seriedade) Flexibilidade na moralidade leva ao relativismo e à anarquia. Se permitimos exceções, quem decide quando mentir é aceitável? A moralidade perderia seu fundamento. Constant: (Inclina-se mais, expressão urgente) Justamente! A moralidade deve ser ancorada na empatia e nas circunstâncias concretas. Não podemos ignorar a realidade prática. Mentir para salvar uma vida não é moralmente inferior; é um dever de humanidade. (O narrador entra novamente, posicionando-se entre os dois pensadores.) Narrador: (Com tom reflexivo) Senhores, o dilema aqui apresentado ecoa através dos séculos. A verdade como princípio absoluto versus a verdade adaptada às circunstâncias. Uma questão que não possui respostas fáceis. Kant: (Levanta-se, gesticulando com determinação) A verdade é inalienável. Nossa obrigação moral é segui-la sem desvios. Só assim manteremos a integridade e a justiça. Constant: (Também se levanta, tom firme) A verdade, sim, mas temperada pela compaixão e pela realidade. Só assim seremos verdadeiramente justos. (Ambos se encaram por um momento, em silêncio. A luz diminui gradualmente, deixando apenas suas silhuetas visíveis.) Narrador: (Com voz solene) E assim, o debate persiste, convidando cada um de nós a refletir sobre a ética da verdade. A busca pela moralidade perfeita é eterna e complexa, e neste salão, dois caminhos são traçados. Cabe a nós escolher qual seguir. (A luz se apaga completamente. Fim da cena.) ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ ------------
----------- Gilmarpalooza' é criticado em revista de Portugal como “orgia de promiscuidade” ------------ O festival do arranjinho Todos os anos, Lisboa acolhe um encontro de que nunca ouviu falar, mas que é uma autêntica parada de poderes promíscuos. Oque diria de um juiz que andasse em almoços, jantares e eventos de charme com empresários que têm processos pendentes junto desse mesmo juiz? Diria provavelmente que é corrupto ou que, no mínimo, estava a violar o seu mais elementar dever de reserva e recato, expondo-se a um conflito de interesses que põe em causa o seu julgamento. E se esse encontro de confraternização e palmadinhas nas costas acontecesse às claras, com datas marcadas e site na Internet, disfarçado apenas pelo véu (aliás, muito transparente) de um evento académico? Diria talvez, para usar a expressão muito portuguesa, "quem não tem vergonha, todo o mundo é seu". Bem-vindo ao "Fórum de Lisboa". PARA CONTINUAR A LER ------------
------------ quarta-feira, 3 de julho de 2024 Wilson Gomes - juiz celebridade precisa acabar Folha de S. Paulo Se não compreender esse fato, em breve não terá moral para fazer o seu papel Sou de uma geração que, ao alcançar a idade do discernimento moral e do entendimento do mundo, achou-se sob uma ditadura militar. Uma geração que não apenas viveu boa parte da vida sob um regime ditatorial, mas cujos pais haviam experimentado duas ditaduras. Um jovem dos anos 1980 nem sequer conseguia discernir se o país vivia sob um regime democrático frequentemente interrompido por longas ditaduras ou se saltava de ditadura em ditadura com breves intervalos democráticos. Daí o assombro de quase ver a história se repetir em 2023, quando bolsonarismo achou que já era tempo demais de recreio democrático e saiu num domingo de sol para dar um golpe como quem sai para um passeio no parque. Para a minha geração, portanto, é impossível não reconhecer o fato de o STF ter se demonstrado uma instituição capaz de enfrentar com firmeza os arroubos ditatoriais do pretendente a tirano. Não se trata apenas da reação dura e sem hesitação à intentona de 8 de janeiro. Refiro-me, sobretudo, aos quatro longos anos em que Bolsonaro e o bolsonarismo testaram os limites da democracia, capturaram instituições, sondaram a tolerância da imprensa e, enfim, procuraram brechas na defesa do STF. A cada investida, um rechaço, e a cada rechaço, um discurso histriônico, um vídeo histérico, uma profusão de ameaças explícitas e nominais. Não é à toa que o juiz Alexandre de Moraes estava "no caderninho" dos que precisavam ser removidos à força do caminho. Além disso, é impossível não admirar os tantos avanços progressistas que um STF predominantemente esclarecido e convictamente democrático foi capaz de garantir em seus julgamentos na última década. Por isso, vejo com desconforto juízes da Corte se esforçarem para jogar fora o patrimônio de admiração e apreço republicanos conquistado ao longo dos anos e consolidado quando a instituição se atreveu a ser o osso duro de roer em que o bolsonarismo autocrático findou por quebrar os dentes. O fato é que há muito tempo juízes da Corte se comportam como se fossem imprescindíveis intelectuais públicos, influenciadores ou celebridades da mídia. A propensão a pontificar sobre polêmicas públicas, a compulsão por ter que "meter opinião" nas questões disputadas e nas controvérsias em aberto na sociedade, a semidivina convicção de que cada juiz carrega em seus ombros o destino político do país e que, portanto, conduzirá a nação para a felicidade a golpe de pareceres ou de declarações é definitivamente constrangedora. A democracia e a imagem do Judiciário ficariam bem melhores se juízes do STF não fossem "arroz de festa" da "palpitologia" nacional que inunda o jornalismo e os ambientes digitais. Não sei se realmente acham que o país precisa realmente desse serviço de babá política ou se é apenas ego, mas o fato é que há outras pessoas para fazer isso. Aliás, o que não falta ao país são intelectuais e pretendentes a isso, influenciadores e celebridades. Ultimamente, com os festivais ultramarinos da inteligência nacional, membros da Corte passaram também a prestar os inestimáveis serviços de promoção de "think tank activities". No último desses festivais, conforme a Folha, 160 autoridades do governo, do Congresso e do Judiciário tiraram uns dias em Lisboa para, com a devida distância, entender o país. Isso faz sentido? Um juiz do STF lapida o seu lugar na história, inclusive na história intelectual do país, sendo juiz. Segurar a autocracia pelos chifres quando nada mais parece capaz de fazê-lo, escrever pareceres e súmulas dignas de antologia sobre questões em disputa, manter uma postura republicana quando o país enlouquece politicamente. É preciso mais do que isso para entrar na história? Tem cabimento ser ainda celebridade e fornecedor fácil de aspas para o jornalismo, torrar a grana pública em diárias e passagens nababescas, desnecessárias para o exercício do seu ofício, frequentar a elite da política e da grana em convescotes, tertúlias e festinhas VIP, ou arvorar-se como grandes intelectuais brasileiros na sua hercúlea tarefa de dirigir a mente nacional? Republicano é um juiz da Suprema Corte brilhar no exercício do seu múnus e desaparecer na vida cotidiana do país, recoberto por modéstia e neutralidade, deixando a política ao povo e aos políticos, e os papéis de intelectual público, influenciador, celebridade e agitador cultural a quem fizer disso o seu ofício. Se os nossos juízes não compreenderem esse fato, em breve não terão moral nem mesmo para fazer o papel que lhes cabe, e pelo qual tanto os apreciamos. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ ----------- ------------- PRESIDENTE LULA NO UOL — ENTREVISTA COMPLETA Estreou em 26 de jun. de 2024 #sakamoto #uol #lula Entrevista completa do presidente Lula concedida à Carla Araújo e Leonardo Sakamoto para o UOL ---------- Um Enigma no Planalto: A Entrevista de Lula Usando os textos até aqui apresentados e analisados como base e referência, culminando no último parágrafo do capítulo 31, na página 211: "Os Crimes ABC - 211": "— E então? — E então... teremos uma conversa. Je vous assure, Hastings, nada é tão perigoso quanto uma conversa para alguém que tem algo a esconder! Como me disse certa vez um velho e sábio francês, a fala é uma invenção do homem para impedi-lo de pensar. E é também um meio infalível de se descobrir o que ele deseja ocultar. Um ser humano, Hastings, não pode resistir diante da oportunidade que uma conversa lhe dá de se revelar e expressar sua personalidade. Cada vez ele revelará mais coisas e se deixará trair. — Que espera que ele lhe diga? Sorriu e respondeu: — Uma mentira. E, por meio dela, saberei a verdade!" A sala estava iluminada, mas não de maneira opressiva. As cortinas pesadas filtravam a luz do dia, criando um ambiente quase aconchegante. Lula, com sua postura confiante, estava sentado de frente para os jornalistas Carla Araújo e Leonardo Sakamotto. As câmeras estavam prontas, e os microfones, posicionados para captar cada palavra. — E então, Presidente? — começou Carla, com um olhar curioso. — Como o senhor vê a economia atual do Brasil, especialmente à luz dos 30 anos do Plano Real? Lula sorriu, um sorriso que não revelava nada além de uma calma meticulosa. Ele sabia que cada palavra contava, e que a conversa que se desenrolaria poderia ser tanto uma armadilha quanto uma oportunidade. — A economia, Carla, é como um velho amigo — começou ele, escolhendo suas palavras com cuidado. — Às vezes, ela te dá tudo o que você precisa, e outras vezes, ela guarda segredos. O Plano Real, há 30 anos, foi uma dessas revelações. Trouxe estabilidade, mas também nos lembrou de que nada é permanente. Tudo deve ser constantemente revisado e ajustado. Sakamotto, ansioso por uma resposta mais concreta, interveio: — E quanto às críticas sobre as políticas econômicas atuais? O que o senhor tem a dizer sobre a taxa de inflação e o crescimento lento? Lula inclinou-se ligeiramente para frente, como se estivesse compartilhando uma confidência. Ele sabia que uma conversa poderia revelar muito mais do que um discurso preparado. — Veja bem, Sakamotto, a economia é como uma conversa. Nada é tão perigoso quanto uma conversa para alguém que tem algo a esconder. A fala é uma invenção do homem para impedi-lo de pensar, e é também um meio infalível de se descobrir o que ele deseja ocultar. Cada palavra que escolhemos revelar nos trai um pouco. Cada política econômica, cada decisão, revela mais sobre nossas intenções do que gostaríamos de admitir. Os olhos dos jornalistas estavam fixos nele, absorvendo cada nuance. Carla tentou novamente: — E quais são as intenções do seu governo, presidente? O que o senhor deseja alcançar com suas políticas? Lula sorriu novamente, um sorriso enigmático. — Uma mentira pode nos levar à verdade, Carla. As críticas são esperadas, mas elas também são necessárias. Elas nos mantêm atentos, nos forçam a explicar, a justificar. A minha intenção? Minha intenção é levar o Brasil adiante, mas sem esquecer das lições do passado. E, claro, sem deixar de lado a honestidade com o nosso povo. A sala estava em silêncio, exceto pelo leve zumbido das câmeras. Os jornalistas sabiam que Lula havia dito muito, mas também deixara muito por dizer. A entrevista continuou, cada pergunta e resposta como uma dança cuidadosa, revelando e ocultando, até que, no final, a verdade emergisse, como sempre acontece em uma boa conversa. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ ------------
----------- Tradicao, Autocracia E Carisma: A Politica De Antonio Carlos Magalhaes Na Modernizacao Da Bahia, 1954-1974 Capa dura – 29 junho 2018 Edição Português por Paulo Fabio Dantas Neto (Autor) ---------- terça-feira, 2 de julho de 2024 Paulo Fábio Dantas Neto* - Longe e tão perto assim: o drama da política na França, nos EUA e nos nós do Brasil Se a vida política pudesse transcorrer num mundo ideal, o debate ocorrido, essa semana, entre o presidente Biden e seu desafiante nas próximas eleições norte-americanas teria sido assistido por todos os cidadãos e cidadãs dos países democráticos com o mesmo interesse dispensado a um debate eleitoral decisivo que se desse em seu próprio país. Num mundo ideal, em que a informação política circulasse de maneira ampla, verídica no conteúdo factual e comunicada de modo veraz, não seria preciso esforço maior de argumentação para que se tomasse consciência pública das implicações internacionais do resultado dessas eleições. A consciência viria da própria experiência compartilhada do público com a política. Como esse mundo ideal não existe, é preciso repetir o que seria óbvio: que uma eventual vitória de Donald Trump em novembro será uma ameaça para a democracia no planeta. Essa razão explica a apreensão com a performance insegura do presidente e candidato democrata no debate. Talvez seja uma consciência tardia, visto que as eleições já estão na porta. A essa altura, a força de inércia de automatismos sistêmicos da competição eleitoral e da diversidade de preferências políticas, talvez sem tempo de serem conciliadas numa candidatura unitária, poderá bloquear gestos mais largos, como o da retirada da candidatura pelo próprio Biden. Essa hipótese, enfaticamente veiculada, há três dias, pela imprensa e várias fontes de opinião democratas, não aparenta ser muito realista, pelo menos na visão destes olhos não treinados por um entendimento maior do contexto norte-americano. Ou melhor, realista ela é, em sentido amplo, de quem procura enxergar além da pequena política. Mas esse é um tipo de realismo que anda escasso em mercados políticos consolidados, onde rotinas se impõem. Na Europa a situação é difícil também, com o avanço da extrema-direita, como mais uma vez ficou patente nesse fim de semana, no primeiro turno das eleições ao Legislativo na França que, a depender dos resultados do segundo turno poderão levar à formação de um governo liderado pela extrema-direita. Mas na França e em outras democracias europeias, as várias formas de governo parlamentar e a maior renovação de lideranças permitem melhores condições de enfrentamento do problema, pelo campo democrático. Encena-se, ali também, o drama da representação política, com todos os seus riscos. Mas o script democrático tem alternativas que vão além de vencer um conflito entre personalidades. Veja-se, por exemplo, no mesmo caso da França atual, a possibilidade concreta de uma aliança entre forças de centro e de esquerda barrar, no segundo turno, a ascensão dos extremistas ao governo. E ainda que, neste caso, a extrema-direita consiga seu intento, sua vitória sempre poderá ser mais provisória do que um tempo previamente fixado de mandato. Acima de tudo será uma vitória “por pontos”, graças ao pluralismo intrínseco de uma cultura política valorizadora do parlamento, mesmo onde haja quase um bipartidarismo. Ela nunca se dará por nocaute, como pode ocorrer, em contextos institucionais de presidencialismo, caso a personalidade plebiscitária do campo democrático falhe na sua missão. Mas o perigo precisa ser bem qualificado, para que suposições doutrinárias (e apocalípticas) não prosperem, desprezando a necessidade de evidências precisas. Seria precipitado concluir que as condições de resistência da democracia na Europa e nos EUA variam automaticamente conforme o sistema de governo seja parlamentarista, ou presidencialista. Mas é preciso reparar em como o perigo para a democracia e as instituições pluralistas pode aumentar quando um governo se forma por aclamação, ou por mera concorrência de rejeições, como ocorreu no Brasil em 2022, em desfavor da extrema-direita internacional e como pode agora ocorrer nos EUA, em favor dela. Sinais de esclerose da competição política norte-americana devem nos acautelar no Brasil. Podemos caminhar para sermos os EUA amanhã. Se não fosse o impedimento judicial de Bolsonaro, já estaríamos perto disso. Tanto lá como cá, o realismo político é abundante e, em geral, tende a conter extremismos. Mas quando a situação particular requer movimentos não rotineiros, como parece ser o caso de forças políticas e do próprio Biden decidirem sobre o destino da sua candidatura, a miopia desse realismo abundante cobra seu preço, também lá e cá. FHC e Obama são lembranças de agulhas em palheiro. Fora do circuito Brasil/EUA também é difícil ver luzes. Herdeiro(a)s de Churchill, Brandt, Gorbachev e Blair; de Berlinguer, Mário Soares e de atores de Moncloa; de Golda, Peres e Arafat; de Gandhi, ou Mandela; e até de recentes líderes, como A. Merkel e M. Bachelet, sumiram do mercado político, estão invisíveis ou provisoriamente inviáveis. Não à toa, o virtual fracasso político de Biden e Macron causa apreensão. E nós com isso? No caso brasileiro, um impasse dessa natureza nos canais eleitorais de formação de um governo legítimo tenderia a ser mais funcional à ascensão eleitoral de um chefe autocrático, ainda que seu radicalismo ideológico não tenha respaldo na atitude política “centrista”, predominante no eleitorado. Nocaute assim ocorreu em 2018 e nada impede que se repita, senão em 2026 (pelo impedimento judicial do personagem), nas eleições seguintes, ou por um evento disruptivo antes disso, evento que não seja um golpe (essa hipótese não cabe no nosso horizonte) mas um novo stress institucional, como o que ocupa nossa memória recentíssima. Para isso pode contar, além da exasperação política e social do tempo mundial atual e de presidentes com mais poder decisório que os dos EUA, uma cultura cívica soberanista, associada a uma mentalidade popular que, na história da nossa república, tornou-se resistente (quando não refratária) ao sentido dos freios e contrapesos que inspiram nossa Constituição. Claro que, além da vigência da própria Carta – marco institucional decisivo em si - a experiência de quase quatro décadas de democracia política altamente inclusiva não tem deixado essa mentalidade tradicional intacta. Vivemos uma mudança de valores especificamente políticos (o tema do conservadorismo de valores sociais gerais e de costumes é também uma discussão relevante e interfere como um limite, assim como o tema das desigualdades sociais, mas não há como tratá-los a sério nos limites deste artigo) que tem sido, em muitos aspectos, silenciosa e, em alguns momentos, ruidosa, mas contínua, na direção de dessacralizar, positivamente, a percepção social do papel dos agentes políticos. É compensação e relativização do mando e obediência verticais pela circulação horizontal da influência e do poder políticos, cujo eixo central é a autonomia de pensamento, opinião e ação. Isso injeta saudável ceticismo racional e liberal onde reinava, solitária e soberana, a adesão crente ou resignada a várias modalidades de despotismos, messianismos e populismos que se reclamam democráticos. Mas essa é uma “secularização” que demora e, como sabemos, envolve riscos de desvios de rota na direção de intolerâncias fundamentalistas para com a tradição, como se ela fosse algo que se possa e que se deva revogar e não observar como um freio positivo e imprescindível a delírios racionalistas. Por esses caminhos retos, ideias de faxina são alimentadas em todos os quadrantes ideológicos, tendo a Lava Jato sido apenas um exemplo de uma predisposição difusa e confusa, que faz pontaria contra alvos distintos e até opostos àqueles que a secularização da política pode ajudar a superar. Uma das vítimas inocentes dessas cruzadas é a arte da conciliação, fruto benigno cevado no interior de uma tradição política nacional, também plena de violências. No nosso país não há como envenenar esse fruto sem contaminar a árvore, razão pela qual os empreendimentos faxineiros dos caminhos retos minam a força da sabedoria política, em cujas curvas se esconde a clorofila da secularização. Logo, há razões de sobra para que deixemos em suspenso – embora fiquemos atentos - as cenas de alhures e observemos nossa própria cena, pensando em modos políticos de fazer do nosso país um lugar de dissipação, ainda que modesta, das nuvens iliberais que pairam sobre todo o mundo, no qual ele e nós estamos incluídos. Comparadas às dos EUA, nossas próximas eleições (presidenciais e legislativas) não estão tão perto. Comparados aos dos EUA nossos marcos institucionais mais importantes não datam de tão longe. No Brasil, a solução do contencioso político atual situa-se no futuro do presente e o espaço para construção institucional de consensos políticos mostra-se em pleno gerúndio. Mas, paradoxalmente, a sensação de iminência eleitoral marcou uma entrevista exclusiva do presidente Lula aos jornalistas Carla Araújo e Leonardo Sakamotto, do UOL, organizada no Planalto na quarta, 26.06, no contexto da celebração dos 30 anos do plano real, por antigos adversários seus, que a ele se aliaram, contudo, para derrotar um adversário comum e perigoso, no segundo turno das eleições de 2022, em termos análogos aos que ontem o presidente Macron sugeriu ao eleitorado e aos políticos franceses. Paradoxo ainda mais desconcertante do que usar retórica de competição num momento que requer cooperação deu-se, não na forma de falar, mas no conteúdo das falas do presidente sobre economia, na referida entrevista. Independentemente da sua intenção, que não se põe aqui em causa, elas sugeriram um contraponto, vago e implícito, ao sentido estabilizador do plano real, quando seria razoável, naquela semana de boa memória, uma convergência explícita, para celebração comum de um marco institucional de evidente atualidade, com o qual converge, é bom frisar, a linha prevalecente na área econômica do seu governo. O nó dos “nós” Cabe aqui uma ressalva ao argumento em curso. Ele não pode, nem quer, demonstrar que o presidente está levando o país a um abismo fiscal por causa da competição eleitoral, ou de seus interesses políticos pessoais ou de facção. Seria uma suposição leviana de intenções, ademais, facilmente contestável por evidências em contrário. Se não bastassem a própria nomeação de Haddad e sua continuidade no cargo, tem havido, ao lado de imposições de inúmeras saias justas ao ministro pela retórica do presidente - que faz do “mercado” personagem-mito de uma trama diabólica cujo ator seria o presidente do BC - também sinais incentivadores do prosseguimento do script de Haddad. O mais recente é a adesão, comentada pela imprensa, do ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, ao “lado” da Fazenda no embate já não mais surdo que a área econômica do governo trava com a Casa Civil e seu ministro Rui Costa, em torno de assuntos ligados ao orçamento e ao equilíbrio fiscal. E assim a caravana do governo segue, sob a égide da ambivalência. Trata-se de gramática antiga de Lula, que não pode ser vista como estranha ao que Edson Nunes chamou “fertilização cruzada” de gramáticas políticas numa gramatica sincrética, receita exitosa de estabilidade em relações entre economia, administração e política no Brasil do século passado, na qual o maior perito foi o presidente JK. Ocorre que mudanças no capitalismo e no mundo estão testando a sabedoria prática pela qual a ambivalência é virtude política. É provável que nunca deixe de ser, em alguma medida, já que sem ela a política tende a se reduzir a um conflito ideológico entre receitas fundamentais, no qual o vencedor leva tudo. Situação insuportável, por longo tempo, em sociedades que, como a nossa, tiveram a sorte de serem contaminadas pelo vírus do pluralismo político. Mas mesmo nelas, as mudanças do tempo presente - tempo de extremos que devem ser contidos e isolados - pedem moderação também nas ambivalências, para que não desandem numa ambiguidade extrema. Esse talvez seja o maior risco político nacional. A referida entrevista de Lula não tem implicações nem emergência política equivalentes às da missão que esteve sobre os ombros de Biden naquele evento de debate eleitoral. Mas vale ser assistida na íntegra (está disponível no Youtube) por outro motivo, ainda mais importante: ela permite ver como o presidente parece estar avaliando a situação em que seu governo se encontra e sentir como ele, pessoalmente, está bem situado, ou não. Sugiro a quem tiver tempo que o use para assistir e formar um juízo, inclusive para recepcionar o noticiário sobre a repercussão que uma fala de Lula teria e teve. A entrevista, a meu juízo, assusta porque mostra o presidente falando com convicção desarrazoada, pensamento em linha reta, como se pisasse em terreno plano. Durante a primeira meia hora, que trata de economia, ele discursa sobre um universo que sua subjetividade capta, mas que, mesmo com seu cuidado em citar números, não é fácil de compartilhar num diálogo inteligível fora de sua bolha. Essa precária racionalidade do conteúdo chega a ser, algumas vezes, arrogante, por pedir concordância sem argumento. Mas se o realismo some na fala temerária, por outro lado, o semblante nervoso e o gestual ansioso mostram que o instinto está funcionando e lhe dá noção do perigo. É possível ver um animal político acuado ao longo de toda a entrevista, mesmo depois que se esgotou o tema da economia. Tratando, como de hábito, a política social no país como monopólio do PT e dos seus governos, foi além, nessa combinação de defesa do seu legado com um patriotismo de partido – observação de um arguto interlocutor amigo, de quem sempre me valho, na Roda Democrática -, tratando como virtude as implicações políticas do fato singular, recentemente frisado (com outro sentido) pelo cientista político Marcus André Melo: a condição do PT ser um partido importante que vive há 40 anos em torno de um único dirigente. Essa jaboticaba atira a esquerda brasileira num charco, refém do destino do guia. Se seu pensamento e ação padecem de anacronia, o realismo seria aceitar o anacronismo no país até o guia sair de cena política. Lidaremos, depois, com uma memória, ou com uma assombração, como a de um Peron? Nada disso é reflexão nova, ou só minha. O que me pareceu fato novo e justificador de apreensão, na entrevista, é a impressão de que a situação obstinadamente negada está afetando a proverbial autoconfiança do personagem. A arrogância não some, mas arrefece e deriva para a exasperação, especialmente diante da pauta econômica, com entonação e gestual de apelo impotente para que os interlocutores concordem com ele. Uma situação constrangedora para os entrevistadores (um deles sabidamente amistoso, mesmo na crítica), a de serem a toda hora chamados pelo entrevistado para serem testemunhas de sua narrativa. É muito preocupante porque Lula está no topo e, vendo aquela cena, é possível notar que a palavra que resume melhor sua atitude é fragilidade. Em todos os sentidos. O ex-deputado, ex-ministro de Estado e ex-líder do PT, José Dirceu, parece estar entre os poucos quadros da esquerda brasileira que percebem onde mora o perigo, ao menos o perigo que há para ela. Por meses ele tem falado para os seus (o PT e seus aliados de esquerda), instando-os a procurar fazer alianças agora para restabelecer, a médio prazo, uma hegemonia perdida, perda essa que considera provisória. Está vendo a chance da retomada escorrer pelos dedos do PT, no varejo do governo, deste governo que não vê como “nosso”. Tenta exortar pares para uma perspectiva estratégica que possam chamar de sua. Mas quem são, hoje, seus pares? Estará quente quem os procurar afogados no varejo. Dirceu propõe um toque de reunir, que ele não pode dar por si mesmo, porque já não tem a corneta. Sabe que influi, mas pouco, porque está fora das máquinas do partido e do governo. Por isso fala ao partido e seus aliados assim, em público - e fala de estratégia, para saltar-se por cima desse varejo enquanto se lida com ele. Em 2003 ele também tinha visão estratégica, além de poder. Mas não conseguiu convencer Lula a fazer uma aliança de longo prazo com o então PMDB. Como estava com a mão na massa, foi operar o mensalão para não perder o poder que acabou perdendo - primeiro o de governo, depois o de partido - porque sabia fazer tudo e Lula “não sabia de nada”. É provável que se estivesse no governo hoje, dissesse o que tem dito com um pouco mais de chance de ser ouvido, mas em não sendo, estaria operando o varejo que Lula, mais uma vez, escolheu e escolheria para o seu governo. O nó do Brasil: como desatar? É óbvio que tudo o que José Dirceu diz faz sentido em si e é mesmo melhor do que escutar a mixórdia da política dos seus, de cada dia. Mas fora da bolha da esquerda lulopetista, as perguntas conexas são: qual seria mesmo a boa nova estratégica e quem a anunciaria para o grande eleitorado, já em 2026? Começando pela segunda pergunta, olha-se em volta e, por ora, só se vê Haddad. A conversa é sobre estratégia para governar doze anos e a partir de 2026 restarão oito. Dirceu está sendo coerente com a sugestão subliminar que tem feito, em público, ao PT, de pensar num plano alternativo mais ambicioso do que a reeleição de Lula. É preciso sustentar taticamente esse governo com uma frente irrestrita contra o permanente perigo fascista. É isso o que manda a atual correlação de forças. Essa frente, se possível, deve ser mantida, em boa parte, como frente eleitoral em 2026. Seja possível, ou não, seria ainda assim uma antecipação, no palanque, do que ele prega para a partir de 2026, que é um governo de esquerda para mais oito anos? Sim, moderada, mas esquerda, que para ele se coloca em oposição a uma saída econômica liberal para o país, que o conjunto da direita estaria querendo obrigar o atual governo a aceitar, de joelhos. Levar em conta que hoje é o jeito e apostar nas urnas para virar o jogo e criar novo governo, sob nova correlação de forças. Chegamos à primeira pergunta, feita pelo eleitor: qual é a boa? Supondo ainda que o anunciador seja Fernando Haddad, o candidato (ou o presidente) formatado estrategicamente seria mais ou menos aquele Haddad de 2018, que pode perder a eleição, mas garante ao campo político liderado por um PT recheado de deputados eleitos pela polarização com a direita, o monopólio de uma oposição política a um governo igualmente de direita, logo, inimigo da sociedade civil, sobre a qual a esquerda recuperaria uma incontrastável hegemonia. O eleitor insiste: qual é a boa? Uma visão de pais e um projeto político correspondente não parecem ser, até aqui, a resposta, se olharmos para as inclinações atuais do eleitorado, conservadoras em costumes e liberais em economia. Seria de esperar de uma esquerda minimamente contemporânea um diálogo positivo - afirmativo, crítico e respeitoso – com os eleitores quanto às primeiras, aberto e cooperativo quanto às segundas. Nada disso se vê. O objetivo assumido pela estratégia é a esquerda governar 12 anos, por obra e graça de ser esquerda, com seus compromissos imemoriais com a igualdade e a soberania nacional, que lhe garantiriam lugar de fala diante dos pobres. O mais concreto está apenas implícito em profissões de fé desenvolvimentista como alternativa ao liberalismo econômico globalista. O Fernando Haddad que tenta gerir a economia sob fogo amigo não cabe nesse figurino permeável à tentação populista. O Haddad lulopetista moderado, de 2018, talvez sim. Mas não é certo que estará disposto a repetir a dose se não estiver mais em jogo sua lealdade ao líder e sim a um partido com pretensões hegemônicas. Ou a razão exilou-se de vez da vida política ou não há como querer como presidente o atual ministro e, ao mesmo tempo, detonar, ainda que retoricamente, a política que ele vem negociando positivamente com os distintos brasis que há. Se a ampliação de Lula até o centro fracassar como conceito de candidatura viável, menos viável que a de Lula será a de Haddad, se ele for devolvido ao seu berço original. Mas ainda que se reconheça essa suposta estratégia como um patriotismo de partido fundado em percepções anacrônicas de revolução (ainda que pelo voto) não se pode deixar de reconhecer também, na pregação de José Dirceu, uma clarividência que falta aos áulicos e a amigos sinceros do rei, que fazem política com o umbigo e com lentes provincianas, sem abrir os olhos ao que está além do espelho. Ele decerto acompanha o drama de Biden e seu partido, parece ver que se esgotou a saga de 4 décadas da era Lula e que o nó que aperta pescoços ao longe está perto de nós todos, especialmente do seu “nós”. Parece saber também que já não falta a trânsfugas de amanhã a clarividência que parece faltar a áulicos e falta, de fato, a leais correligionários e aliados de Lula. A corte não é o melhor ponto de observação. *Cientista político e professor da UFBa. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ -----------
----------- Questão 11 – (Enem PPL 2016)– Ética da Mafalda A figura do inquilino ao qual a personagem da tirinha se refere é o(a) a) constrangimento por olhares de reprovação. b) costume importo aos filhos por coação. c) consciência da obrigação moral. d) pessoa habitante da mesma casa. e) temor de possível castigo. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ ----------
---------- O Anel de Giges: Um dilema ético sempre atual PABLO GONZÁLEZ BLASCO 7 DE MAIO DE 2021 LIVROS 2 COMMENTS Eduardo Giannetti: “ O Anel de Giges”. Companhia das Letras São Paulo 2020. 313 págs. Joaquin García- Huidobro: “El anillo de Giges. Una introducción a la tradición central de la ética”. Ed Notas Universitarias. México. 2019. E- Book. 519 pgs Por essas coincidências da vida, tropecei, em menos de um ano, três vezes com o anel de Giges e os desafios da ética. Na verdade não foi com o anel -o que me colocaria numa saia justa- mas com a história relatada na República do Platão: Giges, um pastor, encontra um anel que o torna invisível. E daí, como ninguém o vê, apronta todas… A primeira vez foi no livro já comentado sobre a Ética da Razão Cordial, onde a autora se pergunta: Continuas sendo justo quando ninguém te vê, quando tua debilidade não está exposta? Pouco depois, apareceu em cima da mesa do meu consultório o livro de Gianetti. Um amigo, que tinha ouvido no rádio o comentário, decidiu me dar de presente. Retoma-se a fábula: “Imagine um anel que faculte ao seu dono o privilégio de ficar invisível ao olhar alheio: ao simples girar do engaste no dedo a pessoa desaparece e, ao retorná-lo à posição normal, ela volta a ficar visível aos olhos de todos. O anel de Giges é o salvo-conduto da invisibilidade: transparência física, nudez moral (…) O anel da invisibilidade atiçou a fera da ambição desmedida e tornou visível o sonho de glória, preeminência e poder adormecido na alma do humilde pastor”. E a seguir o questionamento, objetivo do livro: “A conjectura de invisibilidade permite questionar como responderiam as diferentes tradições e escolas de pensamento ético -platónica e cristã, kantiana e utilitarista- diante do desafio moral (….) Por que ser justo nas relações com os outros quando se pode não sê-lo e, ao mesmo tempo desfrutar todas as vantagens disso sem nenhum custo? Quem era -quem é- quem será Giges? Por que abrir mão de satisfazer algum desejo que se pode realizar sem nenhum risco de opróbio ou punição?”. O dilema está bem colocado, e o mérito é da filosofia grega, não do autor. Mas na hora de responder -de posicionar-se- Gianetti, na minha opinião se perde: divaga nas posturas ética, sem deixar claro qual seria a dele. Quer dizer, todos contam a história mas ninguém quer se enfrentar com o desafio de ter o anel no próprio dedo. Nesse avance histórico apresenta o risco evidente do racionalismo na ética. Anota: “Destruídas as bases da moral herdada e da fé tradicional, o que sucede? O risco do racionalismo era o de que livre das amarras da fé religiosa e da moral herdada, os cidadãos se entregassem à satisfação irrefreada de suas taras recalcadas e paixões inconfessas. Como evitar a ameaça de que a emancipação moral prometida pela razão levasse ao colapso dos padrões éticos de conduta, à anarquia generalizada, e por fim ao surgimento dos tiranos?”. Volta para os gregos, que são os pais de Giges: “Sócrates diz que ser justo é um bem em si, um bem indissociável da melhor vida, mesmo que se retirem da pessoa justa todas as vantagens externas que a posse dessa qualidade normalmente proporciona, como a reputação, honrarias (…) A verdadeira felicidade não é ser capaz de satisfazer quaisquer desejos, mas em ter os desejos certos. A justiça é um modo de ser da alma, e não apenas o domínio de um saber”. Brilhante, crédito para os gregos. Mas o autor, inquieto, parece que não se conforma e debruça-se sobre o Cristianismo que, no fim, também não lhe convence. “O Cristianismo reúne dois vetores contrapostos. De um lado, impõe aos devotos o reconhecimento da sua condição mundana, vil e pecaminosa fruto da queda. De outro, porém, exige que se esforcem e dediquem a perseguir com total afinco a excelência do ser divino. Como irmãs siamesas que se atraem e se repelem, a condição abjeta e as aspiração celestial vão juntas na alma bipartida”. E sublinha uma verdade contundente: “O cerne da moral reside não no que é feito, mas nos motivos que nos levam a fazê-lo”. Como em todo o livro recolhe coisas interessantes mas não se sabe qual é a postura dele (autor) nem se atreve a responder o desafio do anel de Giges, como salvo-conduto da impunidade moral. Em contrapartida, esperneia e desconta nas filosofias que não lhe resolvem o dilema (como se pudesse ser resolvido a modo de receita de bolo!!!). Assim critica o monoteísmo (não só o Cristão) como portal da intransigência. Depois fala das Cruzadas e catequeses forçadas. Um monte de clichés que nada tem a ver com o Giges e o desafio… fugindo do desafio… Continua: “O ideal cristão de perfeição é tão pouco pertinente quanto exequível”. Outra pérola da qual Santo Agostinho já se ocupou nas disputas com Pelágio. “É fácil para o Giges cristão manter as mãos limpas porque como os seus irmãos platônicos e kantianos não tem mãos” -outra bobagem olímpica. O que lhe seduz no fundo -ao autor e a todos os que carregamos a condição humana quando perdemos o foco- é como garantir os benefícios da trapaça e, ao mesmo tempo, vermo-nos como honestos e maravilhosos? No fim, enfrenta-se com ele mesmo: O uso do anel depende da pessoa que se é. Daí a importância -e o melhor recado- a necessidade da introspeção, da reflexão sincera: o que eu faria de posse do anel? Essa é a pergunta que realmente interessa, já que o desejo sincero do bem não é menos real que a tentação do mal. Em resumo, este segundo encontro com a história de Giges, foi a leitura rápida de um livro que tem uma porção de coisas bacanas, um estojo de preciosidades, mas não chega a lugar nenhum. Pareceu-me muito colarinho para pouco chope. Finalmente o terceiro encontro foi a leitura de um livro que estava aguardando na minha lista – e no meu tablet-, de autoria de um professor de filosofia, J García- Huidobro. O autor pretende mostrar o núcleo do que denomina a “Tradição Central da ética de Occidente”, lembrando , em palavras de Mahler, que “tradição é a transmissão do fogo e não adorar as cinzas”. A questão do anel é colocada de modo simples: “Se Giges é modelo invejável, a ética está sobrando, ou é apenas um pretexto para manter na linha os poderosos. Desse modo somente precisaríamos de um bom conjunto de leis e polícia, porque no fundo todo homem seria um Giges frustrado. Mas se temos bons argumentos para não usar o anel, mesmo que nos deparemos com ele, então sim a ética tem vez. E pensaremos que homens como Giges podem fazer muitas coisas, salvo a mais importante: conseguir que a sua vida tenha sentido”. Feita a introdução, o autor inicia um passeio pela ética, uma reflexão necessária apoiada por exemplos da literatura e das artes, mas sem receita de bolo, nem manual ou vade-mécum. E lembra que a filosofia -base da ética- é como uma conversa sobre grandes temas, onde as diferenças normalmente referem-se a matizes. Mas na filosofia, os matizes são muito importantes; às vezes são tudo! É neste ponto onde se perdem os relativistas, que supõem ser a reflexão ética tarefa simples. Não é necessariamente má vontade, mas não conseguir lidar com os matizes e, contemplando a diversidade de opiniões éticas, acaba derivando para o relativismo. Como a raposa da fábula: já que não consegue alcançar as uvas, opta por dizer que estão verdes. Seria melhor reconhecer que o conhecimento do bem requer uma tarefa lenta e laboriosa, e o trabalho conjunto de muitos, o que produz diferenças sim, mas também coincidências. Por isso surpreende na nossa época, que muitas pessoas adiram ao relativismo moral e, ao mesmo tempo, defendam a existência de direitos inalienáveis. Lembra Spinoza quando aponta que parece não haver grande diferença entre o cérebro e o paladar… Se a compreensão do juízo moral, não é racional, mas fantasia e gosto, as opiniões sobre o bem e o mal, se assemelhariam ao juízo sobre o doce ou amargo. Se abolimos a racionalidade, é difícil sair dessa enrascada. Os hábitos -outro grande tema de ética clássica- facilitam essa percepção moral, multiplicam a capacidade de ação. As boas decisões prévias promovem novas decisões acertadas, poupa-se tempo e esforços para decidir. E se educa o paladar moral, saboreando com gosto coisas que no início resultavam custosas. O hábito alavanca a vontade na nova ação. Uma coisa é saber o que tem de ser feito, e outra fazê-lo de fato. E aqui, entre muitos exemplos que o livro recolhe, o autor invoca “O Jogador” de Dostoievski , e “Medea” de Ovídio: “Se eu conseguisse ser mais dona de mim… Mas me arrasta, contra minha vontade, uma força insólita; uma coisa me aponta o desejo, outra a razão. Vejo o melhor e o aprovo: mas sigo o pior”. Educar as atitudes, outro ponto relevante do livro. O papel do exemplo: as crianças recebem os ensinamentos morais não em classes sistemáticas, mas através de contos, histórias, onde o modelo de comportamento adequado aparece com nitidez. Como apoiar isto na educação pública e na sociedade? Um Estado -afirma o filósofo- que pretenda ser neutro em matéria moral e não se preocupe em fomentar o desenvolvimento ético dos cidadãos será um Estado ineficiente, que deverá gastar enorme quantidade de recursos em paliar males que poderiam ter se evitado com uma intervenção no tempo certo, na educação. Seguem-se uma longa série de exemplos, da literatura, da história, da vida mesma: Ulisses, Leónidas e os Troianos, etc. que tem aplicação prática nos heróis que hoje o comportamento ético requer. E lembra que uma vida plena não é a que se realiza por prazer, mas com prazer. De novo, o paladar ético em ação. Não poderia faltar ao longo destas mais de 500 páginas o tema da ética na política. Assim adverte que embora a corrupção ameaça tudo o humano, o faz no âmbito político de modo peculiar. As pequenas fissuras que passam inadvertidas ao cidadão comum adquirem uma dimensão maior, não porque o poder corrompa diretamente , mas porque torna mais visíveis estas debilidades. São necessários outros elementos -externos à política- para minimizar esse risco. A moral, as tradições, a religião proporcionam mecanismos de autocontrole que são mais eficazes e menos custosos que os sistemas de limitação. A política e o poder são mais débeis do que parece. A corrupção, a demagogia, a anarquia e a tirania são doenças que proliferam na política quando falta esse suporte fundamental. E a modo de conclusão, surge um tema interessante e de tremenda atualidade que também tem sua dimensão ética: a prudência e moderação nas informações que nos chegam. Copio textualmente (traduzindo do espanhol como tenho feito até aqui): “Hoje, uma pessoa honesta deve atrever-se a não saber algumas coisas, apesar de que os meios de comunicação ponham diante dos seus olhos centenas de intimidades que estão a disposição. Vergonha sentiu Dante perante a atitude de Virgílio, que viu escutando uma grotesca disputa entre os condenados: Escutar baixezas é baixo gosto!, disse o Poeta. Onde nos levou os encontros com o anel de Giges? E, hoje, onde parece que praticar o mal descaradamente não exige ser invisível mas apenas razões e argumentos que garantam a imunidade (a imagem perante a sociedade parece que já não é importante), o que fazer da história que Platão nos apresentou? Parece que além de não haver receita de bolo, o anel da invisibilidade é dispensável nas decisões éticas……O que nos resta? O professor de filosofia nos dá uma pista para que cada um consiga caminhar por este universo de ética distópica… e entender -não justificar- as barbaridades que diariamente contemplamos: “Uma boa educação é decisiva para adquirir este paladar afetivo. Somente que recebeu uma formação moral determinada, poderá perceber a necessidade ou inconveniência de certas condutas que, para os outros homens, carecem de relevância”. Belo ponto de reflexão para encerrar este comentário! ÉTICAMORALPOLÍTICARELIGIÃOSOCIEDADE _________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário