sua excelência?
- O Estado de S.Paulo
Sua excelência fala de histeria, enquanto
Trump e Merkel falam de guerra
Conseguiram humilhar o coronavírus.
Depois de matar milhares de pessoas em mais de cem países, forçar milhões ao
isolamento, arrasar mercados e levar o mundo à beira de uma recessão brutal, o
serial killer foi rebaixado no Brasil à condição de segunda maior calamidade. A
número um, a maior e mais perigosa, assola o País há mais de um ano, pondo em
risco a economia, a cultura, a gramática, as instituições, a natureza, o decoro
e a saúde pública. O Congresso cuidou só do problema número dois, portanto, ao
aprovar uma declaração de calamidade pública. Levam-se em conta nessa decisão
os danos causados pela pandemia do vírus causador da doença conhecida como
covid-19. Ao reconhecer uma situação excepcionalmente grave, o Legislativo
abriu caminho para ações também extraordinárias. Com isso o governo poderá
incorrer num déficit primário superior a R$ 124,1 bilhões, limite previsto no
Orçamento. Haverá condições, enfim, para toda a ação necessária contra os males
associados à pandemia?
sua excelência
Isso dependerá, em boa parte, de como
se comporte a calamidade pública número um. As ações preventivas e
compensatórias anunciadas pelo Executivo federal, até agora, foram tomadas
contra as convicções demonstradas por sua excelência, a calamidade número um.
Mesmo a reação da equipe econômica foi muito lenta. Há pouco mais de uma semana
o ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda cobrava do Congresso a aprovação de
reformas como resposta aos novos desafios.
Uma boa reforma tributária será, sem
dúvida, importante para a retomada de um crescimento seguro e duradouro, mas os
novos problemas da economia requerem respostas imediatas. Além disso, o
Executivo nem sequer havia apresentado ao Legislativo suas ideias para a
reconstrução dos impostos e contribuições. O projeto de reforma administrativa,
prometido para logo depois do carnaval, continua em alguma gaveta.
sua excelência
A equipe econômica só apresentou uma
coleção razoavelmente ampla de medidas na última segunda-feira, depois de
desafiada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. A grande novidade do pacote
foi a atenção, inédita ou quase inédita no atual governo, aos desempregados e
aos mais pobres. O anúncio das iniciativas teve como contraponto comentários de
sua excelência, a calamidade maior. Os comentários mais uma vez puseram em
dúvida a gravidade da crise e atribuíram exageros aos meios de comunicação.
sua excelência
Segundo sua excelência, tem havido
histeria na reação à crise. O Brasil, afirmou, já enfrentou desafios mais
graves. Não os mencionou, no entanto. A primeira-ministra alemã, Angela Merkel,
e o presidente francês, Emmanuel Macron, compararam a emergência de hoje com a
2.ª Guerra Mundial. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, definiu-se
como “um presidente de tempos de guerra”. Recordando o conflito da Coreia, ele
indicou a intenção de invocar a Lei de Produção de Defesa, de 1950, para
ampliar a fabricação de máscaras, luvas e equipamentos hospitalares. No Reino
Unido, a Ford se prontificou a produzir respiradores para hospitais. Na França,
indústrias de perfumes participam do esforço para aumentar a oferta de álcool
gel. Pelos critérios de sua excelência, a calamidade número um, devem ser um
bando de histéricos.
sua excelência
Se esse for o caso, a mesma histeria
tem dominado, no Brasil, governadores e prefeitos, dispostos a restringir as
aglomerações para conter – ou pelo menos tornar mais lenta – a difusão do novo
coronavírus. As limitações afetam o funcionamento do comércio e dos serviços.
Dirigentes de empresas privadas já haviam avançado nessa direção, mandando para
casa os trabalhadores mais velhos, organizando sistemas de home office e
alterando os horários de trabalho. Aparentemente sem perceber ou entender esse
amplo movimento, sua excelência mais de uma vez acusou governadores de impedir
o bom funcionamento da economia.
sua excelência
Se sua excelência tiver razão, esses
governadores, assim como os prefeitos, devem estar dispostos, por mera
incompetência ou por demagogia autodestrutiva, a perder receita de impostos num
ano já difícil desde o começo. À sombra da calamidade maior, a economia já foi
mal no ano passado. Quanto aos dirigentes de empresas, só podem ser, por esse
critério, um bando de cretinos. A prova disso é a disposição de complicar o
funcionamento de suas companhias – atitude agravada pela aceitação pacífica das
medidas de prevenção sanitária ditadas pelo poder público.
Sua excelência, a ilustre figura
Sua excelência tem alternado o
discurso contrário à prevenção com declarações bem comportadas a favor dessa
mesma política. De vez em quando, no entanto, suas convicções e preocupações
mais fortes irrompem de forma descontrolada. Isso ocorreu, por exemplo, quando
a ilustre figura se declarou disposta a entrar em barcas e metrôs para se
juntar ao povo. Já havia feito algo do gênero, violando recomendação médica, ao
participar de manifestação em Brasília. Nessa manifestação houve cartazes
contra os Poderes Legislativo e Judiciário – contra a ordem institucional
democrática, portanto. Alguma surpresa quanto ao entusiasmo de sua excelência?
Rolf Kuntz - domingo, 22 de março de
2020
https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/03/rolf-kuntz-calamidade-publica-numero-um.html#more
Acesso em: 22/03/2020
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