Com
JOSÉ PAULO NETTO (primeira e segunda
partes)
-
PPGPS/SER/UnB, 19/04/2016
“Ele
faz uma descoberta que é uma descoberta fundamental. Ele descobre que para
compreender esta sociedade, SB; primeira condição para compreender essa
sociedade é compreender SB: modo como se produzem as condições de
produção/reprodução da vida social.” José
Paulo Netto
“Eu
não quero nem pretendo inserir... A... Não... Apenas uma pretensão absurda...
Mas uma ousadia infantil... convencer vocês da importância da teoria de Marx.
Não é? Pra mim todo mundo aqui é cabeça feita. Aí eu num... Eu sou um
publicista marxista mas eu escolho o lugar de fazer propaganda. Este não é o
lugar. Eu quero apenas que vocês compreendam como é que eu vejo a teoria do
Marx. Se isso é bom, se é mau, se vocês estão de acordo ou não, isso é problema
de vocês. Eu não tenho nada que ver com isso. Se vocês me entenderem isso aqui
valeu a pena as horas que eu estou castigando vocês sentados aí. Calados nesse
ambiente. Essas cadeiras não são propriamente poltronas de salas de estar e
muito menos né...” J.P. Netto
“A
vida social é muito mais ampla, muito mais complexa que as condições materiais
que a propiciam. Marx está cansado de saber disto. Não precisa de aula de
antropologia moderna. A vida social, a vida da sociedade burguesa é
extremamente diferenciada, desenvolvida, complexa. Marx tem clareza dessa
complexidade. Marx afirma textualmente que a sociedade burguesa é a mais
complexa e diferenciada das formas societárias que os homens produziram até
hoje. Então não me venha chatear com métodos da complexidade. Eu estou velho
demais pra essa banalidade. Mas Marx tem inicialmente como pressuposto e depois
como princípio de análise que eu só posso compreender a vida social... (Atenção!
A vida social, essa que é riquíssima, diferenciada, complexa, que envolve da
formação para o trabalho ao lazer, que envolve a constituição dos ...” J. P. Netto
INTRODUÇÃO AO MÉTODO DE MARX com
JOSÉ PAULO NETTO (primeira parte) - PPGPS/SER/UnB, 19/04/2016
Publicado
em 18 de mai de 2016
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INTRODUÇÃO AO MÉTODO DE MARX com
JOSÉ PAULO NETTO (segunda parte) - PPGPS/SER/UnB, 19/04/2016
Publicado
em 19 de mai de 2016
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Comentário
Principais
comentários
Iva
Boschetti 4 meses atrás
Segue
a bibliografia da disciplina Metodologia de Pesquisa, ministrada pela
professora Daniela Neves no PPGPS/UnB no 1/2016, citada pelo professor José
Paulo Netto no vídeo e solicitada aqui:
CHASIN,
José. Superação do Liberalismo. Maceió: UFAL, 1988. Anotações de aula, p. 03 –
47
LUKÁCS,
György. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Revista
Temas de Ciências Humanas nº 4. São Paulo: Ciências Humanas, 1978.
ROUANET,
Sérgio Paulo. Mal-estar na Modernidade. 1ª reimpressão São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. Cap. 1.
NETTO,
José Paulo. Razão, ontologia e práxis. Revista Serviço Social & Sociedade
nº 44, Ano XV, Abril, São Paulo: Cortez, 1994.
BUEY,
Francisco Fernandes. Um novo Materialismo. Marx (sem ismos). Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ, 2004.
MARX,
Karl. O capital. Crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Coleção Os economistas. Vol. 1, tomo 1 (prefácio à primeira edição e posfácio à
segunda edição)
________.
Miséria da filosofia. São Paulo: Centauro, 2006. (Cap. 2 e “Carta a P. V.
Annenkov)
LUKÁCS,
György. Para uma ontologia do ser social 1. São Paulo: Boitempo, 2012. Cap. 4.
NETTO,
José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. SP: Expressão popular,
2011.
KUHN,
T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1970.
Caps. 2, 3, 4.
IANNI,
Otávio. A crise de paradigmas na Sociologia. In: Revista Brasileira de Ciências
Sociais, nº 13. Ano 5, jun. de 1990.
LUKÁCS,
György. Determinações para a crítica particular do desenvolvimento da
sociologia. In. NETTO, J. P. (org.) Sociologia. Col. Grandes Cientistas Sociais
n.º 20. São Paulo: Ática, 1981.
SANTOS,
Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. RJ: Graal, 1989.
SANTOS,
Josiane Soares. Neoconservadorismo pós-moderno e Serviço Social brasileiro. São
Paulo: Cortez, 2007. Cap. 1.
SOUSA,
Adrianyce Angélica Silva de. “Pós-modernidade”: fim da modernidade ou
mistificação da realidade? In. Revista Temporalis nº 10 (Jul/Dez). Recife:
ABEPSS, 2005.
COUTINHO,
Carlos Nelson. Pluralismo: dimensões teóricas e políticas. In. Cadernos ABESS,
n. 04. São Paulo: Cortez, 1991.
LESSA,
Sérgio. Lukács, ontologia e método: em busca de um(a) pesquisador(a)
interessado(a). In. Revista Praia Vermelha, n. 02. Rio de Janeiro: PPGSS/UFRJ,
1999.
MÈSZÀROS,
István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004. CAP. 6.
https://www.youtube.com/watch?v=2WndNoqRiq8
Introdução ao método da teoria
social
José
Paulo Netto 1
Todo
começo é difícil em qualquer ciência.
(K.
Marx)
Introdução
A
questão do método é um dos problemas centrais (e mais polêmicos) da teoria
social – demonstra-o o esforço dos clássicos das ciências sociais: não foi por
acaso que Durkheim (1975) se ateve à construção de um método para a sociologia
e que Weber (1992, 2000), além de se ocupar da conceptualização das categorias
sociológicas, escreveu largamente sobre metodologia. Por isto mesmo, toda
aproximação séria a tais ciências implica um esforço de clarificação
metodológica (FERNANDES, 1980). E não é casual que sempre que elas foram objeto
de questionamento, o debate metodológico esteve em primeiro plano – assim
ocorreu, por exemplo, quando se tornou visível, nos anos 1970, a crise da
sociologia acadêmica (GOULDNER, 2000; MORIN, 2005; GIDDENS, 1978), e assim
voltou a verificar-se quando, já aprofundada esta crise, as ciências sociais
desenvolveram explicitamente a discussão sobre os “paradigmas” (SANTOS, 1989,
2000).
A
questão do método – que também é alvo de polêmica nas ciências que têm por
objeto a natureza (POPPER, 1980; GEYMONAT, 1984-1985; FEYERABEND, 1990, 007) –
apresenta-se tanto mais problemática quanto mais está conectada a supostos de
natureza filosófica. De fato, não se pode analisar a metodologia durkheimiana
sem considerar o seu enraizamento positivista, bem como não se pode debater a
“sociologia compreensiva” de Weber sem levar em conta o neokantismo que
constitui um de seus suportes.
Também
no que toca à teoria social de Marx, a questão do método se apresenta como um
nó de problemas. E, neste caso, problemas que não se devem apenas a razões de
natureza teórica e/ou filosófica: devem-se igualmente a razões ideopolíticas –
na medida em que a teoria social de Marx vincula-se a um projeto revolucionário,
a análise e a crítica da sua concepção teórico-metodológica (e não só)
estiveram sempre condicionadas às reações que tal projeto despertou e continua
despertando. Durante o século XX, nas chamadas “sociedades democráticas”,
ninguém teve seus direitos civis ou políticos limitados por ser durkheimiano ou
weberiano – mas milhares de homens e mulheres, cientistas sociais ou não, foram
perseguidos, presos, torturados, desterrados e até mesmo assassinados por serem
marxistas.
Esta
referência ideopolítica não será tematizada neste texto introdutório, elaborado
especificamente para profissionais de Serviço Social inscritos num processo de
formação continuada (donde, inclusive, o caráter da bibliografia, citada apenas
nos idiomas mais utilizados pela categoria profissional). Mas é preciso levar
tal referência sempre em conta, porque uma parcela considerável das polêmicas
em torno do pensamento de Marx parte
1
Professor titular do Departamento de Métodos e Técnicas da Escola de Serviço
Social da UFRJ.
1
menos
de motivações científicas e mais de recusas ideológicas – afinal, Marx nunca
foi um obediente servidor da ordem burguesa: foi um pensador que colocou, na
sua vida e na sua obra, a pesquisa da verdade a serviço dos trabalhadores e da
revolução socialista.
I. Interpretações equivocadas
O
estudo da concepção teórico-metodológica de Marx apresenta inúmeras
dificuldades – desde as derivadas da sua própria complexidade até as que se
devem aos tratamentos equivocados a que a obra marxiana foi submetida. Antes de
tangenciar os principais elementos que contribuem para superar as dificuldades
específicas do tema, cabe mencionar rapidamente alguns equívocos que decorrem
das interpretações que deformaram, adulteraram e/ou falsificaram a concepção
teórico-metodológica de Marx.
Curiosamente,
quando se analisam os equívocos e as adulterações existentes acerca desta
concepção, verifica-se que foram responsáveis por eles tanto os próprios
seguidores de Marx quanto seus adversários e detratores. Uns e outros, por
razões diferentes, contribuíram decisivamente para desfigurar o pensamento
marxiano.
No
campo marxista, muitas das deformações tiveram por base as influências
positivistas, dominantes nas elaborações dos principais pensadores (Plekhanov,
Kautsky) da Segunda Internacional, organização socialista fundada em 1889 e de
grande importância até 1914. Essas influências não foram superadas – antes se
viram agravadas, inclusive com incidências neopositivistas – no desenvolvimento
ideológico ulterior da Terceira Internacional (organização comunista que
existiu entre 1919 e 1943), culminando na ideologia stalinista. Delas resultou
uma representação simplista da obra marxiana: uma espécie de saber total,
articulado sobre uma teoria geral do ser (o materialismo dialético) e sua especificação
em face da sociedade (o materialismo histórico). Sobre esta base surgiu farta
literatura manualesca, apresentando o método de Marx como resumível nos
“princípios fundamentais” do materialismo dialético e do materialismo
histórico, sendo a lógica dialética “aplicável” indiferentemente à natureza e à
sociedade, bastando o conhecimento das suas leis (as célebres “leis da
dialética”) para assegurar o bom andamento das pesquisas. Assim, o conhecimento
da realidade não demandaria os sempre árduos esforços investigativos,
substituídos pela simples “aplicação” do método de Marx, que haveria de
“solucionar” todos os problemas: uma análise “econômica” da sociedade
forneceria a “explicação” do sistema político, das formas culturais etc. Se,
num texto célebre dos anos 1960, Sartre (1979) ironizava os resultados obtidos
desta maneira, já muito antes, numa carta de 5 de agosto de 1890, Engels
protestava contra procedimentos deste gênero, insistindo em que a nossa [de
Marx e dele] concepção da história é, antes de tudo, um guia para o estudo
[...]. É necessário estudar novamente toda a história – e estudar, em suas
minúcias, as condições de vida das diversas formações sociais – antes de fazer
derivar delas as idéias políticas, estéticas, religiosas [...] etc. que lhes
correspondem (MARX;ENGELS, 1963, p. 283; itálicos não originais).
Acresce,
ainda, que, no registro dos manuais, Marx aparece geralmente como um teórico
fatorialista – ele teria sido aquele que, na análise da história e da
sociedade, situou o “fator econômico” como determinante em relação aos
“fatores” sociais, culturais etc. Também Engels, em carta de setembro de 1890,
já advertira contra essa deformação: recordando que Marx e ele sustentavam tão
somente a tese segundo a qual a produção e a reprodução da vida real apenas em
última instância determinavam a história, advertia: “Nem Marx nem eu afirmamos,
uma vez sequer, algo mais que isto. Se alguém o modifica, afirmando que o
2
fato
econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia,
abstrata e absurda” (ENGELS, op. e loc. cit., p. 284).
Tal
concepção reducionista, que nada tem a ver com o pensamento de Marx, é
compartilhada também por muitos dos adversários teóricos de Marx. Weber, por
exemplo, criticou, na “concepção materialista da história”, as explicações
“monocausalistas” dos processos sociais, isto é, explicações que pretendiam
esclarecer tudo a partir de uma única causa (ou “fator”); a crítica é
procedente se relacionada a teorias efetivamente “monocausalistas” – mas é
inteiramente inepta se referida a Marx, que jamais recorreu a
“monocausalidades”, uma vez que, como realçou um de seus melhores estudiosos,
“é o ponto de vista da totalidade e não a predominância das causas econômicas
na explicação da história que distingue de forma decisiva o marxismo da ciência
burguesa” (LUKÁCS, 1974, p. 41).
Atualmente,
no diversificado e heterogêneo campo dos adversários (e mesmo detratores) de
Marx, porém, a crítica se concentra especialmente sobre dois eixos temáticos. O
primeiro diz respeito a uma suposta irrelevância das dimensões culturais e
simbólicas no universo teórico de Marx, com todas as consequências daí
derivadas para a sua perspectiva metodológica. Apesar de amplamente difundida
em meios acadêmicos, trata-se de crítica absolutamente despropositada,
facilmente refutável com o recurso à textualidade marxiana – dados os limites
deste texto introdutório, recordo, tão somente como contraprovas, o peso que
Marx atribui {s “tradições” quando tangencia a propriedade comunal entre os
eslavos (MARX, 1982, p. 18) e as suas permanentes preocupações com a
especificidade de esferas ideais como a arte (MARX-ENGELS, 1971; LUKÁCS, s.d. e
2009, p. 87-119). O segundo eixo temático relaciona-se a um pretenso
“determinismo” no pensamento marxiano: a teoria social de Marx estaria
comprometida por uma teleologia evolucionista – ou seja, para Marx, uma
dinâmica qualquer (econômica, tecnológica etc.) dirigiria necessária e
compulsoriamente a história para um fim já previsto (o socialismo). Vários
estudiosos já mostraram a inconsistência dessa crítica (MÉSZÁROS, 1993, p.
198-202; WOOD, 2006, p. 129-154; BORON et alii, 2007, p. 43-47); recentemente,
contudo, ela foi retomada por um teórico pós-moderno de grande influência no
Brasil (SANTOS, 1995, p. 36-38, 243), a que dediquei uma nota crítica (NETTO,
2004, p. 223 e ss). Praticamente todas essas interpretações equivocadas podem
ser superadas – supondo-se um leitor sem preconceitos – com o recurso a fontes
que operam uma análise rigorosa e qualificada da obra marxiana como, por
exemplo, os diferenciados estudos de Rosdolsky (2001), Dal Pra (1971), Lukács
(1979), Dussel (1985), Bensaïd (1999, terceira parte) e Mészáros (2009, cap.
8). Entretanto, é a recorrência aos próprios textos de Marx (e, eventualmente,
de Marx e Engels) que propicia o material indispensável e adequado para o
conhecimento do método que ele descobriu para o estudo da sociedade burguesa.
II. O método de Marx: uma longa
elaboração teórica
Sabe-se
que Marx (1818-1883) inicia efetivamente a sua trajetória teórica em 1841, aos
23 anos, ao se doutorar em Filosofia pela Universidade de Jena. Mas é entre
1843 e 1844, quando se confronta polemicamente com a filosofia de Hegel, sob a
influência materialista de Feuerbach, que ele começa a revelar o seu perfil de
pensador original (são deste período os seus textos Para a questão judaica e
Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução).
3
É,
porém, com o estímulo provocado pelas formulações do jovem Engels acerca da
economia política que Marx vai direcionar as suas pesquisas para a análise
concreta da sociedade moderna, aquela que se engendrou nas entranhas da ordem
feudal e se estabeleceu na Europa Ocidental na transição do século XVIII ao
XIX: a sociedade burguesa. De fato, pode-se circunscrever como o problema
central da pesquisa marxiana a gênese, a consolidação, o desenvolvimento e as
condições de crise da sociedade burguesa, fundada no modo de produção
capitalista.
Esta
pesquisa, de que resultarão as bases da sua teoria social, ocupará Marx por
cerca de quarenta anos, de meados da década de 1840 até sua morte – e pode-se
localizar o seu ponto de arranque nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844
e a sua culminação nos materiais constitutivos d’O capital (MARX, 1994 e
1968-1975).
Alicerçando
essa pesquisa de toda uma vida, além do profundo conhecimento que Marx adquiriu
em seu trato com os maiores pensadores da cultura ocidental e da sua ativa
participação nos processos político-revolucionários da época, está a sua
re-elaboração crítica do acúmulo cultural realizado a partir do Renascimento e
da Ilustração. Com efeito, a estruturação da teoria marxiana socorreu-se
especialmente de três linhas-de-força do pensamento moderno: a filosofia alemã,
a economia política inglesa e o socialismo francês (LENIN, 1977, p. 4-27 e
35-39). Numa palavra: Marx não fez tábula rasa do conhecimento existente, mas
partiu criticamente dele.
Cabe
insistir na perspectiva crítica de Marx em face da herança cultural de que era
legatário. Não se trata, como pode parecer a uma visão vulgar de “crítica”, de
se posicionar frente ao conhecimento existente para recusá-lo ou, na melhor das
hipóteses, distinguir nele o “bom” do “mau”. Em Marx, a crítica do conhecimento
acumulado consiste em trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os
seus fundamentos, os seus condicionamentos e os seus limites – ao mesmo tempo
em que se faz a verificação dos conteúdos desse conhecimento a partir dos
processos históricos reais. É assim que ele trata a filosofia de Hegel, os
economistas políticos ingleses (especialmente Smith e Ricardo) e os socialistas
que o precederam (Owen, Fourier).
Avançando
criticamente a partir do conhecimento acumulado, Marx empreendeu a análise da
sociedade burguesa, com o objetivo de descobrir a sua estrutura e a sua
dinâmica. Esta análise, iniciada na segunda metade dos anos 1840, configura um
longo processo de elaboração teórica, no curso de qual Marx foi
progressivamente determinando o método adequado para o conhecimento veraz,
verdadeiro, da realidade social (MANDEL, 1968). Isto quer dizer, simplesmente,
que o método de Marx não resulta de descobertas abruptas ou de intuições
geniais – ao contrário, resulta de uma demorada investigação: de fato, é só
depois de quase quinze anos das suas pesquisas iniciais que Marx formula com
precisão os elementos centrais do seu método, formulação que aparece na
“Introdução”, redigida em 1857, aos manuscritos que, publicados postumamente,
foram intitulados Elementos fundamentais para a crítica da economia política.
Rascunhos. 1857-1858 (MARX, 1982, p. 3-21). É nestas poucas páginas que se
encontram sintetizadas as bases do método que viabilizou a análise contida n’O
capital e a fundação da teoria social de Marx.
III. Teoria, método e pesquisa
Antes
de sinalizar rapidamente o processo intelectual que surge resumido na
“Introdução” referida linhas acima, e mesmo antecipando algo do conteúdo deste
texto de 1857, é preciso esclarecer o significado que teoria tem para Marx.
Para ele, a teoria não se
4
deduz
ao exame das formas dadas de um objeto, com o pesquisador descrevendo-o
detalhadamente e construindo modelos explicativos para dar conta – à base de
hipóteses que apontam para relações de causa/efeito – de seu movimento visível,
tal como ocorre nos procedimentos da tradição empirista e/ou positivista. E não
é, também, a construção de enunciados discursivos sobre os quais a chamada
comunidade científica pode ou não estabelecer consensos intersubjetivos,
verdadeiros jogos de linguagem ou exercícios e combates retóricos, como querem
alguns pós-modernos (LYOTARD, 2008; SANTOS, 2000, cap. 1).
Para
Marx, a teoria é uma modalidade peculiar de conhecimento (outras modalidades
são, por exemplo, a arte, o conhecimento prático da vida cotidiana, o conhecimento
mágico-religioso – cf. MARX, 1982, p. 15). Mas a teoria se distingue de todas
essas modalidades e tem especificidade: o conhecimento teórico é o conhecimento
do objeto tal como ele é em si mesmo, na sua existência real e efetiva,
independentemente dos desejos, das aspirações e das representações do
pesquisador. A teoria é, para Marx, a reprodução ideal do movimento real do
objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em seu
pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa. E esta reprodução
(que constitui propriamente o conhecimento teórico) será tanto mais correta e
verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto. Detenhamo-nos um pouco
neste ponto tão importante e complexo, começando pela própria noção de “ideal”.
Ao
mencionar a relação do seu método com o de Hegel, de quem recolheu criticamente
a concepção dialética, Marx anotou: Meu método dialético, por seu fundamento,
difere do método hegeliano, sendo a ele inteiramente oposto. Para Hegel, o
processo do pensamento [...] é o criador do real, e o real é apenas sua
manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o
material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado (MARX,
1968, p. 16; itálicos não originais).
Assim,
a teoria é o movimento real do objeto transposto para o cérebro do pesquisador
– é o real reproduzido e interpretado no plano ideal (do pensamento).
Prossigamos: para Marx, o objeto da pesquisa (no caso, a sociedade burguesa)
tem existência objetiva; não depende do sujeito, do pesquisador, para existir.
O objetivo do pesquisador, indo além da aparência fenomênica, imediata e
empírica – por onde necessariamente se inicia o conhecimento, sendo essa
aparência um nível da realidade e, portanto, algo importante e não descartável
–, é apreender a essência (ou seja: a estrutura e a dinâmica) do objeto. Numa
palavra: o método de pesquisa que propicia o conhecimento teórico, partindo da
aparência, visa alcançar a essência do objeto2 . Alcançando a
essência do objeto, isto é: capturando a sua estrutura e dinâmica, por meio de
procedimentos analíticos e operando a sua síntese, o pesquisador a reproduz no
plano do pensamento; mediante a pesquisa, viabilizada pelo método, o
pesquisador reproduz, no plano ideal, a essência do objeto que investigou.
2
Para Marx, como para todos os pensadores dialéticos, a distinção entre
aparência e essência é primordial; com efeito, “toda ciência seria supérflua se
a forma de manifestação [a aparência] e a essência das coisas coincidissem
imediatamente” (MARX, 1985, III, 2, p. 271); mais ainda: “As verdades
científicas serão sempre paradoxais se julgadas pela experiência de todos os
dias, a qual somente capta a aparência enganadora das coisas” (MARX, 1982, p.
158). Por isto mesmo, para Marx, não cabe ao cientista “olhar”, “mirar” o seu
objeto – o “olhar” é muito próprio dos pós-modernos, cuja epistemologia
“suspeita da distinção entre aparência e realidade” (SANTOS, 1995, p. 331).
5
O
objeto da pesquisa tem, insista-se, uma existência objetiva, que independe da
consciência do pesquisador. Mas o objeto de Marx é a sociedade burguesa – um
sistema de relações construído pelos homens, “o produto da ação recíproca dos
homens” (MARX, 2009, p. 244). Isto significa que a relação sujeito/objeto no
processo do conhecimento teórico não é uma relação de externalidade, tal como
se dá, por exemplo, na citologia ou na física; antes, é uma relação em que o
sujeito está implicado no objeto. Por isto mesmo, a pesquisa – e a teoria que
dela resulta – da sociedade exclui qualquer pretensão de “neutralidade”,
geralmente identificada com “objetividade” (acerca do debate que sobre a
“objetividade” se acumulou nas ciências sociais e na tradição marxista, cf.
Löwy, 1975, p. 11-36).
Entretanto,
essa característica não exclui a objetividade do conhecimento teórico: a teoria
tem uma instância de verificação da sua verdade, instância que é a prática
social e histórica. Tomemos um exemplo: da sua análise do movimento do capital,
Marx (1968a, p. 712-827) extraiu a lei geral da acumulação capitalista, segundo
a qual, no modo de produção capitalista, a produção da riqueza social implica,
necessariamente, a reprodução contínua da pobreza (relativa e/ou absoluta); nos
últimos cento e cinqüenta anos, o desenvolvimento das formações sociais
capitalistas somente tem comprovado a correção da sua análise, com a “questão
social” pondo-se e repondo-se, ainda que sob expressões diferenciadas, sem
solução de continuidade. E ainda outro exemplo: analisando o mesmo movimento do
capital, Marx (1974, 1974a e 1974b) descobriu a impossibilidade de o
capitalismo existir sem crises econômicas; também, no último século e meio, a
prática social e histórica demonstrou o rigoroso acerto dessa descoberta. Essas
e outras projeções plenamente confirmadas sobre o desenvolvimento do
capitalismo não se devem a qualquer capacidade “profética” de Marx: devem-se a
que sua análise da dinâmica do capital permitiu-lhe extrair do seu objeto “a
lei econômica do movimento da sociedade moderna” (MARX, 1968, p. 6) – não uma
“lei” no sentido das leis físicas ou das leis sociais durkheimianas “fixas e
imutáveis”, mas uma tendência histórica determinada, que pode ser travada ou
contrarrestada por outras tendências3 .
Voltemos
à concepção marxiana de teoria: a teoria é a reprodução, no plano do
pensamento, do movimento real do objeto. Esta reprodução, porém, não é uma
espécie de reflexo mecânico, com o pensamento espelhando a realidade tal como
um espelho reflete a imagem que tem diante de si. Se assim fosse, o papel do
sujeito que pesquisa, no processo do conhecimento, seria meramente passivo.
Para Marx, ao contrário, o papel do sujeito é essencialmente ativo:
precisamente para apreender não a aparência ou a forma dada do objeto, mas a
sua essência, a sua estrutura e a sua dinâmica (mais exatamente: para
apreendê-lo como um processo), o sujeito deve ser capaz de mobilizar um máximo
de conhecimentos, criticá-los, revisá-los e deve ser dotado de criatividade e
imaginação. O papel do sujeito é fundamental no processo de pesquisa. Marx,
aliás, caracteriza de modo
3
No posfácio à segunda edição (1873) d’O capital, Marx cita passagens de um
crítico de sua obra que considera ter apreendido corretamente o seu método de
pesquisa, contrapondo-o aos “velhos economistas [que] não compreenderam a
natureza das leis econômicas porque as equipararam às leis da física e da
química”; ora, “é isto o que Marx contesta. [...] Cada período histórico, na
sua opinião, possui suas próprias leis” (MARX, 1968, p. 15). De fato, Marx
escrevera n’O capital, a propósito das “leis da população”: “[...] Todo período
histórico tem suas próprias leis [...], válidas dentro de limites históricos.
Uma lei abstrata da população só existe para plantas e animais e apenas na
medida em que esteja excluída a ação humana” (MARX, 1968a, p. 733).
6
breve
e conciso tal processo: na investigação, o sujeito “tem de apoderar-se da
matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de
desenvolvimento e de perquirir a conexão que há entre elas” (MARX, 1968, p.
16).
Neste
processo, os instrumentos – ou, se se quiser, técnicas – de pesquisa são os
mais variados, desde a análise documental até as formas mais diversas de
observação, recolha de dados, quantificação etc.4 . Esses instrumentos são
meios de que se vale o pesquisador para “apoderar-se da matéria”, mas não devem
ser identificados com o método: instrumentos similares podem servir (e de fato
servem), em escala variada, a concepções metodológicas diferentes. Cabe
observar que, no mais de um século decorrido após a morte de Marx, as ciências
sociais desenvolveram um enorme acervo de instrumentos (técnicas) de pesquisa,
com alcances diferenciados – e todo pesquisador deve esforçar-se por conhecer
este acervo, apropriar-se dele e dominar a sua utilização.
É
só quando está concluída a sua investigação (e é sempre relevante lembrar que,
no domínio científico, toda conclusão é sempre provisória, sujeita à
comprovação, retificação, abandono etc.) que o pesquisador apresenta,
expositivamente, os resultados a que chegou. E Marx, na sequência imediata da
última citação que fizemos, agrega: “Só depois de concluído este trabalho [de
investigação] é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto
se consegue, ficará espelhada, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada”
(id., ibid.). Como se vê, para Marx, os pontos de partida são opostos: na
investigação, o pesquisador parte de perguntas, questões; na exposição, ele já
parte dos resultados que obteve na investigação – por isto, diz Marx, “é
mister, sem dúvida, distinguir formalmente o método de exposição do método de
pesquisa” (id., ibid.).
É
importante observar que, considerado o conjunto da sua obra, Marx poucas vezes
se deteve explicitamente sobre a questão do método. Não é casual, de fato, que
Marx nunca tenha publicado um texto especificamente dedicado ao método de
pesquisa tomado em si mesmo, como algo autônomo em relação à teoria ou à
própria investigação: a orientação essencial do pensamento de Marx era de
natureza ontológica e não epistemológica (LUKÁCS, 1979): por isto, o seu
interesse não incidia sobre um abstrato “como conhecer”, mas sobre “como
conhecer um objeto real e determinado” – Lênin, aliás, sustentava, em 1920, que
o espírito do legado de Marx consistia na “análise concreta de uma situação concreta”.
O mesmo Lênin, uns poucos anos antes, já compreendera que a Marx não
interessava elaborar uma ciência da lógica (como o fizera HEGEL): importava-lhe
a lógica de um objeto determinado – descobrir esta lógica consiste em
reproduzir idealmente (teoricamente) a estrutura e a dinâmica deste objeto; é
lapidar a conclusão lenineana: “[...] Marx não deixou uma Lógica, deixou a
lógica de O capital” (LÊNIN, 1989, p. 284).
IV As formulações
teórico-metodológicas
Sublinhei,
há pouco, que o método de Marx não resulta de operações repentinas, de
intuições geniais ou de inspirações iluminadas e momentâneas. Antes, é o
produto de uma longa elaboração teórico-científica, amadurecida no curso de
sucessivas aproximações ao seu objeto. Vejamos, muito esquematicamente, os
principais passos dessa elaboração.
4
O próprio Marx recorreu à utilização de distintas técnicas de pesquisa (hoje
aracterizadas como análise bibliográfica e documental, análise textual, análise
de conteúdo, observação sistemática e participante, entrevistas, instrumentos
quantitativos etc.); conhece-se, inclusive, um minucioso questionário que
elaborou, disponível em Thiollent (1986).
7
É
no segundo terço dos anos 1840 que se encontram as formulações
teóricometodológicas iniciais de Marx. Suas primeiras aproximações ao
materialismo – devidas à influência de Feuerbach – já surgem, nítidas, numa
crítica à filosofia do direito de Hegel, redigida em dezembro de 1843 a janeiro
de 1844 e logo publicada5 (4). É especialmente no curso de 1844, quando começa
a se deslocar da crítica filosófica para a crítica da economia política – como
se verifica nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, só tornados públicos
em 1932 (MARX, 1994) –, que essas aproximações ganham uma articulação
claramente dialética. Não é por acaso que, paralelamente à redação desses
Manuscritos..., Marx retorne à hegeliana Fenomenologia do Espírito,
demonstrando o domínio que já possui das suas categorias (MARX, 1994, p.
155-161), e a leitura dos Manuscritos... se revela um conhecimento ainda
insuficiente da economia política, isso indica a segurança do autor no manuseio
da dialética. Manuseio que se aprofunda na sequência do estabelecimento da
relação pessoal com Engels: no livro que marca o começo da sua colaboração
intelectual, A sagrada família ou A crítica da crítica crítica, de 1845 (MARX;
ENGELS, 2003), confrontando-se com os pensadores alemães contemporâneos. Em
várias passagens, os dois jovens autores apontam a perspectiva teórica a partir
da qual criticam filósofos com os quais, até pouco tempo antes, mantinham boas
relações intelectuais.
Porém,
é na obra a que se dedicam em seguida, A ideologia alemã (escrita em 1845/1846,
mas só publicada em 1932), que surge a primeira formulação mais precisa das
suas concepções. Marx e Engels esclarecem que as suas análises têm
pressupostos, mas se trata de pressupostos reais: constituem-nos “os indivíduos
reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já
encontradas como as produzidas por sua própria ação” (MARX; ENGELS, 2007, p.
86-87)6 . E escrevem que, por isto mesmo, nas suas análises, “não se parte
daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco os homens
pensados, imaginados ou representados para, a partir daí, chegar aos homens de
carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos [...], do seu processo de
vida real” (id., ibid., p. 94; itálicos não originais). Na base dessas idéias,
está um argumento essencial: Os homens são os produtores de suas
representações, de suas idéias e assim por diante, mas os homens reais, ativos,
tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças
produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde [...]. A consciência não
pode ser jamais outra coisa do que o ser consciente e o ser dos homens é o seu
processo de vida real. [...] Não é a consciência que determina a vida, mas a
vida que determina a consciência (id., ibid.; itálicos não originais).
Extraída
da análise da realidade histórica e expressamente materialista, é esta
determinação das relações entre o ser e a consciência dos homens em sociedade
que permitirá a Marx avançar, na segunda metade dos anos 1840, na sua análise
da sociedade burguesa. Mas ela se insere na concepção que Marx e Engels já
alcançaram neste período acerca da história, da sociedade e da cultura e que
será desenvolvida e aprofundada nos anos seguintes. Para ambos, o ser social –
e a sociabilidade resulta elementarmente do trabalho, que constituirá o modelo
da práxis – é processo, movimento, que se dinamiza por
5
Trata-se do ensaio Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução, que
não deve ser confundido com o manuscrito de 1843 conhecido como Crítica da
filosofia do direito de Hegel, Manuscrito de Kreuznach, Manuscrito de 1843 etc.
e só publicado em 1927 – ambos estão disponíveis em Marx (2005).
6
Observe-se nesta formulação a antecipação de uma passagem célebre d’O 18
brumário de Luís Bonaparte, na qual os homens são tomados como,
simultaneamente, autores e atores da história: “Os homens fazem a sua própria
história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua
escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado” (MARX, 1969, p. 17).
8
contradições,
cuja superação o conduz a patamares de crescente complexidade e novas
contradições impulsionam a outras superações. Por estes anos, como Engels o
recordará bem mais tarde, já estavam – ele e Marx – de posse de “uma grande
idéia fundamental”, que extraíram de Hegel: a idéia “de que não se pode conceber
o mundo como um conjunto de coisas acabadas, mas como um conjunto de processos”
(MARX-ENGELS, 1963, p. 195). É a partir desta “idéia fundamental” – prosseguirá
Engels noutra oportunidade – que se concebe o mundo da natureza, da história e
do espírito como um processo, isto é, como um mundo sujeito à constante
mudança, transformações e desenvolvimento constante, procurando também destacar
a íntima conexão que preside este processo de desenvolvimento e mudança.
Encarada sob este aspecto, a história da humanidade já não se apresentava como
um caos [...], mas, pelo contrário, se apresentava como o desenvolvimento da
própria humanidade, que incumbia ao pensamento a tarefa de seguir [...] até
conseguir descobrir as leis internas, que regem tudo o que à primeira vista se
pudesse apresentar como obra do acaso (ENGELS, 1979, p. 22).
À
medida que Marx se desloca da crítica da filosofia para a crítica da economia
política, suas idéias ganham crescente elaboração. É o que se verifica no
primeiro texto em que desenvolve com mais rigor a crítica da economia política
– o livro Miséria da filosofia (1847), de polêmica com o socialista francês
P.-J. Proudhon –, aliás, logo que lê a obra de Proudhon (Filosofia da miséria,
1846) e antes mesmo de escrever a sua réplica, Marx observa que o fracasso
teórico desse pensador deve-se a que ele “não concebe nossas instituições
sociais como produtos históricos e não compreende nem a sua origem nem o seu
desenvolvimento” (MARX, 2009, p. 250). Na mesma carta, Marx esclarece como já
concebe a estrutura do que constituirá o objeto de pesquisa de toda a sua vida
(precisamente do qual investigar| a “origem” e o “desenvolvimento”): O que é a
sociedade, qualquer que seja a sua forma? O produto da ação recíproca dos
homens. Os homens podem escolher, livremente, esta ou aquela forma social? Nada
disso. A um determinado estágio de desenvolvimento das faculdades produtivas
dos homens corresponde determinada forma de comércio e de consumo. A
determinadas fases de desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo
correspondem determinadas formas de constituição social, determinada
organização da família, das ordens ou das classes; numa palavra, uma
determinada sociedade civil. A uma determinada sociedade civil corresponde um
determinado estado político, que não é mais que a expressão oficial da
sociedade civil. [...] É supérfluo acrescentar que os homens não são livres
para escolher as suas forças produtivas - base de toda a sua história -, pois
toda força produtiva é uma força adquirida, produto de uma atividade anterior.
Portanto, as forças produtivas são o resultado da energia errática dos homens,
mas essa mesma energia é circunscrita pelas condições em que os homens se acham
colocados, pelas forças produtivas já adquiridas, pela forma social anterior,
que não foi criada por eles e é produto da geração precedente. O simples fato
de cada geração posterior deparar-se com forças produtivas adquiridas pela
geração precedente [...] cria na história dos homens uma conexão, cria uma
história da humanidade [...]. As suas [dos homens] relações materiais formam a
base de todas as suas relações” (id., p. 245).
E
Marx avança a indicação que, nos anos seguintes, fundamentará persuasivamente:
“[...] Os homens, ao desenvolverem as suas faculdades produtivas, isto é,
vivendo, desenvolvem certas relações entre si, e [...] o modo destas relações
muda necessariamente com a modificação e o desenvolvimento daquelas faculdades
produtivas” (id., p. 250). Todas estas idéias comparecem na Miséria da
filosofia e são basilares para a
9
compreensão
do método de Marx. Observem-se duas passagens do livro: As relações sociais
estão intimamente ligadas às forças produtivas.
Adquirindo
novas forças produtivas, os homens transformam o seu modo de produção e, ao
transformá-lo, alterando a maneira de ganhar a sua vida, eles transformam todas
as suas relações sociais. O moinho movido pelo braço humano nos dá a sociedade
com o suserano; o moinho a vapor dá-nos a sociedade com o capitalista
industrial (idem, p. 125).
Os
mesmos homens que estabeleceram as relações sociais de acordo com a sua
produtividade material produzem, também, os princípios, as idéias, as
categorias de acordo com as suas relações sociais. Assim, essas idéias, essas
categorias são tão pouco eternas quanto as relações que exprimem. Elas são produtos
históricos e transitórios (MARX, 2009, p. 126).
É
ainda neste texto que Marx avança duas idéias fundamentais, que só se
desdobrarão com mais elementos cerca de uma década depois. A primeira diz
respeito ainda às categorias econômicas, escreve ele: “As categorias econômicas
são expressões teóricas, abstrações das relações sociais de produção” (id., p.
125). E mais: “As relações de produção de qualquer sociedade constituem um
todo” (id., p. 126). Trata-se, na verdade, de suas determinações teóricas que
constituirão núcleos básicos do método de pesquisa de Marx, e a elas voltaremos
logo adiante.
Todas
estas concepções e idéias, fundadas nos estudos históricos e nas análises de
realidade que acumula a partir de meados dos anos 18407 – ademais das experiências
políticas vividas no curso da revolução de 1848 –, vão adquirir um significado
ainda maior no período que se inicia (1850) com o exílio de Marx em Londres.
Especialmente a partir de 1852, ele se dedica obsessivamente ao estudo da
sociedade burguesa: analisa documentação histórica, percorre praticamente toda
a bibliografia já produzida da economia política, acompanha os desenvolvimentos
da economia mundial, leva em conta os avanços científicos que rebatem na
indústria e nas comunicações e considera as manifestações das classes
fundamentais (burguesia e proletariado) em face da atualidade. Vivendo em
Londres, então capital do país capitalista mais desenvolvido, de um império de
dimensões mundiais, sede do maior centro financeiro (a City), tendo à sua disposição
a imprensa mais informada da economia e a mais completa biblioteca da época (a
do British Museum), Marx pode enfim determinar precisamente, em sua plena
maturidade, o seu objeto de estudo e o seu método de investigação. É, pois, ao
fim de quase quinze anos de pesquisa que ele escreve, entre agosto e setembro
de 1857, a célebre “Introdução”, onde a sua concepção teórico-metodológica
surge nítida8 .
Ele
inicia a “Introdução” delimitando com clareza o seu objeto de investigação: a
produção material, que só pode ser algo de “indivíduos produzindo em sociedade”
– e, com isto, Marx descarta figuras isoladas de indivíduos nas atividades
econômicas. De fato, “quando se trata [...] de produção, trata-se da produção
em um grau determinado do desenvolvimento social, da produção dos indivíduos
sociais”. Por isto mesmo, Marx considera que a “produção em geral” é uma
abstração, que denota apenas um fenômeno
7
Não se esqueça que Marx, de 1848 até o fim da vida, foi um permanente “analista
de conjunturas” (históricas, político-econômicas e sociais). As incontáveis
análises que ele produziu – geralmente publicadas em jornais e revistas –
contribuíram em boa medida para o seu acúmulo teórico. Para exemplos dessas
análises, cf. Marx (1979, 1986 e 1987).
8
Neste e nos seguintes parágrafos não farei a remissão às páginas donde se
extraem as citações de Marx, desde que retiradas da “Introdução” – todas
proveem de Marx (1982, p. 3-21).
10
comum
a todas as épocas histórias: o fenômeno de, em qualquer época, a produção implicar
sempre um mesmo sujeito (a humanidade, a sociedade) e um mesmo objeto (a
natureza)9 . Este fenômeno confere unidade à história da humanidade, mas
unidade não é (MARX, 1968, p. 202) o mesmo que identidade: é preciso distinguir
“as determinações que valem para a produção em geral” daquelas que dizem
respeito a certa época; do contrário, perdese a historicidade na análise, e às
categorias econômicas atribuem-se vigência e valor eternos. Destarte, e
consequentemente, Marx especifica que quer estudar uma determinada forma
histórica de produção material: a “produção burguesa moderna”.
Marx
está convencido, em função dos estudos históricos que já realizara, de que “a
sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais
diferenciada da produção”. E deixa bem claro que o conhecimento rigoroso da sua
produção material não basta para esclarecer a riqueza das relações sociais que
se objetivam no marco de uma sociedade assim complexa; por exemplo, no trato da
cultura, Marx enfatiza a existência de uma “relação desigual do desenvolvimento
da produção material face à produção artística” e assinala ainda as
dificuldades para clarificar “de que modo as relações de produção, como
relações jurídicas, seguem um desenvolvimento desigual”.
Mas
– por todo o acúmulo teórico que realizou com suas pesquisas anteriores – ele
está igualmente convencido de que o passo necessário e indispensável para
apreender inteira a riqueza dessas relações sociais consiste na plena
compreensão da produção burguesa moderna. Sem esta compreensão, será impossível
uma teoria social que permita oferecer um conhecimento verdadeiro da sociedade
burguesa como totalidade (incluindo, pois, o conhecimento – para além da sua
organização econômica – das suas instituições sociais e políticas e da sua
cultura). Para elaborar a reprodução ideal (a teoria) do seu objeto real (que é
a sociedade burguesa), Marx descobriu que o procedimento fundante é a análise
do modo pelo qual nele se produz a riqueza material.
A
questão da riqueza material – ou, mais exatamente, das condições materiais da
vida social –, porém, não envolve apenas a produção, mas articula ainda a
distribuição, a troca (e a circulação, que é “a troca considerada em sua
totalidade”) e o consumo. Por que, então, começar pela produção? A argumentação
de Marx, baseada no aprofundamento de seus estudos anteriores e consolidada no
exílio londrino, depois de demonstrar que a produção é, em parte, consumo e
este, parcialmente, é produção, e também depois de relacioná-los à distribuição
e à circulação, leva ao seguinte resultado: estes momentos (produção,
distribuição, troca, consumo) não são idênticos, mas todos “são elementos de
uma totalidade, diferenças dentro de uma mesma unidade”. Mas, sem prejuízo da
interação entre esses elementos, é dominante o momento da produção: A produção
se expande tanto a si mesma [...] como se alastra aos demais momentos. O
processo começa de novo sempre a partir dela. Que a troca e o consumo não
possam ser o elemento predominante, compreende-se por si mesmo. O mesmo
acontece com a distribuição [...]. Uma [forma] determinada da produção
determina, pois, [formas] determinadas do consumo, da distribuição, da troca,
assim como relações determinadas desses diferentes fatores entre si.
Uma
teoria social da sociedade burguesa, portanto, tem que possuir como fundamento
a análise teórica da produção das condições materiais da vida social. Este
ponto de partida não expressa um juízo ou uma preferência pessoal do
pesquisador: ele é
9
Anos depois, n´O capital, ele determinará o processo de trabalho humano
“processo em que o ser humano, com sua própria ação impulsiona, regula e
controla seu intercâmbio material com a natureza”) como sempre constituído por
três elementos: “a atividade adequada a um fim, isto é, o próprio trabalho; a
matéria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho; os meios de trabalho,
o instrumental de trabalho”.
11
uma
exigência que decorre do próprio objeto de pesquisa – sua estrutura e dinâmica
só serão reproduzidas com veracidade no plano ideal a partir desse fundamento;
o pesquisador só será fiel ao objeto se atender a tal imperativo (É evidente
que o pesquisador é livre para encontrar e explorar outras vias de acesso ao
objeto que é a sociedade e pode, inclusive, chegar a resultados interessantes;
entretanto, tais resultados nunca articularão uma teoria social que dê conta
dos níveis decisivos e da dinâmica fundamental da sociedade burguesa.)10
.
Uma
vez determinado o seu objeto, põe-se a Marx a questão de como conhecê-lo –
põe-se a questão do método. Aqui, nada melhor que dar a palavra ao próprio
Marx:
Quando
estudamos um dado país do ponto de vista da Economia Política, começamos por
sua população, sua divisão em classes, sua repartição entre cidades e campo
[...]; os diferentes ramos da produção, a exportação e a importação, a produção
e o consumo anuais, os preços das mercadorias etc. Parece que o correto é
começar pelo real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e efetiva;
assim, em Economia, por exemplo, começar-se-ia pela população, que é a base e o
sujeito do ato social de produção como um todo. No entanto, graças a uma
observação mais atenta, tomamos conhecimento de que isso é falso. A população é
uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes que a compõem. Por seu lado,
essas classes são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em
que repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital etc. Estes supõem
a troca, a divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, sem o
trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. não é nada.
Assim, se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do
todo e, através de uma determinação mais precisa, através de uma análise,
chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado
passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até atingirmos determinações as
mais simples.
Como
bom materialista, Marx separa claramente o que é da ordem da realidade, do
objeto, do que é da ordem do pensamento (o conhecimento operado pelo sujeito):
começase “pelo real e pelo concreto”, que aparecem como dados; pela análise, um
e outro elementos são abstraídos e, progressivamente, com o avanço da análise,
chega-se a conceitos, a abstrações que remetem a determinações as mais simples.
Este foi o caminho ou, caso queiram, o método: [...] historicamente seguido
pela nascente economia. Os economistas do século XVII, por exemplo, começam
sempre pelo todo vivo: a população, a
10
É o caso, para ficarmos entre os “clássicos” das ciências sociais, de Durkheim
e Weber. Nas suas obras encontram-se análises e proposições que oferecem
indicações pertinentes à compreensão da vida social; dadas, porém, as suas
concepções teóricas e metodológicas (todas conducentes a pensar as relações
sociais no marco de uma ciência particular e autônoma, a Sociologia, dela
excluída precisamente a questão da produção material, tornada objeto de outra
disciplina acadêmica, a Economia), eles - mesmo Weber, que, sabe-se,
interessava-se por Economia - não foram capazes de elaborar uma teoria social
apta a dar conta da articulação entre relações sociais e vida econômica. Para
uma crítica de princípio à Sociologia como ciência particular e autônoma”, cf.
Lukács (1968, cap. VI).
12
nação,
o Estado, vários Estados etc., mas terminam sempre por descobrir, por meio da
análise, certo número de relações gerais abstratas que são determinantes, tais
como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor etc.
Marx
considera que este procedimento analítico foi necessário na emergência da
economia política, mas está longe de ser suficiente para reproduzir idealmente
(teoricamente) o “real” e o “concreto”. Com efeito, depois de alcançar aquelas
“determinações mais simples”, “teríamos que voltar a fazer a viagem de modo
inverso, até dar de novo com a população, mas desta vez não como uma
representação caótica de um todo, porém como uma rica totalidade de
determinações e relações diversas”.
É
esta “viagem de volta” que caracteriza, segundo Marx, o método adequado para a
elaboração teórica. Ele esclarece: O último método é manifestamente o método
cientificamente exato. O concreto é concreto porque é a síntese de muitas
determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no
pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de
partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo [...]. No primeiro método, a
representação plena volatiliza-se em determinações abstratas; no segundo, as
determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento
(itálicos não originais).
Deve-se
distinguir, a esta altura, para alcançar a inteira compreensão do método que
Marx considera “cientificamente exato”, o sentido de “abstração e “abstrato”. A
abstração é a capacidade intelectiva que permite extrair da sua contextualidade
determinada (de uma totalidade) um elemento, isolá-lo, examiná-lo; é um
procedimento intelectual sem o qual a análise é inviável – aliás, no domínio do
estudo da sociedade, o próprio Marx insistiu com força em que a abstração é um
recurso indispensável para o pesquisador11. A abstração, possibilitando a
análise, retira do elemento abstraído as suas determinações mais concretas, até
atingir “determinações as mais simples”. Neste nível, o elemento abstraído
torna-se “abstrato” – precisamente o que não é na totalidade de que foi
extraído: nela, ele se concretiza porquanto está aturado de “muitas
determinações”. A realidade é concreta exatamente por isto, por ser “a síntese
de muitas determinações”, a “unidade do diverso” que é própria de toda
totalidade. O conhecimento teórico é, nesta medida, para Marx, o conhecimento
do concreto, que constitui a realidade, mas que não se oferece imediatamente ao
pensamento: deve ser reproduzido por este e só “a viagem de modo inverso”
permite esta reprodução. Já salientamos que, em Marx, há uma contínua
preocupação em distinguir a esfera do ser da esfera do pensamento; o concreto a
que chega o pensamento pelo método que Marx considera “cientificamente exato”
(o “concreto pensado”) é um produto do pensamento que realiza “a viagem de modo
inverso”. Marx não hesita em qualificar este método como aquele “que consiste
em elevar-se do abstrato ao concreto”, “único modo” pelo qual “o cérebro
pensante” “se apropria do mundo”.
Cabe
também precisar o sentido das “determinações”: determinações são traços
pertinentes aos elementos constitutivos da realidade; nas palavras de um
analista, para Marx, a determinação é um “momento essencial constitutivo do
objeto” (DUSSEL, 1985, p. 32). Por isto, o conhecimento concreto do objeto é o
conhecimento das suas múltiplas determinações – tanto mais se reproduzem as
determinações de um objeto, tanto mais o pensamento reproduz a sua riqueza
(concreção) real. As “determinações as mais simples” estão postas no nível da
universalidade; na imediaticidade do real, elas mostram-se como
11
“[...] Na análise das formas econômicas, não se pode utilizar nem microscópio
nem reagentes químicos. A capacidade de abstração substitui esses meios” (MARX,
1968, p. 4).
13
singularidades
– mas o conhecimento do concreto opera-se envolvendo universalidade,
singularidade e particularidade12 .
Ora,
o objetivo da pesquisa marxiana é, expressamente, conhecer “as categorias que
constituem a articulação interna da sociedade burguesa”. E o que são
“categorias”, das quais Marx cita inúmeras (trabalho, valor, capital etc.)? As
categorias, diz ele, “exprimem [...] formas de modos de ser, determinações de
existência, frequentemente aspectos isolados de [uma] sociedade determinada” –
ou seja: elas são objetivas, reais (pertencem à ordem do ser – são categorias
ontológicas); mediante procedimentos intelectivos (basicamente, mediante a
abstração), o pesquisador as reproduz teoricamente (e, assim, também pertencem
à ordem do pensamento – são categorias reflexivas). Por isto mesmo, tanto real
quanto teoricamente, as categorias são históricas e transitórias: as categorias
próprias da sociedade burguesa só têm validez plena no seu marco (um exemplo:
trabalho assalariado). E uma vez que, como vimos, para Marx “a sociedade
burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada da
produção” – vale dizer: a mais complexa de todas as organizações da produção
até hoje conhecida –, é nela que existe realmente o maior desenvolvimento e a
maior diferenciação categorial. Logo, a sua reprodução ideal (a sua teoria)
implica a apreensão intelectiva dessa riqueza categorial (o que significa dizer
que a teoria da sociedade burguesa deve ser também rica em categorias13).
Depois
de anotar que a sociedade burguesa apresenta a mais desenvolvida organização da
produção, Marx, numa argumentação que interdita qualquer procedimento e
natureza positivista, observa: As categorias que exprimem suas [da sociedade
burguesa] relações, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar
na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedade
desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada e cujos
vestígios, não ultrapassados ainda, levam de arrastão, desenvolvendo tudo que
fora antes apenas indicado e que toma assim a sua significação etc. A anatomia
do homem é a chave para a anatomia do macaco. O que nas espécies animais
inferiores indica uma forma superior não pode ser compreendido [...] senão
quando se conhece a forma superior. A economia burguesa fornece a chave da
economia da antiguidade etc.
Esta
argumentação inverte a vulgar proposição positivista de que “o mais simples
explica o mais complexo”: somente quando uma forma mais complexa se desenvolve
e é conhecida é que se pode compreender inteiramente o menos complexo – é o
presente, pois, que esclarece o passado. Na sociedade burguesa, a categoria
dinheiro (eis um exemplo do próprio Marx) encontra-se muito mais desenvolvida
do que na Antiguidade – onde funcionava como meio de troca. Se a analisássemos
apenas como meio de troca, não teríamos condições de detectar as suas outras
possíveis funções; quando a analisamos na sociedade burguesa (onde, ademais de
meio de troca, opera como equivalente geral, medida de valor, meio de acumulação,
meio de pagamento universal), seu pleno desenvolvimento ilumina o seu processo
anterior.
Obviamente,
afirmando-se que o presente ilumina o passado (ou, noutras palavras: que a
forma mais complexa permite compreender aquilo que, numa forma menos complexa,
indica potencialidade de ulterior desenvolvimento), não se descura a
necessidade de conhecer a gênese histórica de uma categoria ou processo – tal
conhecimento é absolutamente necessário. Mas dele não decorre o conhecimento da
sua relevância no
12
A análise cuidadosa dessas categorias encontra-se em Lukács (1970, cap. III e
1979, p. 77-171).
13
É precisamente esta riqueza categorial que não aparece nas exposições que
geralmente pretendem divulgar “o método de Marx” – seu conhecimento exige a
leitura da obra do próprio Marx, em especial O capital.
14
presente
– sua estrutura e sua função atuais. Ambos, estrutura e função, podem
apresentar características inexistentes ou atrofiadas no momento da sua
emergência histórica. Assim, as condições da gênese histórica não determinam o
ulterior desenvolvimento de uma categoria. Por isto mesmo, o estudo das
categorias deve conjugar a análise diacrônica (da gênese e desenvolvimento) com
a análise sincrônica (sua estrutura e função na organização atual)14
.
Entretanto,
retornemos à última citação de Marx. Adicionalmente, e dando consequência à
observação que acabamos de fazer, ele adverte: se a economia burguesa fornece a
chave da economia da Antiguidade, isto não significa a inexistência de
diferenças históricas – as categorias não são eternas, são historicamente
determinadas e esta determinação se verifica na articulação específica que tem
nas distintas formas de organização da produção. Esta é a conclusão de Marx: no
estudo da sociedade burguesa, [...] seria, pois, impraticável e errôneo colocar
as categorias econômicas na ordem segundo a qual tiveram historicamente uma
ação determinante. [...] Não se trata da relação que as relações econômicas
assumem historicamente na sucessão das diferentes formas da sociedade. [...]
Trata-se da sua hierarquia no interior da moderna sociedade burguesa.
E
foi neste sentido que se desenvolveu a pesquisa de Marx: encontrar a
articulação específica que a organização burguesa, organização da produção,
confere às (suas) categorias econômicas. Quando publicou, dois anos depois que
escreveu a “Introdução” de que nos ocupamos aqui, os então mais recentes
resultados das suas investigações sistemáticas – orientadas pelas indicações
teórico-metodológicas avançadas nesta “Introdução” – no âmbito da crítica da
economia política, Marx sintetizou, numa passagem célebre, o fio condutor dos
seus estudos. A passagem comparece no prefácio a Para a crítica da economia
política (1859) e é de citação imprescindível, uma vez sumaria as conclusões
daquele mencionado itinerário investigativo de praticamente quinze anos:
Na
produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas,
necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção estas que
correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças
produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a
estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas
de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em
geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua
consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas
materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção
existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as
relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De
formas de desenvolvimento das forças produtivas essas relações se transformam
em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a
transformação da base econômica, toda a
14
Eis por que Lucien Goldmann qualifica o método de Marx como
“genético-estrutural” e György Lukács designa-o como “histórico-sistemático”.
15
enorme
superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez (MARX, 1982, p. 25).
V O método de Marx
O/a
assistente social que nos acompanhou até aqui estará talvez
preocupado/preocupada e, com certeza, não lhe reduz a preocupação a epígrafe
que, com bastante cuidado, escolhemos para encimar este texto – “todo começo é
difícil em qualquer ciência” –, extraída exatamente d´O capital (MARX, 1968, p.
4). É que não lhe oferecemos, em nome de Marx, um conjunto de regras para
orientar a pesquisa; também não colocamos à sua disposição um rol de definições
para dirigir a investigação. Nestas poucas páginas, apenas sumariamos – e de
forma muito esquemática: só apresentamos uma introdução à problemática
metodológica de Marx – as principais aproximações marxianas à questão do método
de pesquisa. E devemos justificar as razões deste procedimento.
Não
oferecemos ao/à assistente social um conjunto de regras porque, para Marx, o
método não é um conjunto de regras formais que se “aplicam” a um objeto que foi
recortado para uma investigação determinada nem, menos ainda, um conjunto de
regras que o sujeito que pesquisa escolhe, conforme a sua vontade, para “enquadrar”
o seu objeto de investigação. Recordemos a passagem de Lênin que citamos: Marx
não nos entregou uma Lógica, deu-nos a lógica d´O capital. Isto quer dizer que
Marx não nos apresentou o que “pensava” do capital: ele nos descobriu a
estrutura e a dinâmica reais do capital; não lhe “atribuiu” ou “imputou” uma
lógica: extraiu da efetividade do movimento do capital a sua (própria, imanente
ao capital) lógica – numa palavra, deu-nos a teoria do capital: a reprodução
ideal do seu movimento real15. E para operar esta reprodução, ele tratou de ser
fiel ao objeto: é a estrutura e a dinâmica do objeto que comandam os
procedimentos do pesquisador. O método implica, pois, para Marx, uma
determinada posição (perspectiva) do sujeito que pesquisa: aquela em que se põe
o pesquisador para, na sua relação com o objeto, extrair dele as suas múltiplas
determinações.
Também
não oferecemos definições ao/à assistente social. Porque procede pela
descoberta das determinações, e porque, quanto mais avança na pesquisa, mais descobre
determinações – conhecer teoricamente é (para usar uma expressão cara ao
Professor Florestan Fernandes) saturar o objeto pensado com as suas
determinações concretas –, Marx não opera com definições. Na “viagem em sentido
inverso”, as “abstrações mais tênues” e as “determinações as mais simples” vão
sendo carregadas das relações e das dimensões que objetivamente possuem e devem
adquirir para reproduzir (no plano do pensamento) as múltiplas determinações
que constituem o concreto real.
Mas,
sobretudo, procedemos aqui com o cuidado de manter a indissociável conexão que
existe em Marx entre elaboração teórica e formulação metodológica. Os
pressupostos desenvolvidos ao longo dos anos 1840 encaminham elaborações
teóricas que são
15
E é desnecessário dizer que esta reprodução ideal, cuja validez a história real
do capitalismo do último século e meio vem reafirmando, na mesma medida em que
é necessária não é suficiente para dar conta do capitalismo contemporâneo:
novos fenômenos, sinalizando novos processos, emergiram na dinâmica do capital,
fenômenos e processos que Marx não examinou (e nem poderia tê-lo feito). Mas é
o método por ele descoberto que tem possibilitado o tratamento
crítico-analítico da contemporaneidade, em autores como Mandel, Mészáros, Harvey
e tantos outros.
16
refundidas,
revisadas, aprofundadas etc. e que rebatem nas propostas metodológicas; os
estudos dos anos 1850, orientados pelas formulações metodológicas já
alcançadas, promovem avanços teóricos e estes redimensionam exigências
metodológicas. A formulação da “Introdução” de 1857 é, vista no processo do
pensamento de Marx, um ponto de chegada e um ponto de partida. É um ponto de
chegada, na medida em que resulta de todo o trato teórico anterior e, pois,
contém uma adequação da posição (perspectiva) do pesquisador às exigências do
objeto; é um ponto de partida, porque assinala um novo tratamento do objeto –
que vai comparecer nos Elementos fundamentais para a crítica da economia
política. Rascunhos. 1857-1858. Este novo tratamento teórico, por sua vez,
incide numa depuração ainda maior da formulação metodológica – e ambos,
tratamento teórico e formulação metodológica, que constituem uma unidade,
surgirão, límpidos, n´O capital. A indissociável conexão que mencionamos impede
uma abordagem que, na obra de Marx, autonomize o método em face da teoria: não
é possível, senão ao preço de uma adulteração do pensamento marxiano, analisar
o método sem a necessária referência teórica e, igualmente, a teoria social de
Marx torna-se ininteligível sem a consideração do seu método. Como corretamente
afirmou Goldmann (1985, p. 7), no pensamento que se apoia na perspectiva da
totalidade, a que me referirei a seguir, é ilegítima uma separação rigorosa
entre o método e a investigação concreta, que são as duas faces de uma mesma
moeda. De fato, parece certo que o método só se encontra na própria
investigação e que esta só pode ser válida e frutífera na medida em que toma
consciência, progressivamente, da natureza do seu próprio avanço e das
condições que lhe permitem avançar.
E
é nesta conexão que encontramos plenamente articuladas três categorias – de
novo: teórico-metodológicas – que nos parecem nuclear a concepção
teórico-metodológica de Marx, tal como esta surge nas elaborações de e
posteriores a 1857 (ainda que lastreadas em sua produção anterior). Trata-se
das categorias de totalidade, de contradição e de mediação (MARCUSE, 1969;
LUKÁCS, 1970, 1974 e 1979 e BARATA-MOURA, 1977). Para Marx, a sociedade
burguesa é uma totalidade concreta. Não é um “todo” constituído por “partes”
funcionalmente integradas. Antes, é uma totalidade concreta inclusiva e
macroscópica, de máxima complexidade, constituída por totalidades de menor
complexidade. Nenhuma dessas totalidades é “simples” – o que as distingue é o
seu grau de complexidade (é a partir desta verificação que, para retomar
livremente uma expressão lukacsiana, a realidade da sociedade burguesa pode ser
apreendida como um complexo constituído por complexos). E se há totalidades
mais determinantes que outras (já vimos, por exemplo, que, na produção das
condições materiais da vida social, a produção determina o consumo), elas se
distinguem pela legalidade que as rege: as tendências operantes numa totalidade
lhe são peculiares e não podem ser transladadas diretamente a outras
totalidades. Se assim fosse, a totalidade concreta que é a sociedade burguesa
seria uma totalidade amorfa – e o seu estudo nos revela que se trata de uma
totalidade estruturada e articulada. Cabe à análise de cada um dos complexos
constitutivos das totalidades esclarecer as tendências que operam
especificamente em cada uma delas.
Mas
a totalidade concreta e articulada que é a sociedade burguesa é uma totalidade
dinâmica – seu movimento resulta do caráter contraditório de todas as
totalidades que compõem a totalidade inclusiva e macroscópica. Sem as
contradições, as totalidades seriam totalidades inertes, mortas – e o que a
análise registra é precisamente a sua contínua transformação. A natureza dessas
contradições, seus ritmos, as condições de seus limites, controles e soluções
dependem da estrutura de cada totalidade – e, novamente, não há fórmulas/formas
apriorísticas para determiná-las: também cabe à pesquisa descobri-las.
17
Enfim,
uma questão crucial reside em descobrir as relações entre os processos
ocorrentes nas totalidades constitutivas tomadas na sua diversidade e entre
elas e a totalidade inclusiva que é a sociedade burguesa. Tais relações nunca
são diretas; elas são mediadas não apenas pelos distintos níveis de
complexidade, mas, sobretudo, pela estrutura peculiar de cada totalidade. Sem
os sistemas de mediações (internas e externas) que articulam tais totalidades,
a totalidade concreta que é a sociedade burguesa seria uma totalidade
indiferenciada – e a indiferenciação cancelaria o caráter do concreto, já
determinado como “unidade do diverso”16 .
Articulando
estas três categorias nucleares – a totalidade, a contradição e a mediação –,
Marx descobriu a perspectiva metodológica que lhe propiciou o erguimento do seu
edifício teórico. Ao nos oferecer o exaustivo estudo da “produção burguesa”,
ele nos legou a base necessária, indispensável, para a teoria social. Se, em
inúmeros passos do conjunto da sua obra, Marx foi muito além daquele estudo,
fornecendo fundamentais determinações acerca de outras das totalidades
constitutivas da sociedade burguesa, o fato é que sua teoria social permanece
em construção – e em todos os esforços exitosos operados nesta construção o que
se constata é a fidelidade à perspectiva metodológica que acabamos de esboçar.
É nesta fidelidade, aliás, que reside o que, num estudo célebre, Lukács (1974,
p. 15) designou como ortodoxia em matéria de marxismo.
VI. O método de Marx e a pesquisa
em Serviço Social
É
mais ou menos consensual que o Serviço Social, no Brasil, desconheceu a
pesquisa – como parte constitutiva do perfil profissional – até os finais dos
anos 1960. Isto não significa que assistentes sociais, em seus espaços de
trabalho (e, especialmente, aqueles/as que conjugavam a intervenção direta com
a docência), não tenham desenvolvido atividades investigativas ou participado,
juntamente com outros profissionais, de projetos e atividades de pesquisa. Quer
dizer, tão somente, que a pesquisa não se punha como elemento substantivo nos
papéis atribuídos e incorporados pela profissão.
Nos
anos subsequentes a 1968 (quando a ditadura vigente no país operou uma reforma
universitária), e no quadro das transformações operadas na sociedade
brasileira, que padecia a autocracia burguesa (NETTO, 2009), alteraram-se tanto
as condições da formação do/a assistente social quanto as do seu exercício
profissional.
Novas
demandas foram postas à profissão no marco da “modernização conservadora” que
estava em curso à época e, também neste marco, a formação se laicizou e se
integrou efetivamente no circuito acadêmico – donde, na entrada dos anos 1970,
o
16
O marxista que melhor esclareceu a concepção de totalidade na obra marxiana foi
Lukács. É dele lição: “A concepção materialista-dialética de totalidade
significa, em primeiro lugar, a unidade concreta de contradições inter-atuantes
[...]; em segundo lugar, significa a relatividade sistemática de toda
totalidade, tanto para cima como para baixo (ou seja, que toda totalidade está
constituída de totalidades a ela subordinadas e que também ela é, ao mesmo
tempo, sobredeterminada por totalidades de complexidade maior); e, em terceiro
lugar, a relatividade histórica de toda totalidade, isto é, que o
caráter-de-totalidade de toda totalidade é mut|vel, est| limitado a um período
histórico concreto, determinado” (MÉSZÁROS Apud PARKINSON, 1973, p. 79-70). E
Mészáros observa que, com esta concepção, extraída do pensamento de Marx,
evita-se tanto o misticismo da totalidade – tomada diretamente na sua
imediaticidade, com a supressão das suas mediações –, que o fascismo cultivou,
quanto o seu extremo oposto, vale dizer, a sua negação, que leva à fragmentação
e à psicologização da vida social (id., ibid.).
18
início
dos cursos de pós-graduação, que foram, sem dúvidas, os principais responsáveis
pelo estímulo à pesquisa no Serviço Social17. Vê-se, pois, que as atividades de
pesquisa inserem-se tardiamente em nosso campo profissional – dado que o
Serviço Social no Brasil já contava, então, com mais de três décadas de
existência. De qualquer modo, a partir dos finais dos anos 1970, a pesquisa
veio se consolidando nos espaços da formação pósgraduada e é hoje um elemento
significativo do Serviço Social brasileiro, atestando a sua maioridade intelectual
e as suas condições para participar da interlocução com as ciências sociais. E,
desde meados dos anos 1980, também as revisões curriculares foram concedendo
destaque à pesquisa, de modo que também na graduação ela começou a ganhar
destaque.
Considerado
o peso da herança conservadora no Serviço Social em todo o mundo e
particularmente no Brasil (IAMAMOTO, 1994, cap. I; IAMAMOTO; CARVALHO, 1983),
além do desastre que significou para a massa da população a política cultural e
educacional da ditadura, compreende-se a difícil inserção da tradição marxista
(e, com ela, da concepção teórico-metodológica de Marx) no campo do Serviço
Social. Com a crise e a derrota da ditadura, porém, pouco a pouco, foram se
configurando influências marxistas sobre assistentes sociais que se dedicavam à
pesquisa – ainda que tais influências padecessem de inúmeros problemas (NETTO,
1989; QUIROGA, 1991). O principal desses problemas residia em que se tratava de
“um marxismo sem Marx”: geralmente provinha de manuais de divulgação ou, em
alguns casos, da referência a importantes pensadores marxistas, porém tomados
sem o conhecimento da tradição que os implicava e explicava. Podem-se
distinguir, neste processo de inserção do pensamento marxista no Serviço Social
brasileiro, dois momentos: um, primeiro, correspondente ao período que vai do
fim dos anos 1970 até o final dos 1980 e aquele que então se inicia e se
prolonga até hoje. No primeiro, próprio à crise e à derrota da ditadura e ao
afluxo dos movimentos democráticos e populares, a referência formal ao marxismo
e a Marx tornou-se dominante entre as vanguardas profissionais; houve mesmo uma
espécie de moda do “materialismo histórico”. No segundo, sob a pressão do
neoconservadorismo pós-moderno que começou a envolver as ciências sociais, o
marxismo “entrou em baixa” no Serviço Social – o elegante tornou-se a adoção de
“novos paradigmas”. De qualquer maneira, há um saldo objetivo indiscutível: a
inserção do pensamento de Marx contribuiu decisivamente para oxigenar o Serviço
Social brasileiro e, desde então e apesar tudo, constituiu-se nele uma nova
geração de pesquisadores que se vale competentemente das concepções
teórico-metodológicas de Marx.
Está
claro que a pesquisa é indispensável ao Serviço Social se a profissão quiser se
manter com um estatuto efetivamente universitário. É impossível imaginar o
desenvolvimento profissional sem que, na categoria profissional, exista um
segmento dedicado expressamente à pesquisa – e tudo indica que tal segmento
encontra seu espaço específico na universidade.
Com
isto, queremos dizer claramente que nem todo/a assistente social tem que
dedicar-se sistematicamente à pesquisa. A própria alocação socioprofissional
dos assistentes sociais (como, aliás, se registra em todas as categorias
profissionais) impede o
17
Como resultado dos esforços desenvolvidos pelos/nos cursos de pós-graduação, em
1987, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq
reconheceu o Serviço Social como área de produção de conhecimento – o que,
ademais de servir como instrumento institucionalizador da pesquisa entre nós,
operou como um extraordinário elemento do seu fomento, propiciando o acesso dos
pesquisadores a recursos indispensáveis.
19
exercício
sistemático da pesquisa por todos os profissionais. É por esta razão, aliás,
que é preciso democratizar os resultados das investigações conduzidas por
aqueles que estão alocados ao espaço específico da pesquisa: é preciso
encontrar meios, canais e modos de coletivizar, com o conjunto da categoria, os
avanços teóricos e técnico-operativos alcançados pelos pesquisadores.
Mas
é preciso dizer, também claramente, que todo/a assistente social, no seu campo
de trabalho e intervenção, deve desenvolver uma atitude investigativa: o fato
de não ser um/a pesquisador/a em tempo integral não o/a exime quer de
acompanhar os avanços dos conhecimentos pertinentes ao seu campo trabalho, quer
de procurar conhecer concretamente a realidade da sua área particular de
trabalho. Este é o principal modo para qualificar o seu exercício profissional,
qualificação que, como se sabe, é uma prescrição do nosso próprio Código de
Ética18 .
Parece
clara a distinção (que não deve ser vista como uma muralha chinesa) entre o
exercício investigativo do pesquisador acadêmico, que se dedica a ele em tempo
integral, e o do profissional de Serviço Social. No primeiro caso, os
requisitos da pesquisa são os da produção de conhecimentos, sem o compromisso
imediato com a prática profissional; no segundo, diferentemente, a investigação
está em geral orientada para subsidiar uma intervenção bastante determinada. Em
ambos os casos, o domínio das técnicas – que, repita-se, não podem ser
identificadas a método – de pesquisa é igualmente necessário e se encontra
acessível numa larga bibliografia (desde manuais “clássicos” como os de Goode e
Hatt, 1979, e de Selltiz et alii, 1975, a textos mais acessíveis e abrangentes
como os de Minayo, 2002, e de Severino, 2007). E em ambos os casos o recurso à
concepção teóricometodológica de Marx revela-se extremamente produtivo e
eficaz. É claro que tal recurso põe grandes exigências intelectuais, mas
perfeitamente solucionáveis mediante o estudo sistemático; se parte delas já
foi sugerida na exposição que fizemos, três observações gerais podem facilitar
os procedimentos dos/as assistentes sociais que, embora não sendo pesquisadores
em sentido estrito, querem desenvolver uma atitude investigativa compatível com
aquele recurso na sua intervenção profissional.
Em
primeiro lugar, o profissional necessita possuir uma visão global da dinâmica
social concreta. Para isto, precisa conjugar o conhecimento do modo de produção
capitalista com a sua particularização na nossa sociedade (ou seja, na formação
social brasileira). O/a assistente social não é (nem pode ser) um/a economista
nem um/a especialista em história, mas não compreenderá de forma adequada nem
mesmo os problemas mais imediatos que se põem diariamente à sua atuação
profissional se não tiver aquela visão que demanda o estudo atento de uns
poucos textos de introdução à economia política e de alguns historiadores
brasileiros – sempre com a preocupação de trazer à atualidade os resultados a
que assim tiver acesso. Bem conduzido e atualizado, esse estudo propiciará ao
profissional também o conhecimento da natureza de classe do Estado brasileiro e
da nossa estrutura social e é supérfluo observar que o curso de graduação deve
18
O Código, já nos seus princípios fundamentais, inscreve, para o/a profissional,
o “compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o
aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional” (CRESS
7ª Região, 2005, p. 17; itálicos não originais); entre os direitos do/a
profissional, prevê “a liberdade na realização de seus estudos e pesquisas”
(id., p. 18) e a participação “em sociedades científicas [...] que tenham por
finalidade [...] a produção de conhecimentos” (id., p. 24). E a Lei de
Regulamentação da Profissão menciona a pesquisa como atividade profissional
(cf. art. 4o, VII e XI, art. 5o, I).
20
oferecer
os conteúdos mais essenciais desse estudo19. Em segundo lugar, o profissional
precisa encontrar as principais mediações que vinculam o problema específico
com que se ocupa com as expressões gerais assumidas pela “questão social” no
Brasil contemporâneo e com as v|rias políticas sociais (públicas e privadas)
que se propõem a enfrentá-las. O conhecimento dessas políticas sociais (que
implica, antes de tudo, o conhecimento das suas fontes e formas de
financiamento) é indispensável para o profissional contextualizar a sua intervenção;
e a determinação daquelas mediações possibilita apreender o alcance e os
limites da sua própria atividade profissional. Estas exigências põem-se a todo
profissional interessado na compreensão da sua atividade para além do seu
dia-a-dia: dada a sua alocação socioprofissional – seja no planejamento, na
gestão, na execução –, nenhum/a assistente social pode pretender qualquer nível
de competência profissional caso se prenda exclusivamente aos aspectos
imediatamente instrumentais e operativos da sua atividade.
Em
terceiro lugar, ao profissional cabe apropriar-se criticamente do conhecimento
existente sobre o problema específico com o qual se ocupa. É necessário dominar
a bibliografia teórica (em suas diversas tendências e correntes, as suas
principais polêmicas), a documentação legal, a sistematização de experiências,
as modalidades das intervenções institucionais e instituintes, as formas e
organizações de controle social, o papel e o interesse dos usuários e dos
sujeitos coletivos envolvidos etc. Também é importante, neste passo, ampliar o
conhecimento sobre a instituição/organização na qual o próprio profissional se
insere.
Os
três momentos aqui sumariados não configuram operações intelectivas sucessivas:
são passos constitutivos do processo pelo qual o profissional pode desenvolver
de fato uma atitude investigativa numa perspectiva compatível com o espírito do
método de Marx – e trata-se de processo obviamente contínuo e sempre renovado.
E parece indiscutível que sua efetivação será tanto mais possível e exitosa se
envolver mais que os esforços individuais de um profissional: a atividade
coletiva, associada, incluindo também profissionais de outras áreas, permite
ultrapassar os aparentemente insuperáveis obstáculos com que se defrontam os/as
assistentes sociais no seu dia-a-dia (falta de tempo para estudar e debater,
ausência de estímulos para crescer intelectualmente etc.). Enfim, observe-se
que estamos tratando de investigação no plano do conhecimento (aliás, o método
de Marx, tal como foi tematizado aqui, é um método de conhecimento). E do
conhecimento não se extraem diretamente indicativos para a ação, para a prática
profissional e interventiva. Mas não se terá uma prática eficiente e inovadora
se ela não estiver apoiada em conhecimentos sólidos e verazes.
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19
Tais conteúdos estariam garantidos na formação de graduação mediante a
implementação dos “núcleos” de “fundamentos teórico-metodológicos da vida
social” e de “fundamentos da formação sócio-histórica da sociedade brasileira”,
constantes das “Diretrizes gerais para o curso de Serviço Social” – cf. ABESS,
1997, p. 64-66.
21
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