Luiz Sérgio Henriques
19
Junho 2016 | 03h 00
Há
cerca de dez anos, o mexicano Jorge Castañeda, ator e analista da política
latino-americana deste nosso tempo conturbado, propôs um esquema simples, mas
relativamente eficaz, para entender as esquerdas no poder, especialmente a
partir da ascensão de Hugo Chávez na Venezuela por meio do voto. As esquerdas,
dizia Castañeda, tinham no subcontinente uma natureza dupla, segundo
admitissem, ou não, as novas condições derivadas do fim do comunismo real e da
obsolescência dos padrões da guerra fria.
Brasil,
Uruguai ou Chile, por exemplo, teriam enveredado por um caminho próximo das
social-democracias europeias, adotando políticas pluriclassistas e respeitando
os requerimentos do regime representativo. Coerentemente, em relação à
economia, a questão se resumiria a regular de outro modo os mercados, para além
da experiência liberal dos anos 90, mas sem violar seus princípios básicos nem
descuidar dos equilíbrios macroeconômicos. Um moderado reformismo social
estaria em curso nesses países, atacando primeiramente a pobreza extrema e, de
forma indireta, a desigualdade.
A
Venezuela e os demais países ditos bolivarianos eram exemplos de esquerda
radical, inspirada muitas vezes no ambiente hiperideológico dos anos 70 vertido
para o novo contexto de interdependência e de redes globais. Com ou sem razão,
tratava-se, aqui, de refundar a nação e implantar democracias de alta intensidade:
formas diretas de participação e líderes carismáticos eleitoralmente
“invencíveis” iriam mais uma vez se associar para lançar as bases do
“socialismo do século 21”. Tal intento se pretendia diverso do socialismo do
século 20, ainda que desde o primeiro momento não fosse muito difícil de ver em
operação as categorias do velho repertório, com a adição inquietante de “coisas
nossas”, como o caudilhismo e o militarismo, desta vez em roupagem
progressista.
Os
processos ora em curso na Venezuela e em nosso país, estruturalmente tão
diferentes entre si, complicam a dicotomia de Castañeda. A Venezuela, sob
Chávez e, agora, Nicolás Maduro, não deixou em momento algum de ser totalmente
dependente da renda do petróleo – o excremento do diabo, na expressão famosa. E
o Brasil, ainda que assediado pelo fantasma da reprimarização da economia,
inclusive nos anos triunfantes do lulismo, continuou a ter uma economia
diversificada e a ser uma sociedade complexa, em que amplos setores de classe
média, pelo menos em tese, são refratários aos apelos anacrônicos do populismo.
Realidades
contrapostas, portanto, mas, como sabemos, razões e motivos “ideológicos” não
decorrem automaticamente de “bases materiais”. Eles se cruzam e contaminam,
determinam a percepção dos problemas de um modo ou de outro, podendo inclusive
agravá-los ou dramatizá-los substancialmente. Houve quem, à esquerda,
despreocupando-se com a exigência de análises diferenciadas, propagasse a ideia
de um bloco latino-americano maciçamente contra “o capital” e o neoliberalismo.
Governos nacional-populares na região seriam a nova vanguarda anticapitalista e
anti-imperialista, retirando o protagonismo da moderada esquerda europeia de
feição social-democrata. E, à direita, a desolação intelectual não poderia ser
maior, com tentativas de ressurreição do vetusto armamentário anticomunista.
Nada
a fazer no plano argumentativo se as coisas fossem deixadas assim. O espaço da
política se reduziria a bem pouca coisa se, diante destas crises
estruturalmente desiguais, mas temporalmente “gêmeas” – o total desastre
venezuelano e a aguda crise institucional brasileira –, não tentássemos acionar
os mecanismos de uma autorreflexão dura e impiedosa. Inútil dizer de Maduro,
como disse Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, que es loco como una cabra.
Um mero insulto pessoal, um tanto folclórico, que não vai à raiz do problema
nem revela, infelizmente, um dirigente capaz de contribuir para a superação
pacífica do desastre à vista de todos naquele país.
Da
nossa parte, impossível aceitar sem renovado sinal de alarme a derivação
“bolivariana” de manifestações petistas que denunciam o suposto “golpe
parlamentar” e reiteram obsessivamente a contraposição frontal entre amigos e
inimigos (a “direita”), como se a democracia política não exigisse, para sua
vigência, um amplo terreno comum entre os contendores, no qual se viabiliza o
próprio discurso público e a situação de recíproco assédio, de luta e
proximidade, que marca a atuação de forças políticas amadurecidas, ainda que
representem interesses e visões conflitantes.
Não
há partido na democracia “burguesa” que possa entender a reforma do Estado como
controle ideológico dos diferentes órgãos daquilo que alguns chamam sistema de
integridade – a Polícia, o Ministério Público, o Judiciário. E muito menos
possa propor um ataque frontal à “mídia monopolista”, sem antes esclarecer
cabalmente que qualquer ideia de regulação constitucional dos meios deve
refugar, sem ambiguidade, a tal “hegemonia comunicacional” de feitio chavista –
que, de resto, tem pouco de hegemonia e muito de dominação simples e bruta,
funcional ao monopólio da fala pelo caudilho em exercício.
Quase
30 anos depois da Carta de 1988, a esquerda brasileira ainda não tirou de sua
história os recursos para construir uma forte social-democracia, cujo
compromisso essencial seja, além dos objetivos de reforma, a defesa da
legalidade democrática e suas instituições, que dão vida e densidade a tais
objetivos. Não consegue estabelecer parâmetros altos para a ação de um
reformismo latino-americano mais unitário, generoso e integrador. A vertente democrática
fraca termina por abrir o flanco para a vertente autoritária e personalista.
Condena-se, assim, a recomeçar em condições piores – e sempre depois de
tempestades que, como na Venezuela, caudilhos meticulosamente semeiam e, agora,
colhem.
*TRADUTOR
E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL. SITE: WWW.GRAMSCI.ORG
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