Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
segunda-feira, 23 de agosto de 2021
Aranhas, teias e golpes
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Roberto DaMatta* - Aranhas, teias e golpes
O Estado de S. Paulo / O Globo
As aranhas urdidoras de fraudes eleitorais do conto de Machado de Assis, A Sereníssima República, publicado em 1882, uma época marcada pela transição do Império à República e da escravidão ao trabalho livre, são uma genial ficção etnológica e uma extraordinária reflexão sobre a adoção de novos regimes políticos. Um assunto no qual o Brasil é um caso exemplar e Machado de Assis, um privilegiado observador, pois, devido à plenitude de uma aristocracia e de um patriarcado hegemônico, com o reforço da fuga da corte portuguesa, proclamamos uma atiradíssima República sem republicanos e uma democracia sem igualdade. Hoje, vítimas das teias que tecemos, lidamos com o que parece ser uma maluquice eleitoral, tal como aconteceu com as aranhas.
A fábula relata uma excepcionalidade de um processo de mudança cultural. As aranhas têm uma língua e, tanto quanto o Brasil, aceitam o republicanismo para descobrir que as demandas da República têm, no seu sistema eleitoral, uma degradável impessoalidade. Uma imparcialidade que nos torna anônimos e iguais perante a lei. Aranhas e nós, porém, temos reservas quanto a esse princípio contrário a práticas sociais hierarquicamente orientadas, mas enterradas no nosso inconsciente, exceto quando colocamos alguém no seu devido lugar com o “você sabe com quem está falando?”.
A igualdade como valor destoa da reciprocidade revelada por Marcel Mauss, a qual obriga a fazer e devolver o favor que, ao lado do jeitinho (caseiro ou legalmente supremo), coloca as ideias nos seus lugares. Esses são os costumes não convidados que trazem de volta a “velha política”. O sistema que Bolsonaro foi eleito para liquidar. E que hoje o leva a pensar no golpe que destampa a teia de uma aristocracia estatizada.
A comunidade das aranhas também sofre de um claro antietnocentrismo. Inventada pelos seus onipotentes intelectuais, a pátria das aranhas não percebe as gradações, privilégios e castas de sua ordem social. A incongruência entre o regime político e os costumes promove um nelson-rodriguiano complexo de vira-lata – esse sintoma de uma inferioridade estrutural diante de estrangeiros “adiantados” e “civilizados”.
Por isso, as aranhas mais sensíveis pedem ao Cônego Vargas – aquele humano a elas simpático que, como um etnólogo, aprendeu sua língua e admirou suas teias – um regime político. Visto como um demiurgo, algo comum nos encontros entre povos com grandes diferenças de poder, esses contatos que conduzem à escravidão e ao colonialismo, o honesto Cônego não hesitou em sugerir o sistema da Sereníssima República de Veneza, o menos sujeito à imobilidade das heranças e casas aristocráticas, o que contém um mecanismo de mudança e aprimoramento.
Adotando o regime republicano, logo as melhores moças da coletividade teceram os sacos de onde sairia o nome de um dos eventuais candidatos. Elas foram chamadas de “mães da República”, uma informação reveladora de que a “política”, como a religião, o ensino, o jogo, o esporte ou o trânsito, não entra em espaços vazios porque não há nenhuma sociedade com espaços sem significado.
O resultado, depois de algumas eleições, foi decepcionante. Sem serem capazes de enxergar as implicações e o protagonismo social dos seus próprios costumes, as aranhas logo descobriram os seus malandros e os seus golpistas. A disputa eleitoral, ao lado do negacionismo do poder de seus estilos estabelecidos de prestígio de poder, fez com que as aranhas de Machado de Assis até hoje urdam e desmanchem suas sacolas eleitorais e, como Penélope, aguardem seu Ulisses – uma enorme paciência e ao lado de uma velha sabedoria.
A preço do autodesconhecimento é a repetição que conduz à ausência de história e de mudança. Pensar que se pode controlar costumes ou, mais ingênuo que isso, ignorar que depois de D. João VI tivemos um Pedro 01 e Pedro 02 e alguns mandachuvas é – no limite da estupidez – desejar não mudar. É voltar ao autoritarismo aristocrático disfarçado de “estados novos” podres de velhos, mostrando a saudade das ditaduras.
A miragem nacional denunciada por Machado de Assis é que o republicanismo não é um mecanismo formalista isolado, pois todo regime é contaminado pelo conjunto dos costumes da sociedade do qual faz parte.
Impossível mudar? Claro que não. O ponto é ter consciência que todo processo de mudança tem miragens e exige paciência com o velho e energia para implementar o novo.
PS: Todo golpe troca teias por grades. Faz parte dos golpes o patético “botar os tanques na rua”, essas armas do puro poder, poluidoras da vida dos que apenas desejam viver em paz sem abdicar do seu direito de construir suas teias. Esse valor que a maluquice de um presidente aliado da morte não pode abolir.
*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’
*** *** https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/08/roberto-damatta-aranhas-teias-e-golpes.html *** ***
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Study Guide
Othello What's Up With the Ending?
By William Shakespeare
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It feels good to be right...
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What's Up With the Ending?
Any Last Words?
We know that by the play's end Othello has transformed from a noble general and loving husband into a jealous, irrational killer. We also know that after Othello learns the truth (that he killed the ever-faithful Desdemona for no good reason), he decides to end his own life.
The play ends with a depressed Ludovico saying that he hopes that Cassio will punish Iago, and that he'll relate the whole story of the seedy Othello affair to the state.
But, given the nature of the play's ending and the fact that Othello is our main man, it seems like Othello's final words are worth taking a close look at, don't you think?
Here's what our protagonist says just before he stabs himself in the guts:
Soft you. A word or two before you go.
I have done the state some service, and they
know 't.
No more of that. I pray you, in your letters,
When you shall these unlucky deeds relate,
Speak of me as I am; nothing extenuate,
Nor set down aught in malice. Then must you speak
Of one that loved not wisely, but too well;
Of one not easily jealous, but being wrought,
Perplexed in the extreme; of one whose hand,
Like the base Judean, threw a pearl away
Richer than all his tribe; of one whose subdued
eyes,
Albeit unused to the melting mood,
Drop tears as fast as the Arabian trees
Their medicinal gum. Set you down this.
And say besides, that in Aleppo once,
Where a malignant and a turbaned Turk
Beat a Venetian and traduced the state,
I took by th' throat the circumcisèd dog,
And smote him, thus. (5.2.397-417)
Here, Othello says he "loved" Desdemona "too well" (too much), which suggests that he doesn't really understand the implications of what he's done.
Othello also seems pretty preoccupied with the way people will think of him after his death. On the one hand, he wants to be remembered as a soldier who "has done the state some service" and who has killed a lot of Venice's enemies.
Yet he also seems to think that strangling Desdemona is a crime against the Venetian state—Othello compares himself to a "turban'd Turk" (Venice's sworn enemy), which he emphasizes when he kills himself with the very same sword he used when he "smote" the "malignant" Turk on the battlefield.
By this point, Othello sees himself as a savage outsider (like a "Turk" or a "base Indian"), which is what characters like Brabantio have been calling him all along. In other words, Othello seems to have internalized the racist ideas that he has encountered in Venice. It also seems like Shakespeare is asking us to consider whether or not this is the inevitable outcome when a society tells a man over and over again that he's a "savage."
*** *** https://www.shmoop.com/study-guides/literature/othello/analysis/ending *** ***
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REVISTA REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS ESTUDOS POLÍTICOS N.7 | 2013/02 N.7 | 2013/02 ISSN 2177-2851 ISSN 2177-2851
Veneza e Turquia: republicanismo e história
Luís Falcão
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Luís Alves Falcão
é doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e
Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
e professor substituto do Departamento de Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense (DCP-UFF).
E-mail: luis.alves.falcao@gmail.com
Resumo
O presente artigo visa apresentar a contraposição, a partir da sugestão de J. G. A. Pocock,
entre o mito de Veneza e a Turquia nos autores republicanos modernos. Restringindo
o objeto de estudo aos pensadores que se inserem na tradição “florentino-atlântica
republicana”, de modo geral, mais afeitos aos ditames da história do que ao direito natural,
o texto argumenta que tais autores, de modo mais ou menos voluntário, acabaram por
disseminar e/ou aprofundar a marcante distinção entre Ocidente e Oriente. Conclui-se
que, mesmo identificados com o conhecimento histórico e seus exemplos, os pensadores
não aceitam comparações equitativas entre modelos ocidentais e orientais, e as
referências a Veneza e Turquia contribuem incisivamente nesse entendimento.
Palavras-chave
Veneza, Turquia, republicanismo
Abstract
This paper presents a contrast from the suggestion of J. G. A. Pocock between the myth of
Venice and the Turkey in modern republicans authors. Restricting the object to thinkers
who fall into the tradition “Florentine-Atlantic republic tradition”, generally more wont to
the dictates of history than of natural law, the text argues that these authors, in a more or
less voluntary, eventually by disseminating and/or deepen the striking distinction between
East and West. We conclude that, even addicted to historic knowledge, the thinkers do not
accept fair comparisons between Western and Eastern models, and references to Venice
and Turkey contribute incisively on this understanding.
Keywords
Set you down this: And say besides, that in Alepo once, where a malignant
and a turban’d Turk beat a venetian and traduced the State,
I took by the throat the circumcised dog, and smote him, thus...
Shakespeare, Othelo
Introdução
Comumente conhecida como a sereníssima república, Veneza, desde o começo
da modernidade, influenciou profundamente pensadores políticos que buscavam
estabilidade constitucional. Particularmente os republicanos classificam-na como uma
república aristocrática por seu sistema político e, principalmente, por sua forma de
eleição (Sjinner, 1996: 160-165). Do lado inverso, a Turquia também esteve presente nas
reflexões como uma verdadeira tirania, um governo centralizado, fundado tão somente
nos apetites do governante, em que todos os demais são servos ou escravos. Este
trabalho não pretende abordar cada um desses Estados em si mesmos, mas o impacto que
causaram nas formulações republicanas e liberais, nos percursos mais significativos dessas
tradições, como exemplos a serem seguidos ou rejeitados1.
De modo geral, o pensamento republicano moderno é identificado com a perspectiva
maquiaveliana e com a recepção dos antigos, passadas pelo humanismo cívico italiano
(Baron, 1992). Por outro lado, o liberalismo é frequentemente aceito como uma tradição
moderna, no sentido mais preciso do termo, sem dívidas profundas com antigos,
medievais ou humanistas. Tal dicotomia, já amplamente explorada, reverbera ainda uma
ambivalência de fundo. Para utilizar uma abordagem tipológica, poder-se-ia afirmar
que republicanos tendem a ser mais afeitos à compreensão da história como fonte de
autoridade, cujo vocabulário das virtudes encontra mais eco do que o dos direitos e
liberdades individuais (Pocock, 2003: 349-350). Dentro da oposição entre liberais e
antigos, Leo Strauss encontrou na recepção dos antigos pelos modernos a substituição
da virtude pela liberdade, o que, afirma ele, levou à decadência da filosofia política. Desse
modo, para se enquadrar nos tipos, os liberais tendem a rejeitar a autoridade da história
e fincarem-se no direito natural. É verdade que apenas a partir de 1953, com a original
publicação de Natural Rights and History, a dicotomia ganhou uma existência profunda,
quase engajada. E, talvez, não pareça sem sentido que os últimos anos tenham visto um
esforço de reaproximação, seja de um ponto de vista histórico (Rahe, 2006; Sullivan, 2004;
Viroli, 2002), seja teórico (Pettit, 1999). O segundo artigo procurará tratar desta questão,
concentrando-se na tradição liberal. Em suma, os textos abordam o entendimento que
cada tradição tem de Veneza e da Turquia.
A escolha dos autores segue o compasso de Pocock (2003) na definição não do
“momento maquiaveliano”, mas sim da “tradição florentino-atlântica republicana”. Esta,
mesmo que bastante devedora a Maquiavel, pode ter características isoladas que não
necessariamente se passem pelos termos postos pelo secretário florentino. Recorremos
apenas às definições iniciais de Pocock quanto à tradição2. Em seu livro, o autor não
destaca, visto que não é seu objetivo, a comparação que aqui nos propomos a fazer. Não
obstante seu aparecimento esporádico, o modelo de cada Estado ainda necessita de
aprofundamento no que se refere a esta tradição.
Antes de uma isolada comparação, que por si somente parece justificar uma pesquisa à
parte, pretendemos aqui apresentar dois “modelos” que se contrapõem mutuamente.
Reivindicada como máxima expressão cultural da civilização ocidental, Veneza, por
suas características um tanto quanto exageradas, ou parcialmente mitificadas, recebe
os elogios e as benesses, cujo contraponto lógico é a Turquia. A vertente politizada de
tal assertiva não escapa de razões vinculadas à autodefinição ou à reivindicação de um
fato não completa e verdadeiramente existente. Como uma classificação binária, com
sinais invertidos, ambos os Estados se tornam, de algum modo, mitificados. Não seria
exclusividade veneziana o impacto positivo de suas tradições e instituições não fosse a
negativa turca, evidentemente, com maior ou menor intensidade em cada autor. O fio
condutor, contudo, reside, pois, na autoafirmação do Ocidente republicano, em sua versão
florentino-atlântica, como não apenas distinto, mas oposto ao modelo oriental.
Este imperativo autoimposto, quase que como para convencimento próprio,
não é senão devido ao impacto sofrido por um choque cultural livre de qualquer
impregnação relativista. Com raras exceções, que pretendemos destacar ao longo
do texto, a Turquia é quase sempre julgada sob critérios venezianos. Assim, o marco
ocidental estabelecido e autodeterminado no Renascimento italiano reverbera,
portanto, a impossibilidade compreensiva de um universo político inacreditavelmente
autoritário, centralizador e despótico.
Antes de paradigmas universais relacionados às filosofias do direito natural, estranho ao
modelo florentino-atlântico3, é justamente a dimensão sociológica, através da aberração
turca, que ganha força. Seria, de modo alternativo, relativamente menos compromissado
se se julgasse a Turquia o pior dos modelos, caso os fundamentos valorativos
pretendessem-se universais, porque naturais. Mais difícil é, portanto, abdicar de se
colocar na posição oriental quando se trata de usos e costumes. Mesmo frente a temas
afeitos a aportes sociológicos, não se deixa de afirmar os costumes ocidentais perante a
selvageria do Oriente.
Não causa estranheza, portanto, que o segundo capítulo de The classical republicans, de
Zera Fink, publicado em 1945, não obstante o objeto da obra debruçar-se sobre autores
republicanos ingleses, tenha como objeto o mito da república de Veneza desenvolvido
ao longo dos séculos XVI e XVII na Itália e na Inglaterra. Também não pretende inflamar
as mentes mais aguçadas que ainda observavam, desde o declínio na segunda metade
do século XIX, a paulatina decadência daquela cidade italiana. A sereníssima república
conviveu com inumeráveis controvérsias ao longo dos anos. Ainda em meados do século
XVI, os defeitos institucionais eram, assim se observava, compensados pela estabilidade
política, permitida pelas ordens constitucionais e por sua tradição. Na Inglaterra do século
seguinte, entre os republicanos, o mito ganha força e se assenta em categorias mais
distantes daquelas observações locais e laterais realizadas pelos italianos.
Como modelos que ensinam, mas não servem para ser seguidos, o iluminismo e a
revolução americana contém apreciável potencial, porém, de difícil ou impossível
realização. O que Fink argumenta para os dois momentos iniciais da construção do mito
veneziano pode ser expandido, com suas particularidades, para períodos subsequentes,
sobretudo, no que se refere ao republicanismo. Pano de fundo de todo este percurso,
a estabilidade política nunca fora preterida pela dimensão aristocrática, embora esta
seja, de fato, o principal arcabouço. O mito de Veneza é parte da tradição ocidental como
referência positiva, como inerente às conquistas desta região do mundo, como exemplo
louvável, mesmo quando não pudesse ser seguido. Qualquer tentativa de acusação era
rapidamente refreada por uma interpretação díspar. Quando muito, aceita-se que a cidade
apenas ainda não havia realizado todo seu potencial. Referências para inúmeras utopias,
Veneza era mais romântica quando observada politicamente. Sempre enquadrada como o
ápice da civilização ocidental, fundamento integrante de seus hábitos políticos, jamais fora
alvo de críticas sem a exaltação das qualidades. Tal procedimento se tornou uma maneira
de legitimar as invenções do berço da cultura moderna.
Do lado oposto, a referência à Turquia nos pensadores italianos modernos carece
demasiadamente de explicações que possam oferecer alguma unidade interpretativa. Se
o mito de Veneza já foi suficientemente rastreado por estudiosos contemporâneos, não
se pode dizer o mesmo da Turquia. Contudo, há uma explicação para tal lacuna. O trato
com os turcos, mesmo que comparativo aos Estados ocidentais, assume uma dimensão
marginal e funciona como um recurso exemplar e argumentativo, mais do que a criação de
um modelo rígido como ocorre com Veneza. Primeiramente, porque a ideia de uma nação
bárbara se sobrepõe àquela de um Estado juridicamente ordenado. Sob esse prisma, a
reflexão assume uma estatura sociológica e menos institucional, o que pode ser conferido
pelas avaliações dos usos e costumes, e, particularmente, no trato da religião.
Mesmo que ambas as nações não sejam sempre comparadas sob um mesmo critério, é
possível ainda percebê-las como pólos opostos, seja pelos hábitos ou pelas instituições.
Com relação aos primeiros, o choque é ainda mais nítido, muitas vezes pela diligência em
engrandecer Veneza e o Ocidente de modo geral. Quanto às instituições, permitem-se
ainda comparações com países europeus, como o caso da França e da interpretação que a
coloca próxima de um regime monárquico absoluto. De todo modo, é preciso ter claro que
a construção dos dois modelos aprofunda-se no tempo.
A Construção dos Mitos
Na obra de Maquiavel é comum que Veneza seja repetidas vezes comparada a exemplos
de repúblicas antigas, particularmente, gregas. A explicação reside no fato de que,
após a queda do império romano, aqueles que na costa do mar Adriático foram se
assentar, desejavam e tiveram a oportunidade de viver na ausência de príncipes. Com
isso, estabeleceram um autogoverno cujas leis serviam para a segurança e manutenção
próprias (Machiavelli, 2010: 61). A interpretação assevera uma determinada continuidade
entre o mundo antigo, tão debatido em seus textos, e o moderno (Pocock, 2003: 187).
Mesmo que a justificativa para tal sobrevivência não se mostre profícua, de fato, pouco se
explica, e, antes de uma simples janela para o passado, Veneza permanece intocada, desde
os primórdios de sua fundação.
A comparação mais candente é feita com Esparta (Machiavelli, 2010: 61 e 138; cf. Pocock,
2003: 197). Ambas eram cidades republicanas de viés fortemente aristocrático, com uma
nobreza bem estabelecida, uma inacreditável duração temporal e suas instituições se voltavam para a preservação, característica que as contrasta com Roma, que se voltava
para expansão de seus domínios. A estreiteza com que aproxima a cidade de seu tempo
com a grega antiga não parece casual. Reconhece aqui Maquiavel que seus vivere politico
(Machiavelli, 2010: 75) e vivere libero (Ibidem: 164 e 504) são atributos dos antigos.
Pressupõe-se, portanto, que a linha de continuidade de um período para outro se faz
pela centralidade da civilização. Ocorre um reconhecimento furtivo de que a instalação
da situação política, invenção grega, em Veneza, ainda na antiguidade, contrapõe-se às
outras regiões do mundo, pois, “a república veneziana, entre as repúblicas modernas, é a
excelente” (Ibidem: 136)4. Não obstante a preferência do florentino por Roma, o contraste
dos outros dois Estados apresenta a garantia de que a virtude dos antigos pode ser
revivida (Cambiano, 2000: 62), o que pode ser comprovado pela quase impossibilidade da
restauração do universo romano (Machiavelli, 2010: 543).
Em alguns momentos, sobretudo ao tratar de exemplos históricos, Maquiavel apresenta
as relações entre turcos e franceses, ora unidos estrategicamente, ora inimigos. O
interessante nesse entrelaço, contudo, é que a forma monárquica do governo francês
oblitera, em larga medida, a possibilidade de conexões profundas com o outro (Ibidem:
567). Mas é justamente a monarquia que oferece a oportunidade comparativa com
a Turquia. O quarto capítulo de O Príncipe dedica-se a este ponto. Abordando o tema
de como manter o governo em um principado que possui memória, ou seja, quando
a lembrança do príncipe virtuoso e conquistador ainda habita o imaginário público,
Maquiavel desenvolve dois modelos. A França é governada por um rei e seus barões,
determinados hereditariamente, os costumes são mantidos e respeitados, a memória
reside fundamentalmente entre os barões, que possuem status e súditos próprios.
Com isso, este país é mais fácil de ser conquistado e mais difícil de ser mantido. Do lado
oposto, a Turquia é governada por ministros, à escolha do monarca, os costumes estão
em constante mudança, por causa do arbítrio do rei, e todos os súditos compartilham da
memória a respeito do governo. Além disso, o fato de serem todos escravos (Idem, 1995:
30) revela um regime centralizado e profundamente autoritário, por isso, mais fácil de ser
mantido do que de ser conquistado.
Independentemente da veracidade histórica das observações, o fato é que a Turquia
causou uma impressão negativa no pensador de Florença. Mesmo que a França
esteja bastante distante de um modelo a ser seguido, ainda assim, possui aspectos
inquestionavelmente positivos. Dois são os fatores que levam a um trato parcimonioso nas
críticas à França. Primeiro, o país é parte da história greco-romana e divide com o resto
da Europa ocidental os usos e costumes e também as instituições políticas fundamentais.
Segundo, sua proximidade com os Estados italianos, principalmente Veneza, a colocam, via
de regra, em uma posição favoravelmente comparativa.
Mesmo para um autor como Maquiavel, cuja vertente realista jamais pode ser ignorada,
causa espanto o grau de arbitrariedade e a concentração de poder nas mãos do soberano
turco. Nem o país europeu que mais se assemelhasse à Turquia poderia ser colocado em
pé de igualdade.
Após argumentar, seguindo os últimos capítulos do primeiro discurso de Maquiavel, que a
igualdade é quesito necessário para a liberdade, no Dicorso di Logrogno, Guicciardini afirma
a necessidade simultânea de duas instituições. Desenvolvendo um modelo de equilíbrio
institucional é necessário que haja mutação em algumas ordens da magistratura, outras
precisam de continuidade. Nestas últimas “se vê nas coisas naturais que no número de
um [governante] há perfeição” (Guicciardini, 2000: 11)5. Limita este instrumento ao ocupante do cargo não poder ser um homem privado e, sendo vitalício ou por um período,
o gonfaloneiro deve possuir as características do Doge veneziano. Interessante que ele
destaque não o aspecto aristocrático da constituição veneziana, como é bastante comum
entre os pensadores aqui estudados, mas o aspecto institucional daquela república mais
afeito à monarquia (Pocock, 2003: 118). Diferentemente de Maquiavel, Guicciardini
apresenta o recurso para a estabilização da cidade através da rotação dos conselhos. Além
disso, insere a limitação do poder do gonfaloneiro, de modo que este não se torne um
tirano. Esta mesma preocupação se encontra em Harrington, décadas à frente.
A perspectiva aristocrática com a qual Guicciardini encara seu próprio republicanismo,
tipicamente florentina, parece não coincidir com as grandes assembleias contrapostas
pelo gonfaloneiro (Cambiano, 2000: 94). Não obstante tal observação, o espaço da
aristocracia em sua república mista assenta-se nos dotes individuais e intransferíveis de
cada homem:
E algumas das coisas mais importantes para manter a liberdade de fato e completa é esta: que
haja um meio que regule a ignorância da multidão e ponha freio à ambição de um gonfaloneiro,
mas é necessário que intervenham todos os homens que possuem cérebro e reputação
(Guicciardini, 2000: 12-13) 6.
Não foi a comum visão aristocrática da república de Veneza que conquistou inicialmente
a confiança de Guicciardini, apenas a confirmou. A manutenção de seu aristocratismo
deve pouco àquela cidade. Por outro lado, um denominador comum ainda resiste: a
estabilidade. Dada a perene ameaça de unidade política entre o gonfaloneiro e povo,
já descrita por Maquiavel, cabe aos aristocratas o papel de contrabalança-la. O fato é
que Veneza passa a ser vista como uma república mista pelo equilíbrio entre o Doge e
a assembleia popular, reflexão presente desde o humanismo cívico de Leonardo Bruni
(Cambiano, 2000: 51). Na sequência do texto, contudo, complementa seu argumento
inicial e mostra o tradicional viés veneziano:
Assim se vê nas antigas repúblicas, em Roma, em Cartagena, em Atenas e Lacedemônia, neste
conselho, que eles mesmos chamavam de senado, que muitos interferiam; em Veneza são
duzentos ou os melhores, que eles chamam de Pregados, que é a mesma coisa; e é, como disse,
necessário e para conservação da liberdade, porque em um viver livre, mal poderiam os poucos
justificarem-se perante os muitos (Guicciardini, 2000: 25-26) 7
Como Maquiavel, a comparação com as cidades antigas é base do argumento de que
Veneza foi o que daquele tempo restou. Mas não insere o elemento estabilizador
do aristocratismo veneziano, e sim a liberdade (Pocock, 2003: 125-126), contrária à
permissividade do viver livre popular (Skinner, 1996: 175). Essa inflexão pode parecer
pequena se não se tivesse reconhecido anteriormente que o Doge é o sustentáculo da
estabilidade. De todo modo, o argumento pressupõe um compartilhamento valorativo do
regime misto para garantia da igualdade e liberdade, fundamentos da política ocidental.
Em livro dedicado exclusivamente à Veneza, Della repubblica e Magistrati di Venezia, Donato
Giannotti apresenta um suposto diálogo ocorrido naquela cidade sobre suas instituições
e costumes. Como era tradicional em fins do século XVI, compara-a com a Lacedemônia
e Roma antigas e também deixa subentendido que ela era o que restara da virtude do
passado (Giannotti, 1840: 258). Após traçar a conhecida distinção da história italiana entre
a exuberância da república romana e o que prosseguiu depois de sua queda com a invasão
dos bárbaros (cf. Pocock, 2003: 277), Giannotti coloca essa segunda fase indistintamente
próxima ao Oriente moderno (Gianotti, 1840: 263). A clareza de sua exposição marca não apenas a divisão binária do mundo, antes mesmo da queda de Roma, mas também a
contiguidade entre barbárie e Oriente, na modernidade, existente também na Europa.
Diante de tão generalizada corrupção, apenas Veneza resistiu: “a minha república não é
corrupta, antes (se eu não me engano) é a mais perfeita de todos os tempos” (Ibidem: 264)8.
Com isso, segue o argumento já posto anteriormente de uma cidade temperada pelas leis,
tranquila e sem sedições (Ibidem: 264): “De modo que eu me alegro de ter sido produzida
pela própria natureza, principalmente em Itália, rainha de todas as outras províncias, a
cidade de Veneza, na qual eu vejo aquelas virtudes das quais dos antigos romanos e gregos
se lêem e se louvam” (Ibidem: 264-265)9. Independentemente do elogio a Veneza, existem
referências cruzadas no tempo (antigos e modernos) e no espaço (Oriente e Ocidente),
que impedem a corrupção da cidade, pois Veneza é herdeira dos antigos e expressão do
Ocidente. Mesmo que tal posição contenha uma significativa quantidade de mito, aquilo
que é bárbaro e oriental é, por assim dizer, estranho à Veneza (Pocock, 2003: 333). Pela
primeira vez, nessa tradição, coloca-se Veneza acima de quaisquer repúblicas antigas,
incluindo Roma e as gregas. Nessa perspectiva, de Maquiavel aos pensadores de fins do
século, ocorre um aprofundamento tanto do mito de Veneza, quanto da Turquia, o qual
deixará seu legado para o século seguinte na Inglaterra.
A extensão do uso que Harrington faz de Veneza extrapola, demasiadamente, o espaço
deste trabalho. Destacaremos apenas a parte central de nosso argumento. Os dois
períodos distintivos da história europeia, seguindo explicitamente Donato Giannotti,
são a prudência característica dos antigos e a dos modernos (Harrington, 1977: 161). O
primeiro se define por um governo pautado no império das leis (de jure), cuja dimensão
mista garante o interesse comum e a propriedade está distribuída de maneira equitativa
entre os cidadãos. O segundo é baseado no império dos homens (de facto), o governo é
puro e seu interesse é privado. Neste caso, o equilíbrio gótico (Gothick Balance) representa
a queda de Roma e a ascensão bárbara. Aqui reside um importante ponto de inflexão que
marcará os anos seguintes. O que comumente era feito pelos italianos, a comparação em
sua época de Veneza com outras regiões da contemporaneidade, agora está em função do
tempo (Cambiano, 2000: 231). A queda da república romana representa a mudança mais
substancial que o Ocidente já vivenciou.
Quando Maquiavel deixa nas entrelinhas que Veneza poderia ser a sobrevivência da
virtude dos antigos, Harrington o segue sem questionamentos e aprofunda a análise
(Pocock, 2003: 384). Tomando agora uma dimensão mítica, o que levou muitos intérpretes
a colocá-lo na tradição utópica, Veneza se transforma, em parte, em um modelo a ser
seguido (Manuel and Manuel, 1980: 361-366). Rejeitando o vocabulário maquiaveliano
da virtù, aristotelicamente substituído pela prudência, Harrington adota suas instituições
políticas mais importantes. A rotação (rotation) das casas legislativas e dos magistrados
da república de Oceana é, assumidamente, oriunda de Veneza. Comparada com outras
cidades antigas, como Maquiavel e Guicciardini também o fazem, Esparta e Roma são as
referências, tendendo, novamente, para maior proximidade com a primeira (Harrington,
1977: 182). A originalidade consiste na comparação equitativa de Veneza com a república
de Israel (Ibidem: 174-175). Permanece, contudo, a preocupação com o aristocratismo
veneziano, pois parecia-lhe uma solução contra a ruína (Pocock, 2003: 392-393). Diante
disso, Harrington pretende defendê-la do que, agora, se tornou uma acusação:
O mesmo pode ser dito de Veneza, de cujo governo comumente se equivocam; Veneza, embora
ela não se fixe totalmente no povo, jamais o excluiu. Essa república reside – as ordens são as
mais democráticas ou populares de todas, no que se refere à escrupulosa rotação do senado – na
primeira instituição tomada para todo o povo. (Harrington, 1977: 168) 10
Em seguida, afirma, mais como complemento explicativo do que como discordância de
Maquiavel, que Veneza, não obstante sua vocação para preservação (Ibidem: 181), possui
alguns domínios externos. Estes representam, antes de um imperialismo, um modo de
governar que propicia cidadania às regiões ocupadas, o que a aproxima do modelo mais
completo: Roma.
A perfectibilidade das eleições venezianas traduz dois importantes aspectos. Sendo,
reconhecidamente, as eleições um critério aristocrático de escolha, necessário à
composição da república mista, seria Veneza a mais democrática das repúblicas apenas
porque incorpora a totalidade de seus cidadãos. Distancia-se Harrington, pois, dos
critérios tipológicos gregos na medida em que admite uma inflexão conceitual entre os
modernos. Por outro lado, sua defesa da aristocracia não se vincula ao ideal veneziano.
Enquadra-se, entretanto, na natureza e não em exemplos. A aristocracia natural (natural
aristocracy) é um conceito que admite tão somente a diversidade humana como exclusivo
atributo da natureza. Tal reconhecimento leva a crer que uns estão mais aptos a debater
e propor as leis do mesmo modo que outros estão mais aptos para votá-las e decidi-las.
Esta ideia será posteriormente seguida por Montesquieu, quando assevera que o povo
sabe escolher governantes, mas não governar. O aristocratismo de Harrington depende
das eleições, da natureza humana e, apenas indiretamente, das instituições de Veneza.
Colocá-la como exceção significa dizer que suas instituições revolucionaram o passado,
mas para manter sua prudência. Por isso, Veneza é parte da mesma história, a melhor parte
da história do Ocidente.
Do mesmo modo que Veneza representa, na modernidade, a prudência antiga (Cambiano,
2000: 244), a Turquia mantém a continuidade da selvageria bárbara da ocupação romana.
Com o devido destaque para os godos, Harrington equipara os turcos àqueles que foram
responsáveis pelo fim da prudência antiga. Seguindo, em parte, o que Maquiavel já havia
dito, a Turquia é um regime absoluto, cujos súditos são todos escravos. O equilíbrio
gótico reflete, e esta é uma importante originalidade de Harrington, os modos pelos
quais a propriedade se distribui (Pocock, 2003: 387). Concentrado nas mãos de um
homem, o regime não pode ser senão uma monarquia absoluta. Quando a concentração
se torna exacerbada, até mesmo as pessoas se tornam propriedades, nada mais radical e
profundamente desolador do que o exemplo turco.
Se um único homem é proprietário de um território, ou se ele sobre-equilibra [a propriedade]
em relação ao povo, por exemplo, com três partes de quatro, ele é um grande senhor, e assim
seja reconhecido o turco por sua propriedade; e seu império é uma monarquia absoluta.
(Harrington, 1977: 163) 11
Na verdade, observando o texto atentamente, percebe-se que o equilíbrio gótico
expressa-se em sua superestrutura como uma monarquia mista, ou, o que é equivalente,
uma aristocracia. A história do Ocidente não conhece qualquer monarquia absoluta,
apenas monarquias mistas, pois a concentração da propriedade jamais atingiu um nível
tamanho que todos se tornassem escravos, mas apenas servos. Refletindo sobre o antigo
regime, Harrington atribui-lhe o caráter gótico. Todavia, as características explicativas
das duas formas de monarquia, absoluta e mista, são as mesmas, variam apenas em grau.
Com graduações distintas, a Espanha e a Polônia se diferenciam da Turquia porque esta
levou a concentração de propriedade ao nível máximo (Ibidem: 164). Não variando em
sua essência, o regime turco não se destaca do da Espanha ou do da Polônia. Por que,
então, a Turquia não é dita equilíbrio gótico? Justamente porque não é parte da história ocidental. O espanto e o receio de equivaler o pior dos regimes conhecidos com legítimos
representantes modernos da civilização levou Harrington a criar um artifício distintivo
que, por suas próprias palavras, variam apenas em grau. “Portanto, como na Turquia
é ilegal que qualquer um possua terras, apenas o grão senhor possui, o equilíbrio é
fixado pela lei e o império permanece seguro” (Ibidem: 164)12. Harrington não admite
compartilhar qualquer característica de sua cultura com a do Oriente. Por isso, ao contraargumentar Hobbes, utilizando Giannotti, sobre a perfeição da monarquia, revela que
apenas a Turquia é perfeitamente monárquica, um governo, em si mesmo, imperfeito, por
ter se mantido puro (Ibidem: 179),
e ela se manteve pura e a dos outros, mista, o que ocorreu não pela sabedoria dos legisladores,
mas pelo gênio das nações, que eram diferentes, pois o povo, nos países orientais, com exceção dos
israelitas [...], foi tal que nunca conheceram outra condição que não a escravidão, e os do Ocidente
tiveram tal gozo da liberdade que não havia modo de crer que jamais se submeteriam quietos ao
jugo posto sobre seus pescoços sem alimentar certa esperança de conservar para si alguma parte
de sua liberdade. (Ibidem: 188-189) 13
Salvo Israel, parte inquestionável da tradição ocidental, o Oriente é todo escravo.
A Decadência dos Mitos
Mesmo com o declínio econômico da cidade de Veneza já em fins do século XVII e a
consequente perda de importantes territórios para o Império Otomano em começos
do século seguinte, o mito ainda resistiu algumas décadas. A histórica rivalidade entre
turcos e venezianos chegara ao ponto máximo durante o último conflito armado (1714-
1718). Com isso, o esplendor e a grandeza da cidade passaram a ser questionados e,
mais importante, a oposição veneziano-turca consolidou-se. O questionamento do mito
se deu pari passu à construção de seu correlato opositor. Mesmo diante de tamanho
enfraquecimento, a estrutura aristocrática sobreviveu ainda por gerações, motivo de tão
demorado definhamento do mito. “Pelo fim deste período, o caminho estava aberto para
as grandes contribuições controversas de Montesquieu e Hume” (Pocock, 2003: 427).
Não obstante a geografia do país de Montesquieu não ser indispensável ao cenário
florentino-atlântico republicano, sua admiração pela constituição inglesa e sua enorme
recepção no novo mundo colocou-o em uma posição de destaque. Inclui-se ainda as
importantes referências ao republicanismo, a Maquiavel, a Guicciardini, a Giannotti e
ainda sua recepção de Harrington (Ibidem: 463). Mas, outro ponto de destaque é a sua
original crítica ao direito natural, fundamento de ter sido diversas vezes interpretado
como um dos fundadores da sociologia. As inúmeras referências tanto à Veneza, quanto à
Turquia obrigam a inseri-lo neste trabalho.
Montesquieu retoma o paradigma comparativo de Veneza com Roma antiga justamente na
descrição da natureza da aristocracia, nos moldes precisos da tradição florentino-atlântica.
A partir de seu método comparativo, questiona, em Do Espírito das Leis, a diferença nas
instituições de cada país no que tange às funções aristocráticas: “É que Roma defendia
os restos de sua aristocracia contra o povo; ao passo que Veneza se utilizava de seus
inquisidores de Estado para manter sua aristocracia contra os nobres” (Montesquieu, 1949ª:
245)14. A herança interpretativa de um regime misto romano conferia à ditadura apenas
poderes limitados e temporários, caso que não ocorria entre os magistrados venezianos
(Cambiano, 2000: 263). Desse modo, a sereníssima república era o exemplo culminante
e perfeitamente acabado de aristocracia. Ao comentar este regime puro, Montesquieu não deixa de acrescentar características necessárias ao seu bom funcionamento. Assim,
diferentemente de outros autores, a república é o regime onde o povo, ou parte dele,
governa, sendo, no primeiro caso, uma democracia e, no segundo, uma aristocracia, cujos
princípios são a igualdade e a moderação, respectivamente. O que confere unidade,
entretanto, às repúblicas é o fato de ser o princípio que coaduna igualdade e moderação: a
virtude. Dividem ainda as repúblicas com as monarquias, o que as diferenciam do despotismo,
o fato de serem governadas por leis. Os quesitos aqui arrolados são parte da tradição
republicana, embora mais ou menos afeitos a cada autor da tradição.
A defesa de Veneza de qualquer vínculo despótico, não obstante o fato de seu regime não
ser perfeitamente misto, reside, pois, na moderação dos costumes e no império das leis
(Montesquieu, 1949ª: 284-286). Nesse sentido, as leis cumprem com o papel atribuído
anteriormente à mistura de poderes, ou seja, a obliteração da selvageria do mais ignorante
dos povos, a Turquia (Ibidem: 309), selvageria esta, uma característica despótica (Ibidem:
292). Mas, além disso, uma aristocracia bem constituída deve, como Veneza, limitar a
luxúria dos nobres em razão de manter-se o espírito de moderação (Ibidem: 334-335). De
modo geral, os costumes e as leis aristocráticas unem-se para impedir que o regime decaia
em despotismo. A partir desses parâmetros, descritos nos dez primeiros livros de Do
Espírito das Leis, Montesquieu vê-se confrontado à comparação com o Oriente:
Creio completamente que a pura aristocracia hereditária das repúblicas da Itália não corresponde
precisamente ao despotismo da Ásia. A multidão de magistrados por vezes suaviza a magistratura,
nem todos os nobres concorrem sempre para os mesmos desígnios; formam diversos tribunais que
se temperam. Assim, em Veneza, o grande conselho é responsável pela legislação, os pregados pela
execução, os quarenta pelo poder de julgar (Ibidem: 398) 15.
Como é comum em sua obra, o presidente de la Brède recorre aos seus diários de viagens
e textos de aventureiros para interpretar os países longínquos. À medida que se afasta da
Europa e, mais especificamente ainda, da ilha britânica, em direção ao Oriente, percebese uma tendência à selvageria desregrada: “Cada príncipe da família real tem a mesma
capacidade para ser escolhido, ocorre que aquele que sobe ao trono ordena estrangular
seus irmãos, como na Turquia, ou ordena cegá-los, como na Pérsia, ou os tornam loucos,
como na Mongólia” (Ibidem: 296)16. Com raras exceções, é bem verdade, a China é o
exemplo máximo do despotismo que se inicia na fronteira da Europa com a Turquia. O
etnocentrismo de Montesquieu percorre não apenas os antigos inimigos dos gregos e
romanos, mas, já numa época de largas descobertas geográficas, coloca os paraguaios
em uma situação deplorável (Ibidem: 268-269) e não reconhece a existência de alma nos
negros africanos (Ibidem: 494).
O que fica desse profundo eurocentrismo, no entanto, ainda é o paradigma da Turquia
como o correlato negativo de Veneza. Pois, “na Turquia, o príncipe se contenta em tomar
ordinariamente três por cento das heranças das pessoas do povo” (Ibidem: 295)17. A
descrição que se segue é quase uma reprodução do argumento de Harrington sobre o
equilíbrio entre propriedade e poder político, cujo despotismo (ou tirania) ocorre nas regiões
onde o déspota (ou tirano) possui uma propriedade tal que tudo domina, não apenas pelo
fato da inexistência da distinção entre público e privado, mas, sobretudo, porque o comando
político se dá em função de controlar os recursos produtivos e a capacidade de taxar os
súditos. Com isso, compreende-se a diferença básica entre monarquia e despotismo, França
e Turquia respectivamente. Por fim, em uma de suas cartas persas, mesmo que a ironia de
Usbek carregue algum relativismo, parece confirmar sua posição de europeu:
Por outro lado, não vejo que a polícia, a justiça e a igualdade são mais bem observadas na Turquia,
na Pérsia, entre os mongóis, do que nas repúblicas da Holanda, de Veneza e mesmo da Inglaterra,
nem que se cometam menos crimes, ou que, intimidados pela profundidade dos castigos, os
homens obedecem melhor às leis. (Idem, 1949b: 253) 18
Nas entrelinhas, Montesquieu deixa indicada a contraposição entre as duas partes do
mundo, e que a antiga Roma republicana era a oposição lógica aos bárbaros. Como o
tempo das repúblicas já passou, restou a memória da cidade eterna e de Veneza; do lado
bárbaro, nada mais representativo do que a Turquia.
O ensaio Que a política pode ser reduzida a uma ciência foi primeiramente publicado em
1741 e Ideia de uma república perfeita, em 1752. É bastante provável que a primeira edição
de Do Espírito das Leis, de 1748, tenha chegado até David Hume e alterado, de algum modo,
o curso de alguns de seus ensaios políticos. No primeiro momento, ataca Roma por não
restringir a soberania popular aos seus representantes. De maneira alternativa, quando
é a nobreza que está inserida no poder legislativo soberano, ocorre pelo consentimento
de todos, caso de Veneza, ou por hereditariedade, caso da Polônia. Hume conclui, então,
pela tripartição de inspiração harringtoniana (Pocock, 2003: 493): príncipe como chefe
do executivo, nobreza sem vassalos19 e o povo elegendo seus representantes. Como em
Montesquieu, tais paradigmas são exclusividades ocidentais (Hume, 2006: 20). Aliás, o
marco ocidental não mais pode ser restrito aos aspectos temporais, tão importantes para
os italianos e Harrington.
Onde algum acidente, como uma diferença na linguagem ou religião, impede que duas nações
separadas de um mesmo país se misturem uma com a outra, elas preservarão, durantes muitos
séculos, hábitos diferentes e mesmo opostos. A integridade, gravidade e bravura dos turcos
formam um contraste exato com a falsidade, leviandade e covardia dos gregos modernos.
(Ibidem: 210) 20
A decadência mítica de Veneza enseja algum grau de tolerância com relação aos turcos
(Ibidem: 216), uma vez que não vivem em condições bárbaras (Ibidem: 442). A comparação
mais fecunda, entretanto, reside ainda entre a Veneza moderna e as repúblicas antigas.
Já distante do ápice mítico do século anterior, Hume insere na sereníssima república um
aprendizado jurídico. Ao bom estilo maquiaveliano, sólido e conclusivo (Ibidem: 21)21, e
sabendo que todos os homens devem ser tratados como velhacos, o escocês observa nas
jurisdições venezianas a capacidade de moldar os interesses particulares em função de
positivos resultados públicos (Pocock, 2003: 472). “Podemos atribuir a estabilidade e
sabedoria do governo veneziano, através de tantas eras, a alguma coisa que não a forma do
governo?” (Hume, 2006: 22)22.
Já no ensaio publicado pela primeira vez em 1752 a coisa muda de figura. Sintetizando
as utopias com Platão e Morus, admite que apenas o modelo de Harrington é aceitável,
mesmo que apresente importantes defeitos (Ibidem: 500-501). A justificativa para as
críticas é de que as teorias não podem ser aplicadas na prática, embora o raciocínio interno
seja perfeitamente coerente. Depois de breves referências a Veneza, o modelo passa a
ser a Holanda (Wootton, 1994: 351), porque, este sim, é praticável (Hume, 2006: 512).
É provável que a reticente observação de Montesquieu sobre a capacidade de Veneza
manter a moderação tenha inserido em Hume uma desconfiança de fundo. Deslocando os
comentários de um regime idealizado para um que, agora, considera praticável, o escritor
escocês transfere o mito veneziano para o imperativo de necessidades práticas, fato que
chegará com força ao novo mundo.
As ideias republicanas oriundas do republicanismo cívico e da inflexão maquiaveliana se
disseminaram na América juntamente com a contribuição do direito natural de Locke e
Sidney e, por isso, tornaram a identificação autoral mais complexa. Além disso, a distância
histórica com o mito de Veneza e da Turquia construído na primeira modernidade já
havia um alto grau de dissipação entre as referências mais importantes na construção
republicana. Implica ainda o fato de a centralidade dos termos pesquisados por aqueles
que propunham uma república no novo mundo incidirem fundamentalmente em exemplos
que não condiziam com as instituições venezianas, e nem o temor da selvageria turca
habitava tanto as mentes daqueles homens. Com a perspectiva de uma república em um
país de grande extensão, marcante originalidade daquele momento, apenas os regimes
imperialistas ou formados em ligas e confederações poderiam oferecer subsídios aos
novos anseios.
Dentre aquilo que restou de Montesquieu para os americanos, a perspectiva da separação
do mundo em dois, o Ocidente e o resto, se destaca. Mas o Ocidente nunca foi tão
profundo como na América. Sustentando uma república em um grande país, Madison
argumenta que a única forma de governo compatível com a revolução é a republicana.
Justamente pelo reconhecimento de que nenhum autor anterior é suficiente para a
realização do feito a que se propõe, somente resta definir as características distintivas
da república por seus princípios. O título de república referia-se à “Veneza, onde o poder
absoluto sobre o grande corpo do povo é exercido do modo mais absoluto por um pequeno
número de nobres hereditários” (Madison, 1999e: 211)23. A herança do mito veneziano
não chegara à América no molde pelo qual se tornou profícuo no velho continente. Pelo
contrário, alguns de seus costumes políticos causavam até repulsas (Wood, 1998: 399).
O problema de Veneza é a hereditariedade, fundamento monárquico. A ambição de uma
proposta inteiramente nova não permite qualquer vínculo com instituições dessa natureza.
Nem a sobrevivência, nem as instituições políticas foram capazes de conquistar a confiança
de um dos autores dos Artigos Federalistas, mas sim sua mítica estabilidade, adaptada
às novas condições. Não obstante a rejeição do aristocratismo veneziano, Madison
identificou nela um dos dois elementos centrais nas casas legislativas de uma república.
Um dos sustentáculos do esquema de checks and balances, característica de qualquer
república bem ordenada, não apenas em grandes países, é a divisão entre senado e
assembleia (Madison, 1999e: 211). Aquilo que, na modernidade, se iniciara com Maquiavel,
agora assume outra função. O contrapeso da câmara alta à câmara baixa não apenas serve
para limitar os desejos infindos do povo, mas, agora, cumpre com a função federativa
(Madison, 1999e: 403), desconhecida em Veneza. Para que cada uma das unidades
federativas não fosse tiranizada ou tiranizasse as demais, algo de equitativo deveria estar
à disposição no momento da construção das leis (Wood, 1998: 525). Sem qualquer elogio
explícito, pois precisava marcar sua posição inovadora, Madison implicitamente admite
que um grau maior de responsabilidades, e portanto de poderes, ao senado é necessário
para a correção das disparidades entre os estados membros, lição veneziana.
Embora não ocupem lugar de destaque, os turcos são vistos à maneira do direito natural
britânico do século anterior, mas de modo inverso: “Uma das objeções da Nova Inglaterra
era que a Constituição, pela proibição de provas religiosas explícitas, abriu a porta para
judeus turcos e infiéis” (Madison, 1999ª: 420)24. Direcionada a Thomas Jefferson, esta
carta se inicia com uma ampla e inegociável defesa da liberdade de consciência e, portanto,
de religião (Wood, 1998: 504). O objeto em questão é se os termos constitucionais
recentemente desenvolvidos seriam suficientes para a garantia de tal direito (Ibidem: 410). A positiva e confiante resposta de Madison considera o erro da Nova Inglaterra. De
modo inovador na tradição florentino-atlântica, a religiosidade de fora da Europa não é um
problema, mas “o déspota de Constantinopla, que não se atreve a instituir novos impostos,
porque todo escravo acha que ele não pode” (Madison, 1999b: 503)25, sim. A inovação com
o trato da Turquia é simplesmente porque existem limites à ação do déspota, não impostos
por leis ou por qualquer esquema de checks and balances, mas sim pela incapacidade
objetiva de fazer o que lhe aprouver. Novamente, os turcos, com exceção dos déspotas, são
todos escravos. Seu etnocentrismo chega ao sarcasmo: “Um magistrado questionando seus
mandatos a uma imprensa criminosa seria, em suas próprias funções, como se na Turquia
ou no Industão, sob proverbiais apelações, se questionasse o mais completo despotismo”
(Idem, 1999c: 516)26.
Não nega Hamilton que sua inspiração primeira para a construção de um banco nacional
sejam os poderes credores e os arrendatários venezianos (Hamilton, 1986ª: 83). Sua
constante preocupação com a União, somada à sua avaliação de que os empréstimos
interpessoais não eram suficientes, e por isso a moeda vinha se desvalorizando, sustenta
o argumento, polêmico à época, de que era necessário um banco nacional (Wood,
1998: 497). Nesse sentido, não é o sistema político ou o mito da sereníssima república
que importava, mas o desenvolvimento financeiro. A vocação daquela cidade não era,
evidentemente, para expansão. Reproduz-se aqui o argumento harringtoniano de que o
equilíbrio entre riqueza e poder político incide sobre duas formas diversas: o dinheiro e a
terra. Pequenos Estados, como Veneza, por não terem terras, concentram sua autoridade
nos recursos financeiros. A conclusão de Hamilton, assim, é de que aquela república não
percebeu sua vocação e, por isso, perdeu territórios:
Veneza, em tempos posteriores, figurava mais de uma vez em guerras de ambição, e, tornandose objeto de terror de outros Estados italianos, o Papa Júlio II encontrou meios de realizar
aquela liga formidável, que feriu mortalmente o poder e o orgulho daquela arrogante república
(Hamilton, 1984b: 179)27.
Entretanto, uma questão de fundo se coloca, pois o argumento de Harrington é seguido
apenas parcialmente. A defesa de Hamilton de que a república deve conter organismos
financeiros fortes, como garantia de unidade e soberania, passa pela interpretação
harringtoniana do equilíbrio sustentado no dinheiro. Ora, se em uma república grande
o poder político se vincula à concentração de terras, não seria o caso americano que
necessitaria de órgãos financeiros. Mas a posição de Hamilton, fundada em Veneza, é de
que a soberania do país está diretamente relacionada com a riqueza financeira. Ignora,
assim, a avaliação territorial de Harrington e, pela defesa do banco estatal, condiciona a
soberania do Estado, isto é, na União (Parrington, 1987: 293). Para ele, o erro cometido
por Veneza não pode ser repetido na América.
Conclusão
Desde os primeiros escritos acerca de Veneza, observa-se a perspectiva de que a cidade
se contrapunha àquilo que se conhecia do Oriente. No entanto, o aprofundamento da
dimensão mítica, de uma suposta era dourada, colocou a cidade em um patamar de maior
destaque no mundo ocidental. O aristocratismo daquela cidade não foi o único motivo de
elogios. Antes disso, a estabilidade política, por vezes interpretada como consequência
de tal aristocratismo, era a referência central. Em um universo ainda em consolidação dos
Estados nacionais, a estabilidade era tema obrigatório. É perceptível, portanto, o motivo
pelo qual tal assertiva foi legada a segundo plano na medida em que os autores do século das luzes se viram confrontados com conceitos e instituições significativamente bem
estabelecidos. Veneza, então, ganha nova interpretação e seus organismos institucionais
passam a ser confrontados com usos e costumes. Nesse sentido, a tradição florentinoatlântica não abandonou o elogio à sereníssima república, mas, modificou aquilo que a
tornava exemplo.
Em sentido mais amplo e, claramente, mais afeito a interpretações sociológicas e menos
institucionais, a Turquia nunca foi, voluntariamente, construída como um modelo a ser
rejeitado. Tornou-se assim justamente pelo aprofundamento da tensão entre Ocidente
e Oriente. Não era aquele Estado tratado como o mais repulsivo que se poderia existir,
mas, ao invés disso, como aquele de que se tinha algum contato dentre os mais repulsivos.
Porque perto, a Turquia precisava ser colocada em um lugar distante. A própria recusa
comum em classificar a Turquia com os critérios que regem os Estados ocidentais tornava
seu estudo mais afeito à sociologia. Quando não, taxava-o tão somente de despotismo ou
tirania. Percebe-se que, de modo geral, julga-se o regime turco, no melhor dos casos, como
o pior dos conhecidos entre os ocidentais, mas o fundamento explicativo recai
principalmente sobre usos e costumes.
O que se afigura na tradição florentino-atlântica pode ser definido como uma construção,
mais ou menos voluntária, do aprofundamento da cisão do mundo entre Ocidente e
Oriente. Em graus distintos de relativismo, quando há algum, raramente se aceita uma
comparação equitativa, tal procedimento é clara herança grega e romana. No contraste
entre civilização e barbárie, essa tradição legou ao mundo a interpretação de que apenas
no Ocidente é possível o republicanismo.
(Recebido para publicação em Abril de 2013)
(Aprovado para publicação em Outubro de 2013)
Cite este artigo
FALCÃO, Luís. Veneza e Turquia: Republicanismo e História. Revista
Estudos Políticos: a publicação eletrônica semestral do Laboratório de
Estudos Hum(e)anos da Universidade Federal Fluminense e do Núcleo
de Estudos em Teoria Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, nº 7, pp. 51 – 68, dezembro 2013. Disponível em:
http://revistaestudospoliticos.com/.
Notas
1. O trabalho será dividido em dois textos. O presente artigo é o
primeiro deles.
2. Evidentemente que o espaço de um artigo impossibilita um estudo
minucioso da proposta comparativa nos numerosos autores tratados na
volumosa obra. Desse modo, optaremos pelos pensadores mais destacados
ou afeitos ao contraste veneziano-turco, que, se estivermos corretos,
estão entre os mais representativos da tradição. Se, por um lado, alguns
pensadores de relevo em Pocock não serão aqui tratados ou aprofundados,
outros, por ele postos em segundo plano, mas que se dedicam ao tema,
merecerão maior atenção. The machiavellian moment abriu um vasto
campo de pesquisas que, com particularidades e distinções, confirmaram a tradição florentino-atlântica. Desse modo, não apenas a precursora obra
nos serve de guia, mas também outras subsequentes (Cambiano, 2000;
Rahe, 2006; Skinner, 1996; Sullivan, 2004).
3. A justaposição de maquiavelianismo e republicanismo na obra de Pocock
coloca em posição secundária autores devedores do direito natural, estes,
em parte, distanciam-se da perspectiva maquiaveliana (Sullivan, 2004: 8).
4. “la Republica viniziana, la quale intra le moderne republiche è
eccellente”. Todas as traduções dos autores em questão são nossas.
5. “si vede nelle cose naturale che el numero di uno ha perfezione”.
6. “E certo delle più importante cose a mantenere la libertà vera ed intera
è questa, che sia uno mezzo che regoli la ignoranzia della multitudine e
ponga freno alla ambizione di uno gonfaloniere, e però è necessario che vi
intervenga tutti li uomini che hanno cervello e reputazione”.
7. “Cosi si vede nelle antiche republiche, in Roma, in Cartagine, in Atene
e Lacedemonie, in questo consiglio che loro proprio chiamavano senato,
essere intervenuti molti; a Vinegia sono dugento o meglio quelli che e’
chiamono pregati, che è questo medesimo; ed è, come è detto, necessário
e per consevazione della liberta, e perché in uno vivere libero, male
potrebbono e’ pochi giustificare el tutto co’ molti”.
8. “la mia repubblica non è corrotta, anzi (se io non m’inganno) è più
perffetta ch’ella mai in alcun tempo fosse”. Ver Skinner, 1996, p. 183.
9. “Talchè io mi rallego assai d’esser stato prodotto dalla natura
principalmente in Itália regina di tutte l’altre provincie, dopo questo nella
città di Venezia, nella quale io veggo assai di quelle virtù le quali di queli
antichi Romani e Greci si leggono e lodano”.
10. “The like in some sort may be said of Venice, the government whereof
is usually mistaken; for Venice, though she do not take in the people,
never excluded them. This commonwealth, the orders whereof are the
most democratical or popular of all others, in regard of the exquisite
rotation of the senate, at the first institution took in the whole people”.
11. “If one man be sole landlord of a territory, or overbalance the people,
for example, three parts in four, he is grand signor, for so the Turk is called
from his property; and his empire is absolute monarchy”.
12. “Wherefore, it being unlawful in Turkey that any should possess land but
the grand signor, the balance is fixed by the law, and that empire firm”.
13. “and that this was pure, and the other mixed, happened not through
the wisdom of the lagislators, but the different genius of the nations,
the people of the eastern parts, except the Israelites (which is to be
attributed to their agrarian), having been such as scarce ever knew any
other condition than that of slavery; and these of the western having
ever had such a relish of liberty, as through waht despair could never be
brought to stand still while the yoke was putting on their necks, but by
being fed with some hopes of reserving unto themselves some part of
their freedom”.
14. “C’est que Rome défendoit les restes de son aristocratie contre
le peuple; au lieu que Venise se sert de sés inquisiteurs d’État pour
maintenir son aristocratie contre les nobles”.
15 “Je crois bien que la pure aristocratie héréditaire des republiques
d’Italie ne répond pas précisément au despotisme de l’Asie. La multitude
des magistrats au adoucit quelquefois la magistrature; tous les nobles
ne concourent pas toujours aux mêmes desseins; on y forme divers
tribunaux qui se tempèrent. Ainsi, à Venise, le grand conseil a la
législation; le prégadi, l’exécution; les quaranties, les pouvoir de juger”.
16. “Chaque prince de la famille royale ayant une égale capacite pour
être élu, il arrive que celui qui monte sur le trone, fait d’abord étrangler
sés frères, comme em Turquie; ou les fait aveugler, comme em Perse; ou
les rend fous, comme chez le Mongol”.
17. “en Turquie, le prince se contente ordinairement de prendre trois
pour cent sur les successions de gens du peuple”.
18. “D’ailleurs je ne vois pas que la police, la justice et l’équité soient
mieux observées en Turquie, en Perse, chez le Mongol, que dan
les republiques de Hollande, de Venise, et dans l’Anglaterre même;
je ne vois pas qu’on y commette moins de crimes, et que les hommes,
intimides par la grander des chântinents, y soient plus soumis
aux lois”.
19. Repare-se que o fato de a nobreza não possuir vassalos está
diretamente relacionado com o argumento de Harrington a respeito da
correlação entre propriedade e poder político.
20. “Where any accident, as a difference in language or religion, keeps
two nations, inhabiting the same country, from mixing with each
other, they will preserve, during several centuries, a distinct and even
opposite set of manners. The integrity, gravity, and bravery of the
Turks, form an exact contrast to the deceit, levity, and cowardice of the
modern Greeks”
21. “A venetian nobility is preferable to a polish, let the humors
and education of men be ever so much varied” (Hume, 2006: 15).
O mesmo argumento se encontra em Maquiavel (Discorsi, II, 2),
ao tratar dos antigos.
22. “Can we ascribe the stability and wisdom of the Venetian
government, throght so many ages, to any thing but the form of
government?”
23. “Venice, where absolute power over the great body of the people,
is exercised in the most absolute manner, but a small body of
hereditary nobles”.
24. “One of the objections of New England was that the Constitution by
prohibiting religious tests opened a door for Jews Turks & infidels”.
25. “the despot of Constantinople dares not lay a new tax, because every
slave thinks he ought not”.
26. “A magistrate issueing his warrants to a press gang, would be in his
proper functions in Turkey or Indostan, under appelations proverbial of
the most compleat despotism”.
27. “Venice in latter times figured more than once in wars of ambition;’till
becoming an object of terror to the other Italian States, Pope Julius the
Second found means to accomplish that formidable league, (I) which gave
a deadly blow to the power and pride of this haughty Republic”.
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***
***
A Sereníssima República, de Machado de Assis
Fonte:
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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A sereníssima República
(Conferência do cônego Vargas)
Meus senhores,
Antes de comunicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre para o nosso país,
deixai que vos agradeça a prontidão com que acudisses ao meu chamado. Sei que um
interesse superior vos trouxe aqui; mas não ignoro também, - e fora ingratidão ignorá-lo, -
que um pouco de simpatia pessoal se mistura à vossa legítima curiosidade científica. Oxalá
possa eu corresponder a ambas.
Minha descoberta não é recente; data do fim do ano de 1876. Não a divulguei então, - e, a
não ser o Globo, interessante diário desta capital, não a divulgaria ainda agora, - por uma
razão que achará fácil entrada no vosso espírito. Esta obra de que venho falar-vos, carece
de retoques últimos, de verificações e experiências complementares. Mas o Globo noticiou
que um sábio inglês descobriu a linguagem fônica dos insetos, e cita o estudo feito com as
moscas. Escrevi logo para a Europa e aguardo as respostas com ansiedade. Sendo certo,
porém, que pela navegação aérea, invento do padre Bartolomeu, é glorificado o nome
estrangeiro, enquanto o do nosso patrício mal se pode dizer lembrado dos seus naturais,
determinei evitar a sorte do insigne Voador, vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, à face do universo, que muito antes daquele sábio, e fora das ilhas britânicas, um
modesto naturalista descobriu coisa idêntica, e fez com ela obra superior.
Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Aristóteles, se lhe perguntasse:
Credes que se possa dar um regime social às aranhas? Aristóteles responderia
negativamente, com vós todos, porque é impossível crer que jamais se chegasse a organizar
socialmente esse articulado arisco, solitário, apenas disposto ao trabalho, e dificilmente ao
amor. Pois bem, esse impossível fi-lo eu.
Ouço um riso, no meio do sussurro de curiosidade. Senhores, cumpre vencer os
preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente porque não a conheceis. Amais o
cão, prezais o gato e a galinha, e não advertis que a aranha não pula nem ladra como o cão,
não mia como o gato, não cacareja como a galinha, não zune nem morde como o mosquito,
não nos leva o sangue e o sono como a pulga. Todos esses bichos são o modelo acabado da
vadiação e do parasitismo. A mesma formiga, tão gabada por certas qualidades boas, dá no
nosso açúcar e nas nossas plantações, e funda a sua propriedade roubando a alheia. A
aranha, senhores, não nos aflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia,
tece, trabalha e morre. Que melhor exemplo de paciência, de ordem, de previsão, de
respeito e de humanidade? Quanto aos seus talentos, não há duas opiniões. Desde Plínio até
Darwin, os naturalistas do mundo inteiro formam um só coro de admiração em torno desse
bichinho, cuja maravilhosa teia a vassoura inconsciente do vosso criado destrói em menos
de um minuto. Eu repetiria agora esses juízos, se me sobrasse tempo; a matéria, porém,
excede o prazo, sou constrangido a abreviá-la. Tenho-os aqui, não todos, mas quase todos;
tenho, entre eles, esta excelente monografia de Büchner, que com tanta subtileza estudou a
vida psíquica dos animais. Citando Darwin e Büchner, é claro que me restrinjo à
homenagem cabida a dois sábios de primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e as
minhas vestes o proclamam) as teorias gratuitas e errôneas do materialismo.
Sim, senhores, descobri uma espécie araneida que dispõe do uso da fala; coligi alguns,
depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar
dessa aranha maravilhosa apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão
colorida, dorso rubro, com listras azuis, transversais, tão rápida nos movimentos, e às vezes
tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia seguinte vieram mais três, e as quatro
tomaram posse de um recanto de minha chácara. Estudei-as longamente; achei-as
admiráveis. Nada, porém, se pode comparar ao pasmo que me causou a descoberta do
idioma araneida, uma língua, senhores, nada menos que uma língua rica e variada, com a
sua estrutura sintáxica, os seus verbos, conjugações, declinações, casos latinos e formas
onomatopaicas, uma língua que estou gramaticando para uso das academias, como o fiz
sumariamente para meu próprio uso. E fi-lo, notai bem, vencendo dificuldades aspérrimas
com uma paciência extraordinária. Vinte vezes desanimei; mas o amor da ciência dava-me
forças para arremeter a um trabalho que, hoje declaro, não chegaria a ser feito duas vezes
na vida do mesmo homem.
Guardo para outro recinto a descrição técnica do meu arácnide, e a análise da língua. O
objeto desta conferência é, como disse, ressalvar os direitos da ciência brasileira, por meio
de um protesto em tempo; e, isto feito, dizer-vos a parte em que reputo a minha obra
superior à do sábio de Inglaterra. Devo demonstrá-lo, e para este ponto chamo a vossa
atenção.
Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinqüenta e cinco; em
março de 1877 contava quatrocentas e noventa. Duas forças serviram principalmente à
empresa de as congregar: - o emprego da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi. A minha estatura, as vestes talares, o uso
do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraramme. E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e miudeza,
lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus
pecados, e fortaleceram-se ainda mais na prática das virtudes. A flauta também foi um
grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por música.
Não bastava associá-las; era preciso, dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha;
muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o
existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações que
poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma
outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado
do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto.
Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições gerais, com qualquer outro governo vivo,
cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo complicado, - o que era meter à prova as
aptidões políticas da jovem sociedade.
Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos eleitorais da antiga
Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado.
Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um
certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema
fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da paixão, os desazos
da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei;
tratando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco eleitoral era de
fácil adaptação, quase uma planta indígena.
A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçagante,
expansivo, próprio a engrandecer a obra popular.
Não direi, senhores, que a obra chegou à perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus
pupilos não são os solários de Campanela ou os utopistas de Morus; formam um povo
recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares. Nem o tempo é
operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais e melhor do que as teorias do
papel, válidas no papel e mancas na prática. O que posso afirmar-vos é que, não obstante as
incertezas da idade, eles caminham, dispondo de algumas virtudes, que presumo essenciais
à duração de um Estado. Uma delas, como já disse, é a perseverança, uma longa paciência
de Penélope, segundo vou mostrar-vos.
Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base da vida pública,
trataram de o exercer com a maior atenção. O fabrico do saco foi uma obra nacional. Era
um saco de cinco polegadas de altura e três de largura, tecido com os melhores fios, obra
sólida e espessa. Para compô-lo foram aclamadas dez damas principais, que receberam o
título de mães da república, além de outros privilégios e foros. Uma obra-prima, podeis crêlo. O processo eleitoral é simples. As bolas recebem os nomes dos candidatos, que
provarem certas condições, e são escritas por um oficial público, denominado "das
inscrições". No dia da eleição, as bolas são metidas no saco e tiradas pelo oficial das
extrações, até perfazer o número dos elegendos. Isto que era um simples processo inicial na
antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos os cargos.
A eleição fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores
declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo
candidato. A assembléia verificou a exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de
três polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco, restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la. Aconteceu, porém, que na eleição
seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não se sabe se por
descuido ou intenção do oficial público. Este declarou que não se lembrava de ter visto o
ilustre candidato, mas acrescentou nobremente que não era impossível que ele lhe tivesse
dado o nome; neste caso não houve exclusão, mas distração. A assembléia, diante de um
fenômeno psicológico inelutável, como é a distração, não pôde castigar o oficial; mas,
considerando que a estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões odiosas, revogou a lei
anterior e restaurou as três polegadas.
Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e três cidadãos apresentaram-se
candidatos ao posto, mas só dois importantes, Hazeroth e Magog, os próprios chefes do
partido retilíneo e do partido curvilíneo. Devo explicar-vos estas denominações. Como eles
são principalmente geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem que a
aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; - outros pensam, ao
contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, - é o partido curvilíneo. Há
ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado: - as teias devem ser urdidas
de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão
política, o partido anti-reto-curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e
propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de
espécie alguma. Como a geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar a apaixoná-los,
adotaram uma simbólica. Para uns, a linha reta exprime os bons sentimentos, a justiça, a
probidade, a inteireza, a constância, etc., ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores,
como a bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfídia, são perfeitamente curvos. Os
adversários respondem que não, que a linha curva é a da virtude e do saber, porque é a
expressão da modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a
parlapatice, são retas, duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso, menos
exclusivista, desbastou a exageração de uns e outros, combinou os contrastes, e proclamou
a simultaneidade das linhas como a exata cópia do mundo físico e moral. O quarto limita-se
a negar tudo.
Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas saíram do saco, é verdade, mas
foram inutilizadas, a do primeiro por faltar a primeira letra do nome, a do segundo por lhe
faltar a última. O nome restante e triunfante era o de um argentário ambicioso, político
obscuro, que subiu logo à poltrona ducal, com espanto geral da república. Mas os vencidos
não se contentaram de dormir sobre os louros do vencedor; requereram uma devassa. A
devassa mostrou que o oficial das inscrições intencionalmente viciara a ortografia de seus
nomes. O oficial confessou o defeito e a intenção; mas explicou-os dizendo que se tratava
de uma simples elipse; delito, se o era, puramente literário. Não sendo possível perseguir
ninguém por defeitos de ortografia ou figuras de retórica, pareceu acertado rever a lei.
Nesse mesmo dia ficou decretado que o saco seria feito de um tecido de malhas, através das
quais as bolas pudessem ser lidas pelo público, e, ipso facto, pelos mesmos candidatos, que
assim teriam tempo de corrigir as inscrições.
Infelizmente, senhores, o comentário da lei é a eterna malícia. A mesma porta aberta à
lealdade serviu à astúcia de um certo Nabiga, que se conchavou com o oficial das
extrações, para haver um lugar na assembléia. A vaga era uma, os candidatos três; o oficial
extraiu as bolas com os olhos no cúmplice, que só deixou de abanar negativamente a
cabeça, quando a bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para condenar a idéia das
malhas. A assembléia, com exemplar paciência, restaurou o tecido espesso do regime
anterior; mas, para evitar outras elipses, decretou a validação das bolas cuja inscrição estivesse incorreta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome inscrito o próprio nome
do candidato.
Este novo estatuto deu lugar a um caso novo e imprevisto, como ides ver. Tratou-se de
eleger um coletor de espórtulas, funcionário encarregado de cobrar as rendas públicas, sob
a forma de espórtulas voluntárias. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um
certo Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe faltar a
última letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos termos da lei, que o eleito era o próprio e
único Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando o candidato Caneca requereu
provar que a bola extraída não trazia o nome de Nebraska, mas o dele. O juiz de paz deferiu
ao peticionário. Veio então um grande filólogo, - talvez o primeiro da república, além de
bom metafísico, e não vulgar matemático, - o qual provou a coisa nestes termos:
- Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que não é fortuita a ausência da última letra do
nome Nebraska. Por que motivo foi ele inscrito incompletamente? Não se pode dizer que
por fadiga ou amor da brevidade, pois só falta a última letra, um simples a. Carência de
espaço? Também não; vede: há ainda espaço para duas ou três sílabas. Logo, a falta é
intencional, e a intenção não pode ser outra, senão chamar a atenção do leitor para a letra k,
última escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um efeito mental, que nenhuma
lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois modos, a forma gráfica e a forma sônica:
k e ca. O defeito, pois, no nome escrito, chamando os olhos para a letra final, incrusta desde
logo no cérebro, esta primeira sílaba: Ca. Isto posto, o movimento natural do espírito é ler o
nome todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome Nebrask. - Cané. - Resta a sílaba do
meio, bras, cuja redução a esta outra sílaba ca, última do nome Caneca, é a coisa mais
demonstrável do mundo. E, todavia, não a demonstrarei, visto faltar-vos o preparo
necessário ao entendimento da significação espiritual ou filosófica da sílaba, suas origens e
efeitos, fases, modificações, conseqüências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas,
simbólicas e outras. Mas, suposta a demonstração, aí fica a última prova, evidente, clara, da
minha afirmação primeira pela anexação da sílaba ca às duas Cane, dando este nome
Caneca.
A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova testemunhal e
interpretativa dos textos, e introduzindo-se uma inovação, o corte simultâneo de meia
polegada na altura e outra meia na largura do saco. Esta emenda não evitou um pequeno
abuso na eleição dos alcaides, e o saco foi restituído às dimensões primitivas, dando-se-lhe,
todavia, a forma triangular. Compreendeis que esta forma trazia consigo, uma
conseqüência: ficavam muitas bolas no fundo. Daí a mudança para a forma cilíndrica; mais
tarde deu-se-lhe o aspecto de uma ampulheta, cujo inconveniente se reconheceu ser igual ao
triângulo, e então adotou-se a forma de um crescente, etc. Muitos abusos, descuidos e
lacunas tendem a desaparecer, e o restante terá igual destino, não inteiramente, decerto,
pois a perfeição não é deste mundo, mas na medida e nos termos do conselho de um dos
mais circunspectos cidadãos da minha república, Erasmus, cujo último discurso sinto não
poder dar-vos integralmente. Encarregado de notificar a última resolução legislativa às dez
damas incumbidas de urdir o saco eleitoral, Erasmus contou-lhes a fábula de Penélope, que
fazia e desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulisses.
- Vós sois a Penélope da nossa república, disse ele ao terminar; tendes a mesma castidade,
paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses,
cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência.
FIM
*** *** http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000239.pdf *** ***
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