Quem Conta Um Conto
Adaptação do conto "Quem conta
um conto" - Machado de Assis
Primeira apresentação do Espetáculo Quem Conta Um conto do Grupo de Teatro 5°Cia no
Festa 50 - Festival Santista de Teatro Amador .
Este conto machadiano relata a complicada e divertida situação de um noveleiro (fofoqueiro) que se dá mal pelas fofocas espalhadas. Eis que certo dia Luis da Costa conta a um grupo de pessoas a notícia desconcertante de que a sobrinha do Major Gouveia havia fugido com com um alferes.
No grupo de ouvintes, encontra-se um desconhecido especialmente atento à história contada, pois era ninguém menos que o próprio Major Gouveia, tio da sobrinha que protagonizava a notícia de Luís da Silva, o noveleiro.
Aborrecido com o falso boato de Luís da Silva, o Major exige-lhe a revelação da pessoa que lhe contara tal despropósito. Após hesitar, e com muito custo Luís da Silva o leva ao Senhor Pires, que o leva ao bacharel Plácido, que o leva ao capitão Soares, que o leva ao desembargador Lucas que o leva......até o primeiro culpado gerador do boato.
Primeira apresentação do Espetáculo Quem Conta Um conto do Grupo de Teatro 5°Cia no
Festa 50 - Festival Santista de Teatro Amador .
Este conto machadiano relata a complicada e divertida situação de um noveleiro (fofoqueiro) que se dá mal pelas fofocas espalhadas. Eis que certo dia Luis da Costa conta a um grupo de pessoas a notícia desconcertante de que a sobrinha do Major Gouveia havia fugido com com um alferes.
No grupo de ouvintes, encontra-se um desconhecido especialmente atento à história contada, pois era ninguém menos que o próprio Major Gouveia, tio da sobrinha que protagonizava a notícia de Luís da Silva, o noveleiro.
Aborrecido com o falso boato de Luís da Silva, o Major exige-lhe a revelação da pessoa que lhe contara tal despropósito. Após hesitar, e com muito custo Luís da Silva o leva ao Senhor Pires, que o leva ao bacharel Plácido, que o leva ao capitão Soares, que o leva ao desembargador Lucas que o leva......até o primeiro culpado gerador do boato.
Quem conta um conto
Machado de Assis
Capítulo I
Eu compreendo que um homem goste de ver brigar galos ou de
tomar rapé. O rapé dizem os tomistas[1] que alivia o cérebro. A briga de galos
é o Jockey Club dos pobres. O que eu não compreendo é o gosto de dar notícias.
E todavia quantas pessoas não conhecerá o leitor com essa
singular vocação? O noveleiro[2] não é tipo muito vulgar, mas também não é
muito raro. Há família numerosa deles. São mais peritos e originais que outros.
Não é noveleiro quem quer. É ofício que exige certas qualidades de bom cunho,
quero dizer as mesmas que se exigem do homem de Estado. O noveleiro deve saber
quando lhe convém dar uma notícia abruptamente, ou quando o efeito lhe pede
certos preparativos: deve esperar a ocasião e adaptar-lhe os meios.
Não compreendo, como disse, o ofício de noveleiro. É coisa
muito natural que um homem diga o que sabe a respeito de algum objeto; mas que
tire satisfação disso, lá me custa a entender. Mais de uma vez tenho querido
fazer indagações a este respeito; mas a certeza de que nenhum noveleiro confessa
que o é, tem impedido a realização deste meu desejo. Não é só desejo, é também
necessidade; ganha-se sempre em conhecer os caprichos do espírito humano.
O caso de que vou falar aos leitores tem por origem um
noveleiro. Lê-se depressa, porque não é grande.
Capítulo II
Há coisa de sete anos, vivia nesta boa cidade um homem de
seus trinta anos, bem apessoado e bem falante, amigo de conversar, extremamente
polido, mas extremamente amigo de espalhar novas.
Era um modelo do gênero.
Sabia como ninguém escolher o auditório, a ocasião e a
maneira de dar a notícia. Não sacava a notícia da algibeira como quem tira uma
moeda de vintém para dar a um mendigo. Não, senhor.
Atendia mais que tudo às circunstâncias. Por exemplo: ouvira
dizer, ou sabia positivamente que o Ministério[1] pedira demissão ou ia
pedi-la. Qualquer noveleiro diria simplesmente a coisa sem rodeios. Luís da
Costa, ou dizia a coisa simplesmente, ou adicionava-lhe certo molho para
torná-la mais picante.
Às vezes entrava, cumprimentava as pessoas presentes e, se
entre elas alguma havia metida em política, aproveitava o silêncio causado pela
sua entrada para fazer-lhe uma pergunta deste gênero:
—Então, parece que os homens…
Os circunstantes perguntavam logo:
—Que é? Que há?
Luís da Costa, sem perder o seu ar sério, dizia singelamente:
—É o Ministério que pediu demissão.
—Ah! Sim? Quando?
—Hoje.
—Sabem quem foi chamado?
—Foi chamado o Zózimo.
—Mas por que caiu o Ministério?
—Ora, estava podre.
Etc. etc.
Ou então:
—Morreram como viveram.
—Quem? Quem? Quem?
Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:
—Os ministros.
Suponhamos, agora, que se tratava de uma pessoa qualificada
que devia vir no paquete[2]: Adolfo Thiers ou o príncipe de Bismarck.
Luís da Costa entrava, cumprimentava silenciosamente a todos,
e em vez de dizer com simplicidade:
—Veio no paquete hoje o príncipe de Bismarck.
Ou então:
—O Thiers chegou no paquete.
Voltava-se para um dos circunstantes:
—Chegaria o paquete?
—Chegou, dizia o circunstante.
—O Thiers veio?
Aqui entrava a admiração dos ouvintes, com que se deliciava
Luís da Costa, razão principal de seu ofício.
Capítulo III
Não se pode negar que este prazer era inocente e, quando
muito, singular.
Infelizmente, não há bonito sem senão, nem prazer sem
amargura. Que mel não deixa um travo de veneno? Perguntava o poeta de Jovem
Cativa, e eu creio que nenhum, nem sequer o de alvissareiro.
Luís da Costa experimentou, um dia, as asperezas de seu
ofício.
Eram duas horas da tarde. Havia pouca gente na loja de Paula
Brito, cinco pessoas apenas. Luís da Costa entrou com o rosto fechado como
homem que vem pejado de alguma notícia. Apertou a mão a quatro das pessoas
presentes; a quinta apenas recebeu um cumprimento, porque não se conheciam.
Houve um rápido instante de silêncio que Luís da Costa aproveitou para tirar o
lenço da algibeira e enxugar o rosto. Depois, olhou para todos, e soltou
secamente estas palavras:
—Então, fugiu a sobrinha do Gouveia? disse ele, rindo.
—Que Gouveia? disse um dos presentes.
—O major Gouveia, explicou Luís da Costa.
Os circunstantes ficaram muito calados e olharam de esguelha
para o quinto personagem, que por sua parte olhava para Luís da Costa.
—O major Gouveia da Cidade Nova? perguntou o desconhecido ao
noveleiro.
—Sim, senhor.
Novo e mais profundo silêncio.
Luís da Costa, imaginando que o silêncio era efeito da bomba
que acabava de queimar, entrou a referir os pormenores da fuga da moça em
questão. Falou de um namoro com um alferes, da oposição do major ao casamento,
do desespero dos pobres namorados, cujo coração, mais eloqüente que a honra,
adotara o alvitre de saltar por cima de moinhos.
O silêncio era sepulcral.
O desconhecido ouvia atentamente a narrativa de Luís da
Costa, meneando com muita placidez uma grossa bengala que tinha na mão.
Quando o alvissareiro acabou, perguntou-lhe o desconhecido:
—E quando foi esse rapto?
—Hoje de manhã.
—Oh!
—Das 8 para as 9 horas,
—Conhece o major Gouveia?
—De nome.
—Que idéia forma dele?
—Não formo idéia nenhuma. Menciono o fato por duas
circunstâncias. A primeira é que a moça é muito bonita…
—Conhece-a?
—Ainda ontem a vi.
—Ah! A segunda circunstância…
—A segunda circunstância é a crueldade de certos homens de
certos homens em tolher os movimentos do coração da mocidade. O alferes de que
se trata dizem-me que é um moço honesto, e o casamento seria, creio eu,
excelente. Por que razão queria o major impedi-lo?
—O major tinha razões fortes, observou o desconhecido.
—Ah! Conhece-o?
—Sou eu.
Luís da Costa ficou petrificado. A cara não se distinguia da
de um defunto, tão imóvel e pálida ficou. As outras pessoas olhavam para os
dois sem saber que iria sair dali. Deste modo, correram cinco minutos.
Capítulo IV
No fim de cinco minutos, o major Gouveia continuou:
—Ouvi toda a sua narração e diverti-me com ela. Minha
sobrinha não podia fugir hoje de minha casa, visto que há quinze dias se acha
em Juiz de Fora.
Luís da Costa ficou amarelo.
—Por essa razão ouvi tranqüilamente a história que o senhor
acaba de contar com todas as suas peripécias. O fato, se fosse verdadeiro,
devia causar naturalmente espanto, porque, além do mais, Lúcia é muito bonita,
e o senhor o sabe porque a viu ontem…
Luís da Costa tornou-se verde.
—A notícia, entretanto pode ter-se espalhado, continuou o
major Gouveia, e eu desejo liquidar o negócio, pedindo-lhe que me diga quem a
ouviu…
Luís da Costa ostentou todas as cores do íris[1].
—Então? disse o major, passados alguns instantes de silêncio.
—Sr. major, disse com voz trêmula Luís da Costa, eu não podia
inventar semelhante notícia. Nenhum interesse tenho nela. Evidentemente, alguém
me contou.
—É justamente o que eu desejo saber.
—Não me lembro…
—Veja se se lembra, disse o major com doçura.
Luís da Costa consultou sua memória; mas tantas coisas ouvia
e tantas repetia, que já não podia atinar com a pessoa que lhe contara a
história do rapto.
As outras pessoas presentes, vendo o caminho desagradável que
as coisas podiam ter, trataram de meter o caso à bulha; mas o major, que não
era homem de graças, insistiu com o alvissareiro para que o esclarecesse a
respeito do inventor da balela.
—Ah! Agora me lembra, disse de repente o Luís da Costa, foi o
Pires.
—Que Pires?
—Um Pires que eu conheço muito superficialmente.
—Bem, vamos ter com o Pires.
—Mas, sr. major…
O major já estava de pé, apoiado na grossa bengala, e com um
ar de quem estava pouco disposto a discussões. Esperou que Luís da Costa se
levantasse também. O alvissareiro não teve remédio senão imitar o gesto do
major, não sem tentar ainda um:
—Mas, sr. major…
—Não há mas, nem meio mas. Venha comigo; porque é necessário
deslindar o negócio hoje mesmo. Sabe onde mora esse tal Pires?
—Mora na Praia Grande, mas tem escritório na Rua dos
Pescadores.
—Vamos ao escritório.
Luís da Costa cortejou os outros e saiu ao lado do major
Gouveia, a quem deu respeitosamente a calçada e ofereceu um charuto. O major
recusou o charuto, dobrou o passo e os dois seguiram na direção da Rua dos
Pescadores.
Capítulo V
—O sr. Pires?
—Foi à Secretaria de Justiça.
—Demora-se?
—Não sei.
Luís da Costa olhou para o major ao ouvir estas palavras do
criado do sr. Pires. O major disse fleumaticamente:
—Vamos à Secretaria de Justiça.
E ambos foram a trote largo na direção da Rua do Passeio.
Iam-se aproximando as três horas, e Luís da Costa, que jantava cedo, começava a
ouvir do estômago uma lastimosa petição. Era-lhe, porém, impossível fugir às
garras do major. Se o Pires tivesse embarcado para Santos, é provável que o
major o levasse até lá antes do jantar.
Tudo estava perdido.
Chegaram enfim à Secretaria, bufando como dois touros. Os
empregados vinham saindo, e um deles deu a notícia certa do esquivo Pires;
disse-lhe que saíra dali, dez minutos antes, num tílburi.
—Voltemos à Rua dos Pescadores, disse pacificamente o major.
—Mas, senhor…
A única resposta do major foi dar-lhe o braço e arrastá-lo na
direção da Rua dos Pescadores.
Luís da Costa ia furioso. Começava a compreender a
plausibilidade e até a legitimidade de um crime. O desejo de estrangular o
major pareceu-lhe um sentimento natural. Lembrou-se de ter condenado, oito dias
antes, como jurado, um criminoso de morte, e teve horror de si mesmo.
O major, porém, continuava a andar com aquele passo rápido
dos majores que andam depressa. Luís da Costa ia rebocado. Era-lhe literalmente
impossível apostar carreira com ele.
Eram três e cinco minutos quando chegaram defronte do
escritório do sr. Pires. Tiveram o gosto de dar com o nariz na porta.
O major Gouveia mostrou-se aborrecido com o fato; como era
homem resoluto, depressa se consolou do incidente:
—Não há dúvida, disse ele, iremos à Praia Grande.
—Isso é impossível! clamou Luís da Costa.
—Não é tal, respondeu tranqüilamente o major, temos barca e
custa-nos um cruzado a cada um: eu pago a sua passagem.
—Mas, senhor, a esta hora…
—Que tem?
—São horas de jantar, suspirou o estômago de Luís da Costa.
—Pois jantaremos antes.
Foram dali a um hotel e jantaram. A companhia do major era
extremamente aborrecida para o desastrado alvissareiro. Era impossível
livrar-se dela; Luís da Costa portou-se o melhor que pôde. Demais, a sopa e o
primeiro prato foram o começo da reconciliação. Quando veio o café e um bom
charuto, Luís da Costa estava resolvido a satisfazer seu anfitrião em tudo o
que lhe aprouvesse.
O major pagou a conta e saíram ambos do hotel. Foram direitos
à estação das barcas de Niterói; meteram-se na primeira que saiu e transportaram-se
à imperial cidade.
No trajeto, o major Gouveia conservou-se tão taciturno como
até então. Luís da Costa, que já estava mais alegre, cinco ou seis vezes tentou
atar conversa com o major; mas foram esforços inúteis. Ardia entretanto por
levá-lo até a csa do sr. Pires, que explicaria as coisas como soubesse.
Capítulo VI
O sr. Pires morava na Rua da Praia. Foram direitinhos à casa
dele. Mas se os viajantes haviam jantado, também o sr. Pires fizera o mesmo; e
como tinha por costume ir jogar o voltarete em casa do dr. Oliveira, em S.
Domingos, para lá seguira vinte minutos antes.
O major ouviu esta notícia com a resignação filosófica de que
estava dando provas desde as duas horas da tarde. Inclinou o chapéu mais à
banda e olhando de esguelha para Luís da Costa, disse:
— Vamos a S. Domingos.
— Vamos a S. Domingos, suspirou Luís da Costa.
A viagem foi de carro, o que de algum modo consolou o
noveleiro.
Na casa do dr. Oliveira, passaram pelo dissabor de bater
cinco vezes, antes que viessem abrir.
Enfim vieram.
— Está o sr. Pires?
— Está, sim, senhor, disse o moleque. Os dois respiraram.
O moleque abriu-lhes a porta da sala, onde não tardou que
aparecesse o famoso Pires, l’introuvable[1].
Era um sujeitinho baixinho e alegrinho. Entrou na ponta dos
pés, apertou a mão a Luís da Costa e cumprimentou cerimoniosamente ao major
Gouveia.
— Queiram sentar-se.
— Perdão, disse o major, não é preciso que nos sentemos;
desejamos pouca coisa.
O sr. Pires curvou a cabeça e esperou.
O major voltou-se então para Luís da Costa e disse:
— Fale.
Luís da Costa fez das tripas coração e exprimiu-se nestes
termos:
— Estando eu hoje na loja do Paulo Brito contei a história do
rapto de uma sobrinha do sr. major Gouveia, que o senhor me referiu pouco antes
do meio-dia. O major Gouveia é este cavalheiro que me acompanha, e declarou que
o fato era uma calúnia, visto sua sobrinha estar em Juiz de Fora, há quinze
dias. Intenta, contudo, chegar à fonte da notícia e perguntou-me quem me havia
contado a história; não hesitei em dizer que fora o senhor. Resolveu, então,
procurá-lo, e não temos feito outra coisa desde as duas horas e meia. Enfim,
encontramo-lo.
Durante este discurso, o rosto do sr. Pires apresentou todas
as modificações do espanto e do medo. Um ator, um pintor, ou um estatuário teria
ali um livro inteiro para folhear e estudar. Acabado o discurso, era necessário
responder-lhe, e o sr. Pires o faria de boa vontade, se se lembrasse do uso da
língua. Mas não; ou não se lembrava, ou não sabia que uso faria dela. Assim
correram uns três ou quatro minutos.
— Espero as suas ordens, disse o major, vendo que o homem não
falava.
— Mas, que quer o senhor? balbuciou o sr. Pires.
— Quero que me diga de quem ouviu a notícia transmitida a
este senhor. Foi o senhor quem lhe disse que minha sobrinha era bonita?
— Não lhe disse tal, acudiu o sr. Pires; o que eu disse foi
que me constava ser bonita.
— Vê? disse o major, voltando-se para Luís da Costa.
Luís da Costa começou a contar as tábuas do teto.
O major dirigiu-se, depois, ao sr. Pires:
— Mas vamos lá, disse; de quem ouviu a notícia?
— Foi de um empregado do tesouro.
— Onde mora?
— Em Catumbi.
O major voltou-se para Luís da Costa, cujos olhos, tendo
contado as tábuas do teto, que eram vinte e duas, começavam a examinar
detidamente os botões do punho da camisa.
— Pode retirar-se, disse o major; não é mais preciso aqui.
Luís da Costa não esperou mais: apertou a mão do sr. Pires,
balbuciou um pedido de desculpa, e saiu. Já estava a trinta passos, e ainda lhe
parecia estar colado ao terrível major. Ia justamente a sair uma barca; Luís da
Costa deitou a correr, e ainda a alcançou, perdendo apenas o chapéu, cujo
herdeiro foi um cocheiro necessitado.
Estava livre.
Capítulo VII
Ficaram sós o major e o sr. Pires.
— Agora, disse o primeiro, há de ter a bondade de me
acompanhar à casa desse empregado do Tesouro…como se chama?
— O bacharel Plácido.
— Estou às suas ordens; tem passagem e carro pagos.
O sr. Pires fez um gesto de aborrecimento, e murmurou:
— Mas eu não sei…se…
— Se?
— Não sei se me é possível nesta ocasião…
— Há de ser. Penso que é um homem honrado. Não tem idade para
ter filhas moças, mas pode vir a tê-las, e saberá se é agradável que tais
invenções andem na rua.
— Confesso que as circunstâncias são melindrosas; mas não
poderíamos…
— O quê?
— Adiar?
— Impossível.
O sr. Pires mordeu o lábio inferior; meditou alguns
instantes, e afinal declarou que estava disposto a acompanhá-lo.
— Acredite, sr. major, disse ele concluindo, que só as
circunstâncias especiais deste caso me obrigariam a ir à cidade.
O major inclinou-se.
O sr. Pires foi despedir-se do dono da casa, e voltou para
acompanhar o implacável major, em cujo rosto se lia a mais franca resolução.
A viagem foi tão silenciosa como a primeira. O major parecia
uma estátua; não falava e raras vezes olhava para o seu companheiro.
A razão foi compreendida pelo sr. Pires, que matou as
saudades do voltarete, fumando sete cigarros por hora.
Enfim, chegaram a Catumbi.
Desta vez, foi o major Gouveia mais feliz que da outra: achou
o bacharel Plácido em casa.
O bacharel Plácido era seu próprio nome feito homem. Nunca, a
pachorra tivera mais fervoroso culto. Era gordo, corado, lento e frio. Recebeu
os dois visitantes com a benevolência de um Plácido verdadeiramente plácido.
O sr. Pires explicou o objeto da visita.
— É verdade que eu lhe falei de um rapto, disse o bacharel,
mas não foi nos termos em que o senhor repetiu. O que eu disse foi que o namoro
da sobrinha do major Gouveia com um alferes era tal que até já se sabia do
projeto de rapto.
— E quem lhe disse isso, sr. bacharel? Perguntou o major.
— Foi o capitão de artilharia Soares.
— Onde mora?
— Ali em Mataporcos.
— Bem, disse o major,
E voltando-se para o sr. Pires:
— Agradeço-lhe o incômodo, disse; não lhe agradeço, porém, o
acréscimo. Pode ir embora; o carro tem ordem de o acompanhar até a estação das
barcas.
O sr. Pires não esperou novo discurso; despediu-se e saiu.
Apenas entrou no carro, deu dois ou três socos em si mesmo e fez solilóquio
extremamente desfavorável à sua pessoa:
— É bem feito, dizia o sr. Pires; quem me manda ser abelhudo?
Se só me ocupasse com o que me diz respeito, estaria a esta hora muito
descansado e não passaria por semelhante dissabor. É bem feito!
Capítulo VIII
O bacharel Plácido encarou o major, sem compreender a razão
por que ficara ali, quando o outro fora embora. Não tardou que o major o
esclarecesse. Logo que o sr. Pires saiu da sala, disse ele:
— Queira agora acompanhar-me à casa do capitão Soares.
— Acompanhá-lo! exclamou o bacharel mais surpreendido do que
se lhe caísse o nariz no lenço de tabaco.
— Sim, senhor.
— Que pretende fazer?
— Oh! nada que o deva assustar. Compreende que se trata de
uma sobrinha, e que um tio tem necessidade de chegar à origem de semelhante
boato. Não crimino os que o repetiram, mas quero haver-me com o que o inventou.
O bacharel recalcitrou: a sua pachorra dava mil razões para
demonstrar que sair de casa às ave-marias para ir a Mata-porcos era um absurdo.
A nada atendia o major Gouveia, e com o tom intimador que lhe era peculiar,
antes intimava do que persuadia o gordo bacharel.
— Mas há de confessar que é longe, observou este.
— Não seja essa a dúvida, acudiu o outro; mande chamar um
carro que eu pago.
O bacharel Plácido coçou a orelha, deu três passos na sala,
suspendeu a barriga e sentou-se.
— Então? disse o major ao cabo de algum tempo de silêncio.
— Refleti, disse o bacharel; é melhor irmos a pé; eu jantei
há pouco e preciso digerir. Vamos a pé…
— Bem, estou às suas ordens.
O bacharel arrastou a sua pessoa até a alcova, enquanto o
major, com as mãos nas costas, passeava na sala meditando e fazendo, a espaços,
um gesto de impaciência.
Gastou o bacharel cerca de vinte e cinco minutos em preparar
a sua pessoa, e saiu enfim à sala, quando o major ia já tocar a campainha para
chamar alguém.
— Pronto?
— Pronto.
— Vamos!
— Deus vá conosco.
Saíram os dois na direção de Mata-porcos.
Se uma pipa andasse seria o bacharel Plácido; já porque a
gordura não lho consentia, já porque desejara pregar uma peça ao importuno, o
bacharel não ia sequer com passo de gente. Não andava: arrastava-se. De quando
em quando parava, respirava e bufava; depois seguia vagarosamente o caminho.
Com este era impossível o major empregar o sistema de reboque
que tão bom efeito teve com Luís da Costa. Ainda que o quisesse obrigar a andar
era impossível, porque ninguém arrasta oito arrobas com a simples força do
braço.
Tudo isto punha o major em apuros. Se visse passar um carro,
tudo estava acabado, porque o bacharel não resistiria ao seu convite
intimativo; mas os carros tinham-se apostado para não passar ali, ao menos
vazios, e só de longe em longe um tílburi vago convidava, a passo lento, os
fregueses.
O resultado de tudo isto foi que, só às oito horas, chegaram
os dois à casa do capitão Soares. O bacharel respirou à larga, enquanto o major
batia palmas na escada.
— Quem é? perguntou uma voz açucarada.
— O sr. capitão? disse o major Gouveia.
— Eu não sei se já saiu, respondeu a voz; vou ver.
Foi ver, enquanto o major limpava a testa e se preparava para
tudo o que pudesse sair de semelhante embrulhada. A voz não voltou senão dali a
oito minutos, para perguntar com toda a gentileza:
— O senhor quem é?
— Diga que é o bacharel Plácido, acudiu o indivíduo deste
nome, que ansiava por arrumar a católica pessoa em cima de algum sofá.
A voz foi dar a resposta e daí a dois minutos voltou a dizer
que o bacharel Plácido podia subir.
Subiram os dois.
O capitão estava na sala e veio receber à porta o bacharel e
o major. A este conhecia também, mas eram apenas cumprimentos de chapéu.
— Queiram sentar-se.
Sentaram-se.
Capítulo IX
— Que mandam nesta sua casa? perguntou o capitão Soares.
O bacharel usou da palavra:
— Capitão, eu tive a infelicidade de repetir aquilo que você
me contou a respeito da sobrinha do sr. major Gouveia.
— Não me lembra; que foi? disse o capitão com uma cara tão
alegre como a de homem a quem estivessem torcendo um pé.
— Disse-me você, continuou o bacharel Plácido, que o namoro
da sobrinha do sr. major Gouveia era tão sabido que até já se falava de um
projeto de rapto…
— Perdão! interrompeu o capitão. Agora me lembro que alguma
coisa lhe disse, mas não foi tanto como você acaba de repetir.
— Não foi?
— Não.
— Então que foi?
— O que eu disse foi que havia notícia vaga de um namoro da
sobrinha de V. S. com um alferes. Nada mais disse. Houve equívoco da parte do
meu amigo Plácido.
— Sim, há alguma diferença, concordou o bacharel.
— Há, disse o major deitando-lhe os olhos por cima do ombro.
Seguiu-se um silêncio.
Foi o major Gouveia o primeiro que falou.
— Enfim, senhores, disse ele, ando desde as duas horas da
tarde na indagação da fonte da notícia que me deram a respeito de minha
sobrinha. A notícia tem diminuído muito, mas ainda há aí um namoro de alferes
que incomoda. Quer o sr. capitão dizer-me a quem ouviu isso?
— Pois não, disse o capitão; ouvi-o ao desembargador Lucas.
— É meu amigo!
— Tanto melhor.
— Acho impossível que ele dissesse isso, disse o major
levantando-se.
— Senhor! exclamou o capitão.
— Perdoe-me, capitão, disse o major caindo em si. Há de
concordar que ouvir a gente o seu nome assim maltratado por culpa de um amigo…
— Nem ele disse por mal, observou o capitão Soares. Parecia
até lamentar o fato, visto que sua sobrinha está para casar com outra pessoa…
— É verdade, concordou o major. O desembargador não era capaz
de injuriar-me; naturalmente ouviu isso a alguém.
— É provável.
— Tenho interesse em saber a fonte de semelhante boato.
Acompanhe-me à casa dele.
— Agora!
— É indispensável.
— Mas sabe que ele mora no Rio Comprido?
— Sei; iremos de carro.
O bacharel Plácido aprovou esta resolução e despediu-se dos
dois militares.
— Não podíamos adiar isso para depois? perguntou o capitão
logo que o bacharel saiu.
— Não, senhor.
O capitão estava em sua casa; mas o major tinha tal império
na voz ou no gesto quando exprimia a sua vontade, que era impossível
resistir-lhe. O capitão não teve remédio senão ceder.
Preparou-se, meteram-se num carro e foram na direção do Rio
Comprido, onde morava o desembargador.
O desembargador era um homem alto e magro, dotado de
excelente coração, mas implacável contra quem quer que lhe interrompesse uma
partida de gamão.
Ora, justamente na ocasião em que os dois lhe bateram à
porta, jogava ele o gamão com o coadjutor da freguesia, cujo dado era tão feliz
que em menos de uma hora lhe dera já cinco gangas. O desembargador fumava…
figuradamente falando, e o coadjutor sorria, quando o moleque foi dar parte de
que duas pessoas estavam na sala e queriam falar com o desembargador.
O digno sacerdote da justiça teve ímpetos de atirar o copo à
cara do moleque; conteve-se, ou antes traduziu o seu furor num discurso
furibundo contra os importunos e maçantes.
— Há de ver que é algum procurador à procura de autos, ou à
cata de autos, ou à cata de informações. Que os leve o diabo a todos eles.
— Vamos, tenha paciência, dizia-lhe o coadjutor. Vá, vá ver o
que é, que eu o espero. Talvez que esta interrupção corrija a sorte dos dados.
— Tem razão, é possível, concordou o desembargador,
levantando-se e dirigindo-se para a sala.
Capítulo X
Na sala teve a surpresa de achar dois conhecidos.
O capitão levantou-se sorrindo e pediu-lhe desculpa do
incômodo que lhe vinha dar. O major levantou-se também, mas não sorria.
Feitos os cumprimentos foi exposta a questão. O capitão
Soares apelou para a memória do desembargador a quem dizia ter ouvido a notícia
do namoro da sobrinha do major Gouveia.
— Recordo-me ter-lhe dito, respondeu o desembargador, que a
sobrinha de meu amigo Gouveia piscara o olho a um alferes, o que lamentei do
fundo d’alma, visto estar para casar. Não lhe disse, porém, que havia namoro…
O major não pôde disfarçar um sorriso, vendo que o boato ia a
diminuir à proporção que se aproximava da fonte. Estava disposto a não dormir
sem dar com ela.
— Muito bem, disse ele; a mim não basta esse dito; desejo
saber a quem ouviu, a fim de chegar ao primeiro culpado de semelhante boato.
— A quem o ouvi?
— Sim.
— Foi ao senhor.
— A mim!
— Sim, senhor; sábado passado.
— Não é possível!
— Não se lembra que me disse na Rua do Ouvidor, quando
falávamos das proezas da…
— Ah! mas não foi isso! exclamou o major. O que eu lhe disse
foi outra coisa. Disse-lhe que era capaz de castigar a minha sobrinha se ela,
estando agora para casar, deitasse os olhos a algum alferes que passasse.
— Nada mais? perguntou o capitão.
— Mais nada.
— Realmente é curioso.
O major despediu-se do desembargador, levou o capitão até
Mata-porcos e foi direito para casa praguejando contra si e todo o mundo.
Ao entrar em casa estava já mais aplacado. O que o consolou
foi a idéia de que o boato podia ser mais prejudicial do que fora. Na cama
ainda pensou no acontecimento, mas já se ria da maçada que dera aos noveleiros.
Suas últimas palavras antes de dormir foram:
— Quem conta um conto…
Fonte: pt.wikisource.org
Machado de Assis
Contos
Fluminenses
http://www.portalsaofrancisco.com.br/obras-literarias/quem-conta-um-conto
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