98. O COBRADOR
Na
porta da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na
sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente.
Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu uma mulher acompanhada
de um sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco.
Entrei
no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no meu
pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás estava doendo muito. Ele
olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes
ficarem naquele estado.
Só
rindo. Esses caras são engraçados.
Vou
ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um
tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui - e deu uma
pancada estridente nos meus dentes da frente.
Uma
injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz
está podre, vê?, disse com pouco caso. São quatrocentos cruzeiros.
Só
rindo. Não tem não, meu chapa, eu disse.
Não
tem não o quê?
Não
tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta.
Ele
bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, mãos
grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico
franzino encoraja as pessoas.
Odeio
dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos,
executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o
blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu
na cara dele - que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou.
Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei
as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se
fossem bolas, eles pipocavam e explodiam na parede. Arrebentar os cuspidores e
motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me
olhava, várias vezes deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito
que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.
Eu
não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!
Dei
um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta.
A
rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está
todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa,
automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um cego pede esmolas sacudindo
uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das
moedas me irrita. Rua Marechal Floriano, casa de armas, farmácia, banco, china,
retratista, Light, vacina, médico, Ducal, gente aos montes. De manhã não se
consegue andar na direção da Central, a multidão vem rolando como uma enorme
lagarta ocupando toda a calçada.
Me
irritam esses sujeitos de Mercedes. A buzina do carro também me aporrinha.
Ontem de noite eu fui ver o cara que tinha uma Magnum com silenciador para
vender na Cruzada, e quando atravessava a rua um sujeito que tinha ido jogar
tênis num daqueles clubes bacanas que tem por ali tocou a buzina. Eu vinha
distraído pois estava pensando na Magnum, quando a buzina tocou. Vi que o carro
vinha devagar e fiquei parado na frente.
Como
é?, ele gritou.
Era
de noite e não tinha ninguém perto. Ele estava vestido de branco. Saquei o 38 e
atirei no pára-brisa, mais para estrunchar o vidro do que para pegar o sujeito.
Ele arrancou com o carro, para me pegar ou fugir, ou as duas coisas. Pulei pro
lado, o carro passou, os pneus sibilando no asfalto. Parou logo adiante. Fui
até lá. O sujeito estava deitado com a cabeça para trás, a cara e o peito
cobertos por milhares de pequeninos estilhaços de vidro. Sangrava muito de um
ferimento feio no pescoço e a roupa branca dele já estava toda vermelha.
Girou
a cabeça que estava encostada no banco, olhos muito arregalados, pretos, e o
branco em volta era azulado leitoso, como uma jabuticaba por dentro. E porque o
branco dos olhos dele era azulado eu disse - você vai morrer, ô cara, quer que
eu te dê o tiro de misericórdia?
Não,
não, ele disse com esforço, por favor.
Vi
da janela de um edifício um sujeito me observando. Se escondeu quando olhei.
Devia ter ligado para a polícia.
Saí
andando calmamente, voltei para a Cruzada. Tinha sido muito bom estraçalhar o
pára-brisa do Mercedes. Devia ter dado um tiro na capota e um tiro em cada
porta, o lanterneiro ia ter que rebolar.
O
cara da Magnum já tinha voltado. Cadê as trinta milhas? Põe aqui nesta mãozinha
que nunca viu palmatória, ele disse. A mão dele era branca, lisinha, mas a
minha estava cheia de cicatrizes, meu corpo todo tem cicatrizes, até meu pau
está cheio de cicatrizes.
Também
quero comprar um rádio, eu disse pro muambeiro. Enquanto ele ia buscar o rádio
eu examinei melhor a Magnum. Azeitadinha, e também carregada. Com o silenciador
parecia um canhão.
O
muambeiro voltou carregando um rádio de pilha. É japonês, ele disse. Liga para
eu ouvir o som. Ele ligou.
Mais
alto, eu pedi.
Ele
aumentou o volume.
Puf.
Acho que ele morreu logo no primeiro tiro. Dei mais dois tiros só para ouvir
puf, puf.
Tão
me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela
no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.
Fico
na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está
diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da
televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que
faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado,
abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com
todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero
pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e
aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira
vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde por
esperar.
Meu
arsenal está quase completo: tenho a Magnum com silenciador, um Colt Cobra 38,
duas navalhas, uma carabina 12, um Taurus 38 capenga, um punhal e um facão. Com
o facão vou cortar a cabeça de alguém num golpe só. Vi no cinema, num desses
países asiáticos, ainda no tempo dos ingleses, um ritual que consistia em
cortar a cabeça de um animal, creio que um búfalo, num golpe único. Os oficiais
ingleses presidiam a cerimônia com um ar de enfado, mas os decapitadores eram
verdadeiros artistas. Um golpe seco e a cabeça do animal rolava, o sangue
esguichando.
Na
casa de uma mulher que me apanhou na rua. Coroa, diz que estuda no colégio
noturno. Já passei por isso, meu colégio foi o mais noturno de todos os
colégios noturnos do mundo, tão ruim que já não existe mais, foi demolido. Até
a rua onde ele ficava foi demolida. Ela pergunta o que eu faço e digo que sou
poeta, o que é rigorosamente verdade. Ela me pede que recite um poema meu. Eis:
Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que
dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma chance que eles/ têm de
ser diferentes:/ parasitar,/ desprezar os que suam para ganhar a comida,/
dormir até tarde,/ tarde/ um dia/ ainda bem,/ demais./
Ela
corta perguntando se gosto de cinema. E o poema? Ela não entende. Continuo:
Sabia sambar e cair na paixão/ e rolar pelo chão/ apenas por pouco tempo./ Do
suor do seu rosto nada fora construído./ Queria morrer com ela,/ mas isso foi
outro dia,/ ainda outro dia./ No cinema íris, na rua da Carioca/ o Fantasma da
Ópera/ Um sujeito de preto,/ pasta preta, o rosto escondido,/ na mão um lenço
branco imaculado,/ tocava punheta nos espectadores;/ na mesma época, em
Copacabana,/ um outro/ que nem apelido tinha,/ bebia o mijo dos mictórios dos
cinemas/ e o rosto dele era verde e inesquecível./ A História é feita de gente
morta/ e o futuro de gente que vai morrer./ Você pensa que ela vai sofrer?/ Ela
é forte, resistirá./ Resistiria também, se fosse fraca./ Agora você, não sei./
Você fingiu tanto tempo, deu socos e gritos, embusteou/ Você está cansado,/
você acabou,/ não sei o que te mantém vivo./
Ela
não entendia de poesia. Estava solo comigo e queria fingir indiferença, dava
bocejos exasperados. A farsanteza das mulheres. Tenho medo de você, ela acabou
confessando.
Essa
fodida não me deve nada, pensei, mora com sacrifício num quarto e sala, os
olhos dela já estão empapuçados de beber porcarias e ler a vida das grã- finas
na revista Vogue.
Quer
que te mate?, perguntei enquanto bebíamos uísque ordinário. Quero que você me
foda, ela riu ansiosa, na dúvida.
Acabar
com ela? Eu nunca havia esganado ninguém com as próprias mãos. Não tem muito
estilo, nem drama, esganar-se alguém, parece briga de rua. Mesmo assim eu tinha
vontade de esganar alguém, mas não uma infeliz daquelas. Para um zé-ninguém, só
tiro na nuca?
Tenho
pensado nisso, ultimamente. Ela tinha tirado a roupa: peitos murchos e chatos,
os bicos passas gigantes que alguém tinha pisado; coxas flácidas com nódulos de
celulite, gelatina estragada com pedaços de fruta podre.
Estou
toda arrepiada, ela disse.
Deitei
sobre ela. Me agarrou pelo pescoço, sua boca e língua na minha boca, uma vagina
viscosa, quente e olorosa. Fodemos.
Ela
agora está dormindo. Sou justo.
Leio
os jornais. A morte do muambeiro da Cruzada nem foi noticiada. O bacana do
Mercedes com roupa de tenista morreu no Miguel Couto e os jornais dizem que foi
assaltado pelo bandido Boca Larga. Só rindo.
Faço
um poema denominado Infância ou Novos Cheiros de Buceta com U: Eis-me de novo/
ouvindo os Beatles/ na Rádio Mundial/ às nove horas da noite/ num quarto/ que
poderia ser/ e era/ de um santo mortificado/ Não havia pecado/ e não sei por
que me lepravam/ por ser inocente/ ou burro/ De qualquer forma/ o chão estava
sempre ali/ para fazer mergulhos./ Quando não se tem dinheiro/ é bom ter
músculos/ e ódio./
Leio
os jornais para saber o que eles estão comendo, bebendo e fazendo. Quero viver
muito para ter tempo de matar todos eles.
Da
rua vejo a festa na Vieira Souto, as mulheres de vestido longo, os homens de
roupas negras. Ando lentamente, de um lado para o outro na calçada, não quero
despertar suspeitas e o facão por dentro da calça, amarrado na perna, não me
deixa andar direito. Pareço um aleijado, me sinto um aleijado. Um casal de
meia-idade passa por mim e me olha com pena; eu também sinto pena de mim, manco
e sinto dor na perna.
Da
calçada vejo os garçons servindo champanha francesa. Essa gente gosta de
champanha francesa, vestidos franceses, língua francesa.
Estava
ali desde as nove horas, quando passara em frente, todo municiado, entregue à
sorte e ao azar, e a festa surgira.
As
vagas em frente ao apartamento foram logo ocupadas e os carros dos visitantes
passaram a estacionar nas escuras ruas laterais. Um deles me interessou muito,
um carro vermelho e nele um homem e uma mulher, jovens e elegantes. Caminharam
para o edifício sem trocar uma palavra, ele ajeitando a gravata borboleta e ela
o vestido e o cabelo. Prepararam-se para uma entrada triunfal mas da calçada
vejo que a chegada deles foi, como a dos outros, recebida com desinteresse. As
pessoas se enfeitam no cabeleireiro, no costureiro, no massagista e só o
espelho lhes dá, nas festas, a atenção que esperam. Vi a mulher no seu vestido
azul esvoaçaste e murmurei - vou te dar a atenção que você merece, não foi à
toa que você vestiu a sua melhor calcinha e foi tantas vezes à costureira e
passou tantos cremes na pele e botou perfume tão caro.
Foram
os últimos a sair. Não andavam com a mesma firmeza e discutiam irritados, vozes
pastosas, enroladas.
Cheguei
perto deles na hora em que o homem abria a porta do carro. Eu vinha mancando e
ele apenas me deu um olhar de avaliação rápido e viu um aleijado inofensivo de
baixo preço.
Encostei
o revólver nas costas dele.
Faça
o que mando senão mato os dois, eu disse.
Para
entrar de perna dura no estreito banquinho de trás não foi fácil. Fiquei meio
deitado, o revólver apontado para a cabeça dele. Mandei que seguisse para a
Barra da Tijuca. Tirava o facão de dentro da perna quando ele disse, leva o
dinheiro e o carro e deixa a gente aqui. Estávamos na frente do Hotel Nacional.
Só rindo. Ele já estava sóbrio e queria tomar um último uisquinho enquanto dava
queixa à polícia pelo telefone. Ah, certas pessoas pensam que a vida é uma
festa. Seguimos pelo Recreio dos Bandeirantes até chegar a uma praia deserta.
Saltamos. Deixei acesos os faróis.
Nós
não lhe fizemos nada, ele disse.
Não
fizeram? Só rindo. Senti o ódio inundando os meus ouvidos, minhas mãos, minha
boca, meu corpo todo, um gosto de vinagre e lágrima.
Ela
está grávida, ele disse apontando a mulher, vai ser o nosso primeiro filho.
Olhei
a barriga da mulher esguia e decidi ser misericordioso e disse, puf, em cima de
onde achava que era o umbigo dela, desencarnei logo o feto. A mulher caiu
emborcada. Encostei o revólver na têmpora dela e fiz ali um buraco de mina.
O
homem assistiu a tudo sem dizer uma palavra, a carteira de dinheiro na mão
estendida. Peguei a carteira da mão dele e joguei pro ar e quando ela veio caindo
dei-lhe um bico, de canhota, jogando a carteira longe.
Amarrei
as mãos dele atrás das costas com uma corda que eu levava. Depois amarrei os
pés.
Ajoelha,
eu disse. Ele ajoelhou.
Os
faróis do carro iluminavam o seu corpo. Ajoelhei-me ao seu lado, tirei a
gravata borboleta, dobrei o colarinho, deixando seu pescoço à mostra. Curva a
cabeça, mandei.
Ele
curvou. Levantei alto o facão, seguro nas duas mãos, vi as estrelas no céu, a
noite imensa, o firmamento infinito e desci o facão, estrela de aço, com toda
minha força, bem no meio do pescoço dele.
A
cabeça não caiu e ele tentou levantar-se, se debatendo como se fosse uma
galinha tonta nas mãos de uma cozinheira incompetente. Dei-lhe outro golpe e
mais outro e outro e a cabeça não rolava. Ele tinha desmaiado ou morrido com a
porra da cabeça presa no pescoço. Botei o corpo sobre o pára-Iama do carro. O
pescoço ficou numa boa posição. Concentrei-me como um atleta que vai dar um
salto mortal. Dessa vez, enquanto o facão fazia seu curto percurso mutilante
zunindo fendendo o ar, eu sabia que ia conseguir o que queria. Brock! a cabeça
saiu rolando pela areia. Ergui alto o alfange e recitei: Salve o Cobrador! Dei
um grito alto que não era nenhuma palavra, era um uivo comprido e forte, para
que todos os bichos tremessem e saíssem da frente. Onde eu passo o asfalto
derrete.
Uma
caixa preta debaixo do braço. Falo com a língua presa que sou o bombeiro que
vai fazer o serviço no apartamento duscenthos e um. O porteiro acha graça na
minha língua presa e me manda subir. Começo do último andar. Sou o bombeiro
(língua normal agora), vim fazer o serviço. Pela abertura, dois olhos: ninguém
chamou bombeiro não. Desço para o sétimo, a mesma coisa. Só vou ter sorte no
primeiro andar.
A
empregada me abriu a porta e gritou lá para dentro, é o bombeiro. Surgiu uma
moça de camisola, um vidro de esmalte de unhas na mão, bonita, uns vinte e
cinco anos.
Deve
haver um engano, ela disse, nós não precisamos de bombeiro.
Tirei
o Cobra de dentro da caixa. Precisa sim, é bom ficarem quietas senão mato as
duas. Tem mais alguém em casa? O marido estava trabalhando e o menino no
colégio. Amarrei a empregada, fechei sua boca com esparadrapo. Levei a dona pro
quarto.
Tira
a roupa.
Não
vou tirar a roupa, ela disse, a cabeça erguida.
Estão
me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta, anda logo. Dei-lhe um
murro na cabeça. Ela caiu na cama, uma marca vermelha na cara. Não tiro.
Arranquei a camisola, a calcinha. Ela estava sem sutiã. Abri-lhe as pernas.
Coloquei os meus joelhos sobre as suas coxas. Ela tinha uma pentelheira basta e
negra. Ficou quieta, com olhos fechados. Entrar naquela floresta escura não foi
fácil, a buceta era apertada e seca. Curvei-me, abri a vagina e cuspi lá
dentro, grossas cusparadas. Mesmo assim não foi fácil, sentia o meu pau
esfolando. Deu um gemido quando enfiei o cacete com toda força até o fim.
Enquanto enfiava e tirava o pau eu lambia os peitos dela, a orelha, o pescoço,
passava o dedo de leve no seu cu, alisava sua bunda. Meu pau começou a ficar
lubrificado pelos sucos da sua vagina, agora morna e viscosa
Como
já não tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do que
eu. Com o resto da porra que saía do meu pau fiz um círculo em volta do umbigo
dela. Vê se não abre mais a porta pro bombeiro, eu disse, antes de ir embora.
Saio
do sobrado da rua Visconde de Maranguape. Uma panela em cada molar cheio de
cera do Dr. Lustosa/ mastigar com os dentes da frente/ punheta pra foto de
revista/ livros roubados./ Vou para a praia.
Duas
mulheres estão conversando na areia; uma tem o corpo queimado de sol, um lenço
na cabeça; a outra é clara, deve ir pouco à praia; as duas têm o corpo muito
bonito; a bunda da clara é a bunda mais bonita entre todas quejá vi. Sento
perto, e fico olhando. Elas percebem meu interesse e começam logo a se mexer,
dizer coisas com o corpo, fazer movimentos aliciantes com os rabos. Na praia
somos todos iguais, nós os fodidos e eles. Até que somos melhores pois não
temos aquela barriga grande e a bunda mole dos parasitas. Eu quero aquela mulher
branca! Ela inclusive está interessada em mim, me lança olhares. Elas riem,
riem, dentantes. Se despedem e a branca vai andando na direção de Ipanema, a
água molhando os seus pés. Me aproximo e vou andando junto, sem saber o que
dizer.
Sou
uma pessoa tímida, tenho levado tanta porrada na vida, e o cabelo dela é fino e
tratado, o seu tórax é esbelto, os seios pequenos, as coxas são sólidas e
redondas e musculosas e a bunda é feita de dois hemisférios rijos. Corpo de
bailarina.
Você
estuda balé? Estudei, ela diz. Sorri para mim. Como é que alguém pode ter boca
tão bonita? Tenho vontade de l amber dente por dente da sua boca. Você mora por
aqui?, ela pergunta. Moro, minto. Ela me mostra um prédio na praia, todo de
mármore.
De
volta à rua Visconde de Maranguape. Faço hora para ir na casa da moça branca.
Chama-se Ana. Gosto de Ana, palindrômico. Afio o facão com uma pedra especial,
o pescoço daquele janota era muito duro. Os jornais abriram muito espaço para a
morte do casal que eu justicei na Barra. A moça era filha de um desses putos
que enriquecem em Sergipe ou Piauí, roubando os paus-dearara, e depois vêm para
o Rio, e os filhos de cabeça chata já não têm mais sotaque, pintam o cabelo de
louro e dizem que são descendentes de holandeses.
Os
colunistas sociais estavam consternados. Os granfas que eu despachei estavam
com viagem marcada para Paris. Não há mais segurança nas ruas, dizia a manchete
de um jornal. Só rindo. Joguei uma cueca pro alto e tentei cortá-Ia com o
facão, como o Saladino fazia (com um lenço de seda) no cinema.
Não
se fazem mais cimitarras como antigamente/ Eu sou uma hecatombe/ Não foi nem
Deus nem o Diabo/ Que me fez um vingador/ Fui eu mesmo/ Eu sou o Homem-Pênis/
Eu sou o Cobrador./
Vou
no quarto onde dona Clotilde está deitada há três anos. Dona Clotilde é dona do
sobrado.
Quer
que eu passe o escovão na sala?, pergunto.
Não
meu filho, só queria que você me desse a injeção de trinevral antes de sair.
Fervo
a seringa, preparo a injeção. A bunda de dona Clotilde é seca como uma folha
velha e amassada de papel de arroz.
Você
caiu do céu, meu filho, foi Deus que te mandou, ela diz.
Dona
Clotilde não tem nada, podia levantar e ir comprar coisas no supermercado. A
doença dela está na cabeça. E depois de três anos deitada, só se levanta para
fazer pipi e cocô, ela não deve mesmo ter forças.
Qualquer
dia dou-lhe um tiro na nuca.
Quando
satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensação de vitória, de euforia que me
dá vontade de dançar - dou pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados, mais
próximos da música do que da poesia, e meus pés deslizam pelo chão, meu corpo
se move num ritmo feito de gingas e saltos, como um selvagem, ou um macaco.
Quem
quiser mandar em mim pode querer, mas vai morrer. Estou querendo muito matar um
figurão desses que mostram na televisão a sua cara paternal de velhaco
bem-sucedido, uma pessoa de sangue engrossado por caviares e champãs. Come
caviar/ teu dia vai chegar./ Estão me devendo uma garota de vinte anos, cheia
de dentes e perfume. A moça do prédio de mármore? Entro e ela está me
esperando, sentada na sala, quieta, imóvel, o cabelo muito preto, o rosto
branco, parece uma fotografia.
Vamos
sair, eu digo para ela. Ela me pergunta se estou de carro. Digo que não tenho
carro. Ela tem. Descemos pelo elevador de serviço e saímos na garagem, entramos
num Puma conversível.
Depois
de algum tempo pergunto se posso dirigir e trocamos de lugar. Petrópolis está
bem?, pergunto. Subimos a serra sem dizer uma palavra, ela me olhando. Quando
chegamos a Petrópolis ela pede que eu pare num restaurante. Digo que não tenho
dinheiro nem fome, mas ela tem as duas coisas, come vorazmente como se a
qualquer momento fossem levar o prato embora. Na mesa ao lado um grupo de
jovens bebendo e falando alto, jovens executivos subindo na sexta-feira e bebendo
antes de encontrar a madame toda enfeitada para jogar biriba ou falar da vida
alheia enquanto traçam queijos e vinhos. Odeio executivos. Ela acaba de comer.
E agora? Agora vamos voltar, eu digo, e descemos a serra, eu dirigindo como um
raio, ela me olhando. Minha vida não tem sentido, já pensei em me matar, ela
diz. Paro na rua Visconde de Maranguape. É aqui que você mora? Saio sem dizer
nada. Ela sai atrás: vou te ver de novo? Entro e enquanto vou subindo as
escadas ouço o barulho do carro partindo.
Top
Executive Club. Você merece o melhor relax, feito de carinho e compreensão.
Nossas massagistas são completas. Elegância e discrição.
Anoto
o endereço e vou para o local, uma casa, em Ipanema. Espero ele surgir,
fantasiado de roupa cinza, colete, pasta preta, sapatos engraxados, cabelos
rinsados. Tiro um papel do bolso, como alguém à procura de um endereço e vou
seguindo o cara até o carro. Esses putos sempre fecham o carro a chave, eles
sabem que o mundo está cheio de ladrões, eles também são, apenas ninguém os
pega; enquanto ele abre o carro eu encosto o revólver na sua barriga. Dois
homens de frente um para o outro, conversando, não despertam atenção. Encostar
o revólver nas costas assusta mais, mas isso só deve ser feito em locais
desertos.
Fica
quieto senão chumbo a sua barriga executiva.
Ele
tem o ar petulante e ao mesmo tempo ordinário do ambicioso ascendente egresso
do interior, deslumbrado de coluna social, comprista, eleitor da Arena,
católico, cursilhista, patriota, mordomista e bocalivrista, os filhos estudando
na PUC, a mulher transando decoração de interiores e sócia de butique.
Como
é executivo, a massagista te tocou punheta ou chupou teu pau?
Você
é homem, sabe como é, entende essas coisas, ele disse. Papo de executivo com
chofer de táxi ou ascensorista. De Botucatu para a Diretoria, acha que já
enfrentou todas as situações de crise.
Não
sou homem porra nenhuma, digo suavemente, sou o Cobrador. Sou o Cobrador!,
grito.
Ele
começa a ficar da cor da roupa. Pensa que sou maluco e maluco ele ainda não
enfrentou no seu maldito escritório refrigerado. Vamos para sua casa, eu digo.
Eu
não moro aqui no Rio, moro em São Paulo, ele diz. Perdeu a coragem, mas não a
esperteza. E o carro?, pergunto. Carro, que carro? Este carro, com a chapa do
Rio? Tenho mulher e três filhos, ele desconversa. Que é isso? Uma desculpa,
senha, habeas-corpus, salvo-conduto? Mando parar o carro. Puf, puf, puf, um
tiro para cada filho, no peito. O da mulher na cabeça, puf.
Para
esquecer a moça que mora no edifício de mármore vou jogar futebol no aterro.
Três horas seguidas, minhas pernas todas escalavradas das porradas que levei, o
dedão do pé direito inchado, talvez quebrado. Sento suado ao lado do campo,
junto de um crioulo lendo O Dia. Amanchete me interessa, peço o jornal emprestado,
o cara diz se tu quer ler o jornal por que não compra? Não me chateio, o
crioulo tem poucos dentes, dois ou três, tortos e escuros. Digo, tá, não vamos
brigar por isso. Compro dois cachorros-quentes e duas cocas e dou metade pra
ele e ele me dá o jornal. A manchete diz: Polícia à procura do louco da Magnum.
Devolvo o jornal pro crioulo. Ele não aceita, ri para mim enquanto mastiga com
os dentes da frente, ou melhor com as gengivas da frente que de tanto uso estão
afiadas como navalhas. Notícia do jornal: Um grupo de grã-finos da zona sul em
grandes preparativos para o tradicional Baile de Natal - Primeiro Grito de
Carnaval. O baile começa no dia 24 e termina no dia 1° do Ano Novo; vêm
fazendeiros da Argentina, herdeiros da Alemanha, artistas americanos,
executivos japoneses, o parasitismo internacional. O Natal virou mesmo uma
festa. Bebida, folia, orgia, vadiagem.
O
Primeiro Grito de Carnaval. Só rindo. Esses caras são engraçados.
Um
maluco pulou da ponte Rio-Niterói e boiou doze horas até que uma lancha do
Salvamar o encontrou. Não pegou nem resfriado.
Um
incêndio num asilo matou quarenta velhos, as famílias celebraram.
Acabo
de dar a injeção de trinevral em dona Clotilde quando tocam a campainha. Nunca
tocam a campainha do sobrado. Eu faço as compras, arrumo a casa. Dona Clotilde
não tem parentes. Olho da sacada. É Ana Palindrômica.
Conversamos
na rua. Você está fugindo de mim?, ela pergunta. Mais ou menos, digo. Vou com
ela pro sobrado. Dona Clotilde, estou com uma moça aqui, posso levar pro quarto?
Meu filho, a casa é sua, faça o que quiser, só quero ver a moça.
Ficamos
em pé ao lado da cama. Dona Clotilde olha para Ana um tempo enorme. Seus olhos
se enchem de lágrimas. Eu rezava todas as noites, ela soluça, todas as noites
para você encontrar uma moça como essa. Ela ergue os braços magros cobertos de
finas pelancas para o alto, junta as mãos e diz, oh meu Deus, como vos
agradeço!
Estamos
no meu quarto, em pé, sobrancelha com sobrancelha, como no poema, e tiro a
roupa dela e ela a minha e o corpo dela é tão lindo que sinto um aperto na
garganta, lágrimas no meu rosto, olhos ardendo, minhas mãos tremem e agora
estamos deitados, um no outro, entrançados, gemendo, e mais, e mais, sem parar,
ela grita, a boca aberta, os dentes brancos como de um elefante jovem, ai, ai,
adoro a tua obsessão!, ela grita, água e sal e porra jorram de nossos corpos,
sem parar.
Agora,
muito tempo depois, deitados olhando um para o outro hipnotizados até que
anoitece e nossos rostos brilham no escuro e o perfume do corpo dela traspassa
as paredes do quarto.
Ana
acordou primeiro do que eu e a luz está acesa. Você só tem livros de poesia? E
estas armas todas, pra quê? Ela pega a Magnum no armário, carne branca e aço
negro, aponta pra mim. Sento na cama.
Quer
atirar? pode atirar, a velha não vai ouvir. Mais para cima um pouco. Com a
ponta do dedo suspendo o cano até a altura da minha testa. Aqui não dói.
Você
já matou alguém? Ana aponta a arma para minha testa.
Já.
Foi
bom?
Foi.
Como?
Um alívio.
Como
nós dois na cama? Não, não, outra coisa. O outro lado disso. Eu não tenho medo
de você, Ana diz. Nem eu de você. Eu te amo.
Conversamos
até amanhecer. Sinto uma espécie de febre. Faço café pra dona Clotil-de e levo
pra ela na cama. Vou sair com Ana, digo. Deus ouviu minhas preces, diz a velha
entre goles.
Hoje
é dia 24 de dezembro, dia do Baile de Natal ou Primeiro Grito de Carnaval. Ana
Palindrômica saiu de casa e está morando comigo. Meu ódio agora é diferente.
Tenho uma missão. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou
a ver. Sei que se todo fodido fizesse como eu o mundo seria melhor e mais
justo. Ana me ensinou a usar explosivos e acho que já estou preparado para essa
mudança de escala. Matar um por um é coisa mística e disso eu me libertei. No
Baile de Natal mataremos convencionalmente os que pudermos. Será o meu último
gesto romântico inconseqüente. Escolhemos para iniciar a nova fase os
compristas nojentos de um supermercado da zona sul.
Serão
mortos por uma bomba de alto poder explosivo. Adeus, meu facão, adeus meu
punhal, meu rifle, meu Colt Cobra, adeus minha Magnum, hoje será o último dia
em que vocês serão usados. Beijo o meu facão. Explodirei as pessoas, adquirirei
prestígio, não serei apenas o louco da Magnum. Também não sairei mais pelo
parque do Flamengo olhando as árvores, os troncos, a raiz, as folhas, a sombra,
escolhendo a árvore que eu queria ter, que eu sempre quis ter, num pedaço de
chão de terra batida. Eu as vi crescer no parque e me alegrava quando chovia e
a terra se empapava de água, as folhas lavadas de chuva, o vento balançando os
galhos, enquanto os carros dos canalhas passavam velozmente sem que eles
olhassem para os lados. Já não perco meu tempo com sonhos.
O
mundo inteiro saberá quem é você, quem somos nós, diz Ana.
Notícia:
O governador vai se fantasiar de Papai Noel. Notícia: Menos festejos e mais
meditação, vamos purificar o coração. Notícia: Não faltará cerveja. Não
faltarão perus. Notícia: Os festejos natalinos causarão este ano mais vítimas
de trânsito e de agressões do que nos anos anteriores. Polícia e hospitais
preparamse para as comemorações de Natal. O cardeal na televisão: a festa de
Natal está deturpada, o seu sentido não é este, essa história de Papai Noel é
uma invenção infeliz. O cardeal afirma que Papai Noel é um palhaço fictício.
Véspera
de Natal é um bom dia para essa gente pagar o que deve, diz Ana. O Papai Noel
do baile eu mesmo quero matar com o facão, digo.
Leio
para Ana o que escrevi, nosso manifesto de Natal, para os jornais. Nada de sair
matando a esmo, sem objetivo definido. Eu não sabia o que queria, não buscava
um resultado prático, meu ódio estava sendo desperdiçado. Eu estava certo nos
meus impulsos, meu erro era não saber quem era o inimigo e por que era inimigo.
Agora eu sei, Ana me ensinou. E o meu exemplo deve ser seguido por outros,
muitos outros, só assim mudaremos o mundo. É a síntese do nosso manifesto.
Ponho
as armas numa mala. Ana atira tão bem quanto eu, só não sabe manejar o facão,
mas essa arma agora é obsoleta. Damos até logo à dona Clotilde. Botamos a mala
no carro. Vamos ao Baile de Natal. Não faltará cerveja, nem perus. Nem sangue.
Fecha-se um ciclo da minha vida e abre-se outro.
RUBEM
FONSECA (1925-| Brasil)
Um
dos renovadores da moderna ficção urbana brasileira, na melhor vertente da
literatura americana do século XX, Rubem Fonseca vem surpreendendo, polemizando
e ganhando leitores desde sua estréia em 1963, com Os Prisioneiros, seguido em
1965 por A Coleira do Cão. Depois, Lúcia McCartney e outros, até o mais recente
Pequenas Criaturas (2002). João Alexandre Barbosa fala de seus "contos
insólitos, agressivos, experimentos de interpretação psicológica e de linguagem,
comunicando uma obcecante visão do homem preso a si mesmo, às suas imagens e
memórias, ao isolamento". Rubem partiu para o romance com O Caso Morei e,
principalmente, com A Grande Arte e Bufo & SpaIlanzani, romances que,
pode-se dizer, inauguram o romance policial brasileiro em grande estilo.
Mandrake, talvez o melhor conto brasileiro de detetive, não caberia numa
antologia como esta, devido à sua extensão. Optamos, então, por O Exterminador
(opção também de Alfredo Bosi, em O Conto Brasileiro Contemporâneo) e O
Cobrador.
O cobrador
Íntegra do depoimento de Lula em
Curitiba – HD
“Publicado em 11 de mai de 2017
Esta é a versão do depoimento de
Lula gravada com uma câmera HD e com o enquadramento de cima. Não é bem a
super-produção que os advogados petistas desejavam fazer durante o depoimento,
mas como João Santana está preso e como o juiz não autorizou a entrada de um
time de gravação profissional, isso é o melhor que eles conseguiram.
Eu dei uma ajudinha pra eles e
sincronizei um pouco o áudio e unifiquei os 20 segmentos diferentes. Se
divirtam.”
Juliano Camargo
Referência
file:///C:/Users/User/Desktop/Os%20100%20Melhores%20Contos%20de%20Crime%20e%20Mist%C3%A9rio%20da%20Literatura%20Universal%20-%20Fl%C3%A1vio%20Moreira%20Da%20Costa.pdf
https://youtu.be/3yq9cOagGtk
https://youtu.be/p599ekg-Wqa
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