100. BALAIO
Apareceram
dois caras estranhos no bairro tirando informação sobre o Tiãozinho. O pessoal
se fechou. Não demorou e vieram falar comigo, sabiam que eu e o Tiãozinho
andamos juntos muito tempo.
O
começo foi manso. Eu estava jogando balaio com uns amigos. Balaio é um tipo de
truco que inventamos, mais agressivo, que dava ao vencedor o direito de ser o
primeiro a atirar no próximo sujeito que a gente fosse derrubar. Eles
apareceram, me chamaram de lado, abriram cervejas. Sentei-me com eles.
Explicaram
que a ficha do Tiãozinho era encomenda de um grandão da Zona Norte. Não sabiam
o motivo.
Eu
disse que, sem conhecer o motivo, ficava difícil.
Um
deles comentou que talvez o grandão quisesse as informações para decidir algo
positivo em favor do Tiãozinho. Tinha a pele cor de pastel cru. Parecia uma
dessas pessoas que nunca comem carne.
O
outro era preto. Três rugas no rosto: duas quando ria, ao redor da boca; a
outra aparecia na testa, na hora em que ficava sério. Impossível saber a idade
dele.
O
branco prosseguiu aventando: Quem sabe o Tiãozinho não está pra assumir uma
posição importante com o homem?
O
preto emendou: Pois é, e se ele estiver pra casar com a filha do homem? O
Tiãozinho não seria capaz de um negócio desses?
O
grandão é bicha?, eu perguntei.
O
preto: Não, claro que não.
E
o outro: Por quê?
Porque
o Tiãozinho é capaz de qualquer coisa, eu disse. Inclusive de estar casando com
esse grandão aí.
Os
dois riram. O que foi bom: vi que o pessoal, que continuava firme no jogo, deu
uma relaxada. Perceberam que era conversa amistosa.
Essa
é boa, o branco ainda ria. E o que mais você pode contar sobre ele?
Mais
nada, eu falei. Me digam o motivo ou então a gente pode mudar de assunto.
Eles
se olharam, contrariados. O branco pareceu sentir mais o golpe. Era aquele tipo
de homem que adora ser contrariado - em casa, no trabalho, no trânsito, em todo
lugar. Só para poder explodir.
Foi
ele quem falou, se controlando: Bom, então acho que temos um problema aqui. Um
problemão.
O
preto tentou amaciar, a ruga atravessada na testa: Você podia facilitar as
coisas pra todos nós. Veja bem: temos ordem até de pagar pelas informações se
for preciso.
Batuquei
com as unhas no copo de cerveja. Fazia muito tempo que eu não via o Tiãozinho.
A última notícia era que ele andava amigado com uma dona asmática, que quase
matava todas as noites, porque nunca sabia se ela estava gozando ou tendo uma
crise de falta de ar.
Os
dois esperaram, achando que eu considerava o lance do dinheiro. Mesmo jogando
no campo do adversário, pareciam seguros. Era uma noite fria e ambos vestiam
casacos. Dava para adivinhar que estavam armados. Com coisa pesada.
Acho
que vocês deviam dar outra volta pelo bairro, eu disse. Talvez apareça alguém
disposto a vender alguma informação.
Você
está complicando um negócio simples, falou o branco. Em vez disso, podia ganhar
um bom dinheiro.
Vamos
fazer o seguinte, eu me curvei e apoiei os cotovelos na mesa. Vocês descobrem
por que esse grandão quer as informações sobre o Tiãozinho e voltam aqui pra me
contar. Aí eu falo de graça, que tal?
Eu
tenho uma proposta melhor, o branco colocou sal no meu copo e mexeu com o dedo.
Você vai com a gente e conversa direto com o homem lá na Zona Norte. Eu prometo
que depois a gente traz você de volta direitinho.
Eu
ri: Não vai dar. Eu odeio sair do bairro.
Você
vai com a gente, sim, o preto disse e tirou as duas mãos de cima da mesa.
Foi
um gesto rápido, muito rápido. Se tivéssemos gente assim do nosso lado, eu
pensei, nossa vida ia ser bem menos complicada. Olhei para ele com atenção e me
descuidei do outro. E era exatamente o que esperavam que eu fizesse.
Percebi
isso quando o branco se mexeu, a mão sob a mesa, e falou: Eu tenho uma 45
apontada para a sua barriga. Não tem jeito de errar.
O
Tiãozinho deve estar metido em algum rolo muito grande, eu disse. Ou então
vocês dois são meio malucos.
As
mãos do preto continuavam debaixo da mesa. Na certa com duas armas também
apontadas para mim.
Nós
vamos sair daqui bem devagar, o branco anunciou. Você vai na frente, com muita
calma, e é bom não fazer nenhuma besteira.
Eu
permanecia apoiado na mesa e não me mexi. Disse a eles que bastava eu tossir
para que aquele pessoal todo puxasse as armas.
Será
a última vez que você vai tossir na vida, o branco falou. Você é quem sabe.
Uma
coisa eu garanto, o preto disse. Vou levar um monte de gente comigo. E você
será o primeiro.
Uma
vez, quando eu era mais novo, vi um sujeito abrir caminho à bala num puteiro
cercado pela polícia. Foi a única vez que presenciei alguém atirando com duas
armas ao mesmo tempo. O cara tem que ser muito bom pra fazer isso. Aquele
sujeito era e conseguiu escapar.
Vou
pedir a conta, o branco avisou. Daí, a gente vai sair na boa, combinado?
Eu
endireitei o corpo, mantendo as mãos sobre a mesa. O preto acompanhou meus
movimentos com atenção. E pude ouvir o ruído quando ele puxou o cão dos
revólveres.
Você
tá armado?, ele perguntou.
Estou,
eu menti.
Atendendo
ao aceno do branco, Josué veio para perto da mesa e informou o valor da conta,
satisfeito. As mãos do branco reapareceram, segurando uma carteira marrom.
Enquanto ele escolhia as notas, olhei para Josué, que me sorriu.
Era
um bom sujeito, costumava ajudar muita gente no bairro. Às vezes, quando nossos
jogos avançavam até tarde da noite, Josué ia para casa e nos deixava a chave,
recomendando apenas que a gente não esquecesse as luzes acesas ao sair. Eu
gostava dele. Por isso, lamentei que as coisas se complicassem justo no seu
bar.
E
elas se complicaram mesmo. Mas não do jeito que eu esperava.
A
viatura estacionou na porta do bar e os quatro policiais entraram, olhando
primeiro para o pessoal que jogava balaio e depois para a mesa em que
estávamos. Três deles usavam sobretudo e carregavam escopetas. No comando, um
tenente que eu conhecia de vista. Gente boa.
Ele
interrompeu o jogo e mandou que todo mundo se colocasse com as mãos na parede.
Pensei que o tempo ia fechar: ali dentro tinha mais armas do que na vitrine das
lojas de caça do centro. Os rapazes obedeceram, movendo-se com lentidão.
Estavam esperando algo. Uma fagulha.
Quando
o tenente se dirigiu a nós, eu me levantei da mesa na hora e me juntei aos meus
companheiros. O branco e o preto não se mexeram. Ambos estavam com apenas uma
das mãos sobre a mesa. O tenente achou aquilo curioso e avaliou a situação por
alguns instantes. Um dos policiais afastou-se em direção à porta, procurando um
ângulo mais favorável.
Gostei
da cena. Claro que armamento grosso serve para dar confiança a um sujeito. Mas
eu nunca tinha visto caras tão frios como aqueles dois. E pelo jeito nem o
tenente, que recuou lateralmente e colocou a mão no coldre.
Josué
sorriu para ele e disse: Não precisa nada disso, tenente. Conheço todo mundo, é
gente daqui do bairro.
O
tenente cuspiu o chiclete que mascava e perguntou: E esses dois?
Conheço
eles também, tenente, Josué falou. São amigos.
O
preto mantinha a vista baixa, evitando encarar o tenente. O branco olhava para
lugar nenhum. Ia explodir a qualquer momento.
O
tenente ainda analisou os dois por mais alguns segundos. E então relaxou.
Você
tem visto o Tiãozinho?, ele perguntou a Josué.
Tem
tempo que esse danado não dá as caras por estas bandas, Josué disse. Deve estar
circulando em outra área. Ele aprontou alguma?
Estamos
na captura dele, o tenente fez um gesto para os policiais e eles baixaram as
escopetas. Tiãozinho devia mesmo estar metido em algum lance muito grande, eu
pensei.
O
tenente colocou outro chiclete na boca, olhou mais uma vez para a dupla na mesa
e depois para nós. Daí saiu, acompanhado pelos policiais.
No
exato momento em que a viatura arrancou, os rapazes puxaram as armas. Os dois
continuavam imóveis, as mãos ocultas pela mesa. Ia começar a queima de fogos.
Pedi
a Josué que saísse e baixasse a porta do bar. Ele fez isso, depois de lançar
uma expressão triste para o balcão e para as garrafas nas prateleiras.
Magno,
que estava ao meu lado, me entregou um dos revólveres que carregava, um 38.
Éramos quatro contra os dois.
Como
é que nós vamos resolver isso?, eu perguntei.
O
preto trocou um olhar rápido com seu companheiro. Por mim, a coisa já está
resolvida, ele disse. Você ouviu: a polícia vai cuidar do Tiãozinho pra nós.
O
branco sorriu: Mas se você quiser partir pra festa, nós topamos. Vai ser um
estrago bem grande.
Eu
sabia que bastava um movimento brusco e os dois se levantariam atirando. Então
baixei o revólver com cuidado e disse: Ninguém vai ganhar nada com isso. Vamos
fazer um trato: vocês dois saem deste bar sem problema e nunca mais aparecem
por aqui.
O
preto ainda tripudiou, perguntando para o branco: O que você acha?
Ele
continuava sorrindo: Me parece justo. Assim ninguém abusa de ninguém.
Eu
avisei aos rapazes que os dois iriam sair e que a gente não faria nada. E
caminhei até a porta, para abri-Ia.
Os
dois iam sair e provavelmente nunca mais botariam o pé naquele bairro. Mas eram
profissionais. E com esse tipo de gente convém não facilitar. Por isso, a um passo
da porta, eu parei e alcancei o interruptor, desligando as luzes do bar.
O
tiroteio durou meio minuto, se tanto. Quando reacendi as luzes, o preto estava
com a cabeça tombada numa poça de sangue sobre a mesa. O branco caíra para
trás, arrastando junto sua cadeira. Eu me aproximei e notei que, apesar de
estar com um ferimento feio acima do olho direito, ele ainda gemia. Mirei na
cabeça e puxei o gatilho, mas as balas do revólver tinham acabado. Um dos
rapazes me empurrou para o lado e completou o serviço.
Magno
perguntou: O que vamos fazer com eles?
O
de sempre, eu falei.
Olhei
o sangue espalhado pelo bar. Eu não queria que o Josué tivesse motivo pra se
queixar da gente.
Vamos
lá, eu disse. Depois ainda temos que voltar aqui pra fazer uma boa faxina.
MARÇAL AQUINO
(1958 - | Brasil)
Uma grata revelação de contista da
nova geração, o paulista Marçal Aquino, na linha do modernista Antônio de
Alcântara Machado, mas aproximando-se do pós-modernismo de um Raymond Carver, é
um contista da marginalidade atual, ou seja, do brasileiro abandonado à sua
própria sorte e da violência na periferia urbana (paulista, mas internacional).
São contos secos, sem a glamorização dos "humilhados e ofendidos", e
recusando-se o autor a cair na facilidade generalizada do psicologismo. É autor
de Miss Danúbio, O Amor e outros Objetos Pontiagudos e Faroestes, de onde
tiramos este Balaio. O cineasta Beto Brandt já realizou três longasmetragens
baseados em seus contos.
Contos da Meia Noite - Balaio- de
Marçal Aquino, interpretado por Matheus Nachtergaele.
Referência
https://www.e-livros.xyz/imagens/livros/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-universal-flvio-moreira-da-costa.jpg
https://youtu.be/HlKRlBDfojQ
https://www.e-livros.xyz/ver/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-universal-flvio-moreira-da-costa
Nenhum comentário:
Postar um comentário