quinta-feira, 17 de abril de 2025

O ovo e o orçamento

Votou sem partido Voltou todo partido Inteiraço *A VIDA*
O OVO E O ORÇAMENTO Introdução A Constituição de 1988 marcou o fim da ditadura militar e o retorno da democracia no Brasil. A partir desse marco histórico, a galinha — símbolo aqui da ordem democrática — começou a botar ovos na sociedade, na liberdade e no exercício pleno da cidadania. Um desses ovos, cuidadosamente chocado ao longo do tempo, deu origem ao galinheiro, replicado pela terceira vez em 2022, agora liderado por um dos que, à época, votaram contra a galinha, conforme veio a público; mas que, ao final, subscreveu sua certidão de nascimento. Diante dessa metáfora provocadora, surgem questões que norteiam a reflexão que se seguirá: Quem veio primeiro: 1988 ou 2002? A galinha ou o ovo? Quem é, afinal, a galinha? O que representa o ovo? E o que seria o galinheiro? Essas indagações, embora revestidas de humor e imaginação, conduzem a uma análise profunda da construção democrática brasileira, de seus marcos institucionais e dos desdobramentos históricos que se seguiram à promulgação da Constituição Cidadã. Desenvolvimento 1. A Galinha — a democracia posta em liberdade No imaginário desta alegoria, a galinha é a própria democracia brasileira, libertada do cativeiro autoritário em 1988. Não nasceu naquele ano, mas foi ali que voltou a ciscar com liberdade, após duas décadas trancafiada no galinheiro da repressão. Foi posta em plenário, debatida em comissões, aprovada por múltiplos cacarejos constituintes — inclusive de alguns galos que, antes, lhe haviam negado o espaço de vida. Sua postura, contudo, não era apenas simbólica. Cada ovo posto após 1988 carregava a promessa de direitos, garantias, políticas públicas, e reformas que dessem vida aos princípios recém-instituídos: cidadania, dignidade, pluralismo, participação, transparência. 2. O Ovo — as realizações e contradições da democracia O ovo é, portanto, cada fruto legislativo, institucional ou social gestado pela galinha democrática. É a Constituição em sua concretude. São leis, programas, reformas, orçamentos. Mas também são os equívocos, os retrocessos, os ovos trincados — como aquelas políticas mal formuladas, ou os escândalos que corroem a casca da confiança pública. Entre esses ovos, alguns são emblemáticos: a estabilidade econômica do Plano Real, os avanços sociais das décadas seguintes, e, em 2002, a eleição de um ex-metalúrgico à presidência — um marco de virada simbólica para o galinheiro, mas também um sinal de que o ovo já vinha se transformando em ave. 3. O Galinheiro — a institucionalização da democracia O galinheiro, por sua vez, é o sistema político-institucional construído após 1988: o Congresso, o Executivo, o Judiciário, as instituições de controle, os partidos políticos, os eleitores. Nele, convivem aves de diferentes penas — algumas democráticas, outras apenas decorativas. É onde os ovos são chocados ou rejeitados, e onde cacarejos se transformam em votos, vetos ou vetustas disputas regimentais. Em 2022, esse galinheiro foi replicado pela terceira vez — ou seja, pela terceira vez desde 2002, o eleitorado reconduziu um mesmo projeto político, agora liderado por alguém que, décadas antes, havia resistido ao nascimento da galinha, mas acabou por assiná-la. 4. 1988 e 2002: a galinha e o ovo no espelho da história A provocação “Quem veio primeiro?” não busca uma resposta definitiva, mas um exercício de análise. 1988 foi a galinha, posta pela luta civil e política contra a ditadura. 2002, o ovo eclodido após uma década e meia de experiências democráticas, fruto de um amadurecimento institucional, social e eleitoral. Contudo, os tempos que se seguiram mostraram que nem todo ovo posto é fértil, e nem todo galinheiro é imune às raposas — internas ou externas. 5. O Poleiro de Ouro — o Congresso como palco dos cacarejos No alto do galinheiro democrático ergue-se o Poleiro de Ouro, conhecido nas planilhas oficiais como Congresso Nacional. É lá que se desenrolam os rituais mais barulhentos da política, com galos, galinhas, frangos e até pintinhos disputando espaço para cacarejar suas ideias, interesses e, por vezes, vaidades. O Poleiro não bota ovos, mas os aprova, rejeita, altera ou empaca. É ali que a galinha constitucional tem sua fertilidade testada a cada ciclo legislativo. Ao mesmo tempo, o Poleiro também se alimenta dos ovos já postos, usando-os como matéria-prima para novos cacarejos: leis orçamentárias, emendas constitucionais, comissões parlamentares, e — com freqüuencia — articulações que mais parecem dança de galinheiro do que coreografia institucional. Apesar das penas lustrosas que exibe em épocas eleitorais, o Poleiro carrega em seu madeirame os riscos da erosão: corporativismo, fisiologismo, personalismo. Ainda assim, segue sendo fundamental para a sustentação do telhado democrático. 6. O Agronegócio e o Milho Chinês — quando o galinheiro vira exportador de ração No quintal do galinheiro, longe das luzes do Poleiro, cisca o Agronegócio Brasileiro — galo forte, de canto grosso e penas douradas. Não se importa com debates políticos, desde que sua ração seja farta, e seus grãos bem precificados. O Agronegócio, embora declare neutralidade partidária, mantém olhos atentos à direção do vento legislativo e ao humor dos mercados. Seu maior freguês, atualmente, é a China, ave milenar e de apetite imenso, que consome bilhões em soja, carne e derivados. Para o Agronegócio, exportar milho é mais importante que votar projeto. A China, silenciosa, observa e compra — sem cacarejar. E enquanto o milho vai, o poder vem. A influência econômica da China no quintal sul-americano cresce como capim em terra fértil, ocupando os vazios deixados pelo velho gavião do norte. 7. O Gavião Trump — e a ilusão do quintal perdido Do alto de uma árvore distante, o Gavião Trump, de crista pintada e olhar imperial, sobrevoa o galinheiro com bico acusador. Lamenta o avanço chinês sobre o quintal, como se este ainda lhe pertencesse por direito divino ou herança militar. — Estamos retomando o nosso quintal! — grasna seu secretário, com os olhos fixos no Canal do Panamá e as garras apontadas para qualquer país que ousar negociar por conta própria. Ignora, no entanto, que o galinheiro já cresceu, aprendeu a cacarejar sozinho e descobriu que a pluralidade de fregueses é uma forma de soberania. O Gavião, preso a um passado em que os ovos brasileiros iam direto para Chicago, agora assiste, perplexo, ao desfile de contêineres rumo a Xangai. É, como bem notou Elio Gaspari, o tipo de ignorância que se recicla e se traveste de sabedoria. Ao querer reconquistar o quintal, Trump e seus iguais esquecem que o galinheiro não é mais curral — e que o milho já tem outros compradores.

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