O SORTILÉGIO DA HISTÓRIA
"Outra geração fará
melhor."
Machado de Assis
[...] é o homem, este ser comprometido
com a desventurada aventura de viver. [...]
[...] Admitem
haver resistido aos sobressaltos do tempo e da realidade com espírito
público. [...]
Permitam-me
breves confidências em torno da História que, nesta Casa, é vivida com zelo
raro e plenitude intelectual.
Confissões que brotam do mesmo prazer que sinto em apalpar a
invenção narrativa e dar-lhe forma.
A história do Brasil, e do mundo, chegou-me na infância.
Veio-me, a princípio, revesti da de intenso caráter lendário, encantando minha
imaginação, subordinando minha consciência de ficcionista. Desde o início
comprometeu a minha poética particular. E hoje, ainda, ressoam em mim os ruídos
e as memórias de épocas desfiguradas pela distância, que sobrevivem graças a um
pergaminho gasto, a uma ânfora esfarelada, a um testemunho deliciosamente
infiel.
Fez parte do meu debate interior considerar a História e a ficção
vizinhas entre si. Espécie de matéria que trazia levadura à criação, firmeza às
mãos, para fabular. Ambas, História e ficção, dotadas de mérito para mergulhar
na verdade e na mentira, no sacro e no profano. Tudo metal da mesma liga.
Acerquei-me da História sem qualquer aparato erudito. Com ela
estabelecendo uma aliança amorosa, instável, que superava simetrias
cronológicas e episódicas. Mas sem perder de vista que seus fundamentos
emanavam do precário e impreciso instrumento que é o homem, este ser
comprometido com a desventurada aventura de viver.
A História,
impregnada pelo sentimento do encantatório, chegou-me através de Heródoto,
primaz deste universo. No bojo de suas páginas albergavam-se mil noites de
imutável escuridão, mil terras servindo de cenários para os dramas hiperbólicos
e solitários. Noites e dias descritos com minúcias, ensejando ardentes
especulações. Como se na superfície de alguns desses textos existissem fendas,
interstícios, por onde ingressariam promessas de viagens, transtornos,
perplexidades.
Uma época, para
mim, libertária e juvenil. Entre a leitura dos clássicos rotundos e dos
folhetins estremecedores, encontrava motivos para mover um imaginário ainda
emperrado. Entre o amor à história e o enigma inerente à ficção, os livros
venciam aleatoriamente guerreiros, poderes dinásticos, séculos.
Sob a tutela da
ilusão, com sua folia envolvente, bastava surpreender perturbadoras máscaras
venezianas, para reviver a dor que Príamo expressa a Aquiles, ante os restos
mortais de Heitor, para naturalmente reconstituir a epopeia de Anchieta, a
perambular em tupi-guarani pelo território brasileiro, séculos mais
tarde.
Sempre foi
prazeroso desmobilizar a lógica, o rigor cronológico, o encadeamento dos fatos,
opor-me aos postulados que se interpunham entre a minha voracidade e o primado
da História.
Graças, contudo, a
essa canhestra exegese, eu visitava períodos e homens contraditórios. Cultivava
revelações oriundas de um tempo em que Apolo conversava com os homens.
Punha-me ao lado de Roland, sobrinho amado de Carlos Magno, a despedir-se da espada e da vida em Roncevaux.
Punha-me ao lado de Roland, sobrinho amado de Carlos Magno, a despedir-se da espada e da vida em Roncevaux.
Comovia-me com
historiadores que, em priscas eras, tiveram o imaginário como tônica
essencial.
Escribas como nós,
habitantes de uma História emoldurada pelas incertezas, não podiam eles prever
o advento de um futuro que emergia do peso documental, de outros sólidos
fundamentos. .
O próprio Heródoto,
guiado por um saber indireto, vacilante, de refinada intuição, desprovido de
qualquer recurso, registrava a história de países onde nunca pusera os pés.
Apalpava o âmago do enredo pretérito recorrendo às lendas, à fala coletiva,
esses relatos que se estilhaçavam em mil pontos de vista, soltos e
irreconciliáveis entre si, ao longo do seu percurso.
Falava ele
igualmente de seus contemporâneos. Para tanto, esmerando-se em forrar homens e
ocorrências com a única fidelidade ao seu alcance. Mas, também, o que se
poderia aguardar de um historiador que teve como vizinhos seres que, à
falta de definição precisa, intitulamos hoje de oráculos? Uma presença emblemática,
tão subversiva, que arrastava para o fulcro do coração humano, já por si
sobrecarregado de deuses, o fardo dos enigmas indecifráveis.
Cercado, pois, por
oráculos e deuses rancorosos, Heródoto, legítimo símbolo da liberdade,
sujeitava o feito histórico ao princípio inventivo, sem deixar, contudo, de
evidenciar as falhas divinas e humanas. Exorcizava os perigos da época,
transgredindo as normas narrativas vigentes.
Minhas
expectativas, então, originárias da criação literária, sintonizavam-se com
aquele mundo arcaico que usava igual filtro para avaliar a história e a ficção,
para montar um espetáculo que respondia ao nome de realidade.
O espelho dessa
espécie de História logo começou a embaçar sob o crescente jugo da limpidez
científica e documental. Meu instinto de ficcionista advertia-me a respeito dos
heróis, mártires e vilões, todos guardados sob o signo da imutabilidade,
promovidos pela seta certeira de uma História que os idealizava.
Como ficcionista,
aspirava à imperícia, ao rigor pendular, a memória instaurando analogias
impossíveis, a História contrariando cada versão que ganhasse a luz.
Buscava, como
agora, os encantos derramados por um repertório vasto e foragido, que me trazia
um Tucídides mais realista, um Fernão Lopes a propugnar pelas grandes forças
coletivas. Muito depois, um Braudel, um Georges Duby, um Philipe Erlanger, um
Philippe Ariès, que acudiam ao clamor da minha imaginação. Nomes que
instauraram a liberdade da história por meio de ousados estudos das vidas
privadas e das mentalidades. E, ainda, vindos dos primórdios brasileiros, um
Frei Vicente do Salvador, um Rocha Pita, pais da historiografia do nosso
país.
Historiadores que
sonharam, em algum lugar do seu coração, com o indiscriminado uso das lendas e
dos mitos que perseguem a humanidade. Vincularam-se ao princípio que julga a
lenda, aninhada entre anônimos, rapsodos e funâmbulos, irmã de tudo que se
inventa. Pois que a lenda, alojada no coração da própria História, regenera os
enredos enfraquecidos pelas interpretações canônicas e depuradoras.
Indica aqueles
heróis nascidos da invenção, engendrados a golpes pelos sonhos populares.
Como escritora,
agradeço a História que baliza o tempo, que testemunha e relativiza os feitos
dos homens. Ensinou-me ela a alargar a moldura da realidade, a acomodar em seu
interior o acervo humano que tonifica a narrativa.
Estas
considerações, rebeldes e ficcionais, afloram, no entanto, com apego amoroso e
intelectual. Com que vigor reconheço as irradiações da História ao longo da
sociedade. A importância dos nossos historiadores na avaliação do Brasil.
O papel que o
Instituto Histórico e Geográfico desempenhou sempre junto à nossa
cultura.
Desde 1838, quando
esta Casa foi fundada, muito lhe deve a historiografia brasileira. O muito que
sabemos da história nacional cabe dentro do horizonte desta Instituição, que
nasceu nos braços da monarquia brasileira, sob a égide do Imperador Pedro II.
E já ia o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro avançado nos anos, quando quis o destino que
a Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897, não tendo morada certa, fosse
ser sua vizinha. Cruzávamos todos o umbral da mesma casa a cada semana.
Uma vizinhança que
se explica quando o poder público de então, incapaz de prover a algumas
instituições brasileiras, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a
Academia de Medicina, a Ordem dos Advogados, a Academia Brasileira de Letras,
com morada própria, decidiu ceder a estas instituições, em conjunto, a mesma
edificação. Um prédio situado no Largo da Lapa, "ao pé da praia",
entre o convento das Carmelitas e o Passeio Público, e que ficou conhecido como
o Silogeu Brasileiro.
Em carta a Joaquim
Nabuco, datada de 7 de outubro de 1903, achado de Assis consigna sua
compreensão em face desse condomínio. Refresca a memória do amigo com
descrições relativas à localização do futuro Silogeu. Confessa-lhe haver
visitado a ala que viria a ser ocupada pela Academia. À instituição cabendo o
espaço que atenderia à Biblioteca e às Sessões ordinárias, sendo o salão de
festas e das sessões solenes comum a todos. E encerra ele o tema com a frase
que, sob forma de presságio, anuncia o futuro cenário da Academia Brasileira de
Letras: "Outra geração fará melhor."
Durante anos o
Instituto e a Academia viveram em concórdia. E, mesmo após havermos deixado o
Silogeu em 1923, para instalarmo-nos no Petit Trianon, por inspirada iniciativa
do presidente Afrânio Peixoto, com o apoio do governo francês, mantivemos
estreita aliança sob um regime afetivo e intelectual.
Prova desses laços
são os inúmeros intelectuais que, ao longo dos anos, empossaram-se igualmente
nas duas instituições. Intelectuais que cumprem, ainda hoje, com intransigência
intelectual, o ritual de frequentar as duas Instituições, na qualidade de
membros efetivos dessas Casas.
Por essas razões, e
tantas outras, a Academia Brasileira de Letras sente-se honrada pela homenagem
que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro presta-lhe por motivo do seu
Primeiro Centenário, a se cumprir no dia 20 de julho de 1997.
Uma data que
integra o calendário espiritual e cultural de uma nação empenhada em
estabelecer, e tornar visíveis, os traços relevantes de sua civilização.
Nesta ocasião,
ambas as Instituições, em face da História, reconhecem haver examinado com
rigor e paixão as grandes questões nacionais. Admitem haver resistido aos
sobressaltos do tempo e da realidade com espírito público.
Voltar a esta Casa,
que também foi nossa no passado, é motivo de júbilo. Por aqui transitam gratas
memórias. Aqui mesmo, no histórico Silogeu, foi velado, antes de ser conduzido
à morada final, o Presidente Machado de Assis. Aqui ouvimos o arrebata dor
discurso de Rui Barbosa, a despedir-se do grande escritor.
Sob a graça e a
proteção de tantas emoções, agradecemos a hospitalidade, a homenagem, as
vívidas evocações.
Acadêmico relacionado :
Nélida Piñon
Significado de Sortilégio
O que é Sortilégio:
Sortilégio é um substantivo na língua portuguesa que se refere
ao ato ou ação de enfeitiçar, encantar ou seduzir,
através de atributos naturais ou artificiais.
Etimologicamente, o termo "sortilégio" se originou do
latim sortilegium, que significa "adivinhação". Na
definição tradicional da palavra, sortilégio está relacionado
com praticas consideras ocultas, como a feitiçaria, a bruxaria ou
a invocação de espíritos malígnos com o intuito de conquistar algum objetivo
pessoal.
Durante a Idade Média, por exemplo, várias pessoas, principalmente
mulheres, foram condenadas à Fogueira da Inquisição pela
Igreja Católica que, de acordo com as acusações, utilizavam sortilégios
(feitiços e encantamentos, teoricamente sobrenaturais) em prol de vontades do
demônio.
Saiba mais sobre o significado de Heresia.
A palavra sortilégio ainda pode ter o sentido de maquinação, combinação ou conspiração,
normalmente com a intenção de obter algo, um desejo pessoal, egoísta ou que é
considerado imoral ou anti-ético, na maioria das vezes.
De forma geral, o sortilégio pode ser um conjunto de características
de sedução, naturais ou artificiais, que um indivíduo pode ter e
utilizar para conquistar algo em seu benefício próprio.
Exemplo: "Ele utilizou de seus sortilégios para
conquistar a amizade do rapaz"
No Brasil, a telenovela mexicana "Sortilégio" foi
exibida pela rede de televisão SBT, entre os meses de outubro de 2014 e
fevereiro de 2015. No México, esta novela foi ao ar no ano de 2009, com 90
capítulos.
Data de
atualização: 10/03/2015.
https://www.significados.com.br/sortilegio/
Referências
http://www.academia.org.br/academicos/nelida-pinon/o-sortilegio-da-historia
https://www.significados.com.br/sortilegio/
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