sábado, 29 de junho de 2019

O REVOLTADO ROBESPIERRE & Feminicídio na intimidade




Laranja-da-China



“São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)



O REVOLTADO ROBESPIERRE
Laranja-da-China de Alcântara Machado

— O povo que sue para pagar o luxo dos afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Vá mamando no Tesouro enquanto o povo não se levanta e manda vocês todos... Nada! Mas isto um dia acaba.


O REVOLTADO ROBESPIERRE

(Senhor Natanael Robespierre dos Anjos)
Todos os dias úteis às dez e meia toma o bonde no Largo de Santa Cecília encrencando com o motorneiro.

— Quando a gente levanta o guarda-chuva é para você parar essa joça! Ouviu, sua besta?

Gosta de todos aqueles olhares fixos nele. Tira o chapéu. Passa a mão pela cabeleira leonina. Enche as bochechas e dá um sopro comprido. Paga a passagem com dez mil-réis. Exige o troco imediatamente.

— Não quero saber de conversa, seu galego. Passe já o troco. E dinheiro limpo, entendeu? Bom.

Retém o condutor com um gesto e verifica sossegadamente o troco.

— O quê? Retrato de Artur Bernardes? Deus me livre e guarde! Arranje outra nota.

Levanta-se para dar um jeito na cinta, chupa o cigarro (Sudan Ovais por causa dos cheques), examina todos os bancos, vira-que-vira, começa:

— Isto até parece serviço do governo! Pausa. Sacudidela na cabeleira leonina. Conclui:
— O que vale é que os homens um dia voltam...

Primeiro sorriso aparentemente sibilino. Passeio da mão direita na barba escanhoada. Será espinha? Tira o espelhinho do bolso. É espinha sim. Porcaria. Segundo sorriso mais ou menos sibilino. Cara de nojo.

Não sei que raio de cheiro tem este Largo do Arouche, safa!
Vira a aliança no seu-vizinho. Essa operação deixa-o meditabundo por uns instantes. Finca o olhar de sobrancelhas unidas no cavalheiro da esquerda. Esperando. O cavalheiro afinal percebe a insistência. É agora:

— Perdão. O senhor leu a última tabela do Matadouro? Viu o preço da carne de leitão, por exemplo? Cinco ou seis ou não sei quantos mil-réis o quilo!

Não espera resposta. Não precisa de resposta Berra no ouvido do velho da direita:

— É como estou lhe contando: o quilo!

Quase despenca do bonde para ver uma costureirinha na Rua do Arouche. As pernas magras encolhem-se assustadas.

— O cavalheiro queira ter a bondade de me desculpar. São os malditos solavancos desta geringonça. Um dia cai aos pedaços.

Dá um tabefe no queixo, mas cadê mosca? Tira um palito do bolso, raspa o primeiro molar superior direito (se duvidarem muito é fibra de manga), olha a ponta do palito, chupa o dente com a ponta da língua (tó! tó!), um a um percorre os anúncios do bonde. Ritmando a leitura com a cabeça. Aplicadamente. Raio de italiano para falar alto. Falta de educação é cousa que a gente percebe logo. Não tem que ver. O do ODOL já leu. Estava começando o da CASA VENCEDORA. Isto de preço de custo só engana os trouxas.

— Oh estupidez! O senhor já reparou naquele anúncio ali? Bem em cima da mulher de chapéu verde. CONSERTA-SE MÁQUINAS DE ESCREVER. conserta-se máquinassss! Fan-tás-tico! Eu não pretendo por duzentos réis condução e ainda por cima trechos seletos de Camilo ou outro qualquer autor de peso, é verdade... Mas enfim...

É preciso um fecho erudito e interessante ao mesmo tempo.

— Mas enfim...

A mão procura inutilmente no ar dando voltinhas.

— Mas enfim... Seu Serafim...

Fica nisso mesmo. Acerta o cebolão com o relógio do Largo do Municipal. Esfrega as mãos. O guarda-chuva cai. Ergue-o sem jeito. Enfia a cartolinha lutando com as melenas. Previne os vizinhos:

— Este viaduto é uma fábrica de constipações. De constipações só? De pneumonias mesmo. Duplas!

Silêncio. Mas eloqüente. Palito de fósforo é bom para limpar o ouvido. Descobre-se diante da Igreja de Santo Antônio.

— Não está vendo, seu animal, que a mulher; não se sentou ainda? Aprenda a tratar melhor os passageiros! Tenha educação!

Cumprimenta rasgadamente o Doutor Indalécio Pilho, subinspetor das bombas de gasolina, que passa no seu Marmon oficial e não o vê. Depois anota apressadamente o número do automóvel no verso de uma cautela do Monte de Socorro do Estado.

— O povo que sue para pagar o luxo dos afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Vá mamando no Tesouro enquanto o povo não se levanta e manda vocês todos... Nada! Mas isto um dia acaba.

Terceiro sorriso nada sibilino. Passa para a ponta. Confirma para os escritórios da I.R.F. Matarazzo:

— Ora se acaba!

Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos. Acende-o no do vizinho. E dá de limpar as unhas com o canivete de madrepérola. Na esquina da Rua Anchieta por pouco não arrebenta o cordão da campainha. Estende a destra espalmada para o companheiro de viagem:

— Natanael Robespierre dos Anjos, um seu criado. Desce no Largo do Tesouro. Faz a sua fézinha no CHALET PRESIDENCIAL (centenas invertidas). Atravessa de guarda-chuva feito espingarda o Largo do Palácio.

E todos os dias úteis às onze horas menos cinco minutos entra com o pé direito na Secretaria dos Negócios de Agricultura e Comércio onde há vinte e dois anos ajuda a administrar o Estado (essa nação dentro da nação) com as suas luzes de terceiro escriturário por concurso não falando na carta de um republicano histórico.




*José de Souza Martins: Feminicídio na intimidade


Dois casamentos costurados pela violência, sem causa aparente.


- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Entre 2012 e 2017, a taxa de homicídio na residência, por 100 mil mulheres, aumentou 17,5%. A família abrigou a violência

Sou de uma família em que minha mãe, viúva e casada pela segunda vez, em várias ocasiões sofreu tentativa de assassinato por parte de meu padrasto, sem motivo, repentinamente. Ela se tornaria evangélica, e isso deve ter aprofundado o abismo entre os dois. Ele tentou ser evangélico e desistiu. Católico nominal, foi duas vezes à igreja, no batismo e no casamento. Da vida regular e ordenada da roça, onde nascera e crescera, migrara para as incertezas da cidade e da fábrica, que nunca compreendeu.

Em mais de uma ocasião tentou matar os enteados também. A última tentativa foi contra mim. Eu já era adulto, aluno da Universidade de São Paulo. Foi quando, então, saí de casa e fui cuidar de minha vida. Por essa época, minha mãe teve o bom senso de se separar do marido. Ele acabou voltando para a roça e, com o tempo, foi morar com outra mulher, que, anos depois, o mataria a pauladas. Dois casamentos costurados pela violência, sem causa aparente.

Era uma boa pessoa. Trabalhador, não bebia, não fumava, que esse era o estereótipo das pessoas honradas. Analfabeto, caipira de quatro costados, com fortes traços mamelucos. Tampouco se adaptou à fábrica. Na cultura caipira, era um erudito. Tudo que sei sobre esse assunto, e sei relativamente muito, aprendi com ele, num período em que a família viveu na roça, quando eu estava na escola primária.

A experiência negativa em casa deu-me a experiência da observação participante, como se diz nas ciências sociais. Vivi e conheci o invisível das problemáticas relações de família numa sociedade em transição, que separa e confronta em vez de unir, a sociedade do descompasso e da ira.

Enquanto pesquisador e estudioso dos temas sociais, sinto uma grande angústia quando me deparo com estatísticas sobre violência contra mulheres. Seus dados documentam um fato, mas não revelam o essencial, os mecanismos sutis e imperceptíveis no cotidiano. Os que corroem os relacionamentos e disseminam a violência entre os que violentos não são ou não deveriam ser.

Sugerem, mas não dizem que a família não é necessariamente essa bela instituição que as igrejas hipocritamente proclamam. Boa parte da violência letal ocorre dentro de casa. No estudo recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Ipea, a alta proporção de homicídios de mulheres ocorre em família. Entre 2012 e 2017, a taxa de homicídios na residência, por 100 mil mulheres, aumentou 17,5%, enquanto a taxa fora da residência diminuiu 3,3%. A família abrigou a violência.

A modernização rápida sem atenuante de adaptação desestruturou-a, tornou-a uma instituição precária, na maior parte das vezes mero arrimo. A mulher, mas os filhos também, é a grande vítima e o será quanto mais a família se tornar resíduo das mudanças econômicas. Especialmente se levarmos em conta a conhecida função social das avós no amparo e cuidado de filhos dos filhos vitimados pela violência, pelo desemprego e pela pobreza.

A desorganização social da família, em decorrência de fatores econômicos, não entra no raciocínio dos que dizem cuidar da saúde da economia brasileira. Política econômica sem política de amparo contra suas consequências sociais destrutivas é política de promoção de dramas sociais.

As anunciadas mudanças na Previdência Social agravarão o problema. São mudanças para países ricos, e não para países como o nosso, alcançado por extenso e grave estado de anomia. Elas destruirão a concepção e a função de que a Previdência Social é um bem de família. Isso não está na lei, nunca esteve. Mas está na vida.

Nos últimos 30 anos a precaríssima Previdência Social rural dos velhos amparou pais, filhos e netos vitimados pela marginalização social decorrente do desemprego na roça, fruto, em boa parte, de transformações tecnológicas nos setores agrícolas mais representativos da agroeconomia brasileira. Tecnologias desenvolvidas e implantadas com financiamento público favorecido. O Estado conspirando contra a sociedade: promoveu e apoiou a mudança tecnológica, mas não previu suas consequências sociais. Os velhos, que serão injustamente punidos com as mudanças previdenciárias de agora, têm sido o sofrido instituto de previdência informal dos desvalidos que trabalharam a vida inteira por muito menos do que valia a imensa riqueza que criaram.

O discurso previdenciário oficial torna completamente hipócrita o discurso moralista e religioso do Ministério da Família, do da Educação, e do próprio presidente da República. Ainda que ele tenha se confessado "terrivelmente cristão", a 4 mil pastores pentecostais, ninguém o é quando, com o poder que tem, não considera as consequências sociais do que faz e separa o "terrivelmente" do "cristão".

*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de ‘Moleque de Fábrica’ (Ateliê Editorial).







No conto que abre o volume, O revoltado Robespierre, a precipitação da primeira frase anuncia a personalidade intensa do protagonista. A ironia do título, iremos descobrindo-a pouco a pouco. Agressivo, irrequieto, com seu “sorriso sibilino”, parágrafo a parágrafo gestos e pensamentos se sobrepõem, disparatados, na mente do Senhor Natanael Robespierre. Crítico radical, resta-lhe às vezes, em sua febre de falar, apenas a linguagem fática. Apesar do exaltamento, mostra-se, no entanto, dissimulado e servil diante de um superior. No fim, o narrador conclui a superposição de sentidos: título da narrativa, nome da personagem e psicologia se fundem nesse soldado da República, escriturário cuja espingarda é um guarda-chuva — e cujo ardor vale meia pataca.
Por RODRIGO GURGEL
Ensaios e Resenhas





Em Laranja da China apresenta uma série de figuras humanas com designativos alusivos a grandes personalidades da história (“O Filósofo Platão”, “O Revoltado Robespierre”), mas que não passam de gente comum, do cotidiano (Senhor Platão Soares, Senhor Natanael Robespierre dos Anjos). Nessa obra mostra-se um mestre da técnica do “tempo retardado”, que é uma espécie de “câmera lenta” da literatura, em que o autor detém a passagem do tempo e descreve os mínimos detalhes.


‘O rei devia morrer para que o país pudesse viver’: a Revolução Francesa segundo Robespierre. Por Camila Nogueira
Publicado por
Camila Nogueira
9 de julho de 2015



“Sem a virtude, o terror é fatal; sem o terror, a virtude é impotente.
                                                                                                      




Referências

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCRuzsjqOYeSh9BGyUxRK3YQfVNAbCbJZ957oggUwCcGsg0rEe8aZzzIVWu7iPOq_sKR2P6ZBhHAdodmBcPEXk0odfzivjTWWtoJiSlM8lI7pfs0uirQgTTOfIAydH1N-5yL8HEsuPpHw/s960/IMG_5723A-004.JPG
http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com/
http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/alcantara3.pdf
http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/06/jose-de-souza-martins-feminicidio-na.html
http://rascunho.com.br/lacuna-prejudicial/
http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com/
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/wp-content/uploads/2012/11/Robespierre.jpg
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-rei-devia-morrer-para-que-o-pais-pudesse-viver-a-revolucao-francesa-segundo-robespierre/

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