Laranja-da-China
“São Paulo, até 1910 era uma província tocada
a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que
uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da
América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX,
para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)
O REVOLTADO ROBESPIERRE
Laranja-da-China de Alcântara Machado
— O povo que sue para pagar o luxo dos
afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Vá mamando no Tesouro enquanto o povo
não se levanta e manda vocês todos... Nada! Mas isto um dia acaba.
O REVOLTADO ROBESPIERRE
(Senhor Natanael Robespierre dos
Anjos)
Todos os dias úteis às dez e meia toma
o bonde no Largo de Santa Cecília encrencando com o motorneiro.
— Quando a gente levanta o
guarda-chuva é para você parar essa joça! Ouviu, sua besta?
Gosta de todos aqueles olhares fixos
nele. Tira o chapéu. Passa a mão pela cabeleira leonina. Enche as bochechas e
dá um sopro comprido. Paga a passagem com dez mil-réis. Exige o troco imediatamente.
— Não quero saber de conversa, seu
galego. Passe já o troco. E dinheiro limpo, entendeu? Bom.
Retém o condutor com um gesto e
verifica sossegadamente o troco.
— O quê? Retrato de Artur Bernardes?
Deus me livre e guarde! Arranje outra nota.
Levanta-se para dar um jeito na cinta,
chupa o cigarro (Sudan Ovais por causa dos cheques), examina todos os bancos,
vira-que-vira, começa:
— Isto até parece serviço do governo!
Pausa. Sacudidela na cabeleira leonina. Conclui:
— O que vale é que os homens um dia
voltam...
Primeiro sorriso aparentemente
sibilino. Passeio da mão direita na barba escanhoada. Será espinha? Tira o
espelhinho do bolso. É espinha sim. Porcaria. Segundo sorriso mais ou menos
sibilino. Cara de nojo.
Não sei que raio de cheiro tem este
Largo do Arouche, safa!
Vira a aliança no seu-vizinho. Essa
operação deixa-o meditabundo por uns instantes. Finca o olhar de sobrancelhas
unidas no cavalheiro da esquerda. Esperando. O cavalheiro afinal percebe a
insistência. É agora:
— Perdão. O senhor leu a última tabela
do Matadouro? Viu o preço da carne de leitão, por exemplo? Cinco ou seis ou não
sei quantos mil-réis o quilo!
Não espera resposta. Não precisa de
resposta Berra no ouvido do velho da direita:
— É como estou lhe contando: o quilo!
Quase despenca do bonde para ver uma
costureirinha na Rua do Arouche. As pernas magras encolhem-se assustadas.
— O cavalheiro queira ter a bondade de
me desculpar. São os malditos solavancos desta geringonça. Um dia cai aos
pedaços.
Dá um tabefe no queixo, mas cadê
mosca? Tira um palito do bolso, raspa o primeiro molar superior direito (se
duvidarem muito é fibra de manga), olha a ponta do palito, chupa o dente com a
ponta da língua (tó! tó!), um a um percorre os anúncios do bonde. Ritmando a
leitura com a cabeça. Aplicadamente. Raio de italiano para falar alto. Falta de
educação é cousa que a gente percebe logo. Não tem que ver. O do ODOL já leu.
Estava começando o da CASA VENCEDORA. Isto de preço de custo só engana os
trouxas.
— Oh estupidez! O senhor já reparou
naquele anúncio ali? Bem em cima da mulher de chapéu verde. CONSERTA-SE
MÁQUINAS DE ESCREVER. conserta-se máquinassss! Fan-tás-tico! Eu não pretendo
por duzentos réis condução e ainda por cima trechos seletos de Camilo ou outro
qualquer autor de peso, é verdade... Mas enfim...
É preciso um fecho erudito e
interessante ao mesmo tempo.
— Mas enfim...
A mão procura inutilmente no ar dando
voltinhas.
— Mas enfim... Seu Serafim...
Fica nisso mesmo. Acerta o cebolão com
o relógio do Largo do Municipal. Esfrega as mãos. O guarda-chuva cai. Ergue-o
sem jeito. Enfia a cartolinha lutando com as melenas. Previne os vizinhos:
— Este viaduto é uma fábrica de
constipações. De constipações só? De pneumonias mesmo. Duplas!
Silêncio. Mas eloqüente. Palito de
fósforo é bom para limpar o ouvido. Descobre-se diante da Igreja de Santo
Antônio.
— Não está vendo, seu animal, que a
mulher; não se sentou ainda? Aprenda a tratar melhor os passageiros! Tenha
educação!
Cumprimenta rasgadamente o Doutor
Indalécio Pilho, subinspetor das bombas de gasolina, que passa no seu Marmon
oficial e não o vê. Depois anota apressadamente o número do automóvel no verso
de uma cautela do Monte de Socorro do Estado.
— O povo que sue para pagar o luxo dos
afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Vá mamando no Tesouro enquanto o povo
não se levanta e manda vocês todos... Nada! Mas isto um dia acaba.
Terceiro sorriso nada sibilino. Passa
para a ponta. Confirma para os escritórios da I.R.F. Matarazzo:
— Ora se acaba!
Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos.
Acende-o no do vizinho. E dá de limpar as unhas com o canivete de madrepérola.
Na esquina da Rua Anchieta por pouco não arrebenta o cordão da campainha.
Estende a destra espalmada para o companheiro de viagem:
— Natanael Robespierre dos Anjos, um
seu criado. Desce no Largo do Tesouro. Faz a sua fézinha no CHALET PRESIDENCIAL
(centenas invertidas). Atravessa de guarda-chuva feito espingarda o Largo do
Palácio.
E todos os dias úteis às onze horas
menos cinco minutos entra com o pé direito na Secretaria dos Negócios de
Agricultura e Comércio onde há vinte e dois anos ajuda a administrar o Estado
(essa nação dentro da nação) com as suas luzes de terceiro escriturário por
concurso não falando na carta de um republicano histórico.
*José de Souza Martins: Feminicídio na
intimidade
Dois casamentos costurados pela violência, sem
causa aparente.
- Valor Econômico / Eu & Fim de
Semana
Entre 2012 e 2017, a taxa de homicídio
na residência, por 100 mil mulheres, aumentou 17,5%. A família abrigou a
violência
Sou de uma família em que minha mãe,
viúva e casada pela segunda vez, em várias ocasiões sofreu tentativa de
assassinato por parte de meu padrasto, sem motivo, repentinamente. Ela se
tornaria evangélica, e isso deve ter aprofundado o abismo entre os dois. Ele
tentou ser evangélico e desistiu. Católico nominal, foi duas vezes à igreja, no
batismo e no casamento. Da vida regular e ordenada da roça, onde nascera e
crescera, migrara para as incertezas da cidade e da fábrica, que nunca
compreendeu.
Em mais de uma ocasião tentou matar os
enteados também. A última tentativa foi contra mim. Eu já era adulto, aluno da
Universidade de São Paulo. Foi quando, então, saí de casa e fui cuidar de minha
vida. Por essa época, minha mãe teve o bom senso de se separar do marido. Ele
acabou voltando para a roça e, com o tempo, foi morar com outra mulher, que,
anos depois, o mataria a pauladas. Dois casamentos costurados pela violência,
sem causa aparente.
Era uma boa pessoa. Trabalhador, não
bebia, não fumava, que esse era o estereótipo das pessoas honradas. Analfabeto,
caipira de quatro costados, com fortes traços mamelucos. Tampouco se adaptou à
fábrica. Na cultura caipira, era um erudito. Tudo que sei sobre esse assunto, e
sei relativamente muito, aprendi com ele, num período em que a família viveu na
roça, quando eu estava na escola primária.
A experiência negativa em casa deu-me
a experiência da observação participante, como se diz nas ciências sociais.
Vivi e conheci o invisível das problemáticas relações de família numa sociedade
em transição, que separa e confronta em vez de unir, a sociedade do descompasso
e da ira.
Enquanto pesquisador e estudioso dos
temas sociais, sinto uma grande angústia quando me deparo com estatísticas sobre
violência contra mulheres. Seus dados documentam um fato, mas não revelam o
essencial, os mecanismos sutis e imperceptíveis no cotidiano. Os que corroem os
relacionamentos e disseminam a violência entre os que violentos não são ou não
deveriam ser.
Sugerem, mas não dizem que a família
não é necessariamente essa bela instituição que as igrejas hipocritamente
proclamam. Boa parte da violência letal ocorre dentro de casa. No estudo
recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Ipea, a alta proporção de
homicídios de mulheres ocorre em família. Entre 2012 e 2017, a taxa de
homicídios na residência, por 100 mil mulheres, aumentou 17,5%, enquanto a taxa
fora da residência diminuiu 3,3%. A família abrigou a violência.
A modernização rápida sem atenuante de
adaptação desestruturou-a, tornou-a uma instituição precária, na maior parte
das vezes mero arrimo. A mulher, mas os filhos também, é a grande vítima e o
será quanto mais a família se tornar resíduo das mudanças econômicas.
Especialmente se levarmos em conta a conhecida função social das avós no amparo
e cuidado de filhos dos filhos vitimados pela violência, pelo desemprego e pela
pobreza.
A desorganização social da família, em
decorrência de fatores econômicos, não entra no raciocínio dos que dizem cuidar
da saúde da economia brasileira. Política econômica sem política de amparo
contra suas consequências sociais destrutivas é política de promoção de dramas
sociais.
As anunciadas mudanças na Previdência
Social agravarão o problema. São mudanças para países ricos, e não para países
como o nosso, alcançado por extenso e grave estado de anomia. Elas destruirão a
concepção e a função de que a Previdência Social é um bem de família. Isso não
está na lei, nunca esteve. Mas está na vida.
Nos últimos 30 anos a precaríssima
Previdência Social rural dos velhos amparou pais, filhos e netos vitimados pela
marginalização social decorrente do desemprego na roça, fruto, em boa parte, de
transformações tecnológicas nos setores agrícolas mais representativos da
agroeconomia brasileira. Tecnologias desenvolvidas e implantadas com
financiamento público favorecido. O Estado conspirando contra a sociedade:
promoveu e apoiou a mudança tecnológica, mas não previu suas consequências
sociais. Os velhos, que serão injustamente punidos com as mudanças
previdenciárias de agora, têm sido o sofrido instituto de previdência informal
dos desvalidos que trabalharam a vida inteira por muito menos do que valia a
imensa riqueza que criaram.
O discurso previdenciário oficial
torna completamente hipócrita o discurso moralista e religioso do Ministério da
Família, do da Educação, e do próprio presidente da República. Ainda que ele
tenha se confessado "terrivelmente cristão", a 4 mil pastores
pentecostais, ninguém o é quando, com o poder que tem, não considera as
consequências sociais do que faz e separa o "terrivelmente" do
"cristão".
*José de Souza Martins é sociólogo.
Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre
outros livros, autor de ‘Moleque de Fábrica’ (Ateliê Editorial).
No conto que abre o volume, O revoltado Robespierre, a precipitação da primeira frase
anuncia a personalidade intensa do protagonista. A ironia do título, iremos
descobrindo-a pouco a pouco. Agressivo, irrequieto, com seu “sorriso sibilino”,
parágrafo a parágrafo gestos e pensamentos se sobrepõem, disparatados, na mente
do Senhor Natanael Robespierre. Crítico radical, resta-lhe às vezes, em sua
febre de falar, apenas a linguagem fática. Apesar do exaltamento, mostra-se, no
entanto, dissimulado e servil diante de um superior. No fim, o narrador conclui
a superposição de sentidos: título da narrativa, nome da personagem e
psicologia se fundem nesse soldado da República, escriturário cuja espingarda é
um guarda-chuva — e cujo ardor vale meia pataca.
Por RODRIGO
GURGEL
Ensaios e
Resenhas
Em Laranja da China apresenta uma
série de figuras humanas com designativos alusivos a grandes personalidades da
história (“O Filósofo Platão”, “O Revoltado Robespierre”), mas que não
passam de gente comum, do cotidiano (Senhor Platão Soares, Senhor Natanael
Robespierre dos Anjos). Nessa obra mostra-se um mestre da técnica do “tempo
retardado”, que é uma espécie de “câmera lenta” da literatura, em que o autor
detém a passagem do tempo e descreve os mínimos detalhes.
‘O rei devia morrer para que o país pudesse viver’: a Revolução Francesa segundo Robespierre. Por Camila Nogueira
‘O rei devia morrer para que o país pudesse viver’: a Revolução Francesa segundo Robespierre. Por Camila Nogueira
Publicado por
Camila Nogueira
9 de julho de 2015
“Sem a virtude, o terror é fatal; sem o
terror, a virtude é impotente.
Referências
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCRuzsjqOYeSh9BGyUxRK3YQfVNAbCbJZ957oggUwCcGsg0rEe8aZzzIVWu7iPOq_sKR2P6ZBhHAdodmBcPEXk0odfzivjTWWtoJiSlM8lI7pfs0uirQgTTOfIAydH1N-5yL8HEsuPpHw/s960/IMG_5723A-004.JPG
http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com/
http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/alcantara3.pdf
http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/06/jose-de-souza-martins-feminicidio-na.html
http://rascunho.com.br/lacuna-prejudicial/
http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com/
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/wp-content/uploads/2012/11/Robespierre.jpg
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-rei-devia-morrer-para-que-o-pais-pudesse-viver-a-revolucao-francesa-segundo-robespierre/
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