terça-feira, 4 de junho de 2019

NOTAS BIOGRÁFICAS DO NOVO DEPUTADO



O DESTINO DOS PERSONAGENS

...ou são forçadas a abrir mão da própria identidade para obter uma estreita perspectiva de progresso...


A CONSTRUÇÃO DOS PERSONAGENS

...o detalhe do nariz escorrendo retrata a falta de polidez do personagem, em contraponto aos componentes “chiques” de seu visual...



BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA
NOTÍCIAS DE SÃO PAULO

1927

Alcântara Machado



SAN VINCENZO È L'VLTIMA COLONIA DE' PORTOGHESI: E PERCHE È IN VN PAESE LONTANISSIMO, VI SI SOGLIONO CONDENNARE QUEI, CHE IN PORTOGALLO HANNO MERITATO LA GALERA, Ò COSE TALI.
GIOVANNI BOTERO.
Le relatione universali. In Brescia. 1595.

ESTA É A PÁTRIA DOS NOSSOS DESCENDENTES
CONDE FRANCISCO MATARAZZO.
Discurso de saudação ao Dr. Washington Luís. São Paulo. 1926



ARTIGO DE FUNDO

Assim como quem nasce homem de bem deve ter a fronte altiva, quem nasce jornal deve ter artigo de fundo. A fachada explica o resto.
Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.

Brás, Bexiga e Barra Funda é o órgão dos ítalo-brasileiros de São Paulo.

Durante muito tempo a nacionalidade viveu da mescla de três raças que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.
A primeira, as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente e desdenhosa de "mostrar suas vergonhas". A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta se enamoraram das moças "bem gentis" daquela, que tinham cabelos "mui pretos, compridos pelas espadoas".
E nasceram os primeiros mamalucos.
A terceira veio nos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e servir a gente. Trazendo outras moças gentis, mucamas, mucambas, munibandas, macumas.
E nasceram os segundos mamalucos.
E os mamalucos das duas fornadas deram o empurrão inicial no Brasil. O colosso começou a rolar.

Então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou na terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta também imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.
Do consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante com a indígena nasceram os novos mamalucos.
Nasceram os intalianinhos.
O Gaetaninho.
A Carmela.
Brasileiros e paulistas. Até bandeirantes.
E o colosso continuou rolando.

No começo a arrogância indígena perguntou meio zangada:

Carcamano pé-de-chumbo
Calcanhar de frigideira
Quem te deu a confiança
De casar com brasileira?

O pé-de-chumbo poderia responder tirando o cachimbo da boca e cuspindo de lado: A brasileira, per Bacco!
Mas não disse nada. Adaptou-se. Trabalhou. Integrou-se. Prosperou.
E o negro violeiro cantou assim:

Italiano grita
Brasileiro fala
Viva o Brasil
E a bandeira da Itália!

Brás, Bexiga e Barra Funda, como membro da livre imprensa que é, tenta fixar tão somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia. Só. Não tem partido nem ideal. Não comenta. Não discute. Não aprofunda.
Principalmente não aprofunda. Em suas colunas não se encontra uma única linha de doutrina. Tudo são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de rua. O aspecto étnicosocial dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu historiador. E será então analisado e pesado num livro.
Brás, Bexiga e Barra Funda não é um livro.

Inscrevendo em sua coluna de honra os nomes de alguns ítalo-brasileiros ilustres este jornal rende uma homenagem à força e às virtudes da nova fornada mamaluca. São nomes de literatos, jornalistas, cientistas, políticos, esportistas, artistas e industriais. Todos eles figuram entre os que impulsionam e nobilitam neste momento a vida espiritual e material de São Paulo.
Brás, Bexiga e Barra Funda não é uma sátira.

A REDAÇÃO







NOTAS BIOGRÁFICAS DO NOVO DEPUTADO

O coronel recusou a sopa.
- Que é isso, Juca? Está doente?
O coronel coçou o queixo. Revirou os olhos. Quebrou um palito. Deu um estalo com a língua.
- Que é que você tem, homem de Deus?
O coronel não disse nada. Tirou uma carta do bolso de dentro. Pôs os óculos. Começou a ler:
- Ex.mo snr. coronel Juca.
- De quem é?
- Do administrador da Santa Inácia.
- Já sei. Geada?
- Escute. Ex.mo snr. coronel Juca. Rospeitosas Saudações. Em primeiro lugar Saudo-vos. V. Ecia. e D. Nequinha. Coronel venho por meio desta respeitosameute comunicar para V. E. que o cafezal novo agradeceu bastante as chuvarada desta semana. E tal e tal e tal. Me acho doente diversos incomodos divido o serviço.
- Coitado.
- Mas não é isso. O major Domingo Neto mandou buscar a vacca... Oh senhor! Não acho...
- Na outra página, Juca.
- Está aqui. Vá escutando. Em ultimo lugar, vos communico que o seu comprade João Intaliano morreu...
- Meu Deus, não diga?!
- ... morreu segunda que passou de uma anemia nos rim. Por esses motivos recolhi em casa o vosso afilhado e orpham Gennrinho. Pesso para V.E. que me mande dizer o distino e tal. E agora, mulher?
Dona Nequinha suspirou. Bebeu um gole de água. Mandou levar a sopa.
- E então?
Dona Nequinha passou a língua nos lábios. Levantou a tampa da farinheira. Arranjou o virote.
- E então? Que é que eu respondo?
Dona Nequinha pensou. Pensou. Pensou. E depois:
- Vamos pensar bem primeiro, Juca. Não coma o torresmo que faz mal. Amanhã você responde. E deixe-se de extravagâncias.

Gennarinho desceu na estação da Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo chibante. De chapéu vermelho. Bengalinha na mão. Rebocado pelo filho mais velho do administrador. E com uma carta para o Coronel J. Peixoto de Faria.
Tomou o coche Hudson que estava à sua espera. Veio desde a estação até a Avenida Higienópolis com a cabeça para fora do automóvel soltando cusparadas. Apertou o dedo no portão. Disse uma palavra feia. Subiu as escadas berrando.
- Tire o chapéu.
Tirou.
- Diga boa noite.
Disse.
- Beije a mão dos padrinhos.
Beijou.
- Limpe o nariz.
Limpou com o chapéu.

- Pronto, Nhãzinha. A telefonista cortou. Chegou anteontem. Espertinho como ele só. Nem você imagina. Tem nove anos. É sim. Crescidinho. Juca ficou com dó dele. Pois é. Coitadinho. Imagine. Pois é. Faz de conta que é um filho. Já estou querendo bem mesmo. Gennarinho. O quê? É sim. Nome meio esquisito. Também acho. O Juca está que não pode mais de satisfeito. Ele que sempre desejou ter tanto um filho, não é? Pois então. Nasceu no Brás. O pai era não sei o quê. Estava na fazenda há cinco anos já. Bom, Nhãzinha. O Juca está me chamando. Beijos na Marianinha. Obrigada. O mesmo. Até amanhã. Ah! Ah! Ah Imagine! Nesta idade!... Até amanhã, Nhãzinha. Que é que você queria, Juca?
- Agora é tarde. Você não sabe o que perdeu.
- O Gennarinho, é?
- Diabinho de menino! Querendo a toda força levantar a saia da Atsué.
- Mas isso não está direito, Juca. Vou já e já...
- É. Direito não está mesmo. Mas é engraçado.
- ... dar uns tapas nele.
- Não faça isso, ora essa! Dar à toa no menino!
- Não é à toa, Juca.
- Bom. Então dê. Olhe aqui: eu mesmo dou, sabe? Eu tenho mais jeito.

Um dia na mesa o coronel implicou:
- Esse negócio de Gennarinho não está certo. Gennarinho não é nome de gente. Você agora passa a se chamar Januário que é a tradução. Eu já indaguei. Ouviu? Êta menino impossível! Sente-se já aí direito! Você passa a se chamar Januário. Ouviu?
- Ouvi.
- Não é assim que se responde. Diga sem se mexer na cadeira: Ouvi, sim senhor.
- Ouvi, sim senhor coronel!
Dona Nequinha riu como uma perdida. Da resposta e da continência.

Uma noite na cama Dona Nequinha perguntou:
- Juca: você já pensou no futuro do menino?
O coronel estava dorme não dorme. Respondeu bocejando:
- Já-á-á!...
- Que é que você resolveu?
O coronel levou um susto.
- O quê? Resolveu o quê?
- O futuro do menino, homem de Deus!
- Hã!...
- Responda.
O coronel coçou primeiro o pescoço.
- Para falar a verdade, Nequinha, ainda não resolvi nada.
O suspiro desanimado da consorte foi um protesto contra tamanha indecisão.
- Mas você não há de querer que ele cresça um vagabundo, eu espero.
- Pois está visto que não quero.
Aproveitando o silêncio o despertador bateu mais forte no criado-mudo. Dona Nequinha ajeitou o travesseiro. São José dentro de sua redoma espiou o vôo de dois pernilongos.
- Eu acho que... Apague a luz que está me incomodando.
- Pronto. Acho o quê?
- Eu acho que a primeira cousa que se deve fazer é meter o menino num colégio.
- Num colégio de padres.
- É.
- Eu sou católica. Você também é. O Januário também será.
- Muito bem...
- Você parece que está dizendo isso assim sem muito entusiasmo...
Era sono.
- Amanhã-ã-ã... ai! ai!... nós vemos isso direito, Nequinha...

Até o coronel ajudou a aprontar o Januário. Foi quem pôs ordem na cabelada cor de abóbora. Na terceira tentativa fez uma risca bem no meio da cabeça.
- Agora só falta a merenda.
Dona Nequinha preparou logo. Pão francês. Goiabada Pesqueira. Queijo Palmira.
- Diga pro Inácio tirar o automóvel. O fechado.
A comoção era geral. Dona Nequinha apertou mais uma vez a gravata azul do Januário. O coronel deu uma escovadela, pensativo, no gorro. Januário fez uma cara de vítima.
- Vamos indo que está na hora.
Dona Nequinha (o coronel já se achava no meio da escadaria de mármore carregando a pasta colegial) beijou mais uma vez a testa do menino. Chuchurreadamente. Maternalmente.
- Vá, meu filhinho. E tenha muito juízo, sim? Seja muito respeitador. Vá.
Todo compenetrado, de pescoço duro e passo duro, Januário alcançou o coronel.

A meninada entrava no Ginásio de São Bento em silêncio e beijava a mão do Senhor Reitor. Depois disparava pelos corredores jogando os chapéus no ar. As aulas de portas abertas esperavam de carteiras vazias. O berreiro sufocava o apito dos vigilantes.
- Cumprimente o Senhor Reitor.
D. Estanislau deu umas palmadinhas na nuca do Januário. Januário tremeu.
- Crescidinho já. Muito bem. Muito bem. Como se chama?
Januário não respondeu.
- Diga o seu nome para o Senhor Reitor.
- Januário.
- Ah! Muito bem. Januário. Muito bem. Januário de quê?
Januário estava louco para ir para o recreio. Nem ouviu.
- Diga o seu nome todo, menino!
Com os olhos no coronel:
- Januário Peixoto de Faria.
O porteiro apareceu com unia sineta na mão. Dlin-dlin! Dlin-dlin! Dlin-dlin!

O coronel seguiu para o São Paulo Clube pensando em fazer testamento.

Referências

ALCÂNTARA MACHADO, A. Brás, Bexiga e Barra Funda & Laranja da China. São Paulo: KlicK Editora, 1997.
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000005.pdf

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