O DESTINO DOS PERSONAGENS
...ou são forçadas a abrir mão da própria
identidade para obter uma estreita perspectiva de progresso...
A CONSTRUÇÃO DOS PERSONAGENS
...o detalhe do nariz escorrendo retrata a
falta de polidez do personagem, em contraponto aos componentes “chiques” de seu
visual...
BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA
NOTÍCIAS DE SÃO PAULO
1927
Alcântara Machado
SAN VINCENZO È L'VLTIMA COLONIA DE'
PORTOGHESI: E PERCHE È IN VN PAESE LONTANISSIMO, VI SI SOGLIONO CONDENNARE
QUEI, CHE IN PORTOGALLO HANNO MERITATO LA GALERA, Ò COSE TALI.
GIOVANNI BOTERO.
Le relatione universali. In Brescia.
1595.
ESTA É A PÁTRIA DOS NOSSOS
DESCENDENTES
CONDE FRANCISCO MATARAZZO.
Discurso de saudação ao Dr. Washington
Luís. São Paulo. 1926
ARTIGO DE FUNDO
Assim como quem nasce homem de bem
deve ter a fronte altiva, quem nasce jornal deve ter artigo de fundo. A fachada
explica o resto.
Este livro não nasceu livro: nasceu
jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio
portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.
Brás, Bexiga e Barra Funda é o órgão
dos ítalo-brasileiros de São Paulo.
Durante muito tempo a nacionalidade
viveu da mescla de três raças que os poetas xingaram de tristes: as três raças
tristes.
A primeira, as caravelas descobridoras
encontraram aqui comendo gente e desdenhosa de "mostrar suas
vergonhas". A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta
se enamoraram das moças "bem gentis" daquela, que tinham cabelos
"mui pretos, compridos pelas espadoas".
E nasceram os primeiros mamalucos.
A terceira veio nos porões dos navios
negreiros trabalhar o solo e servir a gente. Trazendo outras moças gentis,
mucamas, mucambas, munibandas, macumas.
E nasceram os segundos mamalucos.
E os mamalucos das duas fornadas deram
o empurrão inicial no Brasil. O colosso começou a rolar.
Então os transatlânticos trouxeram da
Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou na terra
paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta também
imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.
Do consórcio da gente imigrante com o
ambiente, do consórcio da gente imigrante com a indígena nasceram os novos
mamalucos.
Nasceram os intalianinhos.
O Gaetaninho.
A Carmela.
Brasileiros e paulistas. Até
bandeirantes.
E o colosso continuou rolando.
No começo a arrogância indígena
perguntou meio zangada:
Carcamano pé-de-chumbo
Calcanhar de frigideira
Quem te deu a confiança
De casar com brasileira?
O pé-de-chumbo poderia responder
tirando o cachimbo da boca e cuspindo de lado: A brasileira, per Bacco!
Mas não disse nada. Adaptou-se.
Trabalhou. Integrou-se. Prosperou.
E o negro violeiro cantou assim:
Italiano grita
Brasileiro fala
Viva o Brasil
E a bandeira da Itália!
Brás, Bexiga e Barra Funda, como membro da livre imprensa que é, tenta
fixar tão somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana
desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada.
Notícia. Só. Não tem partido nem ideal. Não comenta. Não discute. Não
aprofunda.
Principalmente não aprofunda. Em suas
colunas não se encontra uma única linha de doutrina. Tudo são fatos diversos.
Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de rua. O aspecto étnicosocial
dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu historiador. E será
então analisado e pesado num livro.
Brás, Bexiga e Barra Funda não é um livro.
Inscrevendo em sua coluna de honra os
nomes de alguns ítalo-brasileiros ilustres este jornal rende uma homenagem à
força e às virtudes da nova fornada mamaluca. São nomes de literatos,
jornalistas, cientistas, políticos, esportistas, artistas e industriais. Todos
eles figuram entre os que impulsionam e nobilitam neste momento a vida
espiritual e material de São Paulo.
Brás, Bexiga e Barra Funda não é uma sátira.
A REDAÇÃO
NOTAS BIOGRÁFICAS DO NOVO DEPUTADO
O coronel recusou a sopa.
- Que é isso, Juca? Está doente?
O coronel coçou o queixo. Revirou os
olhos. Quebrou um palito. Deu um estalo com a língua.
- Que é que você tem, homem de Deus?
O coronel não disse nada. Tirou uma
carta do bolso de dentro. Pôs os óculos. Começou a ler:
- Ex.mo snr. coronel Juca.
- De quem é?
- Do administrador da Santa Inácia.
- Já sei. Geada?
- Escute. Ex.mo snr. coronel Juca. Rospeitosas Saudações. Em primeiro lugar
Saudo-vos. V. Ecia. e D. Nequinha. Coronel venho por meio desta respeitosameute
comunicar para V. E. que o cafezal novo agradeceu bastante as chuvarada desta
semana. E tal e tal e tal. Me acho doente diversos incomodos divido o serviço.
- Coitado.
- Mas não é isso. O major Domingo Neto mandou buscar a vacca... Oh senhor! Não
acho...
- Na outra página, Juca.
- Está aqui. Vá escutando. Em ultimo lugar, vos communico que o seu
comprade João Intaliano morreu...
- Meu Deus, não diga?!
- ...
morreu segunda que passou de uma anemia nos rim. Por esses motivos recolhi em
casa o vosso afilhado e orpham Gennrinho. Pesso para V.E. que me mande dizer o
distino e tal. E agora, mulher?
Dona Nequinha suspirou. Bebeu um gole
de água. Mandou levar a sopa.
- E então?
Dona Nequinha passou a língua nos
lábios. Levantou a tampa da farinheira. Arranjou o virote.
- E então? Que é que eu respondo?
Dona Nequinha pensou. Pensou. Pensou.
E depois:
- Vamos pensar bem primeiro, Juca. Não
coma o torresmo que faz mal. Amanhã você responde. E deixe-se de
extravagâncias.
Gennarinho desceu na estação da
Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo chibante. De chapéu vermelho.
Bengalinha na mão. Rebocado pelo filho mais velho do administrador. E com uma
carta para o Coronel J. Peixoto de Faria.
Tomou o coche Hudson que estava à sua
espera. Veio desde a estação até a Avenida Higienópolis com a cabeça para fora
do automóvel soltando cusparadas. Apertou o dedo no portão. Disse uma palavra
feia. Subiu as escadas berrando.
- Tire o chapéu.
Tirou.
- Diga boa noite.
Disse.
- Beije a mão dos padrinhos.
Beijou.
- Limpe o nariz.
Limpou com o chapéu.
- Pronto, Nhãzinha. A telefonista
cortou. Chegou anteontem. Espertinho como ele só. Nem você imagina. Tem nove
anos. É sim. Crescidinho. Juca ficou com dó dele. Pois é. Coitadinho. Imagine.
Pois é. Faz de conta que é um filho. Já estou querendo bem mesmo. Gennarinho. O
quê? É sim. Nome meio esquisito. Também acho. O Juca está que não pode mais de
satisfeito. Ele que sempre desejou ter tanto um filho, não é? Pois então.
Nasceu no Brás. O pai era não sei o quê. Estava na fazenda há cinco anos já.
Bom, Nhãzinha. O Juca está me chamando. Beijos na Marianinha. Obrigada. O
mesmo. Até amanhã. Ah! Ah! Ah Imagine! Nesta idade!... Até amanhã, Nhãzinha.
Que é que você queria, Juca?
- Agora é tarde. Você não sabe o que
perdeu.
- O Gennarinho, é?
- Diabinho de menino! Querendo a toda
força levantar a saia da Atsué.
- Mas isso não está direito, Juca. Vou
já e já...
- É. Direito não está mesmo. Mas é
engraçado.
- ... dar uns tapas nele.
- Não faça isso, ora essa! Dar à toa
no menino!
- Não é à toa, Juca.
- Bom. Então dê. Olhe aqui: eu mesmo
dou, sabe? Eu tenho mais jeito.
Um dia na mesa o coronel implicou:
- Esse negócio de Gennarinho não está
certo. Gennarinho não é nome de gente. Você agora passa a se chamar Januário
que é a tradução. Eu já indaguei. Ouviu? Êta menino impossível! Sente-se já aí
direito! Você passa a se chamar Januário. Ouviu?
- Ouvi.
- Não é assim que se responde. Diga
sem se mexer na cadeira: Ouvi, sim senhor.
- Ouvi, sim senhor coronel!
Dona Nequinha riu como uma perdida. Da
resposta e da continência.
Uma noite na cama Dona Nequinha
perguntou:
- Juca: você já pensou no futuro do
menino?
O coronel estava dorme não dorme.
Respondeu bocejando:
- Já-á-á!...
- Que é que você resolveu?
O coronel levou um susto.
- O quê? Resolveu o quê?
- O futuro do menino, homem de Deus!
- Hã!...
- Responda.
O coronel coçou primeiro o pescoço.
- Para falar a verdade, Nequinha,
ainda não resolvi nada.
O suspiro desanimado da consorte foi
um protesto contra tamanha indecisão.
- Mas você não há de querer que ele
cresça um vagabundo, eu espero.
- Pois está visto que não quero.
Aproveitando o silêncio o despertador
bateu mais forte no criado-mudo. Dona Nequinha ajeitou o travesseiro. São José
dentro de sua redoma espiou o vôo de dois pernilongos.
- Eu acho que... Apague a luz que está
me incomodando.
- Pronto. Acho o quê?
- Eu acho que a primeira cousa que se
deve fazer é meter o menino num colégio.
- Num colégio de padres.
- É.
- Eu sou católica. Você também é. O
Januário também será.
- Muito bem...
- Você parece que está dizendo isso
assim sem muito entusiasmo...
Era sono.
- Amanhã-ã-ã... ai! ai!... nós vemos
isso direito, Nequinha...
Até o coronel ajudou a aprontar o
Januário. Foi quem pôs ordem na cabelada cor de abóbora. Na terceira tentativa
fez uma risca bem no meio da cabeça.
- Agora só falta a merenda.
Dona Nequinha preparou logo. Pão
francês. Goiabada Pesqueira. Queijo Palmira.
- Diga pro Inácio tirar o automóvel. O
fechado.
A comoção era geral. Dona Nequinha
apertou mais uma vez a gravata azul do Januário. O coronel deu uma escovadela,
pensativo, no gorro. Januário fez uma cara de vítima.
- Vamos indo que está na hora.
Dona Nequinha (o coronel já se achava
no meio da escadaria de mármore carregando a pasta colegial) beijou mais uma
vez a testa do menino. Chuchurreadamente. Maternalmente.
- Vá, meu filhinho. E tenha muito
juízo, sim? Seja muito respeitador. Vá.
Todo compenetrado, de pescoço duro e
passo duro, Januário alcançou o coronel.
A meninada entrava no Ginásio de São
Bento em silêncio e beijava a mão do Senhor Reitor. Depois disparava pelos
corredores jogando os chapéus no ar. As aulas de portas abertas esperavam de
carteiras vazias. O berreiro sufocava o apito dos vigilantes.
- Cumprimente o Senhor Reitor.
D. Estanislau deu umas palmadinhas na
nuca do Januário. Januário tremeu.
- Crescidinho já. Muito bem. Muito
bem. Como se chama?
Januário não respondeu.
- Diga o seu nome para o Senhor
Reitor.
- Januário.
- Ah! Muito bem. Januário. Muito bem.
Januário de quê?
Januário estava louco para ir para o
recreio. Nem ouviu.
- Diga o seu nome todo, menino!
Com os olhos no coronel:
- Januário Peixoto de Faria.
O porteiro apareceu com unia sineta na
mão. Dlin-dlin! Dlin-dlin! Dlin-dlin!
O coronel seguiu para o São Paulo
Clube pensando em fazer testamento.
Referências
ALCÂNTARA MACHADO, A. Brás, Bexiga e Barra Funda
& Laranja da China. São Paulo: KlicK Editora, 1997.
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000005.pdf
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