Alumiando como Candeia
Num Prado em flor de Divinópolis
Vai ser coxo na vida é maldição pra
homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Quando
nasci, um anjo torto
desses que
vivem na sombra
disse: Vai,
Carlos! ser gauche na vida.
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Adélia Prado & Drummond
‘(...) É curioso notar que nesse seu
primeiro livro, o primeiro poema, Com licença poética, é um bonito diálogo
intertextual com "Poema de Sete faces", também o primeiro poema do
primeiro livro de Drummond. Vamos, então, aos dois poemas inaugurais de ambos.’
Poema de sete faces
Carlos Drummond de Andrade
Quando
nasci, um anjo torto
desses que
vivem na sombra
disse: Vai,
Carlos! ser gauche na vida.
As casas
espiam os homens
que correm
atrás de mulheres.
A tarde
talvez fosse azul,
não houvesse
tantos desejos.
O bonde
passa cheio de pernas:
pernas
brancas pretas amarelas.
Para que
tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus
olhos
não
perguntam nada.
O homem
atrás do bigode
é sério,
simples e forte.
Quase não
conversa.
Tem poucos,
raros amigos
o homem
atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus,
por que me abandonaste
se sabias
que eu não era Deus,
se sabias
que eu era fraco.
Mundo mundo
vasto mundo
se eu me
chamasse Raimundo
seria uma
rima, não seria uma solução.
Mundo mundo
vasto mundo,
mais vasto é
meu coração.
Eu não devia
te dizer
mas essa lua
mas esse
conhaque
botam a
gente comovido como o diabo.
Com licença poética
Adélia Prado
Quando nasci
um anjo esbelto,
desses que
tocam trombeta, anunciou:
vai carregar
bandeira.
Cargo muito
pesado pra mulher,
esta espécie
ainda envergonhada.
Aceito os
subterfúgios que me cabem,
sem precisar
mentir.
Não sou tão
feia que não possa casar,
acho o Rio
de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora
não, creio em parto sem dor.
Mas o que
sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro
linhagens, fundo reinos
-- dor não é
amargura.
Minha
tristeza não tem pedigree,
já a minha
vontade de alegria,
sua raiz vai
ao meu mil avô.
Mulher é
desdobrável. Eu sou.
MARCADORES: ADÉLIA
PRADO, CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, COM LICENÇA POÉTICA, DRUMMOND, POEMA
DE SETE FACES
NÓS SOMOS.
“(...) É Adélia Prado, a poeta de
Divinópolisi, Mg, amanhecia sempre numa casa vestida de luz, a mulher
desdobrável., em licença poética (...)
Carmen Lins
Adélia é lírica, bíblica,
existencial, faz poesia como faz bom tempo; esta é a lei, não dos homens, mas
de Deus. Adélia é fogo de Deus em Divinópolis.
Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade
José
Castelo
Adélia Prado retoma o diálogo com Deus em dois livros
(in O Estado de São Paulo, 22.05.1999)
Depois de cinco anos sem publicar, a poeta mineira lança `Oráculos de Maio', uma coletânea de poemas, e `Manuscritos de Felipa', um texto curto, que ela define como uma experiência literária e religiosa
Depois de O
Homem da Mão Seca, de 1994, a poeta mineira Adélia Prado ficou cinco anos sem
publicar. Volta agora com dois livros simultâneos: Oráculos de Maio (Siciliano,
139 págs.), coletânea de poemas, e Manuscritos de Felipa (Siciliano, 161
págs.), uma prosa curta. Antes de escrevê-los, Adélia atravessou um difícil
período de vazio. Convidada, por fim, para assinar crônicas semanais no Correio
Braziliense, sem planejar, acabou retornando aos livros. Nas últimas 20 semanas
de sua vida de cronista, Adélia passou a publicar em sua coluna aqueles que
viriam a ser os 20 primeiros capítulos do Manuscrito de Felipa.
Os dois
novos livros assemelham-se porque, mais uma vez, Adélia escreve para dialogar
com Deus. O leitor entra só como testemunha e até um pouco como invasor. Mas,
apesar dos fortes laços que tem com a religião, Adélia considera-se uma poeta e
não uma profeta. "Meu projeto sempre foi escrever", ela diz. Lançados
os dois livros, continua a trabalhar numa longa série de poemas, ainda sem
destino fixado. Adélia não se tem furtado a dar palestras não só para grupos de
católicos, mas também para leigos das mais diversas especialidades, entre eles
muitos psicanalistas. Não a afeta que parte da crítica e também da comunidade
dos poetas, fiéis a um velho preconceito, ainda a considerem mais uma
catequista do que uma escritora. Está serena, segue seu caminho sem olhar para
os lados. Foi nesse estado de ânimo que, por telefone, conversou com o Caderno
2.
Estado - Você ficou um longo tempo sem escrever. O que ocorreu?
Adélia - Foi um período de desolação. São estados psíquicos que acontecem, trazendo o bloqueio, a aridez, o deserto. Até que recebi um convite do Correio Brasiliense para escrever crônicas. Um belo dia, escrevendo uma crônica, eu comecei: "Antes fosse tudo culpa de má arbitragem e estresse muscular..." Não era uma crônica, era o começo dos Manuscritos de Felipa, mas comecei a publicar os capítulos do livro nos jornais como se fossem crônicas. Cheguei a publicar uns 20 capítulos. De modo paralelo, comecei a escrever os Oráculos de Maio, então os dois livros saíram juntos.
Estado - Tanto os poemas como os manuscritos são, a rigor, longos diálogos com Deus. De que modo você separa experiência literária de experiência religiosa?
Adélia - Não separo, para mim elas são a mesma coisa. Muitos poetas, aqueles que se dizem ateus, apesar da grande poesia que fazem, não ligam uma coisa à outra. Mas a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser. Deus é o grande problema e a grande platéia, tanto que eu engano os críticos. Mas não engano Deus.
Estado - Não existe o risco de você ser lida como profeta e não como escritora?
Adélia - Eu entendo a poesia como um oráculo, a fala de uma divindade. Como posso dissociar as duas coisas? Mas sei que, porque não dissocio, corro o risco de ser vista como uma catequista e não uma poeta. Estou fazendo uma poesia na qual o religioso é forte? Estou. Mas é poesia? É poesia. Eu sou catequista, sim, mas em outras horas.
Estado - Intelectuais não a discriminam por isso?
Adélia - Sim, isso está claro em muitos comentários, mas o que hei de fazer? O que teria a dizer a essas pessoas? Que só sei costurar assim. Antes de me casar, eu fiz um curso de corte e costura e aprendi que existem muitas variações da saia godê. Num curso de costura, você aprende o básico e o restante é variação.
Estado - Que estilo de catequese você pratica?
Adélia - Não tenho aquilo que se espera de uma catequista católica. Falo a partir de outros lugares, do lugar da poesia e também da psicanálise, que estão muito atreladas à religião. O curioso é que, primeiro, comecei a receber convites para falar em círculos mundanos, agnósticos, só agora começo a ser convidada para falar para movimentos católicos e protestantes.
Estado - E sobre o que você é chamada a falar?
Adélia - Falo em encontros para casais católicos, em retiros espirituais. Também já falei em encontros de psicanalistas, tratando da relação entre fé e mística. Parto da poesia, da psicanálise, não importa, chego sempre à questão da natureza transcendente.
Estado - Você não tem medo de ser vista como um guru?
Adélia - Meu ponto de partida é sempre literário. Corro o risco é dos preconceitos, e o preconceito é um inferno. Há pessoas que não têm audição ao que estou falando, e sem ter audição têm opinião. Não tenho medo de virar guru. Para mim, a poesia tem uma qualidade de oráculo. Mas não sou uma divindade, sei que sou só porta-voz. Agora, se uma pessoa acreditar que o poema pode curar, é a força da palavra que está curando, não sou eu. Se a poesia faz bem, ótimo, a mim também ela faz muito bem.
Estado - E como você reage aos preconceitos?
Adélia - Eu fico só sofrendo. Se eu fosse grande igual ao Rosa, eu o imitaria, colecionando as críticas ruins de cabeça para baixo. É o que se diz a meu respeito: "Apesar do religioso, até aparece alguma poesia". Como se o religioso não fosse matéria de poesia. O registro católico, esse sim, é acidental, resulta de minha cultura, de minha herança familiar. O católico é acidental, mas o religioso é essencial. Podia ser budista, islâmica, judaica, mas seria sempre religiosa.
Estado - A religião hoje se voltou para os grandes shows, as grandes platéias, a televisão. Esse caminho a agrada?
Adélia - Eu me sinto às vezes muito mal, pois esse caminho está completamente desviado da natureza do anúncio evangélico. Baratearam a linguagem da religião e, barateando, aquilo que deve ser dito não é dito. A Igreja está perdendo sua filiação divina e tornando-se um produto como outro qualquer. Há nesses fenômenos, não posso negar, um empenho na direção de restaurar a alegria e o louvor que estavam perdidos. É uma busca canhestra, criticável, às vezes até constrangedora, mas tem ali alguma coisa sã, pois o povo está faminto de alegria. Depois do Vaticano II, a Igreja perdeu a pompa, a beleza, a nobreza, sem substituí-las por uma nova liturgia. Estamos perdendo a natureza do sagrado, perdendo o mistério. Dançar um rock e dançar essas músicas horríveis dos carismáticos é a mesma coisa. A mesma coisa, não, porque o rock é melhor. Eu sei, é uma tentativa de chegar a Deus, mas é desastrosa e desastrada, porque o recolhimento, a meditação, se perderam. A missa dos carismáticos não tem um minuto de sossego, você não pode se recolher.
Estado - Você já se psicanalisou?
Adélia - Em 1992, antes de poder escrever O Homem da Mão Seca, fiz seis meses de psicanálise. Já se disse que a religião do futuro será a psicanálise, o autoconhecimento. As igrejas, as instituições vão acabar, a igreja real é dentro de mim. Hoje ainda necessitamos do rito - mas um dia a instituição desaparecerá, para que se institua a igreja real, que está no coração de cada um. Jung disse que, para que a cura aconteça, o analista deve remeter o paciente à sua religião de origem. Ele descobriu a qualidade curativa da religião, ter um criador para adorar, para a gente não ficar feito boba.
Estado - Você ficou um longo tempo sem escrever. O que ocorreu?
Adélia - Foi um período de desolação. São estados psíquicos que acontecem, trazendo o bloqueio, a aridez, o deserto. Até que recebi um convite do Correio Brasiliense para escrever crônicas. Um belo dia, escrevendo uma crônica, eu comecei: "Antes fosse tudo culpa de má arbitragem e estresse muscular..." Não era uma crônica, era o começo dos Manuscritos de Felipa, mas comecei a publicar os capítulos do livro nos jornais como se fossem crônicas. Cheguei a publicar uns 20 capítulos. De modo paralelo, comecei a escrever os Oráculos de Maio, então os dois livros saíram juntos.
Estado - Tanto os poemas como os manuscritos são, a rigor, longos diálogos com Deus. De que modo você separa experiência literária de experiência religiosa?
Adélia - Não separo, para mim elas são a mesma coisa. Muitos poetas, aqueles que se dizem ateus, apesar da grande poesia que fazem, não ligam uma coisa à outra. Mas a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser. Deus é o grande problema e a grande platéia, tanto que eu engano os críticos. Mas não engano Deus.
Estado - Não existe o risco de você ser lida como profeta e não como escritora?
Adélia - Eu entendo a poesia como um oráculo, a fala de uma divindade. Como posso dissociar as duas coisas? Mas sei que, porque não dissocio, corro o risco de ser vista como uma catequista e não uma poeta. Estou fazendo uma poesia na qual o religioso é forte? Estou. Mas é poesia? É poesia. Eu sou catequista, sim, mas em outras horas.
Estado - Intelectuais não a discriminam por isso?
Adélia - Sim, isso está claro em muitos comentários, mas o que hei de fazer? O que teria a dizer a essas pessoas? Que só sei costurar assim. Antes de me casar, eu fiz um curso de corte e costura e aprendi que existem muitas variações da saia godê. Num curso de costura, você aprende o básico e o restante é variação.
Estado - Que estilo de catequese você pratica?
Adélia - Não tenho aquilo que se espera de uma catequista católica. Falo a partir de outros lugares, do lugar da poesia e também da psicanálise, que estão muito atreladas à religião. O curioso é que, primeiro, comecei a receber convites para falar em círculos mundanos, agnósticos, só agora começo a ser convidada para falar para movimentos católicos e protestantes.
Estado - E sobre o que você é chamada a falar?
Adélia - Falo em encontros para casais católicos, em retiros espirituais. Também já falei em encontros de psicanalistas, tratando da relação entre fé e mística. Parto da poesia, da psicanálise, não importa, chego sempre à questão da natureza transcendente.
Estado - Você não tem medo de ser vista como um guru?
Adélia - Meu ponto de partida é sempre literário. Corro o risco é dos preconceitos, e o preconceito é um inferno. Há pessoas que não têm audição ao que estou falando, e sem ter audição têm opinião. Não tenho medo de virar guru. Para mim, a poesia tem uma qualidade de oráculo. Mas não sou uma divindade, sei que sou só porta-voz. Agora, se uma pessoa acreditar que o poema pode curar, é a força da palavra que está curando, não sou eu. Se a poesia faz bem, ótimo, a mim também ela faz muito bem.
Estado - E como você reage aos preconceitos?
Adélia - Eu fico só sofrendo. Se eu fosse grande igual ao Rosa, eu o imitaria, colecionando as críticas ruins de cabeça para baixo. É o que se diz a meu respeito: "Apesar do religioso, até aparece alguma poesia". Como se o religioso não fosse matéria de poesia. O registro católico, esse sim, é acidental, resulta de minha cultura, de minha herança familiar. O católico é acidental, mas o religioso é essencial. Podia ser budista, islâmica, judaica, mas seria sempre religiosa.
Estado - A religião hoje se voltou para os grandes shows, as grandes platéias, a televisão. Esse caminho a agrada?
Adélia - Eu me sinto às vezes muito mal, pois esse caminho está completamente desviado da natureza do anúncio evangélico. Baratearam a linguagem da religião e, barateando, aquilo que deve ser dito não é dito. A Igreja está perdendo sua filiação divina e tornando-se um produto como outro qualquer. Há nesses fenômenos, não posso negar, um empenho na direção de restaurar a alegria e o louvor que estavam perdidos. É uma busca canhestra, criticável, às vezes até constrangedora, mas tem ali alguma coisa sã, pois o povo está faminto de alegria. Depois do Vaticano II, a Igreja perdeu a pompa, a beleza, a nobreza, sem substituí-las por uma nova liturgia. Estamos perdendo a natureza do sagrado, perdendo o mistério. Dançar um rock e dançar essas músicas horríveis dos carismáticos é a mesma coisa. A mesma coisa, não, porque o rock é melhor. Eu sei, é uma tentativa de chegar a Deus, mas é desastrosa e desastrada, porque o recolhimento, a meditação, se perderam. A missa dos carismáticos não tem um minuto de sossego, você não pode se recolher.
Estado - Você já se psicanalisou?
Adélia - Em 1992, antes de poder escrever O Homem da Mão Seca, fiz seis meses de psicanálise. Já se disse que a religião do futuro será a psicanálise, o autoconhecimento. As igrejas, as instituições vão acabar, a igreja real é dentro de mim. Hoje ainda necessitamos do rito - mas um dia a instituição desaparecerá, para que se institua a igreja real, que está no coração de cada um. Jung disse que, para que a cura aconteça, o analista deve remeter o paciente à sua religião de origem. Ele descobriu a qualidade curativa da religião, ter um criador para adorar, para a gente não ficar feito boba.
José
Nêumanne Pinto
A mineira Adélia Prado, poesia e
prosa com fé no chão
Impressionado
com a maestria de uma senhora de Divinópolis – “um fenômeno poético”, disse ele
–, Carlos Drummond de Andrade indicou-a a um editor. Nascia então para o
público um dos grande nomes da poesia brasileira, cujo talento é mais um vez
posto à disposição do leitor brasileiro em dois novos livros da autora lançados
agora pela Editora Siciliano
Por José
Nêumanne
in Jornal da Tarde, SP, Brasil
17.04.1999
in Jornal da Tarde, SP, Brasil
17.04.1999
Na poesia
brasileira, Adélia Prado foi uma aparição. Uma súbita e bela aparição!
Seu editor,
o mesmo que agora edita Oráculos de Maio (143 págs., R$ 15,00) e Manuscritos de
Felipa (163 págs., R$ 17,00) na Editora Siciliano, Pedro Paulo de Sena
Madureira, trabalhava, então, na Imago. Lembra-se hoje, como se tivesse sido
ontem: na noite de autógrafos do livro Contato, de outro grande nome feminino
da poesia brasileira, Marly de Oliveira, encontrou-se com o poeta Carlos
Drummond de Andrade. Ao se despedir, o poeta falou-lhe de uma senhora de
Divinópolis, que lhe mandara uns originais. “É um fenômeno poético”,
pontificou.
A Imago
funcionava numa sala anexa ao consultório do dono, o psicanalista Jayme
Salomão. No dia seguinte, ao chegar ao trabalho, o encarregado da seleção dos
títulos literários da editora encontrou os originais de Bagagem, acompanhados
de um bilhete de próprio punho daquele que era considerado o símbolo vivo da
poesia brasileira, à época. Pedro ainda se lembra de haver lido os poemas de um
fôlego só.
Eram textos
impregnados de religiosidade cristã em todas as linhas. Mas a fé que
transbordava dos poemas em nada era semelhante à crença torturada e complexa de
outro católico e mineiro, o modernista Murilo Mendes. A poesia de Adélia
transbordava de uma comovente felicidade simples, surgida do fazer cotidiano
(foi ela quem acabou de escrever “a rotina perfeita é Deus”). É isso aí: seu
catolicismo não é o dos doutores da Igreja, mas dos párocos de aldeia, como
aquele personagem de As Chaves do Reino, de Cronin.
O
cristianismo em Adélia não é um experimento metafísico, mas uma vivência cotidiana,
doméstica. Uma poesia, perdoem o trocadilho, de fé no chão. Ela pratica sua
crença religiosa à mesa, mas também na cama. Logo em seu primeiro livro, Pedro
Paulo, ex-monge beneditino, portanto intelectual por excelência et pour cause
antípoda na abordagem da fé cristã, encontrou uma força vital brotada do sexo,
semelhante ao êxtase de grandes místicos, como São João da Cruz, que, aliás,
como Honoré de Balzac e Chico Buarque de Holanda, tinha uma enorme
sensibilidade para entender a mulher, como demonstra em seu “Cântico
Espiritual”: “Ali me deu o seio / ensinando-me a ciência saborosa / e me dei
sem receio / na entrega generosa / e ali mesmo prometi ser sua esposa.”
Essa
(con)fusão entre o gozo carnal e o êxtase espiritual (cuja realização material
é a estátua de Santa Teresa D’Ávila por Bernini em Roma) se fazia presente no
livro da estreante, uma bela mulher na flor dos 40 e em plena vivência do
sacramento matrimonial com José de Freitas. Essa característica ainda permeia
sua obra, como demonstra em “Neurolingüística”: “Quando ele me disse / ô linda,
/ pareces uma rainha, / fui a cúmice do ápice, / mas segurei meu desmaio.”
O editor
sentiu que a forte pulsação da vida real naquela poesia transcendia seu valor
semântico, aproximando a mineira de Divinópolis mais da purificação pela
proximidade do pecado, que marca a poesia do padre inglês Gerard Manley Hopkins
do que no esteticismo (ainda que magnífico) da freira mexicana Sóror Juana Inês
da Cruz. Tratou, então, de telefonar para a Autora e assegurar a exclusividade,
antes que algum aventureiro tentasse dela lançar mão. Nem esperou reunir-se com
o patrão para discar os números anotados pela letra caprichosa do Autor de O
padre e a moça. Antes mesmo de o dono da Imago ficar sabendo da auspiciosa
estréia, Adélia já estava comprometida com ele.
Adélia foi
recebida no Rio de 1976 como convinha a um fenômeno literário descoberto por Drummond.
O
ex-presidente Juscelino Kubitscheck compareceu ao lançamento de Bagagem. A
estreante estava lá autografando um exemplar qualquer, quando uma mão deformada
de mulher pousou sobre a sua. “Sou Clarice”, sussurrou a voz grave da dona da
mão queimada. Reconhecendo a Lispector, cuja literatura tanto admirava, Adélia
Prado tomou aquela mão salvada do incêndio, beijou-a e a pôs de encontro à face
louçã. Depois, seria recebida na casa do descobridor com a presença de sua
mulher Dolores – coisa rara.
Agora, às
vésperas do Salão do Livro do Rio, onde vai lançar seus novos livros, Adélia
produz uma obra poética que a coloca na crista da onda literária brasileira. Ao
ler as provas de Oráculos de Maio, tive sensação semelhante (guardando-se
evidentemente as devidas proporções) dos pastores de Fátima, que viram a Virgem
– o impacto epifânico.
Começo pela
epifania, porque esta talvez seja a manifestação de fé mais próxima da poesia:
o mundo imerso em trevas, um relâmpago iluminando tudo de repente, a sensação
de ter visto tudo num átimo e um novo mergulho na escuridão. Repare, caro
leitor, como ela iniciou o poema “Nossa Senhora das Flores: “Acostuma teus
olhos ao negrume do pátio / e olha na direção onde ao meio-dia / cintilava o
jardim.”
Em “Viação
São Cristóvão”, Adélia escreveu: “Não quero morrer nunca, / porque temo perder
o que desta janela / se desdobra em tesouros.” Os versos finais de “O intenso
brilho” são mais explícitos: “antes que eu retorne / ao dia pleno, / à
semi-escuridão.” Os de “Exercício espiritual”, ainda mais: “Quero ver o Pai,
insisto, / roga a Teu Filho que me mostre o Pai.” Em “Sesta com flores”, ela
descreveu: “Os galos sabem, / cantam fora de hora / querendo apressar o dia, /
tem deus, tem deus, tem deus / gritam os recém-nascidos / e as dálias / com seu
cheiro de morte e virgindade.”
A imagem que
me veio a cabeça ao ler estes belos versos foi a dos céus diáfanos das manhãs
dos quadros de santos, particularmente das reproduções populares do Coração de
Maria, a Virgem com o peito aberto e o coração de mãe exposto. “Quando abri a
janela, vi-a, / como nunca a vira, / constelada, / os botões, / alguns já com o
rosa-pálido / espiando entre as sépalas, / jóias vivas em pencas”, ela
registrou, em “Meditação à beira de um poema.”
Dona de casa
mineira, Adélia é eucarística por excelência. A comida está presente em sua
poesia desde sempre. Já no primeiro poema de seu mais recente livro, “O poeta
ficou cansado”, ela apresenta armas: “Ó Deus, / me deixa trabalhar na cozinha,
/ nem vendedor nem escrivão, / me deixa fazer Teu pão. / Filha, diz-me o
Senhor, / eu só como palavras.” “É pão de mirra, / come”; “louvai a Deus e
reparti a côdea”; “Bate um grande desejo / de torresmos”; “Uma vez fizemos
piquenique, / ela fez bolas de carne / pra gente comer com pão”; “Comi em
frente da televisão / sem usar faca / e repeti o prato, / como os caminhoneiros
que falam de boca cheia / e vi um programa até o fim” – é vasto o refeitório na
poética de Adélia.
Mas sua
eucaristia não se limita ao rito, à liturgia, ao sentido mnemônico que Jesus
Cristo deu a sua última ceia. A mineira gulosa, lúbrica e convicta vai às
últimas conseqüências, subindo aos céus também pelas catacumbas da escatologia.
Afinal, seu
amor por Deus não reconhece limite algum: “Em lama, excremento e secreção
suspeitosa, / adoro-Vos, amo-Vos sobre todas as coisas.” Seu poema “Paixão de
Cristo” é um antológico exemplo de como leva a fé às últimas conseqüências.
Para sentir seu impacto, basta ler-lhe a primeira metade: “Apesar do vaso / que
é branco, / de sua louça / que é fina, / lá estão no fundo, / majestáticas, /
as que no plural / se convocam: fezes.”
Aqui, o
contraste entre o título sublime e a imagem sórdida, descrita sem subterfúgios
nem tergiversações, já basta para consagrar o nome da autora desses versos
entre os maiores e mais ilustres. Da mesma forma como torna explícito o caráter
epifânico da linguagem poética, ela revela na eucaristia exatamente o que há de
solene e corriqueiro na vida comum, de gente comum, como ela mesma e seu leitor
cativado.
Talvez por
isso, ela não se envergonhe da própria felicidade. Ao contrário do padre
Hopkins, que queimava seus poemas para eliminar as provas de sua fraqueza ante
a sedução sensual demoníaca das palavras, Adélia Prado produz uma poesia
confessional, explícita e transparente.
Afinal,
sendo leiga, não tem de enfrentar as estruturas rígidas da hierarquia católica,
como Sóror Juana Inês da Cruz. Segundo ela mesma, “o mundo é ininteligível, mas
é bom”; “e a vida é boa que dói”. A poesia, segundo Adélia Prado, serve para
descomplicar o cotidiano complicado: “Tão fácil, um dia depois do outro.”
Para cumprir
essa missão, ela pode ser elíptica, ao melhor estilo oswaldiano (como em
“Arte”, de apenas dois versos muito curtos: “Das tripas / coração”); ou gaiata,
como Ascenso Ferreira (”não como, não falo, não rio, / nem que o Papa se vista
de baiana”). É sempre e permanentemente mineira, não uma mineira do pão de
queijo, como Itamar Franco e sua patota, mas uma mineira do pão, pão, queijo,
queijo, como seu descobridor Drummond. Quem lê um verso como “a obra de minhas
mãos / é esta cozinha limpa” percebe logo e com clareza isso tudo. Mas, ao
contrário do que ocorre com a obra de 99% dos outros poetas brasileiros em
atividade, será impossível encontrar na sua indícios ou sobejos de João Cabral
de Melo Neto.
Adélia Prado
não tem escolas e, como os cristãos primitivos, não venera ícones, religiosos
ou literários. Como concentra sua religiosidade na veneração ao Cristo em
pessoa, a seu Pai e à Virgem, sua mãe, não revela preferência por santo algum,
embora seja possível encontrar em seus versos referências que a aproximam de
São Francisco de Assis, amigo das plantas e dos animais.
De qualquer
maneira, não manifesta desapreço à hagiografia popular nem à galeria de
intocáveis das letras. O máximo de irreverência a que se permite é quando não
admite tergiversar a respeito do caráter místico da rosa, iniciando o poema
“Teologal” com a negação ao célebre axioma de Gertrude Stein (”uma rosa é uma
rosa é uma rosa”): “Agora é definitivo: / uma rosa é mais que uma rosa.”
Com medo de
ser execrado pelo trocadilho infame, posso ir além e dizer que também é
definitiva em seu caso a constatação de que a prosa é mais que uma prosa.
Prosaica, certamente sua prosa não é, pois, em Manuscritos de Felipa, Adélia
Prado situa-se permanentemente na vizinhança da poesia. A romancista também é
religiosa e, da mesma forma como no verso, seu texto é sensível, arguto e
microscópico na observação exaustiva da paisagem humana.
Sua poesia é
enganosamente prosaica. O leitor superficial não sentirá falta de sua divisão
em versos, sempre muito descritivos e de um ritmo imperceptível e sutil. Da
mesma forma, sua prosa é ilusoriamente poética: ela não descreve, no sentido
clássico de repetir o fluxo do tempo como se segue a correnteza de um rio, mas
reproduz flashes de instantes. Estes compõem uma espécie de colcha de retalhos
de uma forma tão heterodoxa que, também no romance, não é fácil pesquisar o DNA
literário da Autora.
Eis um
trecho típico: “Menti a Teodoro sobre ir à livraria, meia mentira, porque até
fui, queria mesmo é passar no judeu pela milionésima vez e pedir pra ver o que
ele tinha. Medalhões de prata, gargantilhas, regateando comigo mesmo: só a
corrente. Não, a corrente e o anel. Não, só o anel e o pingente. Pensei em
desistir, mas tenho prática, ia ficar trincando de saudade da medalha, criei
coragem e deixei meio salário-mínimo lá, sem remorso, uma verdadeira novidade.”
O crítico
apressado encontrará pegadas do estilo da Lispector, mas, de fato ela admira,
mas não a imita, ao contrário do que, mentirosa e traiçoeiramente, confessa,
numa pequena frase perdida no meio do texto. Até não será exagerado dizer que a
autora de Manuscritos de Felipa, de certa forma, seria uma espécie de
anti-Clarice. Como no de Hemingway, mais importante do que o texto em Adélia é
o subtexto, o oculto debaixo da frase, que sempre descreve algo aparentemente
irrelevante.
Talvez não
seja muito arriscado dizer que Clarice escrevia de dentro para fora. Ela mesma
disse que escrevia como se costurasse – só que costura para dentro, e não para
fora. Sim, pois, em sua literatura, o mundo externo é um espelho de seu
interior. Poucas vezes, um escritor, em qualquer língua, se expôs de forma tão
completa, tão direta e tão contundente como ela o fazia, em cada sentença.
Adélia, ao
contrário, escreve como se preparasse permanentemente seu interior para receber
a bênção da realidade, seja ela o produto sujo e fétido das entranhas (
“Vômitos são protestos”) ou o saldo magnífico da observação do belo (“A beleza
cresce quando a entendo? Teodoro acha que sim”). Manuscritos de Felipa prova
isso.
Como em sua
poesia, em sua prosa o real é uma revelação. Horrenda ou bela, pouco importa,
mas uma revelação. A Autora não espera manifestações da interioridade para
registrá-la, pois é evangélica. Nada nela é simbólico, tudo manifesta o real.
Lembrem-se que, na Eucaristia, a hóstia é (não representa) o corpo de Jesus e o
vinho bebido pelo celebrante, seu sangue. Por isso, os antigos gregos não
entendiam o Apóstolo São Paulo (que o poeta Bruno Tolentino citou ao escrever
sobre Adélia na revista Bravo): na antigüidade politeísta tudo é mítico,
simbólico, mas o fariseuzinho de Tarso lhes apresentou em suas epístolas a
troca da representação pelo realismo judaico-cristão.
Na fé no
chão da literatura de Adélia, o primado do simbólico do cristianismo do grande
poeta Jorge de Lima, por exemplo, é substituído pelo primado do real. Ela é
submissa à manifestação divina no real e imediato. O que mais deslumbra no que
ela escreve é o escândalo da realidade expresso no sacramento.
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde e autor de Solos do Silêncio - Poesia Reunida
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde e autor de Solos do Silêncio - Poesia Reunida
Candeia - Seleção de Partido Alto –
1975
Candeia -
Seleção de Partido Alto - disco= Samba de Roda – 1975
Referências
http://sopadepoesia.blogspot.com/2012/01/drummond-adelia-prado.html
http://www.tribunadainternet.com.br/adelia-prado-morou-numa-casa-onde-estava-constantemente-amanhecendo/
http://www.jornaldepoesia.jor.br/castel15.html
http://www.jornaldepoesia.jor.br/jneumanne14c.html
https://youtu.be/bKltb8x9D0Y
https://www.youtube.com/watch?v=bKltb8x9D0Y
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