AGATHA CHRISTlE (1890-1979 | Inglaterra)
Houve
época bem recente em que a Dama do Crime Agatha Christie só vendia menos do que
a Bíblia no mercado editorial mundial. Ela se situa no melhor da tradição
inglesa, a das histórias de detetives que usam mais o intelecto do que os
punhos. Hercule Poirot e Miss Marple, duas de suas criações, que estão
presentes em vários de seus romances e em alguns de seus contos, são
personagens que já fazem parte da história do gênero policial. Pode ser que ela
tenha encontrado uma "fórmula" de escrever suas narrativas, o que ela
faz, aliás, com grande habilidade. Mas julgamentos à parte, ela ocupa um
capítulo especial dentro de uma literatura chamada "de massa". E que
- a exemplo de Conan Doyle, quase cem anos antes - costuma viciar seus
leitores.
88.
“(...)
De las páginas de M.L.Pratt el texto literario emerge diseñado como display
text , un macro-acto de habla, una serie encadenada de actos de habla
relacionables con una clase especial de aserciones, aserciones world describing
, que cumplen con la condición de representar estados de cosas no usuales,
contrarios a las expectativas, problemáticos, esto es, de contar o mostrar
cosas que son o pueden ser (por el modo de contarlas) especialmente
interesantes, tellable, relatables . El objetivo de esta clase de actos de
habla es no sólo producir creencia (como las aserciones) sino también implicar
imaginativa y afectivamente al lector en el estado de cosas representado,
incitarle a tomar partido, a evaluarlo. (...)”
JOAN OLEZA UNIVERSITAT DE VALENCIA
“¡Oh!,
¿quién dirá dónde está la ficción si la ficción no está aquí? Porque aquí están
el Color, la Muerte y el Sueño... ¡y la magia por doquier! Sales brillantes y
resplandecientes escamas, cristales del blanco más puro arriba en los estantes,
en nítidas hileras, encerrados en sus frascos pulidos. Sales de hierro de un
verde pálido, o intenso hacia el castaño; y muchas tinturas, muchos vinos de
lejanas tierras desconocidas...” Agatha Christie: EN UN
DISPENSARIO (1)
-
No final das contas, é bem possível que eu não morra desta vez - declarou
Poirot.
O comentário partiu de um convalescente de uma forte
gripe, como que impregnado de um otimismo benéfico. Eu fora o primeiro a pegar
a gripe e, logo depois, Poirot a contraíra. Ele estava agora sentado na cama,
apoiado em travesseiros, a cabeça envolta por um xale de lã, tomando lentamente
uma tisane particularmente insalubre, que eu preparara de acordo com suas
meticulosas instruções. Ele contemplou, com evidente satisfação, a fileira de
vidros de remédios impecavelmente arrumados sobre a cornija da lareira.
- É isso mesmo - continuou meu pequeno amigo. - Mais
uma vez, voltarei a ser eu mesmo, o grande Hercule Poirot, o terror dos
malfeitores! Imagine só, mon ami, que há uma pequena nota a meu respeito no
Society Gossip. Isso mesmo! E aqui está! "Depressa, criminosos, podem sair
às ruas! Hercule Poirot... e acreditem, meninas, ele é de fato um Hércules!.. .
nosso detetive predileto da sociedade não está em condições de agarrá-los! E querem
saber por quê? Ora, porque ele próprio foi agarrado. . . por Ia grippef"
Não pude deixar de soltar uma risada.
- Isso é ótimo para você, Poirot. Está se tornando
um personagem público. E, felizmente, não perdeu nenhum caso interessante
durante esse período.
- Tem toda razão. Os poucos casos que fui obrigado a
recusar não me causam o menor arrependimento.
Nesse momento, nossa senhoria enfiou a cabeça pela
porta entreaberta e disse:
- Há um cavalheiro lá embaixo que deseja falar com
Monsieur Poirot ou com o Capitão Hastings. Como ele estava muito nervoso... mas
nem por isso deixou de se comportar como um cavalheiro... resolvi trazer seu
cartão.
Ela me entregou o cartão e li em voz alta:
- Sr. Roger Havering.
Poirot sacudiu a cabeça na direção da estante e
obedientemente fui pegar o Quem É Quem. Poirot folheou-o rapidamente.
- Segundo filho do quinto Barão Windsor. Casado em
1913 com Zoe, quarta filha de William Crabb.
- Hum. .. - murmurei. - Imagino que deve ser a jovem
que se apresentava no Frivolity, com o nome de Zoe Carrisbrook. Lembro-me de
que ela se casou pouco antes da Guerra.
- Não gostaria de descer e ouvir o problema do nosso
visitante, Hastings? Apresente-lhe minhas desculpas por não poder recebê-lo
pessoalmente.
Roger Havering era um homem em torno dos 40 anos,
aprumado e vestido com elegância. Mas a expressão era angustiada, revelando seu
intenso nervosismo.
- Capitão Hastings? Pelo que me disseram, é o associado
de Monsieur Poirot, não é mesmo? É indispensável que ele me acompanhe hoje
mesmo até Derbyshire.
- Lamento, mas isso é impossível. Poirot está de
cama, com uma gripe muito forte. O homem ficou chateado.
- Oh, Deus, mas isso é terrível!
- O assunto sobre o qual deseja consultá-lo é muito
grave?
- É sim! Meu tio, o melhor amigo que tive no mundo,
foi assassinado ontem à noite!
- Aqui em Londres?
- Não. Em Derby shire. Eu estava aqui em Londres e
recebi esta manhã um telegrama de minha esposa. E decidi imediatamente vir até
aqui, para suplicar a Monsieur Poirot que cuide do caso.
Tive uma idéia súbita e falei:
- Pode esperar um momento?
Havering assentiu e subi correndo a escada. Em
poucas palavras, expus a situação a Poirot. E não precisei explicar o resto,
pois Poirot comentou:
- Estou entendendo, meu amigo. Deseja ir até lá
sozinho, não é mesmo? Por que não? A esta altura, já deve conhecer bastante bem
os meus métodos. Tudo o que lhe peço é que me informe diariamente de tudo o que
acontecer e siga ao pé da letra as instruções que por acaso eu lhe mandar por
telegrama.
Concordei prontamente com o pedido.
Uma hora depois, eu estava sentado diante de Roger
Havering, num compartimen-to de primeira classe de um trem da Midland Railway,
que se afastava rapidamente de Londres.
- Antes de mais nada, Capitão Hastings, quero que
saiba que Hunter's Lodge, a cabana do caçador, para onde estamos indo, o lugar
em que ocorreu a tragédia, é apenas isso, um refúgio para caça no coração das
charnecas de Derby shire.
Nossa verdadeira casa fica perto de Newmarket e
geralmente alugamos um apartamento em Londres durante a estação. Hunter's Lodge
fica aos cuidados de uma governanta, que normalmente faz tudo o que precisamos
nos fins de semana ocasionais que lá passamos. Durante a temporada de caça,
quando permanecemos por mais tempo em Hunter's Lodge, sempre levamos alguns dos
nossos criados de Newmarket. Meu tio, Harrington Pace (como talvez já saiba,
minha mãe era uma Pace de Nova York), mora conosco há três anos. Ele nunca se
deu muito bem com meu pai nem com meu irmão mais velho. E como sou também uma
espécie de filho pródigo, creio que isso contribuiu para aumentar a afeição
dele em relação a mim, ao invés de diminuí-Ia. Mas como sou um homem pobre e meu
tio era um homem rico. .. Em outras palavras, era ele que pagava as despesas.
Embora meu tio fosse um homem exigente e difícil em muitas coisas, nós três
vivíamos harmoniosamente. Há dois dias, um pouco cansado de nossas festas em
Londres, ele sugeriu que fôssemos passar uns poucos dias em Derby shire. Minha
esposa telegrafou para a Sra. Middleton, a governanta, avisando que seguiríamos
na mesma tarde. Ontem de tarde, fui obrigado a voltar a Londres, para um
compromisso inadiável. Mas minha esposa e meu tio ficaram em Hunter's Lodge. E
esta manhã recebi este telegrama. Havering entregou-me o telegrama, que dizia:
"Venha
imediatamente Tio Harrington assassinado ontem à noite traga um bom detetive se
puder mas venha de qualquer maneira - Zoe.”
- Quer dizer que ainda não sabe dos detalhes?
- Não. Mas imagino que a notícia seja publicada
pelos jornais da tarde. Sem dúvida a polícia já está cuidando do caso.
Eram quase três horas quando chegamos à pequena
estação de Elmer's Dale. Uma viagem de oito quilômetros levou-nos a uma pequena
casa de pedras cinzentas, no meio das charnecas.
- Um lugar muito solitário - comentei, sentindo um
calafrio. Havering concordou com a cabeça.
- Acho que vou tentar livrar-me dele. Nunca mais
conseguirei viver aqui. Abrimos o portão e subimos por um caminho estreito até
a porta de carvalho, de onde saiu para nos receber um vulto que me era
familiar.
- Japp! - exclamei.
O inspetor da Scotland Yard sorriu-me amistosamente,
antes de se dirigir a meu companheiro:
- Sr. Havering, não é mesmo? Fui enviado de Londres
para tomar conta deste caso e gostaria de falar-lhe por um momento, se não se
incomoda.
- Minha esposa...
- Já conversei com sua esposa, senhor. .. e também
com a governanta. Não vou retê-lo por muito tempo. É que estou ansioso em
voltar para a aldeia, agora que já vi tudo o que havia para se ver por aqui.
- Ainda não sei coisa alguma a respeito...
- Isso não é problema - disse Japp, suavemente. -
Mesmo assim, há alguns pontos sobre os quais gostaria de saber sua opinião. O
Capitão Hastings, que já me conhece, poderá entrar na casa e informar que já
chegou. Por falar nisso, Capitão Hastings, onde está o homenzinho?
- Está de cama, com uma forte gripe.
- É mesmo? Lamento saber disso. Parece até a
história da carroça sem o cavalo, sua presença aqui sem a companhia dele.
E depois desse gracejo de mau gosto e inoportuno,
não me restava alternativa senão seguir até a casa e tocar a sineta, enquanto
Japp se afastava com o Sr. Havering. Um momento depois, a porta foi aberta por
uma mulher de meiaidade, toda de preto.
- O Sr. Havering estará aqui dentro de mais um
momento - expliquei. - Foi detido pelo inspetor. Vim com ele de Londres para
investigar o caso. Talvez possa contar-me rapidamente o que aconteceu ontem à
noite.
- Entre, por favor, senhor. - A mulher fechou a
porta assim que entrei e ficamos parados no vestíbulo mal-iluminado. - Foi logo
depois do jantar, ontem à noite, que o homem apareceu. Pediu para falar com o
Sr. Pace. Verificando que ele falava do mesmo jeito, imaginei que fosse um
amigo americano do Sr. Pace. Levei-o à sala de armas e fui avisar o Sr. Pace. O
cavalheiro não me quisera dizer seu nome, o que agora acho bastante estranho.
Avisei o Sr. Pace e ele pareceu ficar um pouco espantado com a visita, mas
disse à patroa: "Com licença, Zoe. Vou ver o que esse sujeito está
querendo." Ele foi para a sala de armas, enquanto eu voltava para a
cozinha. Pouco depois, ouvi gritos, como se eles estivessem discutindo. Vim
para o vestíbulo. Na mesma ocasião, a patroa veio também. E foi então que
ouvimos um tiro e depois um silêncio terrível. Corremos as duas para a sala de
armas, mas a porta estava trancada e tivemos que dar a volta até a janela.
Estava aberta e pudemos avistar o Sr. Pace lá dentro, ferido à bala e sangrando
muito.
- O que aconteceu com o taI homem?
- Ele deve ter saído pela janela antes de nossa
chegada, senhor.
- E o que aconteceu em seguida?
- A Sra. Havering mandou-me chamar a polícia. É uma
caminhada de oito quilômetros. Eles voltaram comigo e o delegado passou a noite
inteira aqui. E esta manhã chegou esse inspetor de Londres.
- Como era o homem que pediu para falar com o Sr.
Pace? A governanta pensou por um momento, antes de responder:
- Tinha uma barba preta, senhor, era um homem de
meia-idade, usava um sobretudo leve. Além do fato de ele falar como um
americano, não notei muita coisa mais.
- Está certo. Será que posso falar com a Sra.
Havering?
- Ela está !á em cima. Quer que eu vá avisá-Ia?
- Por gentileza. Diga que o Sr. Havering está lá
fora, com o inspetor Japp, e que o cavalheiro que veio junto com ele de Londres
lhe deseja falar, o mais depressa possível.
- Pois não, senhor.
Eu estava ansioso e impaciente em saber logo de
todos os fatos. Japp tinha duas ou três horas de dianteira, e a ansiedade dele
em ir embora dali levava-me a querer sair em seu encalço.
A Sra. Havering não me deixou esperando por muito
tempo. Poucos minutos depois, ouvi passos leves descendo a escada. Levantei a
cabeça e avistei uma jovem muito bonita vindo em minha direção. Usava uma blusa
vermelha, que acentuava ainda mais a característica esguia e infantil de seu
corpo. Sobre os cabelos pretos havia um pequeno chapéu de couro, também
vermelho. Até mesmo a tragédia recente não podia reduzir a vitalidade de sua
personalidade.
Apresentei-me e ela assentiu, num gesto rápido de
conhecimento.
- Claro que já ouvi falar muitas vezes a seu
respeito e de seu colega, Monsieur Poirot. Já fizeram coisas maravilhosas
juntos, não é mesmo? Meu marido agiu muito bem ao procurá-los imediatamente.
Deseja agora fazer-me algumas perguntas? É a maneira mais fácil de saber de
tudo a respeito deste caso horrível, não é mesmo?
- Obrigado, Sra. Havering. E, agora, poderia
dizer-me a que horas o tal homem apareceu?
- Devia ser pouco antes das nove horas. Tínhamos
acabado de jantar e estávamos tomando café e fumando.
- Seu marido já tinha partido para Londres?
- Já, sim. Ele pegou o trem das seis e quinze.
- Ele foi de carro ou a pé até a estação?
- Nosso carro não está aqui. Veio um da garagem de
Elmer's Dale para buscá-lo, a tempo de pegar o trem.
- O Sr. Pace estava se comportando da maneira
habitual?
- Estava absolutamente normal sob todos os aspectos.
- Poderia descrever-me o visitante?
- Infelizmente, não. Não cheguei a vê-lo. A Sra.
Middleton levou-o diretamente para a sala de armas e depois veio avisar meu
tio.
- O que disse seu tio?
- Ele pareceu ficar um pouco aborrecido, mas foi
imediatamente falar com o visitante. Cinco minutos depois, ouvi o barulho de
vozes alteradas. Saí para o vestíbulo, quase esbarrando na Sra. Middleton. Foi
nesse momento que ouvimos o tiro. A porta da sala de armas estava trancada por
dentro e tivemos que sair e dar a volta pela casa até à janela. É claro que
isso levou algum tempo e o assassino pôde escapar. Meu pobre tio. .. -Ela fez
uma breve pausa, visivelmente perturbada, antes de acrescentar: - ...tinha levado
um tiro na cabeça. Percebi imediatamente que estava morto. Mandei a Sra.
Middleton chamar a polícia. Tomei a precaução de não tocar em nada na sala,
deixando tudo como havia encontrado.
Aprovei com a cabeça.
- E o que me pode dizer sobre a arma?
- Acho que sei qual foi, Capitão Hastings. Havia um
par de revólveres de meu marido na parede. Um deles desapareceu. Disse isso à
polícia e eles levaram o outro. Acho que poderão saber com certeza, depois que
extraírem a bala.
- Posso ir a até a sala de armas?
- Com certeza. A polícia já terminou suas
investigações. E também já removeram o corpo.
A senhora me acompanhou até o local do crime. No
momento em que nos aproximávamos da porta, Havering entrou na casa. Ela me
pediu desculpas e correu ao encontro dele. Fiquei sozinho para fazer minhas
investigações.
Acho melhor confessar logo de uma vez que foram um
tanto desapontadoras. Nos romances de detetive, as pistas sempre são
abundantes. Mas, ali, não encontrei coisa alguma que pudesse considerar fora do
comum, a não ser uma grande mancha de sangue no tapete, onde devia ter caído o
homem assassinado. Examinei tudo meticulosamente e tirei duas fotografias da
sala com minha pequena câmera, que tomara o cuidado de levar. Examinei também o
terreno lá fora, nas proximidades da janela. Mas fora pisado por tantos pés que
cheguei à conclusão de que era inútil perder mais tempo a examiná-lo. Já havia
visto tudo o que Hunter's Lodge tinha para mostrar. Estava na hora de voltar
para Elmer's Dale e entrar em contato com Japp. Assim, despedi-me dos Haverings
e voltei no mesmo carro que nos trouxera da estação.
Encontrei Japp no Matlock Anis e ele me levou
imediatamente para ver o corpo. Harrington Pace era um homem baixo e magro, de
barba raspada, a aparência tipicamente americana. Levara um tiro na nuca e o
revólver fora disparado quase à queima-roupa. Japp comentou:
- Ele se virou por um momento e o outro sujeito
rapidamente pegou o revólver e alvejou-o. O revólver que a Sra. Havering nos
indicou estava carregado e suponho que o mesmo acontecia com o outro. É curioso
o que as pessoas tolas costumam fazer. Como se pode deixar dois revólveres
carregados na parede?
Ao saímos da câmara mortuária, perguntei a Japp:
- O que acha do caso?
- Meu primeiro suspeito foi Havering. - Japp fez uma
breve pausa. Notando minha expressão de espanto, logo acrescentou: - Isso
mesmo! Havering tem alguns incidentes escusos em seu passado. Quando estava em
Oxford, houve um caso meio confuso. Parece que ele assinou um cheque do próprio
pai. É claro que o caso foi abafado. E não podemos esquecer que, no momento,
ele está bastante endividado. Diga-se de passagem, são dívidas que o tio
provavelmente não ia gostar de saldar. Ao mesmo tempo, sabemos que o testamento
do tio é a favor dele. Por tudo isso, suspeitei dele e quis falar-lhe antes que
se encontrasse com a esposa. Mas a história que me contou se ajusta
perfeitamente ao que eu já sabia. Estive na estação e parece não haver a menor
dúvida de que ele de fato embarcou no trem das seis e quinze. Assim, deve ter
chegado a Londres por volta das dez e meia da noite. Ele disse que foi
diretamente para seu clube. Se isso for confirmado, não haveria a menor
possibilidade de ele estar aqui às nove horas, para matar o tio disfarçado com
uma barba preta.
- Eu estava mesmo querendo falar a respeito disso. O
que acha dessa barba preta? Japp piscou-me o olho.
- Acho que cresceu muito depressa... nos oito
quilômetros entre Elmer's Dale e Hunter's Lodge. Quase todos os americanos que
tenho conhecido costumam raspar o rosto. É isso mesmo, acho que teremos de
procurar o assassino entre os americanos ligados ao Sr. Pace. Interroguei a
governanta primeiro e depois a Sra. Havering. As histórias das duas estão de
acordo. Só lamento que a Sra. Havering não tenha visto o homem. É uma mulher
inteligente e poderia ter percebido alguma coisa que nos desse uma pista.
Escrevi um relato longo e meticuloso para Poirot. E
pude acrescentar mais algumas informações adicionais, antes de despachar a
carta.
A bala foi extraída e verificou-se que havia sido
disparada por um revólver idêntico ao que a polícia apreendera na Hunter's
Lodge. Além disso, os movimentos do Sr. Havering na noite do crime foram
devidamente verificados e confirmados. Não havia a menor dúvida de que ele
chegara a Londres no trem que passara por Elmer's Dale às 6h15. E havia
ocorrido ainda um outro fato sensacional. Naquela manhã, um homem que vivia em
Ealing, Londres, ao atravessar Haven Green para chegar à estação ferroviária
local, avistara um embrulho de papel pardo caído entre os trilhos. Ao abri-lo,
descobrira que continha um revólver. Entregara-o à delegacia de polícia local.
Antes que a noite caísse, já estava constatado que se tratava do revólver que
estávamos procurando, idêntico ao que a Sra. Havering entregara à polícia. Uma
bala fora disparada.
Acrescentei tudo isso a meu relatório. Na manhã
seguinte, na hora do café, recebi um telegrama de Poirot:
"Claro
que homem de barba preta não era Havering só você ou Japp podiam ter tal idéia
mande por telegrama descrição da governanta e que roupas ela usava esta manhã o
mesmo da Sra. Havering não perca tempo tirando fotografias de interior estavam
subexpostas e nada tinham de artísticas."
Achei o estilo de Poirot desnecessariamente irônico.
Tive também a impressão de que ele estava um pouco ciumento da minha posição no
local do crime, com todas as facilidades para resolver o caso. O pedido de uma
descrição das roupas das duas mulheres pareceu-me simplesmente ridículo, mas o
atendi mesmo assim, como não podia deixar de fazê-lo, já que eu não passava de
um simples mortal.
Às 11 horas, recebi outro telegrama de Poirot:
"Aconselhe
Japp prender governanta antes que seja tarde demais."
Aturdido, fui mostrar o telegrama a Japp, que soltou
uma imprecação.
- Monsieur Poirot sabe o que faz. Se ele está dando
tal conselho, é porque tem algum motivo. E mal tinha olhado para a mulher! Não
sei se posso prendê-Ia, mas pelo menos mandarei vigiá-Ia. E vamos imediatamente
ter outra conversa com ela.
Mas já era tarde demais. A Sra. Middleton, aquela
mulher tranqüila de meiaidade, que parecia ser absolutamente normal e
respeitável, desaparecera misteriosamente. Deixara seu baú. Mas continha apenas
roupas, sem a menor indicação para sua identidade ou paradeiro.
Arrancamos todos os fatos possíveis da Sra.
Havering:
- Contratei-a há cerca de três semanas, quando a
Sra. Emery, nossa antiga governanta, foi embora. Foi-me enviada pela agência da
Sra. Selbourne, na rua Mount, um estabelecimento dos mais conhecidos e
respeitáveis. É lá que procuro todos os criados. Apareceram diversas candidatas
ao lugar, mas a Sra. Middleton foi a que me pareceu melhor. Além disso, tinha
também as melhores referências. Contratei-a imediatamente e comuniquei o fato à
agência. Não posso acreditar que ela tenha feito alguma coisa. Era uma mulher
tão afável e quieta!
O caso era de fato misterioso. Embora fosse evidente
que a Sra. Middleton não poderia ter cometido o assassinato pessoalmente, pois
estava no vestíbulo com a Sra. Havering no momento em que o tiro fora
disparado, parecia não haver a menor dúvida de que ela tinha alguma ligação com
o crime. Se assim não fosse, por que iria desaparecer tão abruptamente?
Telegrafei as últimas notícias para Poirot e sugeri
que eu deveria voltar a Londres, a fim de fazer investigações na agência de
empregos. A resposta de Poirot foi imediata:
"Inútil
perguntar na agência porque nunca ouviram falar dela descubra que veículo ela
pegou ao chegar pela primeira vez em Hunter's Lodge.”
Embora desconcertado com o pedido, atendi
obedientemente. Os meios de transporte em Elmer's Dale eram bastante limitados.
A garagem local só tinha dois carros Fords um tanto avariados e havia duas
charretes de aluguel na estação. Nenhum desses veículos fora usado na ocasião.
Interrogada, a Sra. Havering explicou que dera à mulher dinheiro suficiente
para a passagem até Derbyshire e para alugar um carro ou uma charrete a fim de
levá-Ia a Hunter's Lodge. Um dos Fords geralmente ficava parado na estação,
para o caso de desembarcar algum passageiro que desejasse alugá-lo. Levando-se
em consideração o fato adicional de que ninguém na estação percebera a chegada
de um estranho de barba preta, na noite do crime, tudo parecia apontar para a
conclusão de que o assassino viera em seu próprio carro, que ficara à espera
nas proximidades, para servir-lhe como meio de fuga. Provavelmente fora esse
mesmo carro que levara a misteriosa governanta a seu novo emprego. Devo
acrescentar que as investigações na agência de empregos em Londres tiveram o
resultado já previsto por Poirot. Nenhuma mulher como a "Sra.
Middleton" jamais estivera registrada na agência. Haviam recebido o pedido
de uma governanta da Sra. Havering e tinham enviado diversas candidatas. Quando
ela enviara o pagamento pelos serviços prestados, esquecera de mencionar qual
das mulheres escolhera para o lugar.
Um tanto desolado, voltei para Londres. Encontrei
Poirot sentado numa poltrona, diante da lareira, metido num chambre de cores
berrantes. Ele saudou-me com o maior afeto.
- Mon ami Hastings! Como estou contente em vê-lo!
Sabia que sinto a maior afeição por você? E então, divertiu-se muito? Andou
correndo de um lado para outro com nosso bom Japp? Interrogou e investigou até
ficar plenamente satisfeito?
- O caso é um tremendo mistério, Poirot! Nunca será
resolvido!
- É verdade que provavelmente não nos cobriremos de
glória neste caso.
- Tem toda razão, Poirot. É um osso duro de roer.
- Para dizer a verdade, meu amigo, sou muito bom
nessas coisas. Sempre consigo chegar ao tutano. Mas não é isso o que me está
embaraçando. Sei perfeitamente quem matou o Sr. Harrington Pace.
- Sabe? E como descobriu?
- Suas respostas esclarecedoras a meus telegramas
revelaram-me a verdade. Vamos examinar os fatos metodicamente e em ordem,
Hastings. O Sr. Harrington é um homem consideravelmente rico. Não resta a menor
dúvida de que, com sua morte, toda a fortuna ficará para o sobrinho. Esse é o
ponto número um. Sabe-se que o sobrinho está precisando desesperadamente de
dinheiro. Eis o ponto número dois. Sabe-se também que o sobrinho é... podemos
dizer um homem de fibra moral um tanto frouxa? Eis o ponto número três.
- Mas sabemos que Roger Havering seguiu diretamente
para Londres! Isso já foi confirmado!
- Précisément. O Sr. Havering deixou Elmer's Dale às
seis e quinze. Como o Sr. Pace não poderia ter sido morto antes da partida
dele, pois neste caso o médico teria verificado que a hora do crime fora
indicada erroneamente, ao examinar o corpo, chegamos à conclusão absolutamente
certa de que o Sr. Havering não atirou no tio. Mas ainda resta a Sra. Havering,
Hastings.
- Mas isso é impossível! A governanta estava junto
dela, quando o crime foi cometido!
- Ah, sim, a governanta ... Mas ela desapareceu, não
é mesmo?
- Tenho certeza de que acabará sendo encontrada,
mais cedo ou mais tarde.
- Não creio. Não acha que há algo estranhamente
misterioso nessa governanta, Hastings? Percebi imediatamente.
- Imagino que ela tinha um papel a desempenhar,
escapando em seguida, no momento preciso.
- E qual foi o papel dela?
- Presumivelmente, abrir a porta para seu cúmplice,
o homem de barba preta.
- Oh, não, não foi esse o papel mais importante
dela. Foi justamente o que você acabou de mencionar. Ou seja, proporcionar um
álibi para a Sra. Havering no momento em que o tiro foi disparado. E ninguém
jamais a encontrará, mon ami, simplesmente porque ela não existe! "Não há
tal pessoa", como diz o grande Shakespeare de vocês.
- Foi Dickens quem escreveu isso - murmurei, incapaz
de suprimir um sorriso. -Mas o que está querendo insinuar, Poirot?
- Zoe Havering era uma atriz antes de se casar. Você
e Japp viram a governanta apenas num vestíbulo mal-iluminado, uma mulher
aparentemente de meia-idade, vestida de preto, com a voz contida. Nenhum dos
dois, assim como a polícia local também não, jamais viu a Sra. Middleton e a
patroa juntas, em nenhuma ocasião. Foi uma brincadeira de criança para aquela
mulher esperta e audaciosa. Sob o pretexto de chamar a patroa, ela subiu
correndo a escada, vestiu uma blusa berrante e pôs um chapéu de couro, com
cachos presos, sobre os cabelos grisalhos com que se disfarçara. Removeu
rapidamente a maquilagem, passou um pouco de rouge no rosto. E em poucos
minutos quem desceu a escada foi a esfuziante Zoe Havering, com sua voz
vibrante. Ninguém se preocupou em examinar mais atentamente a governanta. Por
que alguém haveria de fazer isso? Não existia coisa alguma a ligá-Ia ao crime.
Além do mais, ela também tinha um álibi.
- E o que me diz do revólver que foi encontrado em
Ealing? A Sra. Havering não poderia tê-lo levado até lá.
- Tem razão. Foi Roger Havering quem deixou o
revólver lá. Mas isso foi um erro da parte deles. Foi o que me levou à pista
certa. Um homem que cometeu um assassinato com um revólver encontrado no local
do crime certamente o jogaria fora imediatamente, não o levaria até Londres. O
motivo para isso era evidente: os criminosos desejavam desviar a atenção da
polícia para longe de Derbyshire. Queriam afastar a polícia das vizinhanças o
mais depressa possível. É claro que o revólver encontrado em Ealing não foi
aquele com que o Sr. Pace foi morto. Roger Havering deu um tiro com esse
revólver e levou-o para Londres. Foi direto para seu clube, a fim de
estabelecer o álibi, saindo em seguida para Ealing, uma viagem de menos de
vinte minutos, deixando ali o embrulho com o revólver e voltando imediatamente.
Enquanto isso, aquela criatura encantadora, a esposa dele, matava calmamente o
Sr. Pace, logo depois do jantar. Está lembrado que o tiro foi disparado pelas
costas? Depois, um ponto muito importante, ela tornou a carregar o revólver e
pendurou-o na parede, iniciando então sua pequena representação.
- É inacreditável - murmurei, fascinado.
- E, no entanto...
- E, no entanto, é verdade. Bien sur, meu amigo, é
absolutamente verdadeiro. Mas não será nada fácil levar os dois à justiça.
Nosso bom Japp deve fazer o que puder. Já lhe escrevi contando tudo. Mas receio
muito, meu caro Hastings, de que seremos obrigados a deixá-los aos cuidados do
destino ou de le bon Dieu, como quer que prefira.
- Os maus florescem como um loureiro - comentei.
- Mas a um certo preço, Hastings, sempre a um bom
preço, croy ez-moi!
As previsões de Poirot foram confirmadas. Japp,
embora convencido da teoria do meu pequeno amigo, não conseguiu reunir as
provas necessárias para garantir uma condenação.
A imensa fortuna do Sr. Pace passou para as mãos de
seus assassinos. Não obstante, eles acabaram sendo punidos pelo crime cometido.
Quando li no jornal que o Sr. e Sra. Roger Havering estavam entre os mortos num
acidente do avião postal para Paris, compreendi que a Justiça finalmente
prevalecera.
Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos (revista em
2002)
DESVENDANDO
UM MISTÉRIO: A CANONIZAÇÃO DE AGATHA CHRISTIE NO BRASIL DURANTE OS SÉCULOS XX E
XXI
Vanessa Lopes Lourenço Hanes
1. A posição histórica de Agatha Christie no
polissistema brasileiro de literatura traduzida: uma prova clara de que nada é
assim tão simples
Agatha Christie é conhecida mundialmente como uma
autora de romances policiais bem-sucedida e prolífica, cuja carreira se
construiu no decorrer do século XX. Por sua vez, os romances policiais são
classificados tanto pelo público em geral quanto por críticos literários como
literatura popular, periférica, ou o que se chama no meio acadêmico de
literatura não-canônica. Porém, tal categorização não deve se dar de maneira
assim tão simples, conforme este breve vislumbre da trajetória de Christie no
Brasil irá demonstrar.
O objetivo aqui é compartilhar com o leitor a forma
como as traduções de Agatha Christie no Brasil, publicadas entre a década de
1930 e os dias atuais, trilharam caminhos pouco convencionais e por vezes até
conflituosos. Por um lado, os livros de Christie publicados no Brasil
apresentam muitos sinais comuns à literatura canonizada, com um aumento
diacrônico da evidência encontrada nesse sentido. Porém, esse suposto processo
de canonização não ocorreu por meio dos métodos esperados, e talvez exatamente
por isso ainda dê indicações contraditórias quando o status de Christie é considerado
em um contexto mais amplo.
Referências
https://i.ytimg.com/vi/JKrwseD0Iho/mqdefault.jpg
https://www.researchgate.net/profile/Jose_Romera/publication/265078684_UNA_NUEVA_ALIANZA_ENTRE_HISTORIA_Y_NOVELA_HISTORIA_Y_FICCION_EN_EL_PENSAMIENTO_LITERARIO_DEL_FIN_DE_SIGLO/links/54649a360cf2c0c6aec5be17.pdf
file:///D:/Usu%C3%A1rio/Downloads/agatha-cristie-la-reina-del-crimen-un-ensayo-sobre-sus-novelas-policiacas--0.pdf
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/24855/24855.PDF
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