89.
PATRÍCIA HIGHSMITH
(1921 -1995 | Estados Unidos)
Muito
jovem esta texana de Fort Worth estreou para a fama: seu romance Strangers on a
Train logo foi transformado em filme por Alfred Hitchcock: Pacto Sinistro.
Mudou-se para a Europa, onde viveu o resto da vida (Inglaterra, depois Suíça).
Seus romances continuaram bem-sucedidos no cinema: O Sol por Testemunha,
baseado em The Talented Mr. Ripley, de René Clément, e O Amigo Americano, de
Wim Wenders, entre outros de menor sucesso. Criadora de um notável anti-herói,
Mr. Ripley, e de dezenas de romances e contos de voz própria e qualidade
literária indiscutíveis, seu conto aqui incluído possui um dos finais mais
surpreendentes (leia-se: cruéis) desta antologia, e curiosamente remete-se ao
final do conto A Grande Breteche de Balzac.
O incidente na garagem foi a terceira
quase-catástrofe na residência dos Amory, tendo originado um terrível
pensamento na cabeça de Loren Amory: sua querida esposa 0livia estava tentando
matar-se.
Loren havia puxado um fio plástico para varal, que
encontrara pendendo de uma prateleira alta na garagem - sua ideia sendo a de
arrumar aquilo, enrolar adequadamente o fio de varal -, mas ao primeiro puxão
uma avalanche de malas, um velho cortador de grama e uma máquina de costura
pesando só-deus sabia-quanto caíram diretamente no lugar de onde ele mal tivera
tempo de pular, a fim de safar-se.
Loren caminhou vagarosamente de volta à casa, o
coração disparando com sua terrível descoberta. Entrou na cozinha e dali foi
para o andar de cima. 0livia estava na cama, recostada em travesseiros, com uma
revista no colo.
- Que barulheira foi essa, querido?
Loren pigarreou e ajeitou mais firmemente no nariz
os óculos de aros pretos.
- Uma porção de coisas na garagem. Apenas puxei um
pedacinho de fio para varal ...
Ele explicou em seguida o que acontecera. 0livia
piscou calmamente, como se dissesse: "E daí? Essas coisas acontecem."
- Você andou remexendo naquela prateleira
ultimamente?
- Ora, não. Por quê?
- Porque. .. Bem, tudo aquilo estava simplesmente
disposto para cair, querida.
- Está me censurando? - perguntou ela, num fio de
voz.
- Censuro o seu descuido, isso sim. Arrumei aquelas
malas na prateleira e jamais as colocaria de modo a despencarem ao menor toque.
Aliás, não deixei a máquina de costura no topo de tudo. Bem, não estou querendo
dizer que...
- Censura o meu descuido - repetiu ela, ofendida.
Ele se ajoelhou rapidamente ao lado da cama.
- Querida, não vamos mais ocultar coisas. Semana
passada, foi o aspirador de tapetes, na escada do porão. E aquela escada de
mão! Você ia subir nela para derrubar o ninho de vespas! O que procuro dizer,
querida, é que você quer que algo lhe aconteça, esteja ou não percebendo isso.
Tem que ser mais cuidadosa, Olivia . .. Oh, querida, por favor, não chore!
Estou querendo ajudá-Ia, não criticando.
- Eu sei, Loren. Você é bom. Só que minha vida...
bem, não merece mais ser vivida, eu acho. Não quero dizer que esteja tentando
acabar com a vida, mas...
- Ainda está pensando... em Stephen? - Loren odiava
aquele nome e até pronunciá-lo. Ela baixou as mãos dos olhos avermelhados.
- Você me fez prometer que não pensaria mais nele,
portanto eu não penso. Juro, Loren.
– Ótimo, querida. Essa é a minha garotinha. - Ele
lhe tomou as mãos. - O que me diz de fazermos um cruzeiro em breve? Talvez
fevereiro? Myers está voltando da costa e pode tomar o meu lugar por umas duas
semanas. O que acha do Haiti ou Bermudas?
Ela pareceu pensar na sugestão um momento, mas por
fim abanou a cabeça, disse que Loren só fazia isso por ela, não porque
realmente quisesse ir. Loren protestou um pouco, depois desistiu. Quando Olivia
não aceitava uma ideia imediatamente, nunca a aceitava. Já houvera uma vitória
- quando ele a convencera de que fazia sentido não ver Stephen Castle durante
três meses.
Olivia conhecera Stephen Castle na festa oferecida
por um colega de Loren na Bolsa de Valores. Stephen tinha trinta e cinco anos,
era dez anos mais novo do que Loren e um ano mais velho do que Olivia. Era
ator. Loren não fazia ideia de como Toohey, o anfitrião deles naquela noite, o
havia conhecido e muito menos por que o convidara a uma festa em que todos os
demais homens exerciam atividades em bancos ou na Bolsa; não obstante, lá
estava ele, como um espírito maligno alienígena, concentrando-se a noite
inteira em Olivia e ela respondendo-lhe com os sorrisos sedutores que haviam
capturado Loren em uma única noite, oito anos atrás.
Mais tarde, quando rodavam de volta a Old Greenwich,
Olivia comentara:
- É tão interessante falar com alguém que não seja
do mercado de ações, para variar! Ele me disse que agora está ensaiando uma peça
- O convidado contumaz. Nós temos de vê-la, Loren.
Eles viram a peça. Stephen Castle atuava por talvez
cinco minutos, no Primeiro Ato. Eles o visitaram nos bastidores e Olivia o
convidou para o coquetel que ofereceriam no fim de semana seguinte. Stephen
compareceu e passou aquela noite no quarto de hóspedes do casal. Nas semanas
seguintes, Olivia foi a Nova York em seu carro pelo menos duas vezes por
semana, em expedições de compras, porém não fazia segredo do fato de que
almoçava com Stephen naqueles dias e, às vezes, também o via para coquetéis.
Por fim, ela disse para Loren que se apaixonara por Stephen e queria o
divórcio.
Loren ficou sem fala a princípio, até mesmo
inclinado a conceder-lhe o divórcio e encarando a situação com esportividade.
No entanto, quarenta e oito horas depois que ela lhe dera a notícia, ele caíra
em si. A essa altura, já fizera comparações com seu rival - não meramente
físicas (Loren não saía tão bem em tal quesito, sendo praticamente da altura de
Olivia, com uma calvície incipiente e uma leve barriga), mas também morais e
financeiras. Nestes dois últimos quesitos, estava bem acima de Stephen Castle
e, modestamente, indicou isto a Olivia.
– Nunca me casei com um homem por dinheiro -
retorquiu ela.
- Não quis dizer que se casou comigo por dinheiro,
meu bem. Apenas aconteceu que eu o tinha. No entanto, será que Stephen Castle
chegará a ter algum? Não será muita coisa, a julgar pelo que vi de sua atuação
no palco. Você está acostumada a mais do que ele pode dar. Além disso, faz
apenas seis semanas que o conhece. Como pode ter certeza de que o amor dele por
você irá durar?
Este último pensamento levou Olivia a fazer uma
pausa. Disse que veria Stephen só mais uma vez - "para discutir o
assunto". Foi de carro para Nova York certa manhã, só retornando à
meia-noite. Era um domingo, dia em que Stephen não trabalhava. Ficou decidido
que não se veriam durante um mês e que, se no fim desse tempo não continuassem
sentindo o mesmo um pelo outro, concordariam em esquecer tudo aquilo.
- Oh, mas é claro que você sentirá o mesmo por ele -
disse Loren. - O que representa um mês na vida de um adulto? Se prolongasse
essa experiência por três meses...
Ela o fitou através das lágrimas.
- Três meses?
- Comparados aos oito anos em que estamos casados!
Acha injusto? Nosso casamento também merece uma oportunidade de pelo menos três
meses, não merece?
- Está bem. Eu concordo. Três meses. Vou ligar
amanhã para Stephen e dizer a ele. Durante três meses nós não nos veremos nem
nos telefonaremos.
A partir desse dia, Olivia entrou em declínio.
Perdeu o interesse por jardinagem, por seu clube de bridge e até por roupas.
Seu apetite desapareceu, embora ela não perdesse muito peso, mas talvez fosse
por estar proporcionalmente inativa. Eles nunca haviam tido empregados. Olivia
orgulhava-se do fato de ter sido uma jovem que trabalhava fora, vendedora no
departamento de presentes de uma loja em Manhattan, quando Loren a conhecera.
Gostava de comentar que sabia como fazer as coisas sozinha. A grande casa em
Old Greenwich era suficiente para manter qualquer mulher ocupada, embora Loren
a tivesse provido de toda aparelhagem já concebida para minorar os serviços
domésticos. Instalada no porão e permitindo a entrada em seu interior, eles
possuíam uma unidade frigorífica do tamanho de um espaçoso dosei, para que as
compras do mercado fossem feitas em menos vezes do que o comum. De qualquer
modo, todos os mantimentos eram entregues em casa. Agora que Olivia parecia
cansada, Loren sugeriu que contratassem uma empregada, porém ela recusou.
Sete semanas escoaram-se. E Olivia manteve a palavra
de não ver Stephen. Contudo, estava obviamente tão deprimida, tão pronta a
debulhar-se em lágrimas, que Loren permanecia constantemente a ponto de
fraquejar, de dizer a ela que se amava Stephen a tal ponto tinha o direito de
vê-lo. Talvez Stephen Castle estivesse sentindo o mesmo, pensava Loren, talvez
também contasse as semanas que passavam até poder voltar a ver Olivia. Sendo
assim, Loren já havia perdido.
Entretanto, para ele era difícil acreditar que
Stephen sentiria alguma coisa. O ator era um sujeito esgalgado, um tanto
estúpido, de cabelos cor de aveia, e Loren nunca o vira sem um sorriso doentio
na boca - como se fosse um humano quadro de avisos sobre si mesmo, exibindo perpetuamente
o que imaginava ser sua expressão mais fascinante.
Solteiro ainda aos trinta e sete anos, quando se
casara com alivia, Loren frequentemente suspirava desanimado, ante o modo deserdas
mulheres. Olivia, por exemplo: se ele sentisse algo tão forte por outra mulher,
teria feito rapidamente o possível para libertar-se do casamento. Ela, no
entanto, de certo modo continuava em suspenso. Era difícil saber o que esperava
ganhar com isso. Estaria pensando, ou esperando que seu entusiasmo por Stephen pudesse
desaparecer? Ou pretendia mortificar Loren e provar que não desapareceria? Ou
sabia, inconscientemente, que seu amor por Stephen Castle era pura fantasia e
que sua depressão atual representava, para ela e para Loren, uma adequada fase
em que pranteava um amor que não a induzira a tomar coragem, ir em frente e
reclamá-lo?
No sábado, contudo, o incidente da garagem fez Loren
duvidar de que alivia estivesse entregue a uma fantasia. Ele não queria admitir
que sua esposa estava tentando tirar a própria vida, porém a lógica o compelia
a isso. Havia lido sobre tais pessoas. Eram diferentes das propensas a
acidentes, estas podendo viver até morrerem de morte natural, fosse ela qual
fosse. As outras pessoas eram as propensas ao suicídio e, ele tinha certeza,
Olivia encaixava-se nessa categoria.
Um exemplo perfeito era o episódio da escada de mão.
Olivia tinha estado no quarto ou quinto degrau, quando ele percebera a
rachadura no lado esquerdo da escada. Ela permanecera de todo despreocupada
quando Loren lhe apontara o perigo. Se alivia não houvesse dito que de repente
se sentia um pouco tonta, ao olhar para o ninho de vespas lá no alto, ele
jamais teria começado a fazer a tarefa pessoalmente e, desta maneira, nunca
teria visto a rachadura.
Loren havia lido no jornal que a peça de Stephen
chegava ao fim, e pareceu-lhe que a melancolia de alivia acentuava-se. Agora,
havia círculos escuros sob os olhos dela e estava reclamando que não conseguia
dormir antes de o dia clarear.
- Telefone para ele, se você quiser, querida - disse
finalmente Loren. - Procure-o novamente e verifique se ambos...
- Não. Fiz uma promessa a você. São três meses,
Loren. Manterei minha palavra -disse ela, com lábios trêmulos.
Loren virou-lhe as costas, desditoso e odiando-se.
Olivia ficou mais fraca fisicamente. Certa vez
tropeçou quando descia a escada, mal conseguindo apoiar-se no corrimão para
evitar uma queda. Loren sugeriu - não pela primeira vez - que ela devia ver um
médico, mas alivia recusou-se.
- Os três meses estão quase terminando, querido. Eu
sobreviverei a eles - respondeu ela, com um sorriso tristonho.
Era verdade. Faltavam apenas mais duas semanas para
o dia 15 de março, prazo limite dos três meses. Os Idos de Março, percebeu
Loren, pela primeira vez. Uma coincidência bastante agourenta.
Na tarde de domingo, Loren estava em seu estúdio
vistoriando alguns relatórios do escritório quando ouviu um grito prolongado,
seguido de estrondoso barulho de coisas partidas. Em um instante ele estava em
pé e corria. O barulho viera do porão, pensou, e então já sabia o que
acontecera. Aquele maldito aspirador de tapetes novamente! - Olivia?
Ouviu um gemido vindo do porão escuro. Loren
mergulhou pelos degraus abaixo. Houve um leve ruído de rodas, seus pés voaram
diante dele e, nos poucos segundos antes de ter a cabeça esmagada contra o piso
de cimento, teve tempo de compreender tudo. Olivia não caíra nos degraus da
escada do porão, ela apenas o atraíra para lá, porque estivera o tempo todo
tentando matá-lo - acabar com ele, Loren Amory -, e tudo isso por causa de
Stephen Castle.
- Eu estava na cama, no andar de cima, lendo -
declarou Olivia à polícia, as mãos tremendo enquanto apertava o penhoar contra
o corpo. - Ouvi um barulho horrível, e então... eu desci ... - E ela fez um
gesto impotente, na direção do cadáver de Loren.
A polícia anotou suas declarações e condoeu-se dela.
As pessoas deviam ser mais cuidadosas, disseram, sobre coisas como aspiradores
de tapetes sobre escadas escuras. Todos os dias aconteciam fatalidades iguais
àquela nos Estados Unidos. Depois removeram o corpo e, na terça-feira, Loren
Amory foi sepultado.
Olivia ligou para Stephen na quarta-feira. Estivera
telefonando para ele todos os dias, exceto nos sábados e domingos, mas não
havia ligado desde a sexta-feira anterior. Os dois haviam combinado que, se a
qualquer dia da semana ela não lhe telefonasse para o apartamento às 11 da
manhã, isto significaria que a missão de ambos fora cumprida. Além disso, Loren
Amory ocupara bastante espaço na página de obituários da segunda-feira. Havia
deixado quase um milhão de dólares para sua viúva, além de casas na Flórida,
Connecticut e Maine.
- Minha querida! Você parece tão cansada! - foram as
primeiras palavras de Stephen, quando eles se encontraram em um bar remoto de
Nova York na quarta-feira.
- Tolice! É tudo maquiagem! - exclamou Olivia
jovialmente. - E você é um ator! -Ela riu. - Tenho de me mostrar adequadamente
melancólica para os vizinhos, você sabe. E nunca sei quando posso encontrar uma
pessoa conhecida em Nova York.
Stephen olhou em torno nervosamente, depois
perguntou, mostrando o sorriso costumeiro:
- Olivia querida, quando é que vamos ficar juntos?
- Muito breve - disse ela prontamente. - Não lá na
casa, claro, mas lembra-se de que falamos sobre um cruzeiro? Talvez Trinidad? O
dinheiro já está comigo. Quero que você compre as passagens.
Viajaram em cabines de luxo separadas. Sem a menor
suspeita, o jornal local de Connecticut anunciou que a viagem da Sra. Amory era
por questões de saúde.
De volta aos Estados Unidos em abril, bronzeada e
parecendo bem melhor, Olivia confessou a amigos que conhecera alguém por quem
"estava interessada". Os amigos garantiram-lhe que isso era normal,
uma vez que ela não deveria ficar sozinha o resto da vida. O curioso é que
quando Olivia convidou Stephen para um jantar formal em sua casa, nenhum de
seus amigos se lembrava dele, embora vários o tivessem encontrado naquele
coquetel de alguns meses antes. Agora, muito mais seguro de si, Stephen se
portava como um anjo, pensou Olivia.
Casaram-se em agosto. Stephen estivera fazendo
pequenos papéis, em se tratando de trabalho, mas nada melhor se materializava.
Olivia lhe disse que não se preocupasse, que certamente tudo entraria nos eixos
depois do verão. Ele não parecia preocupar-se demais, embora protestasse que
devia trabalhar e que, se necessário, tentaria alguns papéis na televisão.
Passou a interessar-se por jardinagem, plantou algumas mudas de espruces azuis
e, de uma maneira geral, fez com que a casa parecesse animada novamente.
Olivia ficou satisfeita por Stephen apreciar a casa,
porque gostava dela. Nenhum deles chegou a mencionar a escada do porão, mas
providenciaram a colocação de um interruptor de luz no patamar do alto, a fim
de que algo similar não tornasse a acontecer. Além disso, o aspirador de
tapetes foi guardado em seu lugar adequado, isto é, no armário de vassouras que
ficava na cozinha.
Agora, eles recebiam os amigos com mais frequência
do que Olivia e Loren haviam feito. Stephen tinha muitos amigos em Nova York, e
Olivia os achava divertidos. Entretanto, julgava que Stephen estava bebendo um
pouco além da conta. Em uma festa, quando se encontravam todos no terraço, ele
quase havia despencado pelo parapeito, tendo que ser segurado por dois
convidados.
- É melhor que tome cuidado com esta casa, Steve -
disse Parker Barnes, um ator seu amigo. - Ela pode ser azarada.
- O que está querendo dizer? - exclamou Stephen. -
Não acredito nisso nem por um minuto! Posso ser ator, mas não tenho nenhuma
superstição!
- Oh, quer dizer então que é ator, Sr. Castle! -
exclamou uma voz de mulher, vindo da escuridão.
Depois que os convidados se foram, Stephen pediu a
Olivia para ir novamente ao terraço.
- Talvez o ar me refresque a cabeça - disse ele,
sorridente. - Desculpe, eu estava um pouco tocado esta noite. Lá está a velha
Orion! Pode vê-la? - Ele passou o braço em torno da mulher e a puxou para si. -
É a constelação mais brilhante no firmamento!
- Está me machucando, Stephen! Não aperte tan... !
Então ela gritou e contorceu-se, lutando pela vida.
- Diabos a levem! - ofegou Stephen, espantado com o
vigor dela. Contorcendo-se, Olivia afastou-se e ficou parada perto da porta do
quarto, agora encarando-o.
- Você ia me empurrar!
- Não! Deus do céu, Olivia! Apenas perdi o
equilíbrio, foi tudo! Pensei que quem ia cair era eu!
- Eis aí algo bonito para fazer, então - agarrar-se
a uma mulher e arrastá-la na queda!
- Eu não tinha percebido. Estou bêbado, querida.
Sinto muito.
Como sempre, ocuparam a mesma cama essa noite, mas
ambos apenas fingiam dormir. Até que, para Olivia, pelo menos, o sono chegou ao
clarear do dia, como costumava dizer para Loren.
No dia seguinte, de maneira casual e
sub-repticiamente, cada um deles vistoriou a casa, do sótão ao porão - Olivia a
fim de proteger-se de possíveis armadilhas mortais, Stephen a fim de
instalá-las. Ele já decidira que a escada do porão oferecia a melhor
possibilidade, a despeito da repetição, pois pensava que ninguém acreditaria
que alguém se atrevesse a usar o mesmo método duas vezes - se a intenção era
assassinar.
Por acaso, Olivia pensava a mesma coisa.
Os degraus para o porão nunca tinham sido tão livres
de obstáculos ou tão bem-iluminados. Nenhum deles tomava a iniciativa de
desligar a luz à noite. Exteriormente, cada um declarava amor e confiança ao
outro.
- Lamento haver dito semelhante coisa a você,
Stephen - ela sussurrou ao ouvido do marido, quando ele a abraçou. - Naquela
noite, senti medo no terraço, nada mais. Quando você disse "Diabos a
levem"...
- Eu sei, meu anjo. Você não poderia pensar que eu
pretendia machucá-la. Falei "Diabos a levem" apenas porque você
estava lá e pensei que talvez a tivesse feito desequilibrar-se.
Eles falaram sobre outro cruzeiro. Queriam ir à
Europa na primavera seguinte. Às refeições, no entanto, provavam cautelosamente
cada alimento, antes de começarem a comer.
Como é que eu faria alguma coisa com a comida,
pensava Stephen, se você nunca sai da cozinha enquanto está cozinhando?
E Olivia! Não deixo coisa alguma perto de você. Só
existe um caminho em que parece ser esperto, Stephen.
A humilhação por haver perdido um amante era
disfarçada por sombrio ressentimento. Olivia percebia que tinha sido vítima. O
último traço de sedução de Stephen desaparecera. Agora, no entanto, pensava
ela, Stephen representava o melhor papel de sua vida - e era uma representação
de vinte e quatro horas diárias. Felicitou-se ao não se deixar enganar por
isso, e estudava um plano após outro, sabendo que este "acidente" de
agora teria que ser ainda mais convincente do que aquele que a libertara de
Loren.
Stephen percebia que sua situação pouco tinha de
embaraçosa. Todos quantos conheciam o casal, mesmo que superficialmente,
julgavam que ele adorava a esposa. Assim, um acidente seria encarado apenas
como um acidente, caso o afirmasse. Ele agora acalentava a ideia daquele enorme
frigorífico do porão. A porta não possuía maçaneta interna e de vez em quando
Olivia entrava lá, ia no canto mais distante apanhar bifes ou aspargos
congelados. Entretanto, ousaria entrar no frigorífico, agora que andava
desconfiada, se ele estivesse no porão ao mesmo tempo? Stephen duvidava muito.
Certa manhã, enquanto Olivia fazia o desjejum na
cama - ela voltara a ocupar seu próprio dormitório novamente e Stephen lhe
levava o desjejum, como Loren sempre fizera -, ele experimentou a porta do
frigorífico. Descobriu que quando ela se chocava com um objeto sólido, ao ser
aberta, de maneira lenta, mas seguramente, o impacto fazia com que voltasse a
trancar-se. Agora não existia qualquer objeto sólido perto da porta e, pelo
contrário, ela devia ficar escancarada, a fim de que uma lingueta na parte
externa se prendesse a uma alça instalada na parede, com essa finalidade
expressa, desta maneira mantendo a porta aberta. Ele havia reparado que Olivia
sempre abria a porta ao máximo quando entrava lá, tendo ainda visto que a porta
se prendia automaticamente na alça da parede. Entretanto, se colocasse alguma
coisa no caminho, até mesmo a quina da caixa de madeira cortada para lenha, a
porta bateria nela e voltaria a fechar-se de novo, antes que alivia tivesse
tempo de perceber o que acontecera.
Aquele exato momento, contudo, não parecia o' mais
apropriado para colocar a caixa de lenha em posição e, sendo assim, Stephen não
montou sua armadilha. Olivia tinha dito algo sobre irem a um restaurante à
noite. Isto significava que durante o dia não iria retirar nada do freezer para
degelar.
Eles deram uma pequena caminhada às três da tarde -
pelo bosque atrás da casa, depois tornaram a entrar - e quase começaram a andar
de mãos dadas, em uma mútua simulação de afeto, tão repugnante quanto
insultuosa, mas os dedos apenas se tocaram e separaram-se.
- Uma xícara de chá seria ótimo, não, querido? -
perguntou alivia.
- Hum-hum - sorriu ele. Veneno no chá? Veneno nos
biscoitos? Ela mesma os fizera, pela manhã. Stephen recordou como haviam
tramado a triste partida de Loren - os ternos sussurros dela sobre assassinato,
enquanto almoçavam, sua infinita paciência à medida que as semanas passavam e
um plano depois do outro ia falhando. Ele é que tinha sugerido o aspirador de
tapetes na escada do porão e o grito dela para atraí-lo. a que iria planejar o
cérebro de passarinho daquela mulher?
Pouco depois do chá - tudo estivera saboroso -
Stephen deixou a sala de estar como que sem um propósito definido. Sentia-se
impelido a testar novamente a caixa de lenha e verificar se podia confiar na
artimanha. Também estava inspirado para montar a armadilha agora e deixá-la
preparada. A luz no alto da escada do porão estava acesa. Ele desceu os degraus
cuidadosamente.
Ficou ouvindo um instante, a fim de verificar se
alivia poderia tê-lo seguido. Então puxou a caixa de lenha, deixando-a em
posição, não paralela à frente do frigorífico, é claro, mas um pouco ao lado,
como se alguém a tivesse arrastado para fora das sombras a fim de examiná-la
melhor, e a tivesse deixado ali. Ele abriu a porta do frigorífico com
exatamente a velocidade e força que alivia poderia usar, empurrando-a de junto
de seu corpo, enquanto interpunha um pé, a mão direita estendida para apará-la,
assim que ricocheteasse na caixa de lenha e voltasse. Entretanto, o pé que lhe
suportava o peso deslizou vários centímetros para diante, assim que a porta se
chocou na caixa.
Stephen estava caído sobre o joelho direito, a perna
esquerda estirada para diante e, atrás dele, a porta se fechou. Ele ficou
instantaneamente em pé e olhou para a porta fechada, com pupilas dilatadas.
Estava escuro, e tateou em busca do interruptor auxiliar, à esquerda da porta,
que acendia uma luz no fundo do freezer.
Como pudera acontecer aquilo? Aquela maldita camada
de gelo fino no chão! Entretanto, não tinha sido apenas o gelo, ele via. Seu pé
deslizara, mas em um pedacinho de sebo, que agora avistava no meio do piso, no
final do risco engordurado que seu escorregão produzira.
Stephen olhou fixamente para o sebo com expressão
neutra, opaca, durante um instante. Depois tornou a encarar a porta,
empurrou-a, tateou ao longo da fenda firmemente selada com borracha. Podia
chamar Olivia, é claro. Ela o ouviria por fim ou pelo menos daria por sua
falta, antes que houvesse tempo para ficar congelado. Ela desceria ao porão,
poderia ouvi-lo dali, mesmo que não o ouvisse da sala de estar. Então, abriria
a porta, sem dúvida.
Stephen sorriu fracamente, tentando convencer-se de
que ela abriria a porta.
- Olivia!... Olival Estou aqui embaixo, no porão!
Quase meia hora mais tarde é que Olivia chamou por
Stephen, a fim de perguntar-lhe que restaurante preferia, pois isto
influenciaria a roupa que ela ia vestir. Procurou-o no quarto dele, na
biblioteca e no terraço, para finalmente chamá-lo em voz alta à porta da
frente, imaginando que poderia estar em algum ponto do jardim.
Por último, tentou o porão.
A esta altura, encolhido dentro do paletó de tweed,
os braços cruzados, Stephen caminhava para cima e para baixo no interior do
freezer, emitindo pedidos de socorro a intervalos de trinta segundos e
empregando o restante do fôlego para soprar dentro da camisa, num esforço para
aquecer-se. Olivia estava prestes a abandonar o porão quando ouviu seu nome ser
chamado fracamente.
- Stephen ?...
Stephen, onde está você?
- Aqui, dentro do frigorífico! - bradou ele, o mais
alto que lhe foi possível. Olivia olhou para o enorme congelador, com um
sorriso de incredulidade.
- Abra... quer abrir? Estou no congelador! - soou a
voz abafada de Stephen.
Ela jogou a cabeça para trás e começou a rir com
vontade. Estava pouco ligando se ele a ouvisse. Então, ainda rindo tanto que
teve de curvar o corpo, subiu a escada do porão.
O que achava tão engraçado é que tinha pensado no
congelador como um excelente lugar para livrar-se de Stephen, mas sem chegar a
imaginar como fazê-lo entrar lá. E o fato de ele agora estar lá dentro,
percebeu Olivia, podia ser devido a algum curioso acidente - possivelmente
estivesse tentando montar uma armadilha para apanhá-la. Tudo aquilo era
demasiado cômico. E uma sorte!
Ou então, pensou desconfiadamente, ainda agora a
intenção dele talvez fosse levá-la a abrir a porta do congelador, para em
seguida empurrá-la e trancá-la lá dentro. Evidentemente, ela não ia permitir
que isso acontecesse!
Entrando em seu carro, Olivia dirigiu por uns trinta
quilômetros em direção norte, comeu um sanduíche em um bar de beira de estrada
e depois foi a um cinema. Quando à meia-noite chegou em casa, achou-se sem
coragem de gritar "Stephen" diante do congelador ou mesmo de descer
ao porão. Não tinha certeza de que ele já estaria morto e, embora ficando
calado, isto bem poderia significar que apenas se fingia de morto ou desmaiado.
Amanhã, no entanto, pensou ela, não haverá mais
dúvida alguma sobre a morte dele. A própria falta de ar, antes de mais nada,
àquela altura já o teria liquidado.
Foi para a cama e garantiu para si mesma uma noite
de sono com um sedativo leve. O dia seguinte seria fatigante. Sua história da
pequena discussão com Stephen - a respeito de que restaurante escolheriam, nada
mais - e ele saindo furiosamente da sala de estar para dar uma caminhada,
pensou, teria de ser muito muito convincente.
Às dez horas da manhã seguinte, depois de um suco de
laranja e café, alivia se sentiu pronta para seu papel de viúva horrorizada e
combalida pela dor. Afinal de contas, disse para si mesma, já havia ensaiado o
papel - seria a segunda vez que desempenhava tal personagem. Resolveu enfrentar
a polícia em seu penhoar, como antes.
A fim de parecer bastante natural sobre tudo aquilo,
desceu ao porão a fím de fazer a "descoberta", antes de chamar a
polícia.
- Stephen? Stephen? - chamou em voz alta, confiante.
Nenhuma resposta.
Abriu a porta do congelador com apreensão, ficou
boquiaberta ao ver a figura encolhida no piso, coberta de gelo, e depois deu
alguns passos em direção a ele - cônscia de que suas pegadas, impressas no
chão, estariam visíveis para confirmar a história de que entrara lá para tentar
reanimar Stephen.
Ka-blum! fez a porta - como se alguém do lado de
fora a tivesse empurrado com muita força.
Olivia agora ficou de boca aberta a sério, e
boquiaberta continuou. Tinha aberto a porta com um movimento enérgico, a fim de
escancará-la. Ela devia ter-se prendido à alça da parede externa.
- Olá! Tem alguém aí! Abra esta porta, por favor!
Imediatamente!
No entanto, sabia que lá fora não havia ninguém.
Aquilo tinha sido apenas um maldito acidente. Talvez providenciado por Stephen.
Olhou para o rosto dele. Estava de olhos abertos e
nos lábios arroxeados havia o sorriso habitual, agora triunfante mas
inteiramente desagradável. Olivia não olhou mais para ele. Apertando contra o
corpo seu fino penhoar, o mais que podia, ela começou a gritar.
- Socorro! Alguém me ajude!... Polícia!
Continuou gritando durante horas, até ficar rouca, e
realmente não mais sentir tanto frio, somente uma leve sonolência.
Tradução
de Luísa Ibariez
Strangers On A Train (1951) Official Trailer - Alfred
Hitchcock Movie HD
(Strangers on a
Train, 1951)
Dirigido por Alfred Hitchcock
Com Farley Granger, Ruth Roman, Robert Walker
Dirigido por Alfred Hitchcock
Com Farley Granger, Ruth Roman, Robert Walker
Pacto Sinistro HD - Dublagem Herbert Richers
Referência
file:///D:/Usu%C3%A1rio/Downloads/Os%20100%20Melhores%20Contos%20de%20Crime%20e%20Mist%C3%A9rio%20da%20Literatura%20Universal%20-%20Fl%C3%A1vio%20Moreira%20Da%20Costa.pdf
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