quarta-feira, 2 de agosto de 2017

ARMADILHA PARA OS PATOS

89.

PATRÍCIA HIGHSMITH (1921 -1995 | Estados Unidos)

Muito jovem esta texana de Fort Worth estreou para a fama: seu romance Strangers on a Train logo foi transformado em filme por Alfred Hitchcock: Pacto Sinistro. Mudou-se para a Europa, onde viveu o resto da vida (Inglaterra, depois Suíça). Seus romances continuaram bem-sucedidos no cinema: O Sol por Testemunha, baseado em The Talented Mr. Ripley, de René Clément, e O Amigo Americano, de Wim Wenders, entre outros de menor sucesso. Criadora de um notável anti-herói, Mr. Ripley, e de dezenas de romances e contos de voz própria e qualidade literária indiscutíveis, seu conto aqui incluído possui um dos finais mais surpreendentes (leia-se: cruéis) desta antologia, e curiosamente remete-se ao final do conto A Grande Breteche de Balzac.

O incidente na garagem foi a terceira quase-catástrofe na residência dos Amory, tendo originado um terrível pensamento na cabeça de Loren Amory: sua querida esposa 0livia estava tentando matar-se.

Loren havia puxado um fio plástico para varal, que encontrara pendendo de uma prateleira alta na garagem - sua ideia sendo a de arrumar aquilo, enrolar adequadamente o fio de varal -, mas ao primeiro puxão uma avalanche de malas, um velho cortador de grama e uma máquina de costura pesando só-deus sabia-quanto caíram diretamente no lugar de onde ele mal tivera tempo de pular, a fim de safar-se.

Loren caminhou vagarosamente de volta à casa, o coração disparando com sua terrível descoberta. Entrou na cozinha e dali foi para o andar de cima. 0livia estava na cama, recostada em travesseiros, com uma revista no colo.

- Que barulheira foi essa, querido?

Loren pigarreou e ajeitou mais firmemente no nariz os óculos de aros pretos.

- Uma porção de coisas na garagem. Apenas puxei um pedacinho de fio para varal ...

Ele explicou em seguida o que acontecera. 0livia piscou calmamente, como se dissesse: "E daí? Essas coisas acontecem."

- Você andou remexendo naquela prateleira ultimamente?

- Ora, não. Por quê?

- Porque. .. Bem, tudo aquilo estava simplesmente disposto para cair, querida.

- Está me censurando? - perguntou ela, num fio de voz.

- Censuro o seu descuido, isso sim. Arrumei aquelas malas na prateleira e jamais as colocaria de modo a despencarem ao menor toque. Aliás, não deixei a máquina de costura no topo de tudo. Bem, não estou querendo dizer que...

- Censura o meu descuido - repetiu ela, ofendida. Ele se ajoelhou rapidamente ao lado da cama.

- Querida, não vamos mais ocultar coisas. Semana passada, foi o aspirador de tapetes, na escada do porão. E aquela escada de mão! Você ia subir nela para derrubar o ninho de vespas! O que procuro dizer, querida, é que você quer que algo lhe aconteça, esteja ou não percebendo isso. Tem que ser mais cuidadosa, Olivia . .. Oh, querida, por favor, não chore! Estou querendo ajudá-Ia, não criticando.

- Eu sei, Loren. Você é bom. Só que minha vida... bem, não merece mais ser vivida, eu acho. Não quero dizer que esteja tentando acabar com a vida, mas...

- Ainda está pensando... em Stephen? - Loren odiava aquele nome e até pronunciá-lo. Ela baixou as mãos dos olhos avermelhados.

- Você me fez prometer que não pensaria mais nele, portanto eu não penso. Juro, Loren.

– Ótimo, querida. Essa é a minha garotinha. - Ele lhe tomou as mãos. - O que me diz de fazermos um cruzeiro em breve? Talvez fevereiro? Myers está voltando da costa e pode tomar o meu lugar por umas duas semanas. O que acha do Haiti ou Bermudas?

Ela pareceu pensar na sugestão um momento, mas por fim abanou a cabeça, disse que Loren só fazia isso por ela, não porque realmente quisesse ir. Loren protestou um pouco, depois desistiu. Quando Olivia não aceitava uma ideia imediatamente, nunca a aceitava. Já houvera uma vitória - quando ele a convencera de que fazia sentido não ver Stephen Castle durante três meses.

Olivia conhecera Stephen Castle na festa oferecida por um colega de Loren na Bolsa de Valores. Stephen tinha trinta e cinco anos, era dez anos mais novo do que Loren e um ano mais velho do que Olivia. Era ator. Loren não fazia ideia de como Toohey, o anfitrião deles naquela noite, o havia conhecido e muito menos por que o convidara a uma festa em que todos os demais homens exerciam atividades em bancos ou na Bolsa; não obstante, lá estava ele, como um espírito maligno alienígena, concentrando-se a noite inteira em Olivia e ela respondendo-lhe com os sorrisos sedutores que haviam capturado Loren em uma única noite, oito anos atrás.

Mais tarde, quando rodavam de volta a Old Greenwich, Olivia comentara:

- É tão interessante falar com alguém que não seja do mercado de ações, para variar! Ele me disse que agora está ensaiando uma peça - O convidado contumaz. Nós temos de vê-la, Loren.

Eles viram a peça. Stephen Castle atuava por talvez cinco minutos, no Primeiro Ato. Eles o visitaram nos bastidores e Olivia o convidou para o coquetel que ofereceriam no fim de semana seguinte. Stephen compareceu e passou aquela noite no quarto de hóspedes do casal. Nas semanas seguintes, Olivia foi a Nova York em seu carro pelo menos duas vezes por semana, em expedições de compras, porém não fazia segredo do fato de que almoçava com Stephen naqueles dias e, às vezes, também o via para coquetéis. Por fim, ela disse para Loren que se apaixonara por Stephen e queria o divórcio.

Loren ficou sem fala a princípio, até mesmo inclinado a conceder-lhe o divórcio e encarando a situação com esportividade. No entanto, quarenta e oito horas depois que ela lhe dera a notícia, ele caíra em si. A essa altura, já fizera comparações com seu rival - não meramente físicas (Loren não saía tão bem em tal quesito, sendo praticamente da altura de Olivia, com uma calvície incipiente e uma leve barriga), mas também morais e financeiras. Nestes dois últimos quesitos, estava bem acima de Stephen Castle e, modestamente, indicou isto a Olivia.

– Nunca me casei com um homem por dinheiro - retorquiu ela.

- Não quis dizer que se casou comigo por dinheiro, meu bem. Apenas aconteceu que eu o tinha. No entanto, será que Stephen Castle chegará a ter algum? Não será muita coisa, a julgar pelo que vi de sua atuação no palco. Você está acostumada a mais do que ele pode dar. Além disso, faz apenas seis semanas que o conhece. Como pode ter certeza de que o amor dele por você irá durar?

Este último pensamento levou Olivia a fazer uma pausa. Disse que veria Stephen só mais uma vez - "para discutir o assunto". Foi de carro para Nova York certa manhã, só retornando à meia-noite. Era um domingo, dia em que Stephen não trabalhava. Ficou decidido que não se veriam durante um mês e que, se no fim desse tempo não continuassem sentindo o mesmo um pelo outro, concordariam em esquecer tudo aquilo.

- Oh, mas é claro que você sentirá o mesmo por ele - disse Loren. - O que representa um mês na vida de um adulto? Se prolongasse essa experiência por três meses...

Ela o fitou através das lágrimas.

- Três meses?

- Comparados aos oito anos em que estamos casados! Acha injusto? Nosso casamento também merece uma oportunidade de pelo menos três meses, não merece?

- Está bem. Eu concordo. Três meses. Vou ligar amanhã para Stephen e dizer a ele. Durante três meses nós não nos veremos nem nos telefonaremos.

A partir desse dia, Olivia entrou em declínio. Perdeu o interesse por jardinagem, por seu clube de bridge e até por roupas. Seu apetite desapareceu, embora ela não perdesse muito peso, mas talvez fosse por estar proporcionalmente inativa. Eles nunca haviam tido empregados. Olivia orgulhava-se do fato de ter sido uma jovem que trabalhava fora, vendedora no departamento de presentes de uma loja em Manhattan, quando Loren a conhecera. Gostava de comentar que sabia como fazer as coisas sozinha. A grande casa em Old Greenwich era suficiente para manter qualquer mulher ocupada, embora Loren a tivesse provido de toda aparelhagem já concebida para minorar os serviços domésticos. Instalada no porão e permitindo a entrada em seu interior, eles possuíam uma unidade frigorífica do tamanho de um espaçoso dosei, para que as compras do mercado fossem feitas em menos vezes do que o comum. De qualquer modo, todos os mantimentos eram entregues em casa. Agora que Olivia parecia cansada, Loren sugeriu que contratassem uma empregada, porém ela recusou.

Sete semanas escoaram-se. E Olivia manteve a palavra de não ver Stephen. Contudo, estava obviamente tão deprimida, tão pronta a debulhar-se em lágrimas, que Loren permanecia constantemente a ponto de fraquejar, de dizer a ela que se amava Stephen a tal ponto tinha o direito de vê-lo. Talvez Stephen Castle estivesse sentindo o mesmo, pensava Loren, talvez também contasse as semanas que passavam até poder voltar a ver Olivia. Sendo assim, Loren já havia perdido.

Entretanto, para ele era difícil acreditar que Stephen sentiria alguma coisa. O ator era um sujeito esgalgado, um tanto estúpido, de cabelos cor de aveia, e Loren nunca o vira sem um sorriso doentio na boca - como se fosse um humano quadro de avisos sobre si mesmo, exibindo perpetuamente o que imaginava ser sua expressão mais fascinante.

Solteiro ainda aos trinta e sete anos, quando se casara com alivia, Loren frequentemente suspirava desanimado, ante o modo deserdas mulheres. Olivia, por exemplo: se ele sentisse algo tão forte por outra mulher, teria feito rapidamente o possível para libertar-se do casamento. Ela, no entanto, de certo modo continuava em suspenso. Era difícil saber o que esperava ganhar com isso. Estaria pensando, ou esperando que seu entusiasmo por Stephen pudesse desaparecer? Ou pretendia mortificar Loren e provar que não desapareceria? Ou sabia, inconscientemente, que seu amor por Stephen Castle era pura fantasia e que sua depressão atual representava, para ela e para Loren, uma adequada fase em que pranteava um amor que não a induzira a tomar coragem, ir em frente e reclamá-lo?

No sábado, contudo, o incidente da garagem fez Loren duvidar de que alivia estivesse entregue a uma fantasia. Ele não queria admitir que sua esposa estava tentando tirar a própria vida, porém a lógica o compelia a isso. Havia lido sobre tais pessoas. Eram diferentes das propensas a acidentes, estas podendo viver até morrerem de morte natural, fosse ela qual fosse. As outras pessoas eram as propensas ao suicídio e, ele tinha certeza, Olivia encaixava-se nessa categoria.

Um exemplo perfeito era o episódio da escada de mão. Olivia tinha estado no quarto ou quinto degrau, quando ele percebera a rachadura no lado esquerdo da escada. Ela permanecera de todo despreocupada quando Loren lhe apontara o perigo. Se alivia não houvesse dito que de repente se sentia um pouco tonta, ao olhar para o ninho de vespas lá no alto, ele jamais teria começado a fazer a tarefa pessoalmente e, desta maneira, nunca teria visto a rachadura.

Loren havia lido no jornal que a peça de Stephen chegava ao fim, e pareceu-lhe que a melancolia de alivia acentuava-se. Agora, havia círculos escuros sob os olhos dela e estava reclamando que não conseguia dormir antes de o dia clarear.

- Telefone para ele, se você quiser, querida - disse finalmente Loren. - Procure-o novamente e verifique se ambos...

- Não. Fiz uma promessa a você. São três meses, Loren. Manterei minha palavra -disse ela, com lábios trêmulos.

Loren virou-lhe as costas, desditoso e odiando-se.

Olivia ficou mais fraca fisicamente. Certa vez tropeçou quando descia a escada, mal conseguindo apoiar-se no corrimão para evitar uma queda. Loren sugeriu - não pela primeira vez - que ela devia ver um médico, mas alivia recusou-se.

- Os três meses estão quase terminando, querido. Eu sobreviverei a eles - respondeu ela, com um sorriso tristonho.

Era verdade. Faltavam apenas mais duas semanas para o dia 15 de março, prazo limite dos três meses. Os Idos de Março, percebeu Loren, pela primeira vez. Uma coincidência bastante agourenta.

Na tarde de domingo, Loren estava em seu estúdio vistoriando alguns relatórios do escritório quando ouviu um grito prolongado, seguido de estrondoso barulho de coisas partidas. Em um instante ele estava em pé e corria. O barulho viera do porão, pensou, e então já sabia o que acontecera. Aquele maldito aspirador de tapetes novamente! - Olivia?

Ouviu um gemido vindo do porão escuro. Loren mergulhou pelos degraus abaixo. Houve um leve ruído de rodas, seus pés voaram diante dele e, nos poucos segundos antes de ter a cabeça esmagada contra o piso de cimento, teve tempo de compreender tudo. Olivia não caíra nos degraus da escada do porão, ela apenas o atraíra para lá, porque estivera o tempo todo tentando matá-lo - acabar com ele, Loren Amory -, e tudo isso por causa de Stephen Castle.

- Eu estava na cama, no andar de cima, lendo - declarou Olivia à polícia, as mãos tremendo enquanto apertava o penhoar contra o corpo. - Ouvi um barulho horrível, e então... eu desci ... - E ela fez um gesto impotente, na direção do cadáver de Loren.

A polícia anotou suas declarações e condoeu-se dela. As pessoas deviam ser mais cuidadosas, disseram, sobre coisas como aspiradores de tapetes sobre escadas escuras. Todos os dias aconteciam fatalidades iguais àquela nos Estados Unidos. Depois removeram o corpo e, na terça-feira, Loren Amory foi sepultado.

Olivia ligou para Stephen na quarta-feira. Estivera telefonando para ele todos os dias, exceto nos sábados e domingos, mas não havia ligado desde a sexta-feira anterior. Os dois haviam combinado que, se a qualquer dia da semana ela não lhe telefonasse para o apartamento às 11 da manhã, isto significaria que a missão de ambos fora cumprida. Além disso, Loren Amory ocupara bastante espaço na página de obituários da segunda-feira. Havia deixado quase um milhão de dólares para sua viúva, além de casas na Flórida, Connecticut e Maine.

- Minha querida! Você parece tão cansada! - foram as primeiras palavras de Stephen, quando eles se encontraram em um bar remoto de Nova York na quarta-feira.

- Tolice! É tudo maquiagem! - exclamou Olivia jovialmente. - E você é um ator! -Ela riu. - Tenho de me mostrar adequadamente melancólica para os vizinhos, você sabe. E nunca sei quando posso encontrar uma pessoa conhecida em Nova York.

Stephen olhou em torno nervosamente, depois perguntou, mostrando o sorriso costumeiro:

- Olivia querida, quando é que vamos ficar juntos?

- Muito breve - disse ela prontamente. - Não lá na casa, claro, mas lembra-se de que falamos sobre um cruzeiro? Talvez Trinidad? O dinheiro já está comigo. Quero que você compre as passagens.

Viajaram em cabines de luxo separadas. Sem a menor suspeita, o jornal local de Connecticut anunciou que a viagem da Sra. Amory era por questões de saúde.

De volta aos Estados Unidos em abril, bronzeada e parecendo bem melhor, Olivia confessou a amigos que conhecera alguém por quem "estava interessada". Os amigos garantiram-lhe que isso era normal, uma vez que ela não deveria ficar sozinha o resto da vida. O curioso é que quando Olivia convidou Stephen para um jantar formal em sua casa, nenhum de seus amigos se lembrava dele, embora vários o tivessem encontrado naquele coquetel de alguns meses antes. Agora, muito mais seguro de si, Stephen se portava como um anjo, pensou Olivia.

Casaram-se em agosto. Stephen estivera fazendo pequenos papéis, em se tratando de trabalho, mas nada melhor se materializava. Olivia lhe disse que não se preocupasse, que certamente tudo entraria nos eixos depois do verão. Ele não parecia preocupar-se demais, embora protestasse que devia trabalhar e que, se necessário, tentaria alguns papéis na televisão. Passou a interessar-se por jardinagem, plantou algumas mudas de espruces azuis e, de uma maneira geral, fez com que a casa parecesse animada novamente.

Olivia ficou satisfeita por Stephen apreciar a casa, porque gostava dela. Nenhum deles chegou a mencionar a escada do porão, mas providenciaram a colocação de um interruptor de luz no patamar do alto, a fim de que algo similar não tornasse a acontecer. Além disso, o aspirador de tapetes foi guardado em seu lugar adequado, isto é, no armário de vassouras que ficava na cozinha.

Agora, eles recebiam os amigos com mais frequência do que Olivia e Loren haviam feito. Stephen tinha muitos amigos em Nova York, e Olivia os achava divertidos. Entretanto, julgava que Stephen estava bebendo um pouco além da conta. Em uma festa, quando se encontravam todos no terraço, ele quase havia despencado pelo parapeito, tendo que ser segurado por dois convidados.

- É melhor que tome cuidado com esta casa, Steve - disse Parker Barnes, um ator seu amigo. - Ela pode ser azarada.

- O que está querendo dizer? - exclamou Stephen. - Não acredito nisso nem por um minuto! Posso ser ator, mas não tenho nenhuma superstição!

- Oh, quer dizer então que é ator, Sr. Castle! - exclamou uma voz de mulher, vindo da escuridão.

Depois que os convidados se foram, Stephen pediu a Olivia para ir novamente ao terraço.

- Talvez o ar me refresque a cabeça - disse ele, sorridente. - Desculpe, eu estava um pouco tocado esta noite. Lá está a velha Orion! Pode vê-la? - Ele passou o braço em torno da mulher e a puxou para si. - É a constelação mais brilhante no firmamento!

- Está me machucando, Stephen! Não aperte tan... ! Então ela gritou e contorceu-se, lutando pela vida.

- Diabos a levem! - ofegou Stephen, espantado com o vigor dela. Contorcendo-se, Olivia afastou-se e ficou parada perto da porta do quarto, agora encarando-o.

- Você ia me empurrar!

- Não! Deus do céu, Olivia! Apenas perdi o equilíbrio, foi tudo! Pensei que quem ia cair era eu!

- Eis aí algo bonito para fazer, então - agarrar-se a uma mulher e arrastá-la na queda!

- Eu não tinha percebido. Estou bêbado, querida. Sinto muito.

Como sempre, ocuparam a mesma cama essa noite, mas ambos apenas fingiam dormir. Até que, para Olivia, pelo menos, o sono chegou ao clarear do dia, como costumava dizer para Loren.

No dia seguinte, de maneira casual e sub-repticiamente, cada um deles vistoriou a casa, do sótão ao porão - Olivia a fim de proteger-se de possíveis armadilhas mortais, Stephen a fim de instalá-las. Ele já decidira que a escada do porão oferecia a melhor possibilidade, a despeito da repetição, pois pensava que ninguém acreditaria que alguém se atrevesse a usar o mesmo método duas vezes - se a intenção era assassinar.

Por acaso, Olivia pensava a mesma coisa.

Os degraus para o porão nunca tinham sido tão livres de obstáculos ou tão bem-iluminados. Nenhum deles tomava a iniciativa de desligar a luz à noite. Exteriormente, cada um declarava amor e confiança ao outro.

- Lamento haver dito semelhante coisa a você, Stephen - ela sussurrou ao ouvido do marido, quando ele a abraçou. - Naquela noite, senti medo no terraço, nada mais. Quando você disse "Diabos a levem"...

- Eu sei, meu anjo. Você não poderia pensar que eu pretendia machucá-la. Falei "Diabos a levem" apenas porque você estava lá e pensei que talvez a tivesse feito desequilibrar-se.

Eles falaram sobre outro cruzeiro. Queriam ir à Europa na primavera seguinte. Às refeições, no entanto, provavam cautelosamente cada alimento, antes de começarem a comer.

Como é que eu faria alguma coisa com a comida, pensava Stephen, se você nunca sai da cozinha enquanto está cozinhando?

E Olivia! Não deixo coisa alguma perto de você. Só existe um caminho em que parece ser esperto, Stephen.

A humilhação por haver perdido um amante era disfarçada por sombrio ressentimento. Olivia percebia que tinha sido vítima. O último traço de sedução de Stephen desaparecera. Agora, no entanto, pensava ela, Stephen representava o melhor papel de sua vida - e era uma representação de vinte e quatro horas diárias. Felicitou-se ao não se deixar enganar por isso, e estudava um plano após outro, sabendo que este "acidente" de agora teria que ser ainda mais convincente do que aquele que a libertara de Loren.

Stephen percebia que sua situação pouco tinha de embaraçosa. Todos quantos conheciam o casal, mesmo que superficialmente, julgavam que ele adorava a esposa. Assim, um acidente seria encarado apenas como um acidente, caso o afirmasse. Ele agora acalentava a ideia daquele enorme frigorífico do porão. A porta não possuía maçaneta interna e de vez em quando Olivia entrava lá, ia no canto mais distante apanhar bifes ou aspargos congelados. Entretanto, ousaria entrar no frigorífico, agora que andava desconfiada, se ele estivesse no porão ao mesmo tempo? Stephen duvidava muito.

Certa manhã, enquanto Olivia fazia o desjejum na cama - ela voltara a ocupar seu próprio dormitório novamente e Stephen lhe levava o desjejum, como Loren sempre fizera -, ele experimentou a porta do frigorífico. Descobriu que quando ela se chocava com um objeto sólido, ao ser aberta, de maneira lenta, mas seguramente, o impacto fazia com que voltasse a trancar-se. Agora não existia qualquer objeto sólido perto da porta e, pelo contrário, ela devia ficar escancarada, a fim de que uma lingueta na parte externa se prendesse a uma alça instalada na parede, com essa finalidade expressa, desta maneira mantendo a porta aberta. Ele havia reparado que Olivia sempre abria a porta ao máximo quando entrava lá, tendo ainda visto que a porta se prendia automaticamente na alça da parede. Entretanto, se colocasse alguma coisa no caminho, até mesmo a quina da caixa de madeira cortada para lenha, a porta bateria nela e voltaria a fechar-se de novo, antes que alivia tivesse tempo de perceber o que acontecera.

Aquele exato momento, contudo, não parecia o' mais apropriado para colocar a caixa de lenha em posição e, sendo assim, Stephen não montou sua armadilha. Olivia tinha dito algo sobre irem a um restaurante à noite. Isto significava que durante o dia não iria retirar nada do freezer para degelar.

Eles deram uma pequena caminhada às três da tarde - pelo bosque atrás da casa, depois tornaram a entrar - e quase começaram a andar de mãos dadas, em uma mútua simulação de afeto, tão repugnante quanto insultuosa, mas os dedos apenas se tocaram e separaram-se.

- Uma xícara de chá seria ótimo, não, querido? - perguntou alivia.

- Hum-hum - sorriu ele. Veneno no chá? Veneno nos biscoitos? Ela mesma os fizera, pela manhã. Stephen recordou como haviam tramado a triste partida de Loren - os ternos sussurros dela sobre assassinato, enquanto almoçavam, sua infinita paciência à medida que as semanas passavam e um plano depois do outro ia falhando. Ele é que tinha sugerido o aspirador de tapetes na escada do porão e o grito dela para atraí-lo. a que iria planejar o cérebro de passarinho daquela mulher?

Pouco depois do chá - tudo estivera saboroso - Stephen deixou a sala de estar como que sem um propósito definido. Sentia-se impelido a testar novamente a caixa de lenha e verificar se podia confiar na artimanha. Também estava inspirado para montar a armadilha agora e deixá-la preparada. A luz no alto da escada do porão estava acesa. Ele desceu os degraus cuidadosamente.

Ficou ouvindo um instante, a fim de verificar se alivia poderia tê-lo seguido. Então puxou a caixa de lenha, deixando-a em posição, não paralela à frente do frigorífico, é claro, mas um pouco ao lado, como se alguém a tivesse arrastado para fora das sombras a fim de examiná-la melhor, e a tivesse deixado ali. Ele abriu a porta do frigorífico com exatamente a velocidade e força que alivia poderia usar, empurrando-a de junto de seu corpo, enquanto interpunha um pé, a mão direita estendida para apará-la, assim que ricocheteasse na caixa de lenha e voltasse. Entretanto, o pé que lhe suportava o peso deslizou vários centímetros para diante, assim que a porta se chocou na caixa.

Stephen estava caído sobre o joelho direito, a perna esquerda estirada para diante e, atrás dele, a porta se fechou. Ele ficou instantaneamente em pé e olhou para a porta fechada, com pupilas dilatadas. Estava escuro, e tateou em busca do interruptor auxiliar, à esquerda da porta, que acendia uma luz no fundo do freezer.

Como pudera acontecer aquilo? Aquela maldita camada de gelo fino no chão! Entretanto, não tinha sido apenas o gelo, ele via. Seu pé deslizara, mas em um pedacinho de sebo, que agora avistava no meio do piso, no final do risco engordurado que seu escorregão produzira.

Stephen olhou fixamente para o sebo com expressão neutra, opaca, durante um instante. Depois tornou a encarar a porta, empurrou-a, tateou ao longo da fenda firmemente selada com borracha. Podia chamar Olivia, é claro. Ela o ouviria por fim ou pelo menos daria por sua falta, antes que houvesse tempo para ficar congelado. Ela desceria ao porão, poderia ouvi-lo dali, mesmo que não o ouvisse da sala de estar. Então, abriria a porta, sem dúvida.

Stephen sorriu fracamente, tentando convencer-se de que ela abriria a porta.

- Olivia!... Olival Estou aqui embaixo, no porão!

Quase meia hora mais tarde é que Olivia chamou por Stephen, a fim de perguntar-lhe que restaurante preferia, pois isto influenciaria a roupa que ela ia vestir. Procurou-o no quarto dele, na biblioteca e no terraço, para finalmente chamá-lo em voz alta à porta da frente, imaginando que poderia estar em algum ponto do jardim.

Por último, tentou o porão.

A esta altura, encolhido dentro do paletó de tweed, os braços cruzados, Stephen caminhava para cima e para baixo no interior do freezer, emitindo pedidos de socorro a intervalos de trinta segundos e empregando o restante do fôlego para soprar dentro da camisa, num esforço para aquecer-se. Olivia estava prestes a abandonar o porão quando ouviu seu nome ser chamado fracamente.

- Stephen ?... Stephen, onde está você?

- Aqui, dentro do frigorífico! - bradou ele, o mais alto que lhe foi possível. Olivia olhou para o enorme congelador, com um sorriso de incredulidade.

- Abra... quer abrir? Estou no congelador! - soou a voz abafada de Stephen.

Ela jogou a cabeça para trás e começou a rir com vontade. Estava pouco ligando se ele a ouvisse. Então, ainda rindo tanto que teve de curvar o corpo, subiu a escada do porão.

O que achava tão engraçado é que tinha pensado no congelador como um excelente lugar para livrar-se de Stephen, mas sem chegar a imaginar como fazê-lo entrar lá. E o fato de ele agora estar lá dentro, percebeu Olivia, podia ser devido a algum curioso acidente - possivelmente estivesse tentando montar uma armadilha para apanhá-la. Tudo aquilo era demasiado cômico. E uma sorte!

Ou então, pensou desconfiadamente, ainda agora a intenção dele talvez fosse levá-la a abrir a porta do congelador, para em seguida empurrá-la e trancá-la lá dentro. Evidentemente, ela não ia permitir que isso acontecesse!

Entrando em seu carro, Olivia dirigiu por uns trinta quilômetros em direção norte, comeu um sanduíche em um bar de beira de estrada e depois foi a um cinema. Quando à meia-noite chegou em casa, achou-se sem coragem de gritar "Stephen" diante do congelador ou mesmo de descer ao porão. Não tinha certeza de que ele já estaria morto e, embora ficando calado, isto bem poderia significar que apenas se fingia de morto ou desmaiado.

Amanhã, no entanto, pensou ela, não haverá mais dúvida alguma sobre a morte dele. A própria falta de ar, antes de mais nada, àquela altura já o teria liquidado.

Foi para a cama e garantiu para si mesma uma noite de sono com um sedativo leve. O dia seguinte seria fatigante. Sua história da pequena discussão com Stephen - a respeito de que restaurante escolheriam, nada mais - e ele saindo furiosamente da sala de estar para dar uma caminhada, pensou, teria de ser muito muito convincente.

Às dez horas da manhã seguinte, depois de um suco de laranja e café, alivia se sentiu pronta para seu papel de viúva horrorizada e combalida pela dor. Afinal de contas, disse para si mesma, já havia ensaiado o papel - seria a segunda vez que desempenhava tal personagem. Resolveu enfrentar a polícia em seu penhoar, como antes.

A fim de parecer bastante natural sobre tudo aquilo, desceu ao porão a fím de fazer a "descoberta", antes de chamar a polícia.

- Stephen? Stephen? - chamou em voz alta, confiante. Nenhuma resposta.

Abriu a porta do congelador com apreensão, ficou boquiaberta ao ver a figura encolhida no piso, coberta de gelo, e depois deu alguns passos em direção a ele - cônscia de que suas pegadas, impressas no chão, estariam visíveis para confirmar a história de que entrara lá para tentar reanimar Stephen.

Ka-blum! fez a porta - como se alguém do lado de fora a tivesse empurrado com muita força.

Olivia agora ficou de boca aberta a sério, e boquiaberta continuou. Tinha aberto a porta com um movimento enérgico, a fim de escancará-la. Ela devia ter-se prendido à alça da parede externa.

- Olá! Tem alguém aí! Abra esta porta, por favor! Imediatamente!

No entanto, sabia que lá fora não havia ninguém. Aquilo tinha sido apenas um maldito acidente. Talvez providenciado por Stephen.

Olhou para o rosto dele. Estava de olhos abertos e nos lábios arroxeados havia o sorriso habitual, agora triunfante mas inteiramente desagradável. Olivia não olhou mais para ele. Apertando contra o corpo seu fino penhoar, o mais que podia, ela começou a gritar.

- Socorro! Alguém me ajude!... Polícia!

Continuou gritando durante horas, até ficar rouca, e realmente não mais sentir tanto frio, somente uma leve sonolência.

Tradução de Luísa Ibariez


Strangers On A Train (1951) Official Trailer - Alfred Hitchcock Movie HD
(Strangers on a Train, 1951)
Dirigido por Alfred Hitchcock
Com Farley Granger, Ruth Roman, Robert Walker


 Pacto Sinistro HD - Dublagem Herbert Richers

Referência


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