-
Ofereço-lhe meus serviços como um presente de Natal.
-
Vou lhe fazer uma única pergunta e, conforme for a sua resposta, lhe direi qual
o seu horóscopo moral.
A CULPA DE MARKHEIM: O DUPLO, A
METÁFORA E O FANTÁSTICO
Davi Alexandre Tomm
“No
conto “Markheim” (1884), a problemática do homem cindido pela culpa e pelo medo
aparece de modo mais concentrada, em uma narrativa curta, construída
artisticamente para levar o leitor a se juntar à mente culpada e atormentada de
um criminoso, tornando este leitor quase um cúmplice do protagonista
(ALLIATA, 2006).”
RESUMO
Este trabalho analisa o conto “Markheim”, de R. L.
Stevenson, pela perspectiva da literatura fantástica teorizada por Todorov, da
teoria narratológica sobre a focalização e da teoria da metáfora de Paul
Ricoeur. Mostrarei como o conto, que trata da temática do duplo, tem sua
estrutura também duplicada, dividida em primeira e segunda parte, construída
através dos diferentes níveis de focalização e da linguagem metafórica,
utilizada para descrever aquilo da realidade que a linguagem comum não consegue
descrever. Assim, enquanto as descrições realistas da primeira parte descrevem
a realidade ordinária ainda não deturpada pela consciência do protagonista, na
segunda parte, a mudança na focalização e a linguagem metafórica ajudam o
leitor a perceber o mundo perturbado da consciência culpada do assassino.
MARKHEIM
ROBERT LOUIS STEVENSON (1850 – 1894 | Escócia)
Principalmente
no século XIX, o crime, mais que um problema jurídico, era um tema de discussão
filosófico-teológica, ético-estética (vide Dostoiévski}. É o caso desta
história, do mesmo autor de O Médico e o Monstro e A Ilha do Tesouro, um dos
relatos mais marcantes da história da literatura. Observe-se o clima alucinado
e alucinante que, pouco a pouco e com uma maestria exemplar, envolve o
personagem e o próprio conto.
13.
- Sim - disse o antiquário -, nem sempre temos a
mesma sorte; além disso, os meus lucros provêm de várias fontes. Muitos
fregueses são ignorantes e, nestes casos, eu ponho algum dinheiro no bolso em
cima do meu conhecimento do ramo. Alguns são desonestos - e neste ponto ele
ergueu a vela que tinha na mão, de modo a iluminar o rosto do visitante. - E em
casos assim, eu lucro com a minha virtude.
Markheim recém-deixara a claridade do lado de fora,
e seus olhos ainda não tinham se acostumado com a mistura de brilhos e
obscuridade da loja. Ao ouvir aquelas palavras do negociante, e diante da
proximidade da luz de vela, ele esquivou-se e olhou em outra direção.
O negociante sorriu maliciosamente:
- O senhor me visita no dia de Natal, quando sabe
que eu estou sozinho, já tendo fechado as portas e me decidido a não mais fazer
negócio. Bem, terá de pagar por isso. Terá de pagar pela minha perda de tempo,
quando eu deveria estar fazendo o balanço dos movimentos; precisa pagar, além
disso, por suas maneiras, que estou notando hoje com muita percepção. Eu sou a
discrição em pessoa, e não faço nenhuma pergunta esquisita, mas quando um
cliente não consegue me olhar nos olhos, ele precisa pagar por isso.
E mais uma vez o antiquário sorriu; e então, mudando
para a sua voz normal de negociar, embora ainda com um tom de ironia:
- Como é de praxe, o senhor pode me contar em poucas
palavras como este objeto chegou às suas mãos? Pertence também à coleção do seu
tio? Que grande colecionador ele é!
E o pálido e pequeno antiquário ergueu-se
praticamente na ponta dos pés, olhando por cima do aro dos óculos, e sacudiu
levemente a cabeça com todos os sinais de descrença. Markheim retribui-lhe o
olhar com outro de infinita piedade junto com um toque de horror.
- Desta vez - disse ele - o senhor se enganou. Não
vim vender nada, mas sim comprar; não tem nenhuma curiosidade que eu pudesse
adquirir? O escritório do meu tio está vazio até o teto; e mesmo quando estava
repleto, eu me fui muito bem na Bolsa de Valores. O objeto que procuro é muito
simples... Estou procurando um presente de Natal para uma senhora - continuou,
tornando-se mais fluente ao reatar o discurso que havia preparado - e
certamente preciso lhe pedir desculpas por incomodá-lo com uma coisa tão sem
importância. Mas acabei me esquecendo disso ontem; é que preciso retribuir a
gentileza de um convite para jantar; como o senhor muito bem sabe, um rico
casamento não é coisa para se desprezar.
Seguiu-se uma pausa, durante a qual o antiquário
parecia ponderar sua própria desconfiança. Os tique-taques de muitos relógios,
por entre os muitos objetos amontoados na loja, e o andar abafado das
carruagens do lado de fora quebravam um pouco do silêncio. ..
- Bem - disse o antiquário -, tudo bem. Afinal, o
senhor é um freguês antigo; e se, como diz, tem a oportunidade de fazer um bom
casamento, não serei eu quem irá lhe colocar obstáculo. Eis aqui uma bela peça
para uma senhora - prosseguiu -, um espelho de mão do século XV, com garantia;
fez parte de uma bela coleção, mas me reservo o direito de não dizer o nome do
colecionador, no interesse do meu cliente, que é como o senhor, meu caro, o
sobrinho e único herdeiro do citado colecionador.
E o antiquário, enquanto assim falava com um tom de
voz seco e mordaz, parou no meio do ato de retirar o objeto do lugar; e, ao
percebê-lo, um arrepio passou pela espinha de Markheim, da cabeça aos pés, e se
refletiu no rosto, de alguma maneira perturbado por um tumulto de emoções.
Coisa rápida, que surgiu e desapareceu sem deixar traços atrás de um leve
tremor da mão que recebia o espelho.
- Um espelho - disse, a voz rouca; e depois de uma
pausa, repetiu mais claramente: - Um espelho! Como presente de Natal? Claro que
não!
- E por que não? - insistiu o antiquário. - Por que
não um espelho? Markheim olhava para ele com uma expressão indefinível.
- O senhor me pergunta por que não? Pois bem, olhe
aqui, olhe o espelho, olhe o seu rosto! Gosta do que está vendo? Não, nem eu
nem ninguém.
O homenzinho deu um passo para trás quando Markheim
confrontou-o com o espelho; mas agora, percebendo que não se tratava de nada
pior do que um espelho, disse, rindo com certa malícia:
- Sua futura esposa, senhor, deve ser muito bela.
- Estou querendo - disse Markheim - um presente de
Natal, e o senhor me vem com isso, esse terrível acionador de lembranças dos
anos, dos pecados e das loucuras. . . esse despertador de consciências?! Está
querendo me dizer alguma coisa com isso? Teve alguma intenção oculta? Diga-me.
Será melhor que o senhor fale. . . Quero supor que seja um homem discretamente
caridoso, ou será que não?
O antiquário olhou para o freguês com atenção
redobrada. Era um sujeito singular! Não parecia que Markheim estivesse
brincando. Pelo contrário, havia em seu rosto algo como um raio de esperança,
mas nenhuma alegria.
- Aonde está querendo chegar? - perguntou-lhe.
- Nada caridoso, não é mesmo? - respondeu Markheim,
com um ar sombrio.
-Nada de piedade; nada de escrúpulo; desamoroso;
insensível; a mão sempre pronta para segurar o dinheiro; um cofre para
guardá-lo. Não é assim, meu senhor? Santo Deus! O homem não passa disso?
- Já sei o que é - disse o antiquário, com alguma
profundidade. Logo se pôs a rir de novo. - Vejo que se trata de um casamento
por amor e que o senhor esteve bebendo à saúde de sua dama.
- Eu, não - protestou o freguês. - Só se for o
senhor que está apaixonado. Fale-me então a esse respeito.
- Eu!? - exclamou o antiquário. - Eu, enamorado?
Nunca tive tempo para essas loucuras, muito menos hoje. Mas, afinal, o senhor
vai querer o espelho?
- Para que tanta pressa? - falou Markheim. - Acho
muito agradável estar aqui conversando. A vida é tão curta e tão incerta que
não é por uma questão de pressa que eu vou perder um momento de prazer, muito
menos um momento tão interessante quanto este. Pelo contrário, devemos nos
agarrar com força ao mais fútil pretexto de prazer como se agarra um homem à
beira de um precipício. .. Cada segundo é precipício; pense bem nisso... Um
precipício de mil metros de altura ... bastante alto para... Se cairmos,
perderemos tudo o que em nós existe de humano. Por isso, é melhor que
conversemos prazerosa mente. Batemos um papo, um com o outro, e sem máscaras.
Troquemos confidências. Quem sabe se não ficaremos amigos? –
Tenho apenas uma palavra a lhe dizer - replicou o
antiquário -, ou o senhor compra alguma coisa ou se retira da minha loja.
- Tem razão, tem razão - disse Markheim. - Nada de
brincadeiras. Vamos ao negócio. Mostre-me outra coisa.
O lojista foi colocar o espelho na prateleira, onde
estava antes. Ao se movimentar, seus cabelos finos e loiros lhe caíram sobre a
testa e sobre os olhos. Markheim aproximou-se dele com a mão enfiada no bolso
do casaco; inclinou-se, ergueu-se de novo e respirou a plenos pulmões. Seu
rosto denunciava várias emoções: de fascínio, de terror, de decisão, de
repugnância. Um sorriso selvagem contraiu-lhe o lábio superior, deixando os
dentes à mostra...
O antiquário havia se curvado para apanhar outro
objeto, ao mesmo tempo que começava a dizer:
- Isso aqui talvez lhe agrade. . .
E ia se levantar quando Markheim, num gesto brusco,
atacou-o pelas costas. A lâmina de um punhal brilhou um instante e sumiu nas
costas do velho. Que se debateu como uma galinha, acabou batendo com a testa na
prateleira e caindo no chão.
O tempo parecia falar através do eco de dezenas de
vozes dentro da loja, algumas firmes, outras baixas, como convinha à idade
avançada; outras loquazes e rápidas. Todas marcavam os segundos num coro de
tique-taques entrelaçados. Em seguida, o ruído de passos de um jovem veio
quebrar o coro de tique-taques que ali reinava e arrancar Markheim do
alheamento em que se encontrava.
Olhou à sua volta, apavorado. A vela estava sobre o
contador e sua chama esguia, alta, tremulava solene, iluminando com luz amarela
as figuras de bronze, os rostos dos retratos a óleo, os contornos das
porcelanas da China, os mil e tantos objetos do comércio de antiguidades que
tremiam como imagens refletidas n'água. Uma das portas internas da casa estava
levemente entreaberta, e uma réstia de luz passava por aquela abertura, revelando
os primeiros degraus de uma escada.
Os olhos de Markheim voltaram a se fixar no corpo de
sua vítima, encolhido e achatado, e que, estranhamente, parecia muito menor do
que era em vida. O antiquário, com a cabeça deslocada, em suas roupas de
avarento, parecia mais um monte de pó. Markheim chegou a se assustar ao vê-lo,
mas logo se recompôs.
.. Não era nada!
No entanto aquelas roupas velhas, aquela poça de
sangue, foram adquirindo vozes eloquentes. "Aquilo" ficaria ali mesmo
sem que ninguém pudesse lhe reanimar os membros desarticulados, sem provocar o
milagre do movimento. E ali permaneceria até que fosse descoberto. Descoberto!
E depois? Aquela carne sem vida emitiria um grito que iria repercutir por toda
parte, em ecos e ecos de perseguição. Sim, mesmo morto, ele pensou, ele
continuaria a ser seu inimigo!
... "Era no tempo em que os cérebros
fermentavam"- pensou, e a palavra "tempo" arranhou-lhe a alma. O
tempo, agora que o ato estava consumado. .. ; o tempo, que deixara de existir
para a vítima, tinha para o assassino uma importância fundamental. Esta ideia
agitava-se ainda dentro dele quando todos os relógios da loja começaram a soar.
Primeiro um, em seguida outro, logo outro. Uns com um som profundo como o de um
sino de igreja, outros com som musical, como as notas de um prelúdio de valsa;
e todos marcavam três horas da tarde.
A súbita irrupção de tantos sons naquele ambiente
emudecido fez com que Markheim hesitasse. Pôs-se a andar de um lado para o
outro com a vela na mão, perseguido por sombras movediças e tremendo até o mais
fundo da alma com o imprevisto dos reflexos. Esses reflexos tomavam seu
espírito de assalto, surgindo ao acaso. Em muitos espelhos, via sua face
refletida repetidas vezes, como se estivesse sitiado por um exército de espiões.
Seus próprios olhares se entrecruzavam e chegavam a surpreendê-lo. O ruído dos
seus próprios passos, ainda que cuidadosos, abalavam a tranquilidade do
ambiente, e o afligiam. E, se bem que fosse enchendo os bolsos com objetos de
valor, acusava-se teimosamente das mil faltas que julgava agora ter cometido.
Devia ter escolhido uma hora mais propícia, devia ter preparado um álibi, não
ter usado punhal, ter sido mais cuidadoso. Devia ter amarrado e amordaçado o
lojista, e não matado. ..
Devia ter sido mais audacioso e matado a criada
também. Ter feito, enfim, tudo de uma outra maneira. Arrependimentos pungentes!
Inúteis esforços da mente para alterar o que agora era inalterável, para
projetar o que já estava feito, o que constituía já um irremediável passado.
Terrores cruéis fervilhavam na sua cabeça, como um bando de ratos numa
água-furtada. Sucediam-se as imagens de um grosseiro carro de polícia vindo a
galope, a prisão, o julgamento, a forca, enfim, um tosco caixão ...
O terror que sentia das pessoas que passavam pela
rua lhe invadia a alma como um exército sitiante. Impossível - pensava - que
todo o barulho do ato não lhes tivesse chegado aos ouvidos e despertado a
atenção de todos; e então, nas casas vizinhas, pressentia as pessoas sentadas e
imóveis, de ouvidos alertas.
.. Gente solitária, condenada naquele dia de Natal a
se refugiar nas suas próprias lembranças, bruscamente perturbadas naquela hora
sentimental; reuniões de família felizes, repentinamente emudecidas em volta de
uma mesa; a mãe, ainda com o dedo no ar, e todos, sim, todos em seus lares de
ouvidos atentos, tecendo assim a corda com que seria enforcado. Às vezes
parecia ser incapaz de se mover com a necessária agilidade; o tilintar das
grandes taças de cristal da Boêmia soava a seus ouvidos como um sino e,
profundamente abalado pelos tique-taques, sentiu-se tentado a parar todos os
relógios. Mas, logo em seguida, numa brusca transição de temores, o próprio
silêncio do lugar afigurava-se-lhe pródigo de perigos; aquele insólito silêncio
devia colar-se aos transeuntes e deixá- los congelados. Opunha-se então a
caminhar com passos mais decididos e imitava as idas e vindas de uma pessoa
vivamente ocupada com os afazeres da loja, ruidosamente, por entre o barulho
natural da casa.
Via-se ele, no entanto, de tal modo assoberbado por
temores vários que, enquanto uma parte da sua mente se conservava ainda viva e
lúcida, a outra apontava para os confins da loucura. Uma alucinação, entre
outras, se apoderou de seu espírito. O vizinho a escutar, de rosto pálido, por
trás da sua janela; o transeunte que parara na rua assaltado por uma terrível
suspeita! E eles, na pior das hipóteses, só podiam fazer conjecturas, nada
podiam saber; através das paredes de tijolos e das janelas fechadas, só os
ruídos passariam, quando muito. Mas estaria ele só ali dentro da loja? Sabia
que estava sozinho: vigiara antes a criada que saíra para se encontrar com o
noivo, modestamente endomingada, livre, para passar todo o dia fora, como se
deduzia de seus enfeites e de seus sorrisos. Sim, é claro que estava só. E no
entanto, por cima dele, na grande casa vazia, soava o ruído de umas passadas
rápidas. . . Tinha a nítida consciência, inexplicavelmente nítida, da presença
de alguém nas dependências e cantos da casa. Tão rápido o seu rosto se
transformava numa coisa, mas que tinha olhos para ver, como não passava de uma
sombra de si mesmo, ou ainda a imagem do comerciante morto, ressuscitado pelo
lampejo do ódio.
Algumas vezes, fazendo um enorme esforço, dava uma
olhadela através da porta entreaberta. A sala era grande; o postigo do sótão,
pequeno e encardido; o dia estava nublado e a luz que se infiltrava era
extremamente fraca e espalhava-se vagamente sobre o umbral da loja. E apesar
disso tudo, no meio daquela faixa de luz incerta, não é que se via uma sombra
extravagante a balançar?
De repente, da parte de fora, um cavalheiro muito
cordial começou a bater com sua bengala na porta da loja, acompanhando a
pancada com gozações misturadas com o nome do dono do antiquário.
Markheim sentiu um arrepio percorrendo seu corpo e
olhou para o morto.
Não! Ele estava quieto, bem longe de escutar as
pancadas e as pilhérias; mergulhara para sempre num mar de silêncio, e o seu
nome, que antes teria escutado mesmo por cima do rugido de uma tempestade,
convertera-se num som vazio de sentido. Mas finalmente o alegre cavalheiro
desistira de bater na porta, e foi-se.
O incidente alterou fortemente o espírito de
Markheim. Precisava se apressar, fugir dali, abandonar a vizinhança ameaçadora,
diluir-se na multidão londrina e no final do dia alcançar sua cama e aparentar
inocência. Um desconhecido havia batido à porta. A qualquer momento poderia
aparecer outro, mais obstinado. Depois de tanto trabalho, não colher nenhum
fruto seria um malogro considerável. Era o dinheiro que agora o preocupava; e a
maneira era descobrir as chaves. ..
Olhou para trás, para a porta interna, entreaberta.
O mesmo reflexo se estendia pela abertura. Dirigiu-se sem nenhuma repugnância
até o corpo da vítima. Pegou o cadáver pelos ombros e virou-o de frente;
achou-o estranhamente leve; o rosto privado de qualquer emoção, mas de uma
palidez de cera; uma têmpora estava horrivelmente manchada de sangue. Esta foi
a única circunstância desagradável; fez com que recuasse por um instante,
lembrando-se de um dia de feira, numa praia de pescadores - dia cinzento, vento
agreste, a multidão na rua coalhada de viaturas, o rufar dos tambores, a voz
rouca de um cantor ambulante -, onde um menino perdido na multidão, e por entre
os rumores daquela mistura de vendedores e compradores, se achara de repente
diante de uma barraca onde se exibiam, com tintas cruéis, os quadros
representando Browing e seu aprendiz, os Manning e seu hóspede assassinado,
Weare no abraço mortal de Thurtell e mais uns vinte crimes célebres.
A visão era tão nítida que chegava a iludi-lo. Era
mais uma vez aquele menino, com a mesma sensação de revolta diante daqueles
quadros abjetos; o rufar dos tambores, ainda por cima, conseguia ensurdecê-lo.
Vinha-lhe à memória um compasso de música daquele dia e foi então que ele
experimentou pela primeira vez um desmaio, uma súbita fraqueza das pernas que
precisou vencer no mesmo instante. Considerou mais prudente encarar o fato do
que fugir daquela situação e, por isso mesmo, olhou para o rosto do morto e
começou a avaliar a natureza e a enormidade do seu crime. Havia pouco, aquele
rosto ainda denunciava as alterações das ideias, as mudanças de sensações;
aquela boca falava; aquele corpo comandava energias; agora, por exclusiva obra
sua, aquela fração de vida tinha cessado de vibrar, como um relógio que parava
devido à intercessão do dedo de um relojoeiro. Assim, e em vão, raciocinava
Markheim. Não conseguia elevar-se acima de sua própria consciência, cheia de
remorsos. O mesmo coração que se sensibilizara diante das gravuras com cenas
dantescas de crime mantinha-se impassível diante da realidade. Sentia apenas
uma ponta de piedade por aquele que fora favorecido por tantos recursos capazes
de tornar o mundo um jardim encantado, e que, no entanto, nunca houvera vivido,
e agora ali jazia, morto! Mas de arrependimento, nada, nenhum tremor!
Libertando-se dessas considerações, Markheim enfim
encontrou as chaves; e avançou para a porta entreaberta...
Começara a chover copiosamente lá fora. O barulho da
chuva caindo no telhado quebrava o silêncio; como numa caverna onde gotejava
água, o ruído que ela fazia ressoava dentro da casa, ferindo os ouvidos do
assassino, meio apavorado, junto com o tique-taque dos relógios.
Quando Markheim se aproximava da porta, pareceu
escutar, como resposta ao seu próprio e cauteloso caminhar, os passos de outros
pés a subir a escada. A réstia de luz da vela continuava a iluminar frouxamente
os primeiros degraus. Num forte impulso, Markheim empurrou a porta, que se
abriu de vez... Reinava no aposento uma meia claridade produzida pela luz do
dia, vinda de uma claraboia. Sempre cauteloso, Markheim entrou...
Ninguém ali. Num canto, via-se uma armadura
completa, de pé, com uma alabarda na mão. Pelas paredes, vários quadros
emoldurados em madeira preta e entalhada. O barulho da chave fazia-se agora
mais alto dentro da casa; e aos ouvidos de Markheim se distinguiam
estranhamente por vários sons; eram passos e suspiros, um tropel de regimento,
marchando a distância; tinir de moedas; ranger de portas furtivamente entreabertas.
A sensação de que não estava só cresceu dentro dele, até à ameaça de loucura.
De todos os lados sentia-se cercado e perseguido por misteriosas presenças;
ouvia passos no andar de cima; da loja, parecia-lhe vir um rumor de homem
mexendo as pernas, como se tentasse ficar em pé. E quando pôs-se a subir os
degraus da escada, parecia que pés fugiam rapidamente diante dele, enquanto
outros o seguiam. "Se ao menos eu fosse surdo", pensou, "estaria
me sentindo muito mais tranquilo". Mas, pensando melhor, sentia-se feliz
por aquela inquietação que o mantinha alerta, como uma sentinela de sua própria
vida. Sua cabeça girava continuamente sobre o pescoço; seus olhos, parecendo
saltar das órbitas, exploravam o ambiente de um lado e de outro, e de cada
lado, recompensavam-se pela vista de alguma coisa que lhes parecia a causa de
uma indizível e estranha aparição. Os vinte e quatro degraus até o primeiro
andar valeram-lhe por outras tantas agonias.
As portas estavam entreabertas no primeiro andar.
Três delas pareciam três emboscadas a lhe abalar os nervos como bocas de
canhão. Teve a sensação de que não poderia jamais se defender nem furtar-se
suficientemente de olhares observadores. Sentiu uma intensa vontade de estar na
sua casa, entre quatro paredes, debaixo dos lençóis, invisível para todos,
ainda que não para Deus. E esses pensamentos lhe trouxeram à memória as
histórias de outros assassinatos, de quem se contava que haviam temido a
vingança celeste. Temia muito mais com um terror aviltante e supersticioso, uma
falha da capacidade humana, uma obstinada injustiça da natureza. Jogara o jogo,
submetendo-o às regras, calculando as consequências; e o que seria agora se a
natureza, tal como um adversário derrotado, procurasse acabar com o seu
sucesso? O mesmo havia acontecido a Napoleão quando, na invasão da Rússia, o
inverno alterou seus planos de campanha. A mesma coisa poderia acontecer com Markheim.
As sólidas paredes poderiam se tornar transparentes e revelar seus feitos, como
os das abelhas presas num cubículo de paredes de vidro. As tábuas daquele
assoalho poderiam ceder sob seus pés e prendê-lo, como sói acontecer com as
areias movediças. Eis os acidentes que poderiam pôr tudo a perder. E se a casa
toda caísse e o aprisionasse com sua vítima? E se a casa vizinha pegasse fogo e
os bombeiros invadissem ali onde ele estava? Disso, sim, ele tinha medo. E a
isso se poderia chamar de a mão de Deus erguida contra o crime. Mas quanto a
Deus, Markheim sentia-se tranquilo; seu ato era sem dúvida um ato de exceção,
mas Deus bem sabia quantas eram as suas desculpas. Era portanto junto a Deus, e
não aos homens, que ele se sentia certo de justiça.
Quando chegou na sala onde estava o cofre, e fechou
a porta atrás de si, sentiu-se protegido. A sala estava totalmente desarrumada;
os tapetes fora de lugar; caixas e embrulhos de todo o tipo espalhados; peças
de mobiliário diferentes; grandes espelhos em três peças em que a pessoa se via
ao mesmo tempo de três perspectivas diversas; muitas telas, umas com molduras
outras não, e algumas voltadas contra a parede; um belo aparador e uma cômoda
marchetados; finalmente um belo e antigo leito coberto de tapeçarias. As
janelas eram de vidraças; mas, por sorte, as bandas de madeira, da parte de dentro,
estavam fechadas, de modo que tapava a vista aos vizinhos. No entanto, Markheim
passou a porta em revista como o chefe de uma força sitiada que se contenta em
verificar as suas defesas. Mas no fundo sentia-se tranquilo. O barulho da chuva
na rua soava-lhe natural. Podia ouvir agora, vindo do outro lado da rua, o som
de um piano acompanhando um hino, entoado por vozes de crianças. Como aquela
melodia lhe soava imponente e consoladora! Quão suaves eram aquelas vozes
infantis! De ouvido atento, Markheim sorria enquanto tirava as chaves do bolso.
Sua cabeça enchia-se de ideias correspondentes a imagens; eram crianças
caminhando para a igreja, sob o apelo de um grande órgão: crianças soltas no
campo, umas se banhando em riachos, outras correndo pelo campo, escondendo-se
por entre as árvores... A uma nova cadência do hino, sentiu voltar a imagem da
igreja nos modorrentos dias de verão, a voz do pároco (de quem ele sorriu um
pouco, ao se lembrar), os painéis bíblicos, as letras dos Dez Mandamentos
traçadas no altar...
Ao se sentar, sentiu um sobressalto de repente, ao
mesmo tempo preocupado e alheio. Um suor frio, uma baforada de calor: o sangue
deu-lhe uma volta. Markheim ficou de pé, tremendo. Com passos furtivos, alguém
subia as escadas. .. O medo dominou-o. Quem era que ia entrar naquele momento?
Não sabia. Seria o morto que caminhava? Seria a polícia? Ou seria alguma
testemunha, cujo depoimento iria levá-lo à forca? E quando um rosto surgiu na
abertura da porta, sondando o aposento com o olhar, saudou-o inclinando a
cabeça, sorrindo como um amigo que o tivesse reconhecido; e depois que recuou,
fechando outra vez a porta, o grito de Markheim explodiu, rouco.
- Está me chamando? - perguntou o estranho,
gentilmente, ao mesmo tempo que entrava e fechava a porta atrás de si.
Markheim tinha os olhos bem abertos e pregados na
figura do visitante inesperado. Talvez uma névoa lhe empanasse a vista. Mas
não. Os contornos do recém-chegado distinguiam-se muito bem, como os daquelas
figuras de bronze, lá embaixo na loja, iluminadas pela luz da vela. Markheim
pensava já ter visto aquele indivíduo, ora achava-lhe mesmo alguma coisa de
parecido consigo. No íntimo, ganhava convicção de que aquele tipo de aparição
não pertencia à terra: vinha do céu. E, no entanto, aquela criatura tinha um ar
de banalidade, quando se pôs a olhar para Markheim, sorrindo. Sua voz era de
absoluta polidez, quando lhe perguntou:
- Acredito que esteja procurando pelo dinheiro, não
é mesmo? Markheim não respondeu.
– Preciso avisá-lo - continuou o visitante - que a
criada hoje deixou o namorado mais cedo do que de costume. Deve estar chegando.
Se o senhor for encontrado nesta casa, não preciso dizer quais serão as consequências.
..
- Mas. .. o senhor me conhece? O visitante sorriu.
- Não é de hoje que o senhor é um dos meus
favoritos. .. Há muito tempo que eu o observo e procuro ajudá-lo.
- Mas quem é o senhor? - perguntou Markheim, com a
voz alterada. - É o diabo?
- Seja eu quem for - disse o outro -, isso não pode
afetar o serviço que eu me proponho a lhe prestar.
- Serviço a me prestar? Não, nunca! O senhor não me
conhece. Graças a Deus o senhor não me conhece!
- Conheço, sim - retrucou o visitante, com
convicção. - Ora, se conheço!
- Me conhece! - continuou Markheim. - E quem é que
pode conhecer uma outra pessoa? A vida do homem é uma paródia de si mesmo,
todos vivem se arremedando uns aos outros. Todos os homens fazem a mesma coisa,
todos os homens não valem mais do que esse disfarce, que cresce com eles e os
sufoca. Se o senhor pudesse ver os seus rostos, iria verificar que eles são
absolutamente diferentes, como são dois heróis ou dois santos. Sou pior do que
a maior parte deles. A minha justificativa conheço eu e Deus. Mas eu seria,
quem sabe, capaz de revelar. .. se tivesse tempo.
- A quem? A mim?
- Sim, ao senhor - respondeu o assassino. - Por que
não? Mas eu pensei que o senhor fosse inteligente, que pudesse ler meu coração
- mas o senhor quer me julgar pelos meus atos! Ora, imagine só: pelos meus
atos! Pense nisso: eu nasci e vivi num mundo de gigantes, gigantes que me
arrastaram pela mão desde que saí do seio da minha mãe. . . além dos gigantes
das circunstâncias. E o senhor quer me julgar pelos meus atos!.. . quer dizer
que não pode ler a minha consciência? Não pode compreender que odeio o mal? Não
vê em mim uma coisa que deve ser comum a toda humanidade: o pecador que não
quer sê-lo?
- Tudo o que acaba de dizer foi dito com muito
sentimento, mas a mim isso não interessa - foi a resposta. - Essas explicações
estão além das minhas atribuições e pouco me importa saber que violências o
arrastaram, já que deixou de seguir o bom caminho. Mas o tempo voa, e a
empregada da casa, embora se detenha a olhar para os transeuntes e para os
anúncios nas paredes, continua se aproximando; e lembre-se, é como se a própria
forca avançasse a grandes passos em sua direção, através das ruas deste dia de
Natal. Quer a minha ajuda, de mim, que sei tudo? Quer que lhe diga onde se
encontra o dinheiro?
- Mas a que preço? - perguntou Markheim.
- Ofereço-lhe meus serviços como um presente de
Natal.
Markheim não pôde evitar um sorriso onde havia antes
uma certa expressão de amargo triunfo.
- Não - disse ele. - Nada aceitarei, vindo de suas
mãos. Estivesse eu morrendo de sede e o senhor chegasse aos meus lábios com uma
copo de água, eu teria a coragem de recusar. Talvez seja superstição. ..
- Olhe que eu não me oponho ao arrependimento na
hora da morte! - considerou o visitante, com gravidade.
- Por não acreditar na sua eficácia?
- Não diria tal coisa - replicou o outro -, mas encaro
essas coisas sob outro prisma, e quando a vida acaba, o meu interesse
desaparece. O homem viveu para me servir, mas ao se aproximar da hora da sua
libertação, só pode me prestar um serviço: arrepender-se, morrer com um sorriso
nos lábios e assim fortalecer a confiança e a esperança dos mais timoratos dos
meus servidores que sobrevivem; eu não sou um amo tão severo quanto o senhor
possa supor; experimente, aceite o meu auxílio. Busque na vida os prazeres como
tem feito até aqui; busque-os ainda mais. Com os cotovelos na mesa, no início
da noite, e com as cortinas corridas - digo-lhe para seu grande consolo -
ser-lhe-á sempre fácil chegar a um acordo com a sua consciência e fazer uma paz
abjeta com Deus. Chego aqui precisamente no momento de estar ao pé de um leito
onde morreu alguém no mesmo estado de espírito e com o quarto cheio de
carpidores sinceros que escutavam as últimas palavras do moribundo; e quando
olhei para aquele rosto que havia se levantado contra toda a misericórdia, vi
nele um sorriso de esperança.
- Quer dizer que está supondo que eu pertenço a esse
tipo de pessoa? - perguntou Markheim. - Acha então que eu sou daqueles que não
tiveram em vida desejo mais nobre do que pecar, pecar, pecar, e que por fim
acabam por se meter furtivamente no céu? O meu coração simplesmente se revolta
contra tal ideia. É essa, pois, a sua experiência de humanidade? Ou será por
que me encontra com as mãos manchadas de sangue que me considera capaz de tal
baixeza? É tão ímpio este assassinato que ele chegue a ponto de secar as
próprias fontes do bem?
- O
assassinato para mim não constitui uma categoria especial - replicou o outro. -
Toda pecado é crime, como toda a vida é uma guerra. Considero a sua raça como
marinheiros famintos sobre uma balsa, a arrancar a pele com as garras da fome e
alimentando-se com a vida dos outros. Acompanho os crimes para além do momento
em que eles são cometidos; em tudo isso sempre encontro, como última consequência,
a morte. E, aos meus olhos, não goteja menos sangue humano das mãos da moça
formosa que, por exemplo, contraria sua mãe com modos lisonjeiros, do que
escorre das mãos de um assassino como o senhor. Já lhe disse que sigo os
rastros de todas as faltas humanas. Sigo também os traços da virtude: não há
entre elas uma unha de diferença; tanto umas como as outras são a foice da
morte; o mal, para o qual eu vivo, não consiste na ação, mas sim na essência.
Gosto do homem mau: não da ação má, cujos frutos, se pudéssemos acompanhá-los
ao longo da vertigem das idades, talvez reconhecêssemos serem melhores do que
os das mais raras virtudes. Não é pelo fato de ter o senhor assassinado um
antiquário que eu me proponho facilitar a sua fuga, mas apenas e tão-somente
por ser o senhor quem é.
- Vou abrir meu coração - disse Markheim. - O crime
que testemunhou é o meu último crime. Para chegar a ele, aprendi muitas coisas
na vida. Este crime é, por si mesmo, uma lição muito importante. Tenho sido
arrastado até aqui contra a minha vontade, para fazer o que não queria; eu era
um escravo agrilhoado à pobreza, maltratado e derrotado. Há virtudes robustas
que resistem a tais tentações; a minha não é deste tipo. Tinha sede de
prazeres; mas hoje, devido a este ato, conquisto experiência e riqueza ao mesmo
tempo ... uma nova vontade de ser eu próprio e o poder de realizar essa
vontade, simultaneamente. Transformo-me num ato, livre no mundo, e começo a me
ver todo transformado: as mãos, instrumentos do bem, e o coração em paz. Alguma
coisa que não pertence propriamente ao meu passado retorna a mim; alguma coisa
do que sonhei nas tardes de domingo, ao som de um órgão; alguma coisa do que
entrevia quando derramava lágrimas sobre livros elevados, e do que falava
quando criança inocente, com a minha mãe. Tens aqui a minha vida. Durante
alguns anos, errei; mas agora vejo uma vez mais a cidade do meu destino.
- E o dinheiro, vai jogá-lo na Bolsa? Suponho que
sim - observou o visitante -, já que foi lá que perdeu alguns milhares de
libras.
- Ah! - interrompeu Markheim. - Desta vez tenho um
plano seguro.
- Desta vez - retomou o outro, imperturbável -
perderá da mesma forma.
- Bem, mas metade do dinheiro eu porei de lado -
reagiu Markheim.
- Perderá também essa metade - insistiu o outro.
- Bem, mas o que isso importa? - falou. - Admitamos
que perdi tudo e que ficarei novamente reduzido à pobreza; deverá uma parte de
mim mesmo, justamente a pior, dominar a melhor? O mal e o bem são muito fortes
em mim, me atraem nos dois sentidos. Não me limito a amar apenas uma coisa: amo
tudo. Posso conceber grandes ações, renunciar a martírios; e embora eu tenha me
envilecido a ponto de cometer um crime, a piedade não é estranha aos meus
sentimentos. Sinto compaixão pelos pobres; quem, melhor do que eu, conhece as
suas provações? Tenho compaixão por eles e os ajudo; aprecio o amor como uma
alegria do melhor quilate; não existe sobre a terra nada de bom ou de
verdadeiro que eu não ame com todo o meu coração. Por acaso apenas os meus
vícios hão de me dirigir a vida? E as minhas virtudes, como um peso morto sobre
a consciência, não terão nenhum efeito sobre ela?
Mas o visitante, levantando o dedo, falou:
- Há 36 anos que o senhor está neste mundo e,
através de muitas vicissitudes e diversidades de humor, tenho acompanhado a sua
queda constante. Há 15 anos o senhor esteve a ponto de praticar um roubo; há
três a ponto de se tornar um assassino. E hoje, existe algum crime, alguma
baixeza perante a qual o senhor irá recuar? Daqui a cinco anos, irei pegá-lo em
flagrante. Esta será a sua trajetória: para o fundo. .. Só a morte o poderá
deter.
- É verdade - disse Markheim. - De certo modo, me
deixei dominar pelo mal. Mas é o que acontece sempre: os próprios santos, ao
simples contato com as coisas do mundo, tornam-se menos escrupulosos e descem
ao nível das pessoas que os rodeiam.
- Vou lhe fazer uma única pergunta e, conforme for a
sua resposta, lhe direi qual o seu horóscopo moral. O senhor degradou-se ao
praticar certas coisas. É possível que tenha tido razão para assim proceder. De
qualquer maneira, o mesmo acontece com todos os homens. Concordo com isto. Mas
por acaso existe algum detalhe, por mais insignificante que seja, com o qual
tenha dado provas de vigiar estreitamente a sua conduta, ou pelo contrário,
sempre se deu rédea solta, sempre, em todas as coisas?
- Algum detalhe? - repetiu Markheim, com um acento
de ansiedade. - Não! - acrescentou com desespero. - Nenhum!
- Pois então - disse o estranho visitante -
contente-se em ser o que é porque nunca irá se modificar; as palavras do seu
papel no palco da vida estão irrevogavelmente escritas.
Markheim ficou mudo por um bom tempo. Foi o
visitante quem quebrou o silêncio.
- Assim sendo - disse -, quer que eu lhe mostre o
dinheiro?
- E a graça? - exclamou Markheim.
- Ainda não experimentou a graça? - replicou o
outro. - Não o vi eu, por acaso, há dois ou três anos participando de reuniões
edificantes, e nelas não era a sua voz que dominava as demais, quando cantavam
os hinos religiosos?
- É verdade disse Markheim -, e agora vejo
claramente o que me resta fazer. De todo meu coração, preciso lhe agradecer
estas lições; meus olhos estão bem abertos e finalmente me vejo tal e qual eu
sou.
Naquele momento ressoou através da casa o som agudo
da campainha; o visitante alterou sua postura, como se tivesse esperando um
sinal combinado.
- A empregada! - exclamou. - Voltou, como eu já o
prevenira, e ei-lo novamente num momento difícil. O senhor vai dizer a ela que
o patrão ficou doente; vai mandá-la entrar com um ar decidido, com certa
gravidade. .. Nada de sorrisos, nada de exageros e eu lhe garanto que se sairá
bem. Depois que ela tiver entrado, o senhor terá o cuidado de fechar a porta. E
com a mesma habilidade e destreza com que já se desembaraçou do antiquário, se
livrará também deste último perigo. A partir deste momento terá toda a noite
por sua conta para roubar os tesouros da casa e providenciar a sua própria
segurança. Sob a máscara do perigo, é enfim um auxílio que lhe entra porta
adentro. Ânimo -gritou.
- Ânimo, amigo. A sua vida pende por um fio!
Levante-se e mãos à obra. Markheim olhou para seu conselheiro fixamente.
- Se estou condenado a só praticar más ações - disse
-, quer dizer que uma porta de liberdade ainda me resta. Posso deixar de agir.
Se a minha vida é qualquer coisa de maléfica, posso renunciar a ela. Ainda que
esteja à mercê de qualquer tentação, como o senhor muito bem o disse, me resta
a possibilidade de eu me colocar longe do alcance de todas elas. O meu amor
pelo bem está condenado à esterilidade; pode ser que assim seja. Mas existe
ainda em mim o ódio pelo mal e verá como por ele eu posso conquistar coragem e
energia.
As feições do visitante começaram a sofrer uma
maravilhosa transformação. Iluminaram-se e suavizaram-se com um resplendor de
triunfo, e ao mesmo tempo debateram-se e apagaram-se. Mas Markheim não se
detera a observar ou a procurar a explicação daquela metamorfose. Abriu a porta
e desceu lentamente as escadas, todo pensativo. O passado ia se desenrolando
claramente dentro de si; estava a vê-lo horrível e tortuoso, como num sonho. ..
uma luta de revolta e confusão. .. uma noite de derrotas. A vida, tal como a
via desfilar nos seus vários episódios, deixara de tentá-lo. Mas, por outro
lado, entrevia um porto seguro para a sua barca. Deteve-se no corredor e olhou
em volta da loja onde a vela continuava sempre ardendo ao lado do cadáver.
Silêncio. Enquanto olhava para ela, os gestos e as ideias do velho antiquário
afluíram-lhe na alma. E novamente a campainha retiniu, com impaciência.
Num instante estava frente a frente com a empregada.
Tinha na face alguma coisa parecida com um sorriso. E disse a ela:
- É melhor a senhora chamar a polícia; eu matei o
seu patrão.
Tradução de Flávio Moreira da Costa
Referência
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http://www.seer.ufrgs.br/cadernosdoil/article/view/52450
http://www.consciencia.org/markheim-robert-louis-stevenson-conto-de-crime
http://mundovelhomundonovo.blogspot.com.br/2017/07/loteria-moral.html
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