FIÓDOR
DOSTOIÉVSKI
“(...)
O pavor se apoderava dele cada vez mais, principalmente depois desse segundo
assassinato totalmente inesperado. Queria correr dali o mais rápido possível. E
se nesse instante ele estivesse em condição de ver e raciocinar de modo mais
correto; se pudesse ao menos perceber todas as dificuldades da sua situação,
todo o desespero, toda a hediondez e todo o absurdo que havia nela, compreender
quantas dificuldades e talvez até quanta crueldade ainda teria de superar e
praticar para escapulir dali e chegar em casa - é bem possível que ele largasse
tudo e dali mesmo fosse denunciar-se, e não por temer por si próprio mas pelo
simples horror e repugnância ao que havia praticado. Nele a repugnância crescia
particularmente e aumentava a cada instante. Agora ele não voltaria ao baú e
nem ao quarto por nada nesse mundo.
Mas
pouco a pouco começou a dominá-lo um certo alheamento, uma espécie de
meditação: por minutos era como se ele perdesse a consciência ou, melhor
dizendo, esquecesse o principal e se apegasse a minúcias. (...)”
Dos
Delitos Continuados E Das Penas Proporcionais
Crime
e Castigo Fiódor Dostoiéwski
Dos
Delitos e Das Penas Cesare Beccaria
DOS
DELITOS E DAS PENAS
Prefácio
de Beccaria
“(...)
Dei um testemunho público dos meus princípios religiosos e da minha submissão
ao soberano, ao responder às notas e observações que se publicaram contra minha
obra. Devo guardar silêncio em relação aos escritores que doravante só me
opuserem as mesmas objeções. Mas, aqueles que puser em sua crítica a decência
que convém aos homens honestos, e quem tiver bastante luzes para não me obrigar
a demonstrar-lhes os primeiros princípios, de qualquer natureza que sejam, encontrará
em mim um homem menos apressado a defender suas opiniões particulares do que um
tranquilo amigo da verdade, pronto a confessar os seus erros (...).”
12.
O CRIME DE RASKÓLNIKOV FIÓDOR DOSTOIÉVSKI (1821 -1881 | Rússia)
Citado
em quase todas as histórias do romance policial como uma espécie de precursor
do gênero, Crime e Castigo, um dos clássicos do grande Dostoiévski, não poderia
ser esquecido numa antologia como esta. Nossa opção foi selecionar um capítulo
do romance, mas um capítulo que praticamente conta uma história em si mesma -
um capítulo, para quem já leu e para quem vai ler agora, dos mais importantes
deste romance consagrado universalmente. (Utilizamos a tradução de Paulo
Bezerra, direta do russo; o título do capítulo é escolha nossa e só vale para
esta edição.)
Como da outra vez, a porta se abriu numa fresta
minúscula, e do escuro dois olhos penetrantes e desconfiados se fixaram
novamente nele. Nesse ponto Raskólnikov ficou desconcertado e ia cometendo um
sério erro.
Temendo que a velha se assustasse por estarem os
dois a sós e sem esperança de que seu aspecto a dissuadisse, ele agarrou a
porta e a puxou em sua direção para que à velha não ocorresse a idéia de voltar
a trancar-se. Ao ver isto, ela não puxou a porta de volta para si mas também
não largou a maçaneta, de sorte que por pouco ele não a arrastou para a escada
junto com a porta. Vendo, porém, que ela estava em pé na soleira da porta e não
lhe dava passagem, ele avançou direto contra ela. Ela deu um salto para trás de
medo, quis dizer alguma coisa mas foi como se não pudesse e ficou olhando de
olhos arregalados para ele.
- Boa noite, Aliena Ivánovna - começou ele da forma
mais desembaraçada possível, mas a voz não lhe obedeceu, ficou embargada e
tremeu -, para a senhora eu ... trouxe um objeto, mas é melhor a gente vir para
cá . .. para o claro
... - E deixando-a,
ele foi entrando direto no quarto, sem ser convidado. A velha correu atrás
dele: sua língua destravou-se.
- Meu Deus! O que o senhor está querendo?. . . O que
é isso? O que o senhor deseja?
- Ora, Aliena Ivánovna... sou um conhecido seu...
Raskólnikov... olhe, trouxe o penhor que havia prometido há poucos dias.. . - E
ele lhe estendeu o penhor.
A velha quis dar uma olhada no penhor mas no mesmo
instante fixou o olhar direto nos olhos do hóspede intruso. Ficou a olhar
atentamente, com fúria e desconfiança. Transcorreu cerca de um minuto; a ele
pareceu até que nos olhos dela havia qualquer coisa como zombaria, como se ela
já tivesse adivinhado tudo. Ele percebeu que estava ficando desnorteado, que
estava quase apavorado, tão apavorado que, parece, continuasse ela mais meio
minuto olhando daquele jeito, sem dizer uma única palavra, e ele fugiria dela
correndo.
- E por que a senhora me olha desse jeito como se
não me reconhecesse? - disse subitamente também com raiva. - Se quiser fique
com o objeto, se não, vou procurar outras pessoas, não tenho tempo a perder.
Ele não pensava falar assim, mas súbito acabou
saindo automaticamente. A velha voltou a si, e pelo visto o tom decidido da
visita a animou.
- Por que você, meu caro, apareceu tão de repente...
o que está acontecendo? -perguntou ela, olhando para o penhor.
- É uma cigarreira de prata: eu não falei da outra
vez? Ela estendeu a mão.
- E por que é que você está tão pálido? Veja como as
mãos estão tremendo! Tomou banho, meu caro?
- É febre - respondeu com voz entrecortada. -
Fica-se pálido a contragosto ... quando não se tem o que comer - acrescentou
ele, mal pronunciando as palavras. Mais uma vez as forças o abandonavam. Mas a
resposta pareceu verossímil; a velha pegou o penhor.
- O que é isso? - perguntou ela, mais uma vez
fixando o olhar em Raskólnikov e pesando o penhor na mão.
- Um objeto... uma cigarreira ... de prata ... dê
uma olhada.
- Que coisa, como se não fosse de prata ... E como
você a amarrou!
Procurando desamarrar o cadarço e voltando-se para a
janela, no sentido da claridade (todas as janelas estavam fechadas, apesar do
abafamento), ela o deixou inteiramente por alguns segundos e lhe deu as costas.
Ele desabotoou o sobretudo e soltou o machado do laço, mas ainda não o tirou
por inteiro, ficando apenas a segurá-lo com a mão direita por cima da roupa. Os
braços estavam terrivelmente fracos; ele mesmo os sentia a cada instante cada
vez mais entorpecidos e duros. Temia soltar e deixar cair o machado. .. num
repente foi como se a cabeça começasse a rodar.
- O que foi que ele enrolou aqui! - gritou a velha
irritada e mexeu-se na direção dele. Ele não podia perder nem mais um instante.
Tirou o machado por inteiro, levantou-o com as duas mãos, mal se dando conta de
si, e quase sem fazer força, quase maquinal-mente, baixou-o de costas na cabeça
dela. Era como se nesse instante tivesse lhe faltado força. Mas foi só ele
baixar uma vez o machado que lhe veio a força.
A velha, como sempre, estava de cabeça descoberta.
Os cabelos claros com tons grisalhos, ralinhos, habitual mente besuntados de
óleo, formavam uma trança à moda de rabo de rato e estavam presos a um resto de
pente de chifre que se destacava na nuca. O golpe acertara em plenas têmporas,
para o que contribuíra a sua baixa estatura. Ela deu um grito, mas muito fraco,
e súbito arriou inteira no chão, mas ainda conseguiu levantar ambas as mãos até
a cabeça. Em uma das mãos ainda continuava segurando o "penhor".
Então ele bateu duas vezes com toda a força, sempre com as costas do machado e
nas têmporas. O sangue jorrou, como de um copo derrubado, e o corpo caiu de
costas. Ele recuou, deixou-a cair e no mesmo instante abaixou-se para lhe olhar
o rosto; estava morta. Tinha os olhos esbugalhados, como se quisessem saltar, e
a testa e todo o rosto franzidos e deformados pela convulsão.
Ele botou o machado no chão, ao lado da morta, e no
mesmo instante atirouse ao bolso dela, procurando não se sujar do sangue que
escorria - aquele mesmo bolso direito de onde ela havia tirado a chave da
última vez. Ele estava em plena consciência, já não sentia mais perturbação
mental nem vertigem, no entanto as mãos ainda continuavam a tremer. Mais tarde
lembrou-se de que esteve inclusive muito atento, cauteloso, procurando sempre
evitar manchas. .. As chaves ele tirou no mesmo instante daquele bolso; como da
vez anterior, tudo estava em um molho, em um aro de aço. Imediatamente correu
com elas ao quarto. Era um quarto muito pequeno, com um enorme caixilho para
ícones. Junto à outra parede ficava uma cama grande, bastante limpa, coberta
por um edredom de retalhos de seda. À terceira parede ficava a cômoda. Coisa
estranha: mal ele começou a enfiar a chave na cômoda, mal ouviu o seu tinido,
foi como se uma convulsão lhe percorresse o corpo. Súbito, mais uma vez quis
largar tudo e ir embora. Mas foi apenas um instante; era tarde para ir embora.
Chegou até a rir de si mesmo, e subitamente lhe bateu outro pensamento
inquietante. Eis que lhe pareceu que a velha talvez ainda estivesse viva e
ainda pudesse voltar a si. Largando as chaves, e a cômoda, ele correu de volta
ao corpo, agarrou o machado e o levantou mais uma vez sobre a velha, mas não o
desceu. Não havia dúvida: ela estava morta. Inclinando-se e examinando-a outra
vez mais de perto, viu claramente que o crânio estava esfacelado e até
levemente deslocado. Quis tocá-Ia mas afastou a mão; já estava tudo claro.
Entrementes o sangue já havia formado uma verdadeira poça. Nisso ele notou um
cordão no pescoço dela, puxou-o, mas o cordão era forte e não cedeu; além do
mais estava molhado de sangue. Ele tentou tirá-lo pelo pescoço, num gesto de
baixo para cima, mas alguma coisa atrapalhava, prendia. Tomado de impaciência,
ele quis levantar mais uma vez o machado e malhar imediatamente no cordão, no
corpo, de cima para baixo, mas não se atreveu e, depois de pelejar uns dois
minutos, sujando de sangue as mãos e o machado, cortou a muito custo o cordão e
o tirou, sem aplicar o machado ao corpo; não se enganou - era a bolsa. No
cordão havia duas cruzes, uma de cipreste e outra de cobre, além de um santinho
de esmalte; pendurado com eles estava uma pequena bolsa de camurça engordurada,
com um aro de aço e um anelzinho. A bolsa estava abarrotada; Raskólnikov a
enfiou no bolso sem examiná-Ia, atirou a cruz no peito da velha e, agarrando
desta feita o machado, lançou-se de volta ao quarto.
Estava com uma pressa terrível, agarrou as chaves e
voltou a mexer com elas. Mas era como se tudo saísse errado: não entravam na
fechadura. Não é que as mãos tremessem tanto, é que ele só fazia errar: vê, por
exemplo, que a chave está errada, não entra, mas ele continua insistindo.
Súbito lembrou-se e percebeu que aquela chave grande, de palhetão dentado, que
balançava ali junto de outras pequenas, sem falta devia ser não da cômoda (como
lhe ocorrera da outra vez) mas de algum baú, e que nesse baú talvez estivesse
tudo guardado. Ele largou a cômoda e no mesmo instante meteu-se debaixo da
cama, sabendo que as velhas costumam guardar os baús debaixo da cama. E foi o
que aconteceu: havia um baú considerável; com mais de um archin {7} de
comprimento, com tampa arqueada, revestida de ma/roquim vermelho sob cravos de
aço. A chave dentada veio na medida e o abriu. Em cima, debaixo de um lençol
branco, estava um casaco de pele de lebre, coberto por um conjunto vermelho; debaixo
dele havia um vestido sedoso, depois um xale, e lá, mais para o fundo, parecia
haver apenas trapos. Antes de mais nada ele se pôs a limpar no conjunto
vermelho as mãos manchadas de sangue. "É vermelho, e no vermelho não se
nota o sangue" - ia raciocinando ele, e súbito caiu em si: "Meu Deus!
Será que estou enlouquecendo?" - pensou assustado.
Contudo, mal ele sacudiu essa traparia, um relógio
de ouro brotou de debaixo do casaco de pele. Lançou-se a revirar tudo. De fato,
no meio da traparia haviam sido colocados objetos de ouro - provavelmente tudo
penhores resgatados e não resgatados -, pulseiras, correntes, brincos,
alfinetes etc. Alguns estavam em estojos, outros simplesmente embrulhados em
papel de jornal, mas em folhas duplas, com cuidado e zelo, e amarrados em
círculo por cadarços. Sem qualquer demora, ele passou a encher os bolsos da
calça e do sobretudo, sem examinar nem abrir os embrulhos e estojos; mas não
teve tempo de pegar muita coisa...
Súbito soaram passos de alguém no cômodo onde estava
a velha. Ele parou e ficou quieto como um morto. Mas tudo estava em silêncio,
logo, fora impressão. De repente ouviu-se nitidamente um leve grito, ou como se
alguém tivesse dado um gemido baixinho e entrecortado, calando em seguida.
Depois voltou a fazerse um silêncio de morte, durante um a dois minutos. Ele
estava de cócoras junto ao baú e aguardava, mal conseguindo tomar fôlego, mas
subitamente deu um salto, agarrou o machado e saiu do quarto correndo.
No meio do cômodo estava Lisavieta em pé, com uma
trouxa grande na mão, olhando pasma para a irmã morta, inteiramente branca como
um pano e como que sem forças para gritar. Ao vê-lo sair correndo, ela começou
a tremer feito vara verde, e ficou com todo o rosto convulsionado; levantou a
mão, fez menção de abrir a boca, mas mesmo assim não gritou e começou a
afastar-se dele lentamente, de costas, para o canto, olhando-o fixamente, à
queima-roupa, mas ainda assim sem gritar, como se lhe faltasse ar para tanto.
Ele se lançou para ela de machado em punho; os lábios dela se contraíram de
forma tão penosa quanto de uma criancinha quando começa a ficar com medo de
alguma coisa, olhando fixamente para o objeto que as amedronta, e se preparam
para começar a gritar. A infeliz dessa Lisavieta era de tal forma ingênua, esquecida
e definitivamente assustada que nem sequer levantou o braço para proteger o
rosto, embora fosse esse o gesto defensivo mais necessariamente natural nesse
instante, porque o machado havia sido levantado direto sobre o seu rosto. Ela
apenas soergueu de leve o braço esquerdo livre, nem de longe até o rosto, e o
esticou devagarinho na direção dele, como se o afastasse. O golpe foi direto no
crânio, de lâmina, e de uma só vez abriu toda a parte superior da testa,
chegando quase às têmporas. E ela desabou. Raskólnikov estava quase
desnorteado; agarrou-lhe a trouxa, largou-a e correu para a ante-sala.
O pavor se apoderava dele cada vez mais,
principalmente depois desse segundo assassinato totalmente inesperado. Queria
correr dali o mais rápido possível. E se nesse instante ele estivesse em
condição de ver e raciocinar de modo mais correto; se pudesse ao menos perceber
todas as dificuldades da sua situação, todo o desespero, toda a hediondez e
todo o absurdo que havia nela, compreender quantas dificuldades e talvez até
quanta crueldade ainda teria de superar e praticar para escapulir dali e chegar
em casa - é bem possível que ele largasse tudo e dali mesmo fosse denunciar-se,
e não por temer por si próprio mas pelo simples horror e repugnância ao que
havia praticado. Nele a repugnância crescia particularmente e aumentava a cada
instante. Agora ele não voltaria ao baú e nem ao quarto por nada nesse mundo.
Mas pouco a pouco começou a dominá-lo um certo
alheamento, uma espécie de meditação: por minutos era como se ele perdesse a
consciência ou, melhor dizendo, esquecesse o principal e se apegasse a
minúcias. Aliás, olhando para a cozinha e avistando em cima de um banco um
balde com água até o meio, ocorreu-lhe lavar as mãos e o machado. As mãos
estavam ensangüentadas e pegajosas. O machado ele mergulhou pela lâmina direto
na água; agarrou um pedaço de sabão que estava na janela em um caco de pires e
começou a lavar as mãos ali mesmo no balde. Depois de lavá-las tirou também a
lâmina do machado, lavou-a e ficou um longo tempo, coisa de uns três minutos,
lavando o cabo onde havia respingos, esfregando o sangue até com sabão. Depois
enxugou tudo na roupa branca que estava ali mesmo, secando numa corda estendida
através da cozinha, após o que ficou muito tempo examinando o machado,
atentamente, junto à janela. Não restara vestígios, apenas o cabo ainda estava
úmido. Encaixou cuidadosamente o machado no laço, debaixo do sobretudo. Em
seguida, o quanto permitia a fraca claridade da cozinha, examinou o sobretudo,
as calças, as botas. Na superfície, à primeira vista, parecia não haver nada;
só nas botas havia manchas. Ele molhou um pano e limpou-as. Sabia, aliás, que
discernia mal, que, talvez, houvesse alguma coisa que saltasse à vista, mas ele
não estava notando. Parou no meio do quarto, meditando. Uma idéia angustiante,
sombria, crescia nele - a idéia de que estava enlouquecendo, de que naquele
instante não tinha condição nem de raciocinar, nem de se defender, de que
talvez não devesse fazer o que estava então fazendo. . . "Meu Deus!
Preciso fugir, fugir!" - balbuciou e lançou-se para a ante-sala. Mas ali o
aguardava um horror como, é claro, nunca havia experimentado.
Ficou parado, observando, e não acreditava no que
viam os próprios olhos: a porta, a porta da frente, que dava da ante-sala para
a escada, aquela mesma em que, não fazia muito, ele batera e por onde entrara,
estava aberta, inclusive entreaberta e cabendo a mão inteira: sem chave nem
ferrolho, o tempo todo, todo aquele tempo! A velha não fechara a porta atrás
dele talvez por precaução. Mas Deus! Ora, depois ele viu Lisavieta! E como
podia, como podia não adivinhar que ela havia entrado de algum lugar! Não teria
atravessado a parede.
Ele se lançou para a porta e passou o ferrolho.
"Ah, não, mais uma vez não é isso! Preciso sair
daqui, sair, sair...!"
Puxou o ferrolho, abriu a porta e ficou de ouvido
atento na escada.
Passou muito tempo auscultando. Em algum ponto longe
dali, embaixo, provavelmente à entrada do portão, duas vozes, sabe-se lá de
quem, gritavam esganiçadas, discutiam e se insultavam. "O que eles
estarão? .. " Esperou com paciência. Num instante tudo ficou em silêncio,
cessou bruscamente: dispersaram-se. Ele já estava para sair, mas súbito a porta
do andar inferior, que dava para a escada, abriu-se com ruído e alguém começou
a descer a escada cantarolando um motivo qualquer. "Como estão sempre
fazendo barulho!" - passou-lhe pela cabeça. Tornou a encostar a porta e
ficou aguardando. Por fim tudo ficou em silêncio, nem viva alma. Ele já ia
pondo o pé na escada quando de repente novos passos se fizeram ouvir.
Vinham de muito longe, lá bem do começo da escada,
mas na lembrança dele estava muito bem nítido que desde o primeiro som algum
motivo o levara a desconfiar de que eles se dirigiam forçosamente para lá, para
o quarto andar, para o apartamento da velha. Por quê? Seriam os sons tão
especiais, notáveis? Eram passos pesados, regulares, sem pressa. Aí vem ele, já
passou o primeiro andar, já subiu mais; dá para ouvir cada vez mais, cada vez
mais! Ouve-se o ofegar pesado da pessoa chegando. Já vem aí subindo o terceiro.
.. Vindo para cá! E de repente lhe pareceu que estava como que paralisado, que
era como se estivesse sonhando que o acossavam, de perto, querendo matá-lo, e
ele mesmo era como se estivesse pregado no lugar, sem poder sequer mexer as
mãos.
Por fim, quando a visita começou a subir para o
quarto andar, só aí ele se sacudiu subitamente e acabou se esgueirando com
destreza do saguão para o apartamento e fechando a porta atrás de si. Em
seguida agarrou o machado e calmamente, em silêncio, acomodou-o no laço. O
instinto o socorreu. Terminado tudo, escondeu-se ali mesmo ao pé da porta,
prendendo a respiração. O intruso também já estava à porta. Agora os dois
estavam frente a frente como há pouco tempo ele estivera com a velha quando a
porta os separava e ele auscultava.
A visita tomou fôlego várias vezes pesadamente.
"Deve ser gordo e grande" - pensou Raskólnikov, apertando o machado
na mão. De fato, era como se tudo fosse um sonho. O visitante agarrou a sineta e
puxou com força.
Logo que soou o som de lata da sineta ele teve a
súbita impressão de que alguém se havia mexido no cômodo. Chegou até a ficar
alguns segundos auscultando seriamente. O desconhecido tornou a chamar, esperou
mais um pouco e, de repente, tomado de impaciência, começou a puxar com toda a
força a maçaneta da porta. Raskólnikov observava com horror o eixo do ferrolho
pulando nos gonzos e esperava com um medo estúpido que ele saltasse a qualquer
momento. Isso realmente parecia possível, tão grande era a força com que
puxavam. Ele esboçou a idéia de segurar o ferrolho com a mão, mas o outro
poderia adivinhar. Sua cabeça parecia querer voltar a girar. "Vou
desmaiar!" - passou-lhe pela cabeça, mas o desconhecido começou a falar e
ele se refez no mesmo instante.
- Raios, será que estão dormindo ou foram
estranguladas? Trimalditas - mugiu como se estivesse dentro de uma barrica. -
Ei, Aliena Ivánovna, sua bruxa velha! Lisavieta Ivánovna, beleza indescritível!
Abram! Ô, trimalditas, será que estão dormindo?
E novamente, tomado de fúria, puxou a sineta umas
dez vezes seguidas, com toda a força. Era mesmo um homem imperioso e íntimo da
casa.
Nesse mesmo instante ouviram-se passos apressados
ali perto na escada. Passava mais alguém. Raskólnikov acabou perdendo o começo
da conversa.
- Será que não tem ninguém? - gritou com voz sonora
e alegre o recémchegado, dirigindo-se diretamente ao primeiro visitante, que
ainda continuava a puxaria sineta. – Boa noite, Kokh!
"A julgar pela voz, deve ser muito jovem"
- pensou de súbito Raskólnikov.
- O diabo sabe delas, por pouco não arrebentei a
fechadura - respondeu Kokh. -E o senhor, como é que me conhece?
- Ora como! Há três dias ganhei do senhor três
partidas seguidas de bilhar no "Gambrinus"!
- Ah-ah-ah!
- Então elas não estão? Estranho. Um absurdo, aliás,
um horror.
- Onde a velha iria meter-se? Vim a negócio.
- Eu também vim a negócio, meu caro!
- Então, o que a gente vai fazer? Quer dizer que vai
voltar? Ora, ora! E eu que pensava em arranjar dinheiro! - exclamou o jovem.
- É claro que vamos voltar; pra que marcar hora? Ela
mesma, a bruxa, marcou hora comigo. Eu tive de dar uma volta. Aliás, não
consigo entender; por onde diabo ela andará? A bruxa passa o ano inteiro
enfiada em casa, mofando, com dor nas pernas, e de repente sai para passear!
- Não será o caso de perguntar ao zelador?
- O quê?
- Pra onde foi e quando volta.
- Hum.. diabos. .. é perguntar... Porque ela não vai
a lugar nenhum. . . - e ele deu mais um puxão na maçaneta da porta. - Diabos,
não há o que fazer, vamos embora!
- Espere! - gritou de repente o jovem - olhe: está
vendo como a porta cede se a gente puxa?
- E daí?
- Significa que não está fechada à chave mas a
ferrolho, isto é, no trinco. Está ouvindo o tilintar do ferrolho?
- E então?
- Ora, como é que o senhor não entende? Quer dizer
que uma delas está em casa. Se todas as duas tivessem saído, teriam trancado a
porta por fora com chave e não se trancado por dentro com ferrolho. Mas neste
caso - está ouvindo como o ferrolho tilinta? E para trancar-se por dentro a
ferrolho é preciso estar em casa, entende? Logo, estão em casa mas não abrem!
- Bah! É isso mesmo! - gritou surpreso Kokh. - Então
o que estão fazendo lá dentro? - E ele começou a puxar freneticamente a porta.
- Pare! - tornou a gritar o jovem - não puxe. - Aqui
há qualquer coisa de estranho ... O senhor tocou a sineta, puxou a porta, mas
não abrem; então ou as duas estão desmaiadas, ou ...
- O quê?
- Veja o quê: vamos procurar o zelador; que ele
mesmo acorde as duas.
- Isso! - Os dois se puseram a descer.
- Espere! O senhor fique aqui, enquanto eu vou lá
embaixo chamar o zelador.
- Por que ficar?
- Quem sabe o que pode acontecer?
- É mesmo. . .
- Estou me preparando para ser juiz de instrução!
Aqui evidentemente, e-viden-te-men-te há alguma coisa estranha! - bradou
entusiasmado o jovem e desceu a escada correndo.
Kokh ficou, mexeu mais uma vez devagarinho a sineta,
e esta deu uma batida; depois, devagarinho, como se refletisse e examinasse,
passou a mexer na maçaneta da porta, puxando-a e largando-a, querendo se
convencer mais uma vez de que ela estava apenas no ferrolho. Depois inclinou-se
ofegante e ficou olhando pelo buraco da fechadura; mas por dentro a chave
estava pendurada, logo, não dava para enxergar nada.
Em pé, Raskólnikov apertava o machado. Era como se
estivesse delirando. Estava inclusive disposto a lutar com eles quando
entrassem. Enquanto batiam e discutiam, várias vezes teve a repentina idéia de
acabar com tudo de uma vez e gritar para eles do outro lado da porta. Teve
vontade de começar a xingá-los, a provocá-los enquanto não abriam a porta.
"É melhor que termine logo!" - veiolhe de relance à cabeça.
- Mas ele, ô diabo. ..
Passava o tempo, um minuto, outro, ninguém aparecia.
Kokh começou a mexer-se.
- Mas é o diabo!... - gritou de repente e, largando
a guarda tomado de impaciência, também foi para baixo, com pressa e batendo as
botas na escada. Os passos silenciaram.
- Deus, o que fazer!
Raskólnikov puxou o ferrolho, entreabriu a porta -
não ouviu nada, e súbito, já sem pensar em absolutamente nada, saiu, encostou a
porta o mais firme que pôde e lançou-se escada abaixo.
Já havia descido três lanços de escada quando
subitamente ouviu um vozerio forte embaixo. Onde se meter? Não havia onde se
esconder. Ia correr de volta, ao mesmo apartamento.
- Ei, maldito, diabo! Segurem!
Alguém lá embaixo saiu de algum apartamento aos
gritos e não só correu como de fato caiu escada abaixo se esgoelando:
- Mitka! Mitka! Mitka! Mitka! Mitka! {8} O diabo que
te carregue!
O grito terminou com um ganido; os últimos sons já
se ouviram do pátio; tudo ficou em silêncio. Mas nesse mesmo instante vários
homens começaram a subir ruidosamente a escada, falando alto e com freqüência.
Eram uns três ou quatro. Ele ouviu a voz sonora do jovem. "São eles!"
Em completo desespero, foi de cara ao encontro
deles: "Seja lá o que for! Se me pararem, tudo estará perdido, se não
pararem, também estará tudo perdido: haverão de lembrar-se." Os outros já
vinham ao encontro dele; entre eles restava apenas um lanço de escada - e de
repente a salvação! A alguns degraus dele, à direita, estava o apartamento
vazio e escancarado, aquele mesmo apartamento do segundo andar que os operários
estavam pintando e agora haviam deixado como que de propósito. Com certeza
tinham sido eles que há pouco haviam saído correndo naquela gritaria. O
assoalho acabava de ser pintado, no meio do cômodo havia uma barrica e um caco
de louça com tinta e um pincel. Num abrir e fechar de olhos ele se esgueirou
pela porta aberta e escondeu-se atrás de uma parede, e não foi sem tempo: eles
já estavam em pleno patamar. Em seguida guinaram para cima e passaram ao lado
conversando alto, em direção ao quarto andar. Ele e.spe.HlUu, saiu na ponta dos
pés e correu para baixo.
Sabia muito bem, sabia perfeitamente bem que, àquela
altura, eles já se achavam no apartamento, que tinham ficado muito surpresos ao
encontrá-lo aberto quando ainda há pouco estivera fechado, que já examinavam os
corpos e que não passaria mais de um minuto para que adivinhassem e
compreendessem inteiramente que o assassino acabara de estar ali e conseguira
esconder-se em algum lugar, esgueirar-se deles, fugir; ainda adivinhariam,
talvez, que ele estivera sentado no apartamento vazio enquanto eles passavam
subindo. Enquanto isso, sob nenhum pretexto ele se atreveria a aumentar muito o
passo, embora estivesse a uns cem passos da próxima esquina. "Não seria o
caso de me esgueirar para alguma passagem e ficar esperando por aí em alguma
escada desconhecida? Não, a coisa vai mal! E não será o caso de largar o
machado em algum lugar? Não será o caso de pegar um coche? A coisa vai mal!
Mal!"
Até que enfim um beco; guinou para ele mais morto do
que vivo; aí já estava metade salvo, e compreendia isso: menos suspeitas, e
ainda por cima um vaivém de gente, e ele desaparecia no meio como um grão de
areia. Mas todos esses tormentos o haviam esgotado a tal ponto que ele se
movimentava a muito custo. Suava às bicas; tinha o pescoço todo molhado.
"Eta porre!" - gritou-lhe alguém, quando ele apareceu no canal.
Nesse momento ele se lembrava mal da sua vida; e
isso piorava conforme o tempo ia passando. Lembrava-se, entretanto, de que, ao
chegar ao canal, levara um súbito susto, de que havia pouca gente e ali estava
mais à vista, e quis voltar para o beco. Apesar de quase ter desmaiado, ainda
assim deu uma volta e chegou em casa por um lado totalmente oposto ao de
costume.
Não estava senhor de si quando chegou ao portão do
seu prédio; já havia pelo menos tomado a direção da escada e só então se
lembrou do machado. Entretanto, tinha pela frente uma tarefa muito importante:
colocá-lo de volta da forma mais invisível que pudesse. É claro que ele já não
estava em condição de compreender que lhe seria bem melhor não pôr, de maneira
nenhuma, o machado no lugar anterior, e sim largá-lo, mesmo que depois, em
algum pátio estranho.
No entanto tudo saiu bem. A porta da casa do zelador
estava fechada, mas não à chave, logo, o mais provável era que ele estivesse em
casa. Contudo ele já havia perdido a tal ponto a capacidade de compreender qualquer
coisa que foi direto à casa do zelador e abriu a porta. Se o zelador lhe
perguntasse: "O que deseja?" - ele talvez lhe entregasse diretamente
o machado. Porém mais uma vez o zelador não estava em casa, e ele conseguiu
colocar o machado no antigo lugar debaixo do banco; inclusive o encobriu com a
acha de lenha como antes. Depois não encontrou ninguém, viva alma, até a porta
do seu quarto; a porta da casa da senhoria estava fechada. Ao entrar no quarto,
lançou-se no sofá como estava. Não dormiu, ficou na modorra. Se nessa ocasião
alguém entrasse no quarto, imediatamente ele daria um salto e começaria a
gritar. Retalhos e trechos de alguns pensamentos fervilhavam sem parar em sua
cabeça; mas ele não conseguia captar nenhum deles, não podia deter-se em nenhum
deles, mesmo apesar dos esforços. ..
Tradução
de Paulo Bezerra
Conforme
decisão do STF, pena de crime continuado deve ser proporcional à repetição do
delito
Segundo o STF, para dois crimes continuados,
aplica-se acréscimo de um sexto; para três crimes, acréscimo de um quinto; e
assim sucessivamente.
Fonte: STF
Foto:
Marcos Santos/USP Imagens
O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal
(STF), concedeu Habeas Corpus (HC 134327) para redimensionar a pena de cinco
anos e quatro meses de reclusão imposta ao ex-deputado estadual e ex-presidente
da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo José Carlos Gratz, pela
prática de dois crimes de peculato. Com a decisão, a pena final foi reduzida
para quatro anos e oito meses de reclusão, em razão da jurisprudência sobre
continuidade delitiva.
A denúncia do Ministério Público aponta que, em
razão do cargo de presidente da Assembleia Legislativa à época dos fatos
narrados, Gratz teria desviado dinheiro público em proveito próprio e alheio,
caracterizando a prática do crime de peculato, previsto no artigo 312 do Código
Penal.
A pena foi definida pelo Tribunal de Justiça do Espírito
Santo (TJ-ES), em grau de apelação. Contra a decisão de segundo grau, a defesa
recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de recurso especial,
que acabou negado. No HC impetrado no Supremo contra decisão do STJ, a defesa
apontou flagrante ilegalidade na dosimetria da pena, uma vez que, reconhecida a
continuidade delitiva entre dois crimes de peculato imputados ao réu, o TJ
teria aplicado a causa de aumento de pena prevista no artigo 71 do Código
Penal no patamar de um terço, sem motivação idônea, ao invés do mínimo
legal de um sexto.
O artigo 71, que trata de crimes continuados,
diz que “quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou
mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de
execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como
continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se
idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um
sexto a dois terços”.
Em sua decisão, o ministro salientou que o TJ-ES
reconheceu a continuidade delitiva entre duas condutas imputadas ao réu e, com
fundamento no artigo 71 do Código Penal, impôs acréscimo de um terço
numa das penas idênticas calculadas para o mesmo em quatro anos, totalizando
cinco anos e quatro meses de reclusão. “Apesar de tratar de apenas duas
infrações, não houve fundamentação alguma para a majoração em patamar superior
ao mínimo legal de um sexto”, salientou o relator.
A jurisprudência do STF aponta no sentido de que no
caso de crimes continuados, explicou o ministro, deve-se adotar critério
objetivo que relaciona o número de infrações delituosas e as correspondentes
frações de acréscimo penal. Assim, para dois crimes continuados, se aplicaria
acréscimo de um sexto. Para três crimes, um quinto de acréscimo; para quatro
crimes, um quarto; para cinco crimes, um terço; para seis crimes metade (1/2)
e, finalmente, para mais de seis crimes, o aumento máximo de dois terços.
Com base nesse entendimento e reafirmando que não
houve fundamentação para majoração acima do mínimo, o ministro concedeu o HC
para, aplicada a causa de aumento da pena do artigo 71 do Código
Penal no mínimo legal de um sexto, redimensionar as penas impostas ao réu
para quatro anos e oito meses de reclusão.
Referências
http://palavraplena.typepad.com/.a/6a010535e6a52a970c01156fa90409970c-800wi
Cesare Beccaria Dos Delitos e Das Penas EDIJUR Leme
– SP 2014
file:///D:/Usu%C3%A1rio/Downloads/Os%20100%20Melhores%20Contos%20de%20Crime%20e%20Mist%C3%A9rio%20da%20Literatura%20Universal%20-%20Fl%C3%A1vio%20Moreira%20Da%20Costa.pdf
http://media.jornaljurid.com.br/cache/3e/8f/3e8fbfa4c5db6fc714839fd318099656.jpg
http://www.jornaljurid.com.br/noticias/conforme-decisao-do-stf-pena-de-crime-continuado-deve-ser-proporcional-a-repeticao-do-delito
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