Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
segunda-feira, 30 de dezembro de 2024
Entre a Maré e o Rochedo: Reflexões sobre a Vida Individual e Coletiva no Cosmos
"Amigo, esta vida não tá boa
O sufoco vem à proa
Desse barco que é a vida"
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"Tempestade no Mar da Galileia" (1633), de Rembrandt van Rijn.
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Resumo:
O artigo "Cuidado: Ano-Novo à frente" de Fernando Gabeira e o samba "Rochedo" de Noca da Portela e Zé do Maranhão, interpretado por Beth Carvalho, exploram a relação entre a fragilidade do indivíduo e as forças maiores que moldam a existência coletiva. Gabeira analisa tensões políticas e sociais, enquanto o samba traduz poeticamente a luta pela sobrevivência. Ambos evocam imagens de conflito e resiliência, ligando-se ao humanismo universal de obras como "A Escola de Atenas", de Rafael Sanzio, que celebra o diálogo entre a busca individual e o progresso coletivo. Essa síntese propõe uma reflexão sobre a condição humana e sua posição no cosmos, marcada pela vulnerabilidade e pela esperança.
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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024
Cuidado: Ano-Novo à frente - Fernando Gabeira
O Globo
Investidores querem austeridade, muita austeridade. Mas já vimos, na Grécia, que essa fórmula tem limites
Tenho uma modesta bola de cristal. Às vezes ela embaça e perde o foco. Ainda assim, sugiro cuidado com o ano que entra.
Nos Estados Unidos, Trump promete deportação em massa e aumento das tarifas, além de uma pesada campanha contra a mídia. Dificilmente brasileiros escaparão da rede da deportação num bonde cheio de outras nacionalidades. O aumento de tarifas visa à China, mas Trump já mencionou outros países que estão na sua mira: Brasil e Índia.
Aqui dentro, o ano termina em sobressalto econômico. Há uma divergência entre as visões do governo e do mercado. Os investidores querem austeridade, muita austeridade. Mas já vimos, como na Grécia, que essa fórmula tem limites. O governo acha que a presença do Estado — gastando dinheiro, abrindo empregos, aumentando salários, aumentando consumo — faz rodar a máquina da economia. Lord Keynes aprovaria tudo isso, em certa conjuntura. O problema é que não estamos nela. Portanto, apesar de suas pretensões eleitorais, o governo tem limites.
Até que ponto veremos um nível de conciliação entre as duas visões conflitantes? A desconfiança acabou impulsionando o dólar às alturas, com reflexos possíveis no preço de combustíveis e alimentos. A ausência de um compromisso entre dois grandes atores acaba atingindo a vida dos que estão na planície.
Uma nova batalha se avizinha: a das emendas parlamentares. O STF quer que o dinheiro usado pelos deputados seja transparente e rastreável. Eles tentam escapar dessas regras. Um pagamento de R$ 4,2 bilhões foi bloqueado pelo ministro Flávio Dino. Quando os deputados voltarem de suas férias, a encrenca estará armada. Confrontarão o Supremo, porque não abrem mão de tanto dinheiro.
As emendas parlamentares são uma jabuticaba brasileira. Nas democracias ocidentais, os deputados aprovam ou rejeitam o Orçamento feito pelo Executivo. Só no Brasil administram diretamente parte do dinheiro. E que parte! Talvez chegue aos R$ 60 bilhões.
Em 2025, teremos o julgamento da tentativa de golpe. Está mais ou menos marcado para setembro. Se for televisionado, pode se tornar atraente como uma novela. Os detalhes sobre os quais escrevemos cotidianamente serão dramatizados na boca dos advogados.
Teremos a COP30 em Belém, no Pará. O primeiro encontro internacional sobre meio ambiente na Amazônia. O Brasil pretende afirmar sua posição de liderança na questão. No entanto é uma tarefa cheia de riscos. Grande parte dos problemas amazônicos permanece insolúvel.
As queimadas aumentam.
A inteligência artificial, tão falada, certamente fará coisas imprevisíveis no ano que vem. E o debate sobre o controle da internet continuará no Supremo, já que o Congresso prefere deixá-la como está. Esta pausa de fim de ano pode levar os ministros do STF a estudar mais o tema. Algumas intervenções, como as de Dias Toffoli, foram, digamos assim, preocupantes.
O grande poeta Drummond dizia que o último dia do ano não é o último dia da vida. Com minha experiência nas estradas brasileiras, diria que a ponte que caiu entre Tocantins e Maranhão não é a última a desmoronar diante do descaso oficial.
Espero estar errado e que 2025 seja um ano de paz, prosperidade e que alguns sonhos pessoais se realizem — afinal, só eles podem desafiar mesmo as mais enevoadas bolas de cristal.
Em caso de absoluto desencanto, nem tudo está perdido. Os japoneses inventaram um método de desaparecer da vida cotidiana e começar noutro lugar, sem vestígios do passado. Cobram pouco mais de US$ 2 mil para dar outro nome, outra identidade e endereço. O nome é johatsu, evaporar.
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Correlações Diretas com a Proposta:
Vida Coletiva: Tal como na obra de Rafael, o samba e o artigo de Gabeira discutem como forças maiores e coletivas (sociedade, economia, natureza) moldam a existência individual.
Vida Individual: A expressão do medo e da fragilidade humana, seja na figura do marisco, no tom cauteloso de Gabeira ou nos pensadores representados por Rafael, dialoga com a necessidade de encontrar um sentido e um lugar no cosmos.
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Rochedo
Beth Carvalho
Letra
Está mais pra chorar do que sorrir
Está mais pra perder do que ganhar
Está mais pra sofrer que se alegrar
Está mais para lá do que pra cá
Amigo, esta vida não tá boa
O sufoco vem à proa
Desse barco que é a vida
E nessa briga da maré contra o rochedo
Sou marisco e tenho medo
De não ter uma saída
Composição: Noca da Portela / Zé Do Maranhão.
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STF mantém bloqueio definitivo de emendas de comissão que não obedecerem regras jurídicas, mas libera parte dos recursos
Decisão do ministro Flávio Dino autoriza empenho das emendas de comissão realizados antes do dia 23 de dezembro
29/12/2024 14:57 - Atualizado há 18 horas atrás
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ADPF854/DF
ARGUIÇÃODEDESCUMPRIMENTODEPRECEITOFUNDAMENTAL854 DISTRITO FEDERAL
VI- CONCLUSÃO
20. Sublinho que o devido processo legal orçamentário, de matriz constitucional, não comporta a “invenção” de tipos de emendas sem suporte normativo. A legítima celebração de pactos políticos entre as forças partidárias tem como fronteira aquilo que as leis autorizam, sob pena de o uso degenerar em abuso.
21. Obviamente não se trata de interferência judicial na sagrada autonomia do Poder Legislativo, e sim de sua adequação à Constituição e às leis nacionais. Este é um dever irrenunciável do STF: assegurar que não haja o império de vontades individuais ou a imposição de práticas concernentes ao constitucionalismo abusivo, de índole autoritária e apartada do interesse público.
22. Recordo que- por deliberação da Assembleia Nacional Constituinte- nem mesmo o máximo poder do Congresso Nacional- o de aprovar emendas constitucionais- é incondicional e imune ao controle jurisdicional. Por isso, mais do que inúteis ameaças ou consumação de “retaliações”, o diálogo institucional sincero e o cumprimento das normas jurídicas são as trilhas corretas a serem percorridas em favor dos legítimos interesses da Nação.
23. O Orçamento, por ser uma lei, é aprovado pelo Poder Legislativo e, de regra, executado pelo Poder Executivo, salvo quanto ao mencionado no art. 168 da Constituição Federal. Havendo respeito à saudável repartição de competências, o princípio da separação de poderes (cláusula pétrea) terá sua eficácia respeitada, com a convivência harmônica entre os departamentos autônomos que concretizam a Soberania Popular. ÀSEJ para providências, com urgência. Publique-se. Brasília, 29 de dezembro de 2024. Ministro FLÁVIODINO Relator Documento assinado digitalmente
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Com a Perna No Mundo
Emílio Santiago
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"Diz lá pra Dina que eu volto,que seu guri não fugiu
Só quis saber como é...qual é?
Perna no mundo e sumiu"
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ISIDORO DA FLAUTA
Nasci coisando, nasci com a música. Recordo-me perfeitamente ao ouvir nosso Orfeu número 1, Isidoro, flauteando na casa de meu pai, de Titiá e de Sinhá Leonor, tendo eu três anos de idade; Mamãe Zezé pianolando e cantando, mais tarde soube, árias de Porpora e Caldara.
Um homem de ouvido afeito cedo à visitação da música não suporta o mesmo normal desafinamento, quanto mais o cliquetis de espadas e ruído de bombas.
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Isidoro da flauta é, por acaso, preto. Fino; música é com ele; Isidoro flauteia a vida inteira; seu canto menor aplaca por instantes ódio, inveja, libidinagens,alguns trovões. Que idade tem Isidoro? É intemporal, como tantos da sua resistente raça. Não pacifista, antes pacífico.
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Cheira a domingo, é a flauta de Isidoro da flauta que se aproxima, uma pequena festa levantada no eco, jasmins-do-cabo orvalhando, o vácuo expulso, a evaporação da mágua, um sub-céu incorporado à curva do meu ouvido; segundo Rimbaud, um vento de diamantes.
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No princípio quero pegar o som. Isidoro passa-me a flauta, é preta com uns enfeites prateados, reviro-a de todo jeito, Isidoro cadê o som, responde: o som está escondido na minha boca e no oco da flauta mas eu aperto ele com as mãos; Isidoro ri, sadio, parece que tem 64 dentes, branquíssimos. Isidoro cadê o som? Isidoro sem dúvida está mordendo o som. Corro para lá e para cá, vejo um começo de incêndio no morro do Imperador, julgo que o morro acendeu um fósforo. Cadê o som? Isidoro querendo me sossegar diz que o som correu para apagar o fogo mas vorta já.
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Ninguém isola Isidoro da Silva da sua flauta. Não se diz mais: Isidoro, ou o preto Isidoro, se diz hoje e sempre Isidoro da flauta.
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Lá das profundas da noite – rua perpendicular ao meu ouvido – vem a serenata andando, e eu com mãos acesas para pegá-la. Flauta, cavaquinho, violão. Não sei quem está no cavaquinho e no violão, só sei que Isidoro da flauta está na flauta. Ouço os pés da serenata chegando. Param de fronte ao número 467 onde mora dona Lucinda, viúva de porte majestoso, com seis filhas. A serenata será para todas, inclusive a viúva? Para as meninas garanto. Eu gosto da quinta, Marília, sonsa, atirada, sorriso moreno, que me aplica os olhos castanho-amarelados; a viúva costuma me dar beliscões, mas de simpatia. A serenata, passos vazios, afastou-se, reviro-me no travesseiro, nunca verei de perto o som, nem o tocarei. Por outro lado, segundo Gil Vicente, já vejo cousas que não vêm nem vão. Não ouço mais o tiquetaque do relógio, penso, na certa foi dormir. O ouvido se me abruma; faz frio, tenho os dentes descobertos.
In: Murilo Mendes. A idade do serrote. Sabiá, 1968
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Despertei / Pranto espantei // Levantei / Canto espalhei
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“E estamos embebedados pela cultura européia, em vez de esclarecidos.”
(Mário de Andrade)
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No princípio quero pegar o som. Isidoro passa-me a flauta, é preta com uns enfeites prateados, reviro-a de todo o jeito, Isidoro cadê o som, responde: o som está escondido na minha boca e no oco da flauta mas eu aperto ele com as mãos; Isidoro ri, sadio, parece que tem 64 dentes, branquíssimos. Isidoro cadê o som? Isidoro sem dúvida está mordendo o som. Corro para lá para cá, vejo um começo de incêndio no morro do Imperador, julgo que o morro acendeu um fósforo. Cadê o som? Isidoro querendo me sossegar diz que o som correu pra apagar o fogo mas vorta já. 1
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1 Ver "Isidoro da Flauta" e outros trechos de A idade do serrote, livro de memórias escrito entre 1965 e 1966 em Roma.
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Dino libera parte de emendas bilionárias a parlamentares, mas fala em 'balbúrdia'
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O POVO
29 de dez. de 2024 #stf #dino #camara
Em nova decisão sobre o impasse das emendas parlamentares, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), liberou neste domingo (29) o pagamento de parte das chamadas emendas de comissão – que estavam bloqueadas por decisão do próprio magistrado.
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Léxico
Bal·búr·dia
Sofia Mariutti
19 de maio de 2019
Temas
Cultura
Sociedade
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Uma solução para quem quer “calar a balbúrdia do mundo”, conforme teria dito o sábio chinês T’ien Yi-heng, célebre no Pinterest, é “beber chá” .
As teorias quanto à origem da balbúrdia não são conclusivas. Há quem aponte para o céltico “balbord”: “tumulto”, “desordem”. Há quem afirme se tratar de um fenômeno oriundo das universidades. Outros insistem que seu berço são os aposentos infantis. O fato é que a palavra está registrada no português desde 1713, e sua etimologia mais provável — ainda que a balbúrdia nos faça pensar em manifestações resolutas de rebeldia — fala de hesitação.
Em latim, “balbus” era aquele que pronunciava mal e gaguejava; talvez fosse também meio fanho. Daí veio o nosso “balbo”, sinônimo de gago, assim como o verbo “balbuciar”. O mestre do balbucio é o bebê, que gosta de experimentar a linguagem dentro da boca. E como se deu esse salto da balbuciência para a balbúrdia? Quem fala aos tropeços cria uma baderna sonora de sons indistinguíveis. Singela baderna de bebês.
“Balbo” + “úrdia”. A terminação é rara, mas certamente pejorativa, como em “estúrdia” (leviandade), “palúrdio” (tolo) e “estapafúrdio” (disparatado). Vale se perguntar se a balbúrdia merece mesmo toda essa infâmia. Afinal, ela é tão balbuciante que hesita ao dizer o próprio nome, cheio de variações: balbúrdia, balburda, balborda ou balbórdia?
Sofia Mariutti é poeta e tradutora. Trabalhou como editora na Companhia das Letras entre 2012 e 2016. Em 2017, lançou pela Patuá a reunião de poemas “A orca no avião”, seu primeiro livro. Mestranda em literatura alemã pela USP, trabalha em 2019 na tradução da biografia de Franz Kafka para a editora Todavia.
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