Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
ENGAGÉ
"Que direito tinha eu de
considerá-la menos importante do que os cadáveres da
praça? O sofrimento não aumenta com o número: um
corpo pode conter todo o sofrimento que o mundo possa
experimentar. Eu raciocinara, como jornalista, em termos
de quantidade — e traíra os meus próprios princípios. Tornara-me um engagé como Pyle, e parecia-me que
nenhuma decisão me seria de novo fácil."
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Crítica | O Americano Tranquilo, de Graham Greene
A fina ironia como arte.
por Ritter Fan 12 de agosto de 2022
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Graham Greene era um debochado. Um debochado que escrevia maravilhosamente bem, mas, mesmo assim, um debochado. E, pode não parecer, mas eu não afirmo isso como um característica de alguma forma negativa, pois saber debochar – sutilmente ou não – é algo que poucos realmente dominam e menos ainda com a categoria do escritor britânico. Um de seus livros mais conhecidos, O Americano Tranquilo, eleva o deboche ao nível de arte, mesmo que ele normalmente seja mais lembrado como um romance – escrito em 1955 – que anteviu a Guerra do Vietnã, com a polêmica e desastrosa campanha americana na região dando, de certa maneira, continuidade à Guerra da Indochina, não menos polêmica e desastrosa.
E esse deboche – ou ironia fina – já começa no título, que adjetiva o americano de tranquilo ou, mais diretamente traduzindo, de quieto. Esse americano é Alden Pyle, um jovem agente da CIA trabalhando secretamente no Vietnã para minar o governo loca. Ele é inexperiente e baseia toda sua visão idealista de mundo em seu autor fictício preferido, York Harding, que preconiza que a melhor maneira de lidar com países como o que ele está é usar uma Terceira Força combinando colonialismo com comunismo, em uma daquelas visões obtusas e binárias de mundo e, pior ainda, de segunda mão. O “tranquilo” ou “quieto” que qualifica Pyle é um sinônimo para ignorante, ou, deixando de lado qualquer tipo de eufemismo, um sujeito burro, que age automaticamente com base em conhecimento reciclado.
Mas Pyle não é o protagonista da história. Este é o jornalista britânico Thomas Fowler, basicamente um alter-ego do próprio Graham Greene, que trabalhara como correspondente de guerra para o jornal britânico The Times e o francês Le Figaro, durante a Guerra da Indochina. Ele é o narrador e o personagem principal, com a história começando logo em seguida à morte de Pyle, com Fowler, então, contando a história do que aconteceu em dois tempos, especialmente o passado a partir do momento em que os dois se conheceram. A ironia de um britânico criticando um americano que faz exatamente a mesma coisa que seu país fazia e ainda continuaria fazendo por um tempo não foge à Greene, claro, pois ele faz de seus personagens representantes de seus países, criando o segundo ponto focal de sua ironia ao criar um triângulo amoroso entre Pyle, Fowler e a jovem vietnamita Phuong.
Brilhantemente, Greene “reduz” o imperialismo a um estranho caso de amor tripartite em que a mulher, mais frágil naturalmente em uma obra escrita nos anos 50, é o objeto da cobiça dos dois homens, naturalmente mais fortes pela mesma razão que a mulher é mais frágil. Sem dúvida que essa alegoria é evidente em O Americano Tranquilo, mas isso não retira sua perspicácia. Phuong acende os cachimbos de ópio de Fowler com a mesma subserviência com que, depois, larga o britânico – casado, aliás – pelo americano que promete mundos e fundos, trocando o velho pelo novo, o ultrapassado pelo promissor, mas ambos literalmente farinha do mesmo saco ou, talvez, um sendo o aprendiz do outro em alguma medida. É uma passagem de bastão, com o declínio do Império Britânico pós-Segunda Guerra Mundial coincidindo com a ascensão de um novo e ainda mais poderoso Império e Phuong – ou o sudeste asiático – no meio dessas duas forças que, claro, se preocupam com o avanço do comunismo que, no romance, permanece como um espectro e não exatamente é trabalhado na história diretamente para além do contexto macro geopolítico.
O Americano Tranquilo até pode ser classificado como uma obra policial/investigativa, já que, ostensivamente, seu foco é no que exatamente aconteceu com Pyle. Mas essa é apenas a cortina de fumaça, até porque os contornos do que houve já se apresentam logo no início para quem estiver prestando atenção no inteligente jogo de palavras de Greene. O que realmente importa é o autor quase que literalmente transformando Pyle – ou, melhor dizendo, os EUA – na Terceira Força que o próprio falecido tanto fala, já deixando entrever aquilo que tornaria o livro presciente, que é, claro, o esforço militar americano no Vietnã para tentar evitar o avanço da União Soviética. Mas o mais interessante não é a presciência sobre a incursão americana por lá, pois isso é algo que, imagino, fosse detectável com alguma facilidade à época, mas sim a maneira atabalhoada como tudo seria feito, com informações de segunda mão gerando reações exageradas e até inocentes que expandem o “americano tranquilo” do título para o governo americano da época como um todo. Greene não chega a prever exatamente o fiasco dos anos seguintes, mas seu romance é como um aviso, um alerta, com base em sua experiência própria como correspondente de guerra e também como membro do então falimentar Império Britânico, sobre uma estratégia muito claramente fadada ao fracasso.
E o interessante é que o peso político do que o autor escreve é aliviado pela forma como ele narra seus eventos, primeiro configurando sua história como um whodunit sofisticado que é apenas o verniz para o embelezamento de seu muito bem trabalhado triângulo amoroso que, por sua vez, reflete o panorama geopolítico do mundo à época e, diria, até hoje em dia em determinadas regiões. Sem dúvida é um romance presciente, mas, mais do que isso, é um romance que trata tudo com um debochado ar de falsa superioridade que consegue extrair um certo grau de humor ácido de um panorama que Greene já percebia como terrível e que nós só viríamos a enxergar o mesmo quase que totalmente em retrospecto. O Americano Tranquilo é uma leitura enganosamente “fácil” e “divertida”, o que só demonstra a capacidade do autor em usar sua ironia fina para tornar mastigável e palatável uma tragédia anunciada.
O Americano Tranquilo (The Quiet American – Reino Unido, 1955)
Autor: Graham Greene
Editora original: William Heinemann London
Data original de publicação: dezembro de 1955
Editora no Brasil: Biblioteca Azul (Globo Livros)
Data de publicação no Brasil: junho de 2016
Páginas: 251
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"— Hoje em dia, eles conseguem fazer muita coisa no
tratamento da poliomielite.
— Não me importo que ele fique aleijado, Fowler.
Contanto que viva. Eu de nada valeria, aleijado, mas ele
tem cérebro. Sabe o que eu estava fazendo, enquanto aqueles patifes cantavam? Estava rezando. Pensei que, se Deus
quisesse uma vida, podia levar a minha.
— Você crê em Deus, então?
— Gostaria de crer — respondeu Granger, passando
a mão inteira pelo rosto, como se lhe doesse a cabeça."
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"Marselhesa.
— Isso não parece muito histórico — comentei.
— Enquanto cantavam, ele estava lá no meio da
multidão. Parecia muito triste e, quando sorria, a gente
sabia que ele estava ainda mais triste do que quando estava
pensando nela. Chorei bastante. Minha irmã também.
— Sua irmã? Não acredito.
— Ela é muito sensível. Aquele homem horroroso,
Granger, estava lá. Estava embriagado e ria o tempo todo.
Mas não havia nada de engraçado. Era triste.
— Não o censuro. Ele tinha algo para comemorar. O
filho dele está fora de perigo. Soube-o hoje no
Continental. Eu também gosto das histórias que acabam
bem."
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engajado
en.ga.ja.doseparador fonéticaẽɡaˈʒadu
adjetivo
1. que se engajou
2. que foi aliciado para certa atividade
3. que foi contratado para certo serviço
4. que é empenhado na defesa de determinada causa, ideologia, etc.
nome masculino
1. pessoa contratada para certo serviço
2. pessoa que se alistou numa força militar
Particípio passado de engajar
engajado
particípio passado do verbo engajar
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Aprovação da reforma tributária reduz incertezas
Publicado em 18/12/2024 - 07:25 Luiz Carlos Azedo
Brasília, Congresso, Economia, Governo, Imposto, Política, Política
Muitos investidores ainda não acreditam que as medidas propostas sejam suficientes para conter o avanço da dívida pública no longo prazo
Num dia em que o dólar disparou mais uma vez, chegando a R$ 6,20, o que obrigou o Banco Central (BC) a fazer duas intervenções no mercado de câmbio, a Câmara dos Deputados concluiu a aprovação da reforma tributária e, assim, acalmou o mercado. Nesta terça-feira, foram US$ 3,29 bilhões vendidos em duas operações para frear a cotação da moeda norte-americana e desacelerar a desvalorização do real. Mesmo assim, o dólar fechou em alta de 0,02%, cotado a R$ 6,0956.
Entretanto, a notícia boa foi que a Câmara concluiu a votação da reforma tributária, aprovada por 324 votos a favor contra 123. Essa decisão reduz as incertezas econômicas, que pareciam uma tempestade perfeita, porque o Senado havia aumentado a carga tributária com novas isenções, e permanece o impasse na votação do pacote fiscal do governo, que ainda corre risco de desidratação.
Em dezembro, sempre há uma alta sazonal do dólar, por causa da remessa de lucros das empresas estrangeiras para o exterior, porém essa tendência foi anabolizada pelo comportamento do governo e do Congresso. A inflação acima da meta, o deficit além do previsto no arcabouço fiscal e o impasse para aprovação do pacote de cortes de gastos e da reforma tributária impactaram fortemente o mercado. O resto ficou por conta da especulação financeira mesmo.
O projeto aprovado nesta terça-feira define as regras para a cobrança dos três impostos sobre o consumo criados pela reforma tributária: IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e Imposto Seletivo. A CBS federal passará a ser cobrada em 2027 e o IBS, com a receita partilhada entre estados, DF e municípios, será cobrado de forma gradual a partir de 2029. Junto com o Imposto Seletivo — apelidado de “imposto do pecado” por ser direcionado a produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente —, a CBS e o IBS substituem cinco impostos: ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI.
Como os deputados retiraram as mudanças feitas pelo Senado, entre as quais a exclusão de refrigerantes do “imposto do pecado” e o desconto para serviços de saneamento, por exemplo, foi restabelecida a trava para impedir que a alíquota-geral do IBS e da CBS fique acima de 26,5%. Com as isenções do Senado, chegava a 28%. Em 2031, quando o governo federal e o Comitê Gestor do IBS (estados e municípios) avaliarem a transição do novo sistema tributário, essa trava será acionada.
Leia também: Câmara aprova regras da reforma tributária; texto vai para sanção de Lula
A arrecadação do período de transição (2026 a 2030) servirá de base para a alíquota-padrão que será cobrada a partir de 2033, quando todo o sistema estará implementado. Se essa alíquota superar 26,5%, o governo federal deverá enviar um projeto ao Congresso para adequar a tributação a esse patamar.
Pacote de gastos
A aprovação da reforma tributária, ao melhorar o ambiente institucional da economia e, consequentemente, a segurança jurídica, ajudou a conter a alta do dólar, mas é preciso também melhorar as expectativas do mercado com a aprovação dos cortes de gastos enviado pelo governo federal ao Congresso Nacional. Trata-se de uma economia prevista de R$ 70 bilhões nos próximos dois anos, e um total de R$ 375 bilhões até 2030.
Mesmo assim, o governo está sendo muito criticado, porque o pacote é considerado aquém das necessidades fiscais. Entretanto, com o impasse no pagamento das emendas parlamentares, o mercado mudou o foco das críticas do Executivo para o Congresso. Ruim com o pacote, pior sem ele, esse é o raciocínio. Conforme o arcabouço fiscal, o governo tem uma meta de zerar o deficit público pelos próximos dois anos — ou seja, gastar o que arrecadar em 2024 e 2025. Como não mexeu em gastos estruturais, as incertezas continuam.
Leia ainda: Casa Civil analisa MP que concede reajuste para servidores em janeiro
Previdência, benefícios reajustados pelo salário mínimo e os pisos de investimento em saúde e educação são assuntos que somente serão tratados no próximo ano. Por isso, muitos investidores ainda não acreditam que as medidas propostas sejam suficientes para conter o avanço da dívida pública no longo prazo. Resultado: o dólar sobe, impacta a inflação (combustível, alimentos, remédios etc.), o Banco Central (BC) eleva taxa de juros e o dólar dispara. Essa ciranda, para ser interrompida, precisa que o Congresso também faça a sua parte.
Nesta terça-feira, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que liderou a barganha com o governo para pagamento das emendas parlamentares de comissão (cujos autores não são revelados), sinalizou que pretende votar as medidas ainda nesta semana: “Não estou garantindo a aprovação nem rejeição. Nós vamos votar, estamos discutindo, conversando, dialogando, encontrando textos para votar, mas o calendário de votação é esse”, disse.
São duas conversas, uma é a discussão técnica sobre a eficácia das medidas propostas; a outra, a negociação de bastidor para liberação das emendas, que não respeitam plenamente as novas regras de transparência e rastreabilidade estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Nas entrelinhas: todas as colunas no Blog do Azedo
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engagé
ɑ̃ɡaʒe
adjetivo
1. empenhado, comprometido
2. ARQUITETURA (coluna) parcialmente engastado na parede
3. MILITAR alistado
4. preso, bloqueado
ancre engagée
âncora presa no fundo do mar
nome masculino
MILITAR recruta
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engagé
Passé do verbo engager
engagé
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contos de Grimm
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A Coruja, a Raposa e a Tempestade dos Impostos
Há muito tempo, no coração de um vale coberto de árvores frondosas, vivia uma comunidade de animais. A vida naquela vila havia se tornado insustentável, pois os tributos eram complicados e desiguais. Os grandes armazenavam riquezas, enquanto os pequenos sofriam com a escassez. A velha Coruja, que liderava com sabedoria, convocou uma assembleia para discutir uma reforma que prometia trazer ordem e justiça.
“Propomos simplificar os tributos em três impostos”, anunciou a Coruja. “Isso trará equilíbrio e aliviará o sofrimento de muitos.” A multidão murmurava, mas a Raposa, esperta e cética, aproximou-se do Rato. "Será mesmo que simplificar resolverá algo? Ou será apenas uma nova maneira de esconder os mesmos problemas?"
No dia seguinte, enquanto a Raposa perambulava pelo mercado improvisado da floresta, encontrou o Grilo filósofo, que a saudou com entusiasmo:
“— Bom dia, prezada senhora Raposa! Como vai? Como está? Como passa com as coisas tão caras?”
A Raposa, cheia de empáfia, o olhou da cabeça aos pés, indecisa se deveria responder ou apenas rir do comentário. Por fim, com um sorriso irônico, disse: “Eu passo como sempre passei, caro Grilo: calculando bem onde colocar minhas patas. E você, passa bem com as coisas tão baratas?”
O Grilo apenas sorriu e continuou seu caminho, enquanto a Raposa refletia sobre a pergunta. Apesar de sua esperteza, até ela sentia o impacto das dificuldades que pairavam sobre o vale.
Na assembleia, o Urso, sempre pragmático, tomou a palavra. “O sofrimento não aumenta com o número: um corpo pode conter todo o sofrimento que o mundo possa experimentar. Não importa se são poucos ou muitos prejudicados — precisamos agir agora.”
As palavras do Urso calaram os murmúrios por um momento. A Coruja, sentindo o peso da responsabilidade, olhou para o grupo. "Vocês estão certos, mas precisamos fazer o melhor com o que temos. A alternativa é deixar o caos continuar.”
A proposta foi aprovada, mas com a chegada do inverno, novos desafios emergiram. O vento frio, representando os efeitos da economia desestabilizada, continuava soprando com força.
Em um canto do vale, o Grilo filósofo observava os animais. Ele sabia que havia algo mais profundo por trás das reformas: a natureza da própria comunidade. Ele refletia: "Seria eu tão diferente de Pyle? — pensei. Precisaria também, para ver o sofrimento, meter o pé na sujeira da vida?"
Enquanto isso, na vila, a Raposa ria baixinho ao observar os resultados. “As regras mudaram, mas os espertos continuam a encontrar maneiras de se adaptar. Não me censurem por isso.”
No entanto, uma notícia trouxe um lampejo de alívio: o filhote do Urso, que estivera gravemente doente, finalmente se recuperara. A Coruja comentou, olhando para os céus: “— Não o censuro. Ele tinha algo para comemorar. O filho dele está fora de perigo. Soube-o hoje no riacho. Eu também gosto das histórias que acabam bem.”
Mas, ao longo das décadas, enquanto os ciclos de reformas e tempestades continuavam, a floresta aprendeu que a verdadeira mudança não estava apenas nas leis, mas no compromisso de cada um em ser engajado, empenhado no bem coletivo, e não apenas em seus interesses próprios.
Moral da história:
“Para aliviar o sofrimento, é preciso mais do que ações superficiais: é necessário compromisso profundo e coragem para enfrentar a sujeira da vida.”
70 anos se passaram desde o primeiro engajamento: na floresta, como no mundo, a justiça requer esforço constante.
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quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
General preso não faz democracia - Cristovam Buarque*
Correio Braziliense
A democracia tem razões para sentir otimismo com a prisão de um general golpista, mas deve entender que generais presos não fazem tropa democrática
Há uma parede na sede do Correio Braziliense onde estão as páginas mais criativas e expressivas já publicadas pelo jornal. Neste domingo, a primeira página com a palavra "Preso" acima da foto do general Braga Netto merece ir para esse panteão de manchetes. Em uma palavra, todo um discurso: "as instituições civis são capazes de prender um general quatro estrelas que conspirava contra a democracia". O discurso e a manchete seriam ainda mais fortes se tivessem colocado a foto do general fardado. Ao escolher a foto com traje civil, o Correio teve o cuidado de não expor as Forças Armadas. O mesmo cuidado os democratas devem ter ao comemorar o fato de um militar golpista estar preso, sabendo que um general preso não faz a democracia.
Para tanto, é preciso que a instituição militar, toda a tropa, e que a política, todos políticos, sejam comprometidos com a ética no comportamento e nas prioridades. A democracia tem razões para sentir otimismo com a prisão de um general golpista, mas deve entender que generais presos não fazem tropa democrática. É preciso promover nova mentalidade entre os militares; e que os políticos civis sejam comprometidos com a causa pública, sensíveis aos interesses da população e íntegros no exercício dos cargos. Sem isso, ameaçam a democracia apodrecendo-a por dentro.
Apesar do farto noticiário sobre o inusitado de um general golpista preso, nenhuma pesquisa apurou ainda qual a reação da tropa à prisão. Sabe-se que os comandos estão respeitando a decisão da justiça e o trabalho da polícia, mas não se sabe se a caserna está mais indignada com a postura dos golpistas querendo impedir a posse dos vitoriosos, e até com intenção de assassiná-los, ou se estão indignados com a incompetência para levar adiante o plano. O Ministério da Defesa não parece saber ou estaria escondendo se a tropa considera Braga Netto e sua turma como criminosos golpistas traidores da Constituição e da pátria ou se patriotas incompetentes para vencer uma batalha pelo futuro do país livre do que os militares consideram corruptos civis. Não há manifestação de repúdio da tropa aos golpistas, mas há descontentamento com a falta de respeito de Braga Netto aos colegas que ele teria chamado de covardes por serem legalistas.
Em quase meio século de democracia, nenhum dos presidentes enfrentou a questão militar no Brasil: adotar formação legalista, comportamento hierárquico e não apenas protocolar em relação ao poder civil eleito, consciência democrática, respeito às instituições. Nenhum presidente expôs aos militares de hoje o conhecimento pleno dos crimes nos 21 anos de ditadura, tortura, assassinatos, covas anônimas, censura; não tentou punir os culpados. Aceita-se a permanência de um sistema que põe as armas com poder moderador sobre as urnas, contra o que julgam incompetência, corrupção ou simplesmente ideias exóticas. Sobretudo, todos os oito presidentes civis se comportam assustados e temerosos diante do poder militar.
Os políticos democratas precisam entender que os golpes ocorrem mais pelo apodrecimento interno da democracia dos civis do que por reação golpista de militares. Lembrar que parte substancial da população apoiou o golpe em 1964 e que, em 2022, apenas um milhão de eleitores barrou o presidente golpista nas urnas. O eleitorado prefere a democracia, mas não está satisfeito com o Brasil construído nos últimos 40 anos: sente que diminuiu a penúria, mas a pobreza continua, a concentração de renda se mantém e a desigualdade se transformou em apartheid social; os privilégios e benefícios foram ampliados; a produtividade não aumentou; a economia não sai de uma renda média baixa; a corrupção se espalhou e ficou normal; a violência chegou ao nível de uma guerra civil; o número de analfabetos adultos não diminuiu; o número de crianças matriculadas aumentou, mas não cresceu a percentagem dos que concluem educação de base com qualidade; o presente pode até parecer melhor, mas os anos de democracia não estão acenando para um país eficiente, sem privilégios e sem corrupção, sem pobreza, com renda bem distribuída, com juventude esperançosa e motivada.
Feliz a democracia em que um juiz legalista tem poder para prender um general golpista, mas nenhum juiz empoderado ou general preso constrói a democracia; é preciso que os políticos civis sejam respeitados e usem o sistema democrático para abolir a corrupção no comportamento e nas prioridades, atendam aos sonhos da população, enfrentem a secular questão militar do Brasil, ao ponto que a ideia de golpe não faça mais parte do imaginário dos militares.
*Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
É preciso civilizar nossas Forças Armadas - Wilson Gomes
Folha de S. Paulo
Mentalidade militar parece não ter absorvido os valores e as regras do jogo da democracia
A prisão preventiva de um general de quatro estrelas, profundamente envolvido no planejamento, produção e execução de um golpe de Estado, é apenas mais um episódio no processo de destruição da imagem pública das Forças Armadas do país.
Curioso é que se há algo a que os militares costumam atribuir grande valor é precisamente à imagem da instituição. Não existe corporação militar que não considere um imperativo moral e uma responsabilidade de cada membro defender e preservar o nome, a honra e a reputação da Força à qual pertence.
Se, no atual ciclo político, as Forças Armadas chegaram a gozar de boa fama, impulsionadas pelo revisionismo histórico necessário para levar Bolsonaro ao poder na condição reivindicada de "militar", hoje sofrem um revés enorme. A instituição vê sua imagem desmoronar à medida que seus protagonistas se tornam alvos de investigações policiais, acusados de crimes gravíssimos contra a pátria e a Constituição que juraram defender. É tanto general, almirante e coronel a arrastar para a lama do golpismo mais vulgar a reputação da "família militar" que não há esforço de relações públicas capaz de produzir novamente um conceito elevado dos militares brasileiros, pelo menos em curto prazo.
Na verdade, a imagem dos militares brasileiros sempre foi negativa quando o assunto é governo e política. Essa má reputação se deve ao fato de que muitas vezes, na nossa relativamente curta história republicana, as Forças Armadas não se contiveram nos limites que lhes são reservados por constituições democráticas e avançaram para tomar o poder político por meio de tropas, tanques e fuzis.
E novamente se confirma a impressão de que nossas Forças Armadas cultivam uma mentalidade tão arcaica e regressiva sobre a própria identidade que mal se contêm nos limites de um modelo republicano de Estado. Trata-se de mentalidade certamente projetada para um regime político que não é liberal nem democrático. Não incorporaram do liberalismo a noção de uma sociedade de direitos e liberdades, de divisão de Poderes, de Estado de Direito. Tampouco absorveram da democracia a ideia de soberania popular ou respeito à vontade da maioria.
As Forças Armadas parecem estar sempre se debatendo contra as paredes da democracia liberal, tentando achar uma brecha, arrebentar uma porta ou escapar por uma janela que algum esperto, como Bolsonaro, faz questão de deixar aberta. A história nos ensina que, assim que vislumbram uma oportunidade, a ideia que logo lhes ocorre é arrebentar a democracia e tomar o poder na marra.
Meu pai, nascido nos anos 1920, viveu sob duas ditaduras. Eu, nascido nos anos 1960, passei minhas duas primeiras décadas sob uma ditadura. Agora descubro que, por muito pouco, não apenas empataria minha disputa privada com meu velho como também veria meu filho, nascido no século 21, manter a tradição familiar de viver sob autocratas.
Isso é espantoso. Não há registro de um país civilizado moderno onde militares tenham sido capazes de proporcionar ditaduras a três gerações consecutivas da mesma família.
Só nos resta supor que alguma coisa deve estar muito fora da ordem republicana nas Forças Armadas brasileiras. Em que país de democracia consolidada governos civis precisam temer que generais e almirantes tenham o atrevimento de tomar o poder político na bala ou na ameaça? Isso é típico de republiquetas. No Brasil, contudo, o costume dita que se espere um golpe ou tentativa de golpe, sempre com participação militar, ao menos a cada geração. E isso só é possível porque a mentalidade militar brasileira não parece ter absorvido os valores, princípios e regras do jogo da democracia liberal. Não sabe o seu lugar à mesa republicana.
Afinal, não pode ser mera coincidência essa obsessão mal contida por golpes e ditaduras. Uma mentalidade assim tão persistente há de ter sido cultivada e ensinada; precisa estar incrustada no DNA institucional, ser transmitida na doutrinação oferecida aos seus membros, integrar o código de honra das corporações.
Diante disso, temos apenas duas alternativas: ou os militares brasileiros resolvem suas incompatibilidades com a democracia liberal, dobrando-se a ela, ou os filhos dos nossos filhos terão que testemunhar mais uma tentativa de golpe em dez ou 20 anos. Vimos aonde nos levou o esforço do bolsonarismo para militarizar o governo; a lição apreendida, porém, é que a nossa democracia nunca será realmente estável se não trocarmos a militarização da vida pública pela civilização das nossas Forças Armadas.
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