domingo, 29 de agosto de 2021

O ingênuo Dagoberto

*** (Seu Dagoberto Piedade) Diante da porta da loja pararam. Seu Dagoberto carregava o menorzinho. Silvana a maleta das fraldas. Nharinha segurava na mão do Polidoro que segurava na mão do Gaudêncio. Quim tomava conta do pacote de balas. Lázaro Salém veio correndo do balcão e obrigou a família a entrar. Seu Dagoberto queria um paletó de alpaca. A mulher queria um corte de cassa verde ou então cor -de -rosa. A filha queria uma bolsinha de couro com espelho e lata para o pó de arroz. O menino de dez anos queria uma bengalinha. O de oito e meio queria um chapéu bem vermelho. O de sete queria tudo. É só escolher. O menorzinho queria mamar. – Leite não tem. Não há nada como uma piada na hora para por toda a gente à vontade. Principalmente de um negociante como Lázaro Salém. Bateu nas bochechas do Gaudêncio. Deu uma bola de celuloide para o Quim. Perguntou para Silvana onde arranjou aqueles dentes de ouro tão benfeitos. Estava se vendo que era ouro de dezoito quilates. Falou. Falou. Não deixou os outros falarem. Jurou por Deus. Entre marido e mulher houve um entendimento mudo. E a família saiu cheinha de embrulhos. Em direção ao Jardim da Luz. O pavão estava só à espera dos visitantes para abrir a cauda. O veadinho quase ficou com a mão do Gaudêncio. Os macacos exibiram seus melhores exercícios acrobáticos. Quando araponga inventa de abrir o bico só tapando o ouvido mesmo. Depois o fotógrafo espanhol se aproximou de chapéu na mão. Seu Dagoberto concordou logo. Porém Silvana relutou. Tinha vergonha. Diante de tanta gente. Só se fosse mais longe. O espanhol demonstrou que o melhor lugar era ali mesmo ao lado da herma53 de Garibaldi general italiano muito amigo do Brasil. Já falecido não há dúvida. Acabou -se. Garibaldi sairia também no retrato. Nem se discute. A família deixou os pacotes no banco e se perfilou diante da objetiva. Parecia uma escada. O fotógrafo não gostou da posição. Colocou os pais nas pontas. Cinco passos atrás. Estudou o efeito. Passou os pais para o meio. Cinco passos atrás. Ótimo. Enfiou a cabeça debaixo do pano. Magnífico. Ninguém se mexia. Atenção. Aí Juju derrubou a chupeta de bola e soltou o primeiro berro no ouvido paterno. Foi para os braços da mãe. Soltou o segundo. O fotógrafo quis acalmá -lo com gracinhas. Soltou o terceiro. Polidoro mostrou a bengalinha. Soltou o quarto. O grupo se desfez. Quinze minutos depois estava firme de novo às ordens do artista. O artista solicitou a gentileza de um sorriso artístico. Silvana pôs a mão na boca e principiou a rir sincopado. O artista teve a paciência de esperar uns instantes. Pronto. Cravaram os olhos na objetiva. O fotógrafo pediu o sorriso. – O Juju também? Polidoro (o inteligente da família) voou longe com o tabefe nas ventas. Depois da sexta tentativa o retrato saiu tremido e o espanhol cobrou doze mil -réis por meia dúzia. A família se aboletou no primeiro banco do caradura.54 Mas antes o Quim brigou com o Gaudêncio porque ele é que queria ir sentado. Com o beliscão maternal se conformou e ficou em pé diante do pai. O bonde partiu. Polidoro quis passar para a ponta para pagar as passagens. Mas olhou para o Quim ainda com as pestanas gotejando. Desistiu da ideia. E foi seu Dagoberto mesmo quem pagou. O bicho saiu de baixo do banco. Ficou uns segundos parado na beirada entre as pernas do sujeito que ia lendo ao lado do seu Dagoberto. Quim viu o bicho mas ficou quieto. E o bicho subiu no joelho esquerdo do homem (o homem lendo, Quim espiando). Foi subindo pela perna. Alcançou a barriga. Foi subindo. Tinha um modo de andar engraçado. Foi subindo. Alcançou a manga do paletó. Parou. Levantou as asas. Não voou. Continuou a escalada. Quim deu uma cotovelada no estomago do pai e mostrou o bicho com os olhos. Seu Dagoberto afastou- -se um pouquinho, bateu no braço de Silvana, mostrou o bicho com a cabeça. Silvana esticou o pescoço (o bicho já estava no ombro), achou graça, falou baixinho no ouvido do Gaudêncio. Gaudêncio deixou o colo da Nharinha, ficou em pé, custou a encontrar o bicho, encontrou, puxou o Polidoro pelo braço, apontou com o dedo. Polidoro viu o bicho bem em cima da gola do paletó do homem, não quis mais saber de ficar sentado. Então Nharinha fez também um esforço e deu com o bicho. Virou o rosto de outro lado e soltou umas risadinhas nervosas. – Que é que você acha? Aviso? – O homem é capaz de ficar zangado. – É mesmo. Nem fale. Na curva da gola o bicho parou outra vez. Nesse instante o Gaudêncio deu um berro: – É aeroplano! Todos abaixaram a cabeça para espiar o céu. O ronco passou. Então Quim falou assustado: – Desapareceu! Olharam: tinha desaparecido. – Entrou no homem, papai! Seu Dagoberto assombrado examinou a cara do homem. Será? Impossível. Começou a ficar inquieto. Fez o Quim virar de todos os lados. Não. No Quim não estava. – Olhe em mim. Não. Nele também não estava. – Veja no Juju, Silvana. Não. No Juju também não estava. Ué. Mas será possível? O Quim avisou: – Apareceu! Olharam: apareceu no colarinho do homem. Passeou pelo colarinho. Parou. Êta. Êta. Passou para o pescoço. O homem deu um tapa ligeiro. Todos sorriram. Tinham chegado no Parque Antártica. Polidoro não queria descer do balanço. Não queria por bem. Desceu por mal. Em torno da roda -gigante os águias estacionavam com os olhos nas pernas das moças que giravam. Famílias de roupa branca esmagavam o pedregulho dos caminhos. Nharinha de vez em quando dava uma grelada55 para o moço de lenço sulfurino com um cravo na mão. Juju começou a implicar com as valsas vienenses da banda. A galinha do caramanchão ficou com os duzentos réis e não pôs ovo nenhum. Foram tomar gasosa no restaurante. Seu Dagoberto foi roubado no troco. O calor punha lenços no pescoço de portugueses com o elástico da palheta preso na lapela florida. Quim perdeu- -se no mundão que vinha do campo de futebol. O moço de lenço sulfurino encostou -se em Nharinha. Ela ficou escarlate que nem o cravo que escondeu dentro da bolsa. No bonde Silvana disfarçadamente livrou os pés dos sapatos de pelica preta envernizada com tiras verdes atravessadas. Depois do jantar (mal servido) seu Dagoberto saiu do Grande Hotel e Pensão do Sol (Familiar) palitando os dentes caninos. Foi espairecer na Estação da Luz. Assistiu à chegada de dois três de Santos. Acendeu um goiano. Atravessou a Rua José Paulino. Parou na esquina da Avenida Tiradentes. Sapeando o movimento. Mulatas riam com os soldados de folga. Dois homens bem trajados e simpáticos lhe pediram fogo. Dagoberto deu. *** – Muito gratos pela sua gentileza. – Não tem de quê. – Está fazendo um calorzinho danado, não acha? – É. Mas esta noite chove na certa. Seu Dagoberto ficou sabendo que os homens eram de Itapira. Tinham chegado naquele mesmo dia às onze horas. E deviam voltar logo amanhã cedo e sem falta. Uma pena que ficassem tão pouco tempo. Seu Dagoberto com muito gosto lhes mostraria as belezas da cidade. Conversando desceram lentamente a Avenida Tiradentes. Na esquina da Cadeia Pública seu Dagoberto trocou três camarões de duzentos e mais um relógio com uma corrente e três medalhinhas (duas de ouro) por oito contos de réis. E voltou para o Grande Hotel e Pensão do Sol (Familiar) que nem uma bala. (Napoleão da Natividade filho tinha o hábito feio de coçar a barriga quando se afundava na rede de pijama e chinelo sem meia. A mulher – a segunda, que a primeira morrera de uma moléstia no fígado – preferia a cadeira de balanço. – Você me vê os óculos por favor? O melhor deste jornal são os títulos. A gente sabe logo do que se trata. FOI BUSCAR LÃ…, QUEM COM FERRO FERE…, AMOR E MORTE. Aquela miséria de sempre. Aquela miséria de sempre. Aquela miséria de… MAIS UM! Mas então os trouxas não acabam mesmo. Depois que ficou ciente da abertura do inquérito a mulher concordou: – Parece impossível! – Nada é impossível. A dissertação sobre a bobice humana foi feita com os óculos na testa.) A indignação de Silvana não conheceu limites. – Seu bocó! Devia ter contado o dinheiro na frente dos homens! Seu besta! A filharada não dava um pio. Nem seu Dagoberto. – Não merece a mulher que tem! Seu fivela! Seu Dagoberto custou mas foi perdendo a paciência e tirando o paletó. – Seu burro! Seu caipira! Aí seu Dagoberto não aguentou mais. Avançou para a mulher mordendo os bigodes. Nharinha aos gritos se pôs entre os dois de braços abertos. Os meninos correram para o vão da janela. – Venha, seu pindoba!56 Venha que eu não tenho medo! O pindoba se conteve para evitar escândalos. Vestiu o paletó. Fincou o chapéu na testa. Roncou feio. Só vendo o olhar. Bateu a porta com toda a força. Tornou a abrir a porta. Pegou o bengalão que estava em cima da cama. Saiu sem fechar a porta. Tarde da noite voltou contente da vida. Contando uma história muito complicada de mulheres e de um tal Claudionor que sustentava a família. Queria beijar Silvana no cangote cheiroso. Chamando -a de pedaço. E gritava: – Também não quero saber mais dela! Silvana deu um tranco nele. Ele foi e caiu atravessado na cama. Caiu e ferrou no sono. Quando chegou o dinheiro para a conta do hotel e a viagem de volta Silvana pegou uma nota de cinco mil -réis, entregou por muito favor ao marido e escondeu o resto. ***
*** IMDb Chain Lightning (1927) O Faísca (1927) Jack Baston, Diane Ellis, and Buck Jones in Chain Lightning (1927) *** Depois chamou a Nharinha para ajudar a aprontar as malas. À voz de aprontar as malas Nharinha rompeu numa choradeira incrível. Já estava se acostumando com a vida da cidade. Frisara os cabelos. Arranjara um andarzinho todo rebolado. Vivia passando a língua nos lábios. Comprara o último retrato de Buck Jones.57 E alimentava uma paixão exaltada pelo turco da Rua Brigadeiro Tobias n.24 -D sobrado. Só porque o turco usava costeletas. Um perigo em suma. Mas a mãe pôs as mãos nas cadeiras e fungou forte. Quando Silvana punha as mãos nas cadeiras e fungava forte a família já ficava avisada: era inútil qualquer resistência. Inútil e perigosa. Nharinha perdeu logo a vontade de chorar. Em dois tempos as malas de papel -couro e o baú cor -de -rosa com passarinhos voando de raminho no bico ficaram prontos. A família desceu. Silvana pagou a conta. A família já estava na porta da rua quando seu Dagoberto largou o baú no chão e deu de procurar qualquer coisa apalpando- -se todo. A família escancarou os olhos para ele interrogativamente. Seu Dagoberto cada vez mais aflito acelerava as apalpadelas. De repente abriu a boca e disparou pela escada acima. Voltou todo pimpão com um bolo de recortes de jornal e bilhetes de loteria na mão. Silvana compreendeu. Ficou verde de raiva. Ia se dar qualquer desgraça. Porém ficou quieta. Fungou só um instantinho. Depois intimou: – Vamos! Aí o proprietário do hotel perguntou limpando as unhas para onde seguia a família. Aí Silvana não se conteve, desviou o nariz da mão do Juju e respondeu bem alto para toda a gente ouvir: – Pro inferno, seu Roque! Aí seu Roque fez que sim com a cabeça. *** *** https://professordiegodelpasso.files.wordpress.com/2016/05/ancc3a2ntara-machado-contos-paulistanos1.pdf *** *** ***
*** Caminhadas Urbanas Avenida Tiradentes. De cima da passarela, uma nostalgia quase inevitável pelo passado que não vivemos. – Caminhadas Urbanas *** Avenida Tiradentes. De cima da passarela, uma nostalgia quase inevitável pelo passado que não vivemos. Mauro Calliari | 14/11/2016 ***
*** Avenida Tiradentes. Antes e depois. Fotos: Guilherme Gaensly/M.Calliari *** Avenida Tiradentes. Antes e depois. Fotos: Guilherme Gaensly/M.Calliari *** O passado está na moda. Há uma profusão de sites, arquivos, revistas e iniciativas para lembrar das mudanças da cidade e da história de São Paulo. Outro dia, estava caminhando com um amigo. Depois do Bom Retiro, cruzamos o Parque da Luz e resolvemos ir ao Museu de Arte Sacra, ali, do outro lado da Avenida Tiradentes. no lindo prédio do Mosteiro da Luz. A rampa da passarela sobe bastante, em zigue zague. Lá em cima, o choque. O mar de carros invadiu a visão, o olfato, a audição, talvez até o paladar. A cena automobilística me fez lembrar de uma foto antiga da avenida Tiradentes que eu tinha visto em alguns blogs. É do fotógrafo suíço Guilherme Gaensly, que ficou famoso pelas fotos das paisagens urbanas que fez de Salvador e São Paulo do finzinho do século XIX até 1925 . Ela mostra a av. Tiradentes como um bulevar, com fileiras de árvores, limpo, imaculado. De outro ângulo, dá para ver também o mosteiro, imponente, cercado de árvores e não de carros e grades como agora. Seminário Episcopal. Foto: Guilherme Gaensly
*** Seminário Episcopal. Foto: Guilherme Gaensly *** A nostalgia pelo passado é um culto perigoso. Nunca as coisas eram tão boas quanto achamos que eram. A memória prega peças, selecionamos fatos bons e deixamos de lado coisas ruins. É fácil sentir nostalgia de um tempo em que éramos jovens e não tínhamos dor nas costas. A visão da cidade também corre esse risco. Diante de fotos lindamente enquadradas, uma paisagem limpinha, esquecemos de injustiças e segregações de outros tempos que nem chegamos a viver. Mesmo assim, conhecer o passado é essencial para entender as contradições da cidade hoje. Diante desses pensamentos sobre o passado, lembrei-me dos bons blogs de pessoas e grupos que se dedicam a lembrar a história de São Paulo. Há o São Paulo antiga, com boas histórias de lugares e pessoas. Uma página no facebook mantida pelos usuários tem mais de 70 mil pessoas conversando sobre memórias e contando histórias: Memórias Paulistanas, Outro blog interessantíssimo é Quando a cidade era mais gentil, do professor de políticas públicas Martin Jayo, que faz pesquisas minuciosas e produz textos saborosos sobre as transformações da cidade. Outro site bacana é o Sampa histórica, de onde puxei essas duas imagens. Vários museus mantém páginas com imagens antigas, o acervo do IMS é maravilhoso e os acervos da Folha e do Estado são muito ricos e interessantes. Há muitos outros sites, claro; a cidade é rica em lembranças e em mudanças. A profusão de sites e iniciativas para conhecê-las mostra que estamos todos tentando encontrar nosso papel nessa história. Avenida Tiradentes. Foto Guilherme Gaensly
*** Avenida Tiradentes. Foto Guilherme Gaensly *** *** http://caminhadasurbanas.com.br/avenida-tiradentes-de-cima-da-passarela-uma-nostalgia-quase-inevitavel-pelo-passado-que-nao-vivemos/ *** *** *** Herdeiros do Futuro (part. Leandro e Leonardo) Toquinho ***
*** *** Ouvir "Herdeiros do Futur…" A vida é uma grande Amiga da gente Nos dá tudo de graça Pra viver Sol e céu, luz e ar Rios e fontes, terra e mar Somos os herdeiros do futuro E pra esse futuro ser feliz Vamos ter que cuidar Bem desse país Vamos ter que cuidar Bem desse país Será que no futuro Haverá flores? Será que os peixes Vão estar no mar? Será que os arco-íris Terão cores? E os passarinhos Vão poder voar? Será que a terra Vai seguir nos dando O fruto, a folha O caule e a raiz? Será que a vida Acaba encontrando Um jeito bom Da gente ser feliz? Vamos ter que cuidar Bem desse país Vamos ter que cuidar Bem desse país Será que no futuro Haverá flores? Será que os peixes Vão estar no mar? Será que os arco-íris Terão cores? E os passarinhos Vão poder voar? Será que a terra Vai seguir nos dando O fruto, a folha O caule e a raiz? Será que a vida Acaba encontrando Um jeito bom Da gente ser feliz? Vamos ter que cuidar Bem desse país Vamos ter que cuidar Bem desse país Composição: Elifas Andreatto / Toquinho. *** *** https://www.letras.mus.br/toquinho/87255/#radio:djavan

Nenhum comentário:

Postar um comentário