domingo, 13 de maio de 2018

"A culpada é inocente."


Abolição da Escravatura

Atualizada em 21 de maio de 2018


“Coiote brasileiro cobra US$ 12 mil para levar imigrantes das Bahamas aos EUA” Folha

Dois brasileiros são presos após resgate de imigrantes de barco à deriva
Suspeita é que eles estejam envolvidos em esquema de imigração ilegal. Embarcação com 25 africanos foi resgatado no Maranhão no sábado.




Por G1 MA, São Luís
20/05/2018 19h46  Atualizado há 1 hora
PF prende dois brasileiros por imigração ilegal após encontrá-los com africanos em barco

A Polícia Federal prendeu os dois brasileiros que estavam na embarcação encontrada à deriva com 25 estrangeiros na costa brasileira no sábado (19). A suspeita é que eles estejam envolvidos em um esquema de imigração ilegal.

"A ideia era a entrada ilegal dessas pessoas em território nacional para finalidades diversas. Na gíria policial chamamos as pessoas que fazem essa entrada ilegal de coiotes", afirmou o delegado delegado Luís André Lima Almeida, chefe da delegacia de Imigração da Polícia Federal no Maranhão.

O barco estava à deriva havia 35 dias, após o mastro quebrar e o motor pifar. 

O grupo foi resgatado próximo ao município de São José de Ribamar, na Região Metropolitana de São Luís, após receberem auxílio de pescadores.

Foram encontrados estrangeiros vindos do Senegal, Nigéria, Guiné, Serra Leoa e Cabo Verde, além dos dois brasileiros, que foram detidos e encaminhado para o centro de triagem do presídio de Pedrinhas, em São Luís.

Luis Andre Lima Almeida - delegado Polícia Federal (Foto: Reprodução/TV Mirante)

Segundo o delegado, os brasileiros devem responder por promoção de imigração ilegal, que tem pena prevista de dois a cinco anos de prisão, podendo aumentar dependendo das condições do transporte.

Às autoridades, os estrangeiros resgatados disseram ter pago ao brasileiros para chegar ao Brasil, e que foram transportados em condições degradantes. A embarcação seguia para Natal e, de lá, partiria possivelmente em direção a São Paulo ou Rio de Janeiro, segundo a PF.

Para o delegado, o caso é inédito pelo número de pessoas envolvidas e será o primeiro no Maranhão. "Temos outras modalidades de pessoas que entram no país de forma clandestina, mas não dessa maneira. Além disso, não há notícias recentes que isso tenha ocorrido em outros locais do Brasil", afirma.


 Embarcação com imigrantes do Senegal, Nigéria e Guiana foi resgatada à deriva na Baia de São Marcos no Maranhão. (Foto: Divulgação/Governo do Maranhão)
Apoio
Ao chegar ao cais, os imigrantes estavam com quadro de desidratação. Eles receberam atendimento médico, refeições e apoio psicológico e foram encaminhados para o Ginásio Costa Rodrigues, em São Luís, onde receberão apoio da Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop) do governo do Maranhão.
Segundo o delegado da PF, ainda não foi definido qual será o destino dos imigrantes. Uma possibilidade é que eles sejam enviados de volta aos países de origem. Outra é a concessão de refúgio.


Barco à deriva com imigrantes foi encontrado no Maranhão (Foto: Roberta Jaworski/G1)











Estive envolvido na campanha da Abolição e durante dez anos procurei extrair de tudo, da história, da ciência, da religião, da vida, um filtro que seduzisse a dinastia; vi os escravos em todas as condições imagináveis; mil vezes li a Cabana do Pai Tomás, no original da dor vivida e sangrando; no entanto a escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava. (Nabuco Minha Formação).



PAI CONTRA MÃE

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por: NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística Universidade Federal de Santa Catarina

Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para .

A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-deflandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

Cândido Neves, -- em família, Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.


Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.

Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.

O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi-- para lembrar o primeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.

--Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. --Não, defunto não; mas é que... Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.

--Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.

--Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.

A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço.

Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo.

Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.

--Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.

A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.

--Vocês verão a triste vida, suspirava ela. --Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara. --Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco... --Certa como? --Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?

Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer. --A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... --Bem sei, mas somos três. -- Seremos quatro. --Não é a mesma cousa. -- Que quer então que eu faça, além do que faço? -- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém. -- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.

Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.

Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.

Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.

Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.

--É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.

Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.

A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.

--Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!

Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. -- Titia não fala por mal, Candinho. --Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...

Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor,-- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.

--Quem é? perguntou o marido. --Sou eu.

Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.

--Não é preciso... --Faça favor

O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.

--Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.

Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.

A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.

Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.

Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.

Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.

Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. --Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.

--Mas...

Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. --Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.

Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.

--Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! -- Siga! repetiu Cândido Neves. --Me solte! --Não quero demoras; siga!

Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes,--cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes.

--Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.

Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.

--Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. -- É ela mesma. --Meu senhor! --Anda, entra...

Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta milréis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou. O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre.

Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.

--Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.



EMBARGOS CULTURAIS

Rui Barbosa e a polêmica queima
dos arquivos da escravidão


13 de setembro de 2015, 8h12
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Trato hoje de uma reminiscência sinistra. Há uma tradição historiográfica que remonta a Nina Rodrigues, que responsabiliza Rui Barbosa por uma ordem que teria como resultado a queima dos documentos relativos à escravidão, em poder de repartições públicas submetidas à autoridade do ministério da Fazenda, logo a após a proclamação da República e, também, da abolição da escravidão.

Rui foi ministro da Fazenda ao longo do governo provisório de Deodoro da Fonseca, isto é, de 1889 a 1891. É de seu tempo a crise financeira do encilhamento, bolha inflacionária que marcou o início de nossa era republicana. A ordem para a destruição de documentos da escravidão teria sido dada por Rui, na qualidade e autoridade de ministro, em despacho datado de 14 de dezembro de 1890, e cumprido por intermédio de circular, datada de 13 de maio de 1891. À época da circular Rui já não era mais o chefe da pasta da Fazenda; o executor da ordem fora seu sucessor, Tristão de Alencar Araripe.

Esse assunto, a queima dos arquivos, foi esgotado em estudo de Américo Jacobina Lacombe[1], que argumentou em favor da memória do advogado, jornalista e político baiano. Gilberto Freyre, ao que consta, também teria imputado a Rui a responsabilidade pela queima desses documentos, cuja destruição teria desprezado a memória nacional. Porém, há algo mais em jogo nesse enigma de nossa historiografia. A queima dos arquivos da escravidão, trata-se, na sempre feliz expressão de Lacombe, de uma pedra de escândalo em nossa história cultural[2].

A quais documentos se refere? Eram livros de matrícula, de controle aduaneiro e de recolhimento de tributos, que se encontravam nas repartições do ministério da Fazenda. Qual a importância desses documentos? Eram “comprovantes de natureza fiscal que pudessem ser utilizados pelos ex-senhores de escravos para pleitear a indenização junto ao governo da República”[3]. Havia um grupo de escravocratas, que se auto-identificava como o grupo dos indenezistas, e que pretendia receber do governo republicano uma indenização pela perda dos escravos, e das respectivas rendas, hipotecas e garantias, cuja causa fora a abolição dessa instituição hedionda e execrável.

Não se pode acusar Rui de alguma conivência com esse grupo. Quando ministro da fazenda Rui negou pedido de indenização, em passagem memorável de sua biografia. Conta-se que um grupo de escravocratas indenezistas teria requerido subvenção do governo para um banco encarregado de indenizar ex-proprietários de escravos e seus herdeiros “dos prejuízos causados pela lei de 13 de maio de 1888”[4]. A resposta de Rui fora seca, direta e feliz: “mais justo seria e melhor se consultaria o sentimento nacional se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos não onerando o tesouro”; a resposta é de 11 de novembro de 1890, e valeu a Rui um diploma emblemático oferecido pela Confederação Abolicionista, que ainda funcionava[5].

A queima dos arquivos, nessa perspectiva, ainda que à época supostamente justificada pela necessidade de apagarmos os resquícios de nódoa terrível de nossa história, teve como causa uma justificativa instrumental: privar os escravocratas da instrução necessária de processos indenizatórios. Rui teria como objetivo preservar ao Tesouro, minar uma litigância que se avizinhava, bem como (talvez) colher elogios por atitude que à época era qualificada como liberal e humanitária. Simbolismo e gestos libertários estavam em voga, justamente por que nada fazíamos para resolver efetivamente o problema da escravidão proscrita, isto é, educando, protegendo, qualificando, albergando e libertando de fato (e não apenas de direito) o beneficiário da Lei Áurea.
            Rui é criticado por ter ordenado a destruição de documentos preciosos. Nesse sentido, Rui diminuiu nossas possibilidades de contato com uma realidade histórica que nos explica. Por outro lado, sua ordem também é justificada pelo contexto no qual vivia, quando a ameaça reacionária era constante. Com o benefício do retrospecto, o culpamos por nos privar de documentação histórica irrecuperável. Porém, esse dedo em riste não leva em conta o tempo no qual Rui viveu, seus propósitos, e nem mesmo sua trajetória em favor do abolicionismo. E se o culpamos pela destruição de documentos cuja falta de preservação nos afeta, fazemos de documentos fins em si mesmos: não estaríamos pensando e escrevendo a história.


[1] Lacombe, Américo Jacobina, Silva, Eduardo e Barbosa, Francisco de Assis, Rui Barbosa e a queima dos arquivos, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1988. As informações apresentadas no presente ensaio foram colhidas nessa obra, para onde se dirige o leitor interessado no assunto.
[2] Cf. Lacombe, Américo Jacobina, cit., p. 33.
[3] Cf. Francisco de Assis Barbosa in Lacombe, Américo Jacobina, Silva, Eduardo e Barbosa, Francisco de Assis, cit. p. 11.
[4] Cf. Lacombe, Américo Jacobina, cit., p. 28.
[5] Cf. Lacombe, Américo Jacobina, cit., loc. cit.



13 de maio e o mundo

Segunda-feira, 21 de maio de 2018


José de Souza Martins: O 13 de Maio e nós
Eu &Fim de Semana | Valor Econômico

Nossa memória coletiva só acorda nos aniversários de números redondos. As outras datas são as do esquecimento. Neste ano, o 13 de maio nos lembra que a Lei Áurea foi assinada há 130 anos. Por ela, para alguns, teve fim a escravidão no Brasil; para outros, a data que merece respeito é a do aniversário da morte de Zumbi, senhor do quilombo de Palmares, em Alagoas. Zumbi deu sentido a um anseio de liberdade de alguns e para alguns, mas não de todos nem para todos. E tampouco a lei da princesa Isabel quis ir tão longe.

Os cem anos de resistência dos quilombolas palmarinos, no século XVII, não foram uma antecipação dos ideais de liberdade, que só teriam sentido na Revolução Francesa. Na prática, a lei de 13 de maio de 1888, se não libertou de fato e plenamente os brasileiros ainda sob sujeição, fossem eles negros ou pardos, africanos ou indígenas, tornou a escravidão ilegal. Abriu, data venia, uma larga brecha jurídica para um campo de luta pela liberdade que usamos mal e compreendemos pior.

Quando se fala em escravidão, a imagem que logo vem à cabeça de quase todos nós é a do negro preso ao tronco ou amarrado ao pelourinho recebendo as chibatadas de castigos desumanos. O que é verdade, mas não é a verdade inteira, pois o escravo era capital imobilizado em sua pessoa, não era tratado como animal para apanhar, mas animal a ser cuidado para trabalhar e dar lucro.

A escravidão foi uma realidade complexa que, sociológica e politicamente, escravizou tanto os escravos quanto seus senhores, como nos lembrou Joaquim Nabuco. As pessoas se socializam reciprocamente, quem é mandado e quem manda, quem apanha e quem bate. A escravidão brutalizou o negro, mas brutalizou, também, o seu senhor. Uma dificuldade para superar, de fato, as sequelas da escravidão após o 13 de Maio, não foi jurídica, foi social e psicológica. A lei dizia que o negro era livre, mas a personalidade e a consciência dos antigos senhores, pela escravidão aleijadas, não lhes permitiam compreender e reconhecer nas relações pessoais o que fora determinado no plano jurídico. Até hoje muitos ainda não sabem qual é a diferença entre ser juridicamente livre e ser socialmente subjugado.

Tudo se complica porque tivemos, pelo menos, duas escravidões: a do índio administrado, durante muito tempo chamado de pardo ou "negro da terra" (que são hoje a maioria do povo brasileiro, esquecidos, abandonados e humilhados), e a do negro africano ou de origem africana, chamado simplesmente de escravo ou negro (sem contar que temos ainda a terceira escravidão, a da peonagem, que inclui muitos brancos).

Cada um desses grupos étnicos tinha suas enormes diferenças culturais e linguísticas internas. Ambos também envolvidos na captura e venda de seus inimigos como escravos, tanto aqui quanto na África. A escravidão era uma instituição presente tanto nas diferentes sociedades africanas quanto em nossas diferentes sociedades indígenas. Nem sempre escravidão para o trabalho. Quando os europeus chegaram à África e descobriram a mina de ouro da escravização dos nativos, descobriram uma escravidão que já existia, há muito praticada pelos árabes com a cumplicidade dos próprios nativos, que, por meio dela davam curso aos seus conflitos intertribais. Com o índio aconteceu a mesma coisa.

Quando, designado pelo secretário-geral, me tornei membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, em Genebra, à qual estive vinculado durante 12 anos, o primeiro caso que me tocou examinar foi o de uma denúncia de captura e escravização de pigmeus de Camarões pelos bantus do Sudão, a mesma nação de origem do nosso Zumbi dos Palmares. O último caso foi o de uma jovem do Níger, a quinta esposa de um muçulmano que, pelas regras de sua religião, só podia ter quatro esposas, sendo a quinta reconhecidamente escrava.

Há indícios muito fortes de um conformismo histórico, muito arraigado na estrutura de personalidade das vítimas do cativeiro, de superação difícil, que conspira todo o tempo contra os justos anseios de liberdade dos que a estimam e dela carecem, sejam negros, pardos ou brancos.

Sem Zumbi e sem Palmares e os muitos quilombos que houve em todo o Brasil, mesmo no território da cidade de São Paulo, nos séculos XVIII e XIX, atacados por dura repressão, a autoestima do negro e das vítimas da escravidão ficaria reduzida a melancólica e pouco verdadeira bondade do branco, ainda que haja, como tem havido, um número imenso de não negros que se sentem feridos por qualquer tipo de escravidão. Do mesmo modo, sem a Lei Áurea e a mediação das instituições, a liberdade advinda da resistência do negro não teria qualquer viabilidade.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).




A culpada é inocente


Conversa com Bial com Jô Soares Golpe de 64 Mário Schenberg

Exército diz que destruiu papéis, mas não prova

Josias de Souza 11/05/2018 15:



O Exército ligou o piloto automático ao reagir à revelação contida em documento secreto da CIA sobre a política de execuções sumárias da ditadura militar brasileira. Divulgado no site do Departamento de Estados dos Estados Unidos, o texto sustenta que o ex-presidente Ernesto Geisel (1974-1979) avalizou a manutenção da prática de eliminar os adversários do regime. “Os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados, foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época”, informou o Exército, em nota ecoada pelo Ministério da Defesa.

Repare que o Exército não nega o teor da revelação. Limita-se a sustentar que está impossibilitado de se manifestar sobre o passado, pois o papelório da época virou cinzas. Não é a primeira vez que a tática é empregada. Não será a última. Mas documentos secretos do próprio Exército revelam que a alegação não fica em pé. Falta uma prova da destruição dos documentos.

Normas internas de contra-espionagem do Exército estabelecem regras estritas para a destruição de papéis. Vigoram desde o início da década de 70. Constam de um manual que, atualizado ao longo dos anos, mantém a mesma política quanto aos arquivos secretos.

Obtive cópia desse manual, em sua versão de 1994. Traz na capa a seguinte inscrição: ''Instruções Gerais de Contra-Inteligência para o Exército Brasileiro''. Dedica um tópico à ''segurança na destruição''. Estipula que ''a destruição de documentos sigilosos deve ser centralizada, de forma a evitar desvios''.

Meticuloso, o texto recomenda que ''os documentos sejam triturados e depois queimados''. Anota ainda que a queima deve ser precedida da ''lavratura de um termo de destruição''. Ou seja: se quiser ser levado a sério, o Exército precisa exibir um lote de “termos de destruição”. Antes, convém certificar-se da idade dos documentos. Não ficaria bem divulgar papeis que, submetidos às modernas técnicas de perícia e análises tipográficas, desmoronassem.

Divulguei na Folha, em agosto de 2001, papéis secretos cujo teor desafia a retórica oficial do Exército. Os documentos contêm detalhes das operações de combate à guerrilha. Informam, por exemplo, que, ao desembarcar no sul do Pará, a soldadesca sabia o que fazer com os corpos inimigos.

Os cadáveres não poderiam ser desovados a esmo na selva. Depois de identificados, deveriam ser depositados em covas previamente selecionadas. Em resposta a questionamentos que fiz na época, o Exército divulgou uma nota oficial curiosa. O texto sustentava a pantomima da ausência de informações sobre o destino dos corpos da turma do PC do B. Mas admitia a existência de arquivos que, hoje, o mesmo Exército tenta fazer crer que foram destruídos.

Dizia a nota oficial de 7 de agosto de 2001: ''Quanto aos desaparecidos nos combates travados naquela região, é importante salientar o que o Exército tem reiterado exaustivamente quando consultado a respeito do assunto: NOS ARQUIVOS EXISTENTES, nada foi encontrado que pudesse indicar a localização de seus corpos''.

Já passou da hora de o Estado brasileiro presentear o país com uma abertura ampla, geral e irrestrita dos documentos da repressão. O brasileiro tem direito à sua história. Não é justo impor aos jovens oficiais do Exército de hoje o constrangimento de ter de inventar uma nova destruição de documentos a cada revelação fortuita.

De resto, parece ainda mais injusto condenar a sociedade brasileira à surpresa perpétua de trombar com seu passado de chumbo, exposto em  documentos divulgados a conta-gotas pelo governo dos Estados Unidos. É constrangedor.



Documento da CIA sobre Geisel é 'estarrecedor', diz último coordenador da Comissão da Verdade
Memorando da CIA afirma que ex-presidente do regime militar autorizou execuções de opositores. Para Pedro Dallari, Forças Armadas deveriam 'reconhecer responsabilidade institucional'.



Por Vitor Matos, G1, Brasília
11/05/2018 10h37  Atualizado 11/05/2018 21h31

Nota do ministério
Leia abaixo a íntegra de nota divulgada pelo Ministério da Defesa:
O Ministério da Defesa informa, em consonância com mensagem já divulgada da assessoria do Exército Brasileiro, que os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar veracidade dos fatos narrados foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época - Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos - em suas diferentes edições.


https://g1.globo.com/politica/noticia/para-ex-membro-da-cnv-documento-sobre-geisel-e-estarrecedor-e-forcas-armadas-deveriam-reconhecer-responsabilidade.ghtml

Nota do ministério
Leia abaixo a íntegra de nota divulgada pelo Ministério da Defesa:

O Ministério da Defesa informa, em consonância com mensagem já divulgada da assessoria do Exército Brasileiro, que os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar veracidade dos fatos narrados foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época - Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos - em suas diferentes edições.




Estud. av. vol.16 no.44 São Paulo Jan./Apr. 2002
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142002000100012 
DOIS TEXTOS DE MÁRIO SCHENBERG

Publicação da obra científica de Mário Schenberg


Amélia Império Hamburger






MARIO SCHÖNBERG - assim o Professor Schenberg assinava seus artigos científicos - tem uma centena de trabalhos publicados entre 1936 e 1977. Mário Schenberg nasceu em Recife, Pernambuco, em 1916. Sua capacidade em matemática revelou-se cedo. Não tendo condições financeiras para estudar na Europa, depois de fazer os dois primeiros anos do curso de engenharia no Recife, veio, em 1933, para São Paulo. Formou-se em Engenharia Eletrônica pela Escola Politécnica, em 1935, e bacharelou-se em Matemática, em 1936, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, recém-fundada, onde as secções de física e matemática eram orientadas, respectivamente, pelos professores italianos Gleb Wataghin e Luigi Fantappié.

Os primeiros artigos já indicam a formação com esses professores, concebendo novas formulações nos temas relativos a questões básicas das teorias da física e de questões da representação matemática. A meu ver - e compreendi isso em suas aulas de mecânica analítica, no terceiro ano de meu curso de bacharelado, em 1953 - uma das características marcantes dos raciocínios do professor Schenberg, sempre claros e fenomenológicos, é evidenciar a imbricação profunda da conceituação matemática na constituição dos significados físicos.

Pesquisou sobre as origens dos raios cósmicos e das partículas elementares na formação das estrelas e nas reações nucleares, métodos e teorias matemáticas na física, unificação teórica das interações fundamentais, a causalidade como princípio básico para uma teoria unificadora. Deu contribuições originais, com grande poder imaginativo conceitual e formal, sobre funções e teorias matemáticas no engendramento das linguagens teóricas da física clássica, da mecânica estatística, da mecânica quântica, da relatividade, do eletromagnetismo. Alguns de seus trabalhos exibem grande complexidade matemática, talvez só acessível aos mais avançados pesquisadores das áreas da física teórica, física matemática e da matemática. Todos os trabalhos têm, entretanto, uma apresentação lógica exemplar, clareza e precisão expositiva admiráveis.

Seguindo orientação de Wataghin, Mário Schenberg foi cedo para o exterior onde trabalhou e interagiu com os mais renomados físicos, entre eles, Enrico Fermi na Itália (1938-39), George Gamow, S. Chandrasekhar, Wolfgang Pauli, Eugene Wigner, nos Estados Unidos (1940-42), Giuseppe Occhialini e a equipe experimental e tórica do Laboratório de Física Nuclear da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica (1948-53). Em São Paulo trabalhou e publicou com todos os professores que, entre 1940 e 1960, se dirigiam para pesquisa em física teórica: José Leite Lopes, Walter Schutzer, César Lattes, Abrahão de Moraes, Carmen Braga, Alberto da Rocha Barros.

A densidade de publicações dos anos 40 e 50 - cerca de mil páginas publicadas entre 1948 e 1958 - não se manteve na década de 60. Diretor do Departamento de 1953 a 1961, criou, com o apoio do reitor professor Ulhôa Cintra, o Laboratório de pesquisas em materiais - chamada Física da Matéria Condensada - que é, hoje, no Brasil, a área da física que reúne o maior número de pesquisadores. Os anos 60 foram um tempo em que a direção autoritária da política brasileira colidiu com as lideranças universitárias. Schenberg e outros pioneiros da pesquisa científica foram, em 1969, afastados de seus estudantes e colaboradores. Schenberg não saiu do país e produziu ainda três artigos: em 1971, 1973 e o último em 1977.

Voltou para a Universidade em 1979 e lecionou alguns cursos. Recebeu o título de Professor Emérito em 1982 e, em 1984, foi homenageado com um Simpósio Internacional, no Instituto de Física, e a publicação de um número especial da Revista Brasileira de Física, um Festschrift pelos 70 anos, para o qual contribuíram muitos dos colaboradores e pesquisadores internacionais com quem conviveu. Logo depois, os sintomas de doença degenerativa acentuaram-se. Morreu no dia 10 de novembro de 1990.






Os trabalhos Sobre a existência de monopolos magnéticos e Sobre uma extensão do cálculo espinorial, apresentados neste número da revista ESTUDOS AVANÇADOS, foram publicados nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, respectivamente, nos volumes XI, n. 3, p. 267-271, setembro de 1939 e XIII, n. 2, p. 129-135, junho de 1941. São do início de sua carreira, foram escritos em português, compreendem poucas páginas e representam somente uma amostra de seu estilo e interesses.

Talvez possamos dizer que o trabalho científico do professor Schenberg nos dá uma definição do fazer ciência básica também com o sentido de atuar eficazmente como professor: aquele que explicita, na sala de aula, ligações autênticas com o conhecimento e, com isso, incita a imaginação de seus alunos para um pensamento próprio. Entretanto, valorizava a pesquisa tecnológica: "... a ciência é a base da tecnologia e essa é uma questão fundamental ... o homem não poderia sobreviver nem um dia sem ter uma tecnologia" (1).

A obra de Mario Schenberg é, em geral, pouco conhecida pelos jovens pesquisadores e estudantes brasileiros, com exceção de alguns pesquisadores nas Universidades de Brasília, Salvador e São Paulo. Há alguns anos temos proposto a publicação, em livro, de sua obra científica completa. Esse projeto está se concretizando junto ao Instituto de Estudos Avançados da USP e será editado pela Edusp (Editora da Universidade de São Paulo). O livro - de mais de 1.500 páginas - deverá divulgar o trabalho para fazer jus ao que escreveu, recentemente, o professor Henrique Fleming, do Departamento de Física Matemática do Instituto de Física da USP: "... embora nos faça imensa falta a estatura de Schenberg as suas idéias continuam conosco, vivas e inspiradoras" (2).


Notas

1 Comentário do professor Schenberg em Seminário do Dr. M. Paty, Instituto de Estudos Avançados-USP, em 2 de dezembro de 1986.
2 O último trabalho de Mário Schenberg, Revista USP, São Paulo, n. 50, p. 34-38, jun./ago. 2001.


Amélia Império Hamburger é professora-titular do Instituto de Física da USP.


‘Último prego no caixão de Geisel’, diz coordenador da Comissão da Verdade sobre memorando da CIA
BBC Brasil




© Wilson Dias/Agência Brasil 'Estrago maior nós já tínhamos feito na Comissão Nacional da Verdade', diz Pinheiro

"É realmente um estrago extraordinário. Mas estrago maior nós já tínhamos feito na Comissão Nacional da Verdade, sem querer parecer pretensioso."
É assim que o diplomata Paulo Sergio Pinheiro, ex-secretário de Estado de Direitos Humanos (no governo de Fernando Henrique Cardoso) e atual presidente da Comissão de Investigação sobre a Síria na ONU, classifica a revelação de um memorando secreto da CIA, que aponta que o general Ernesto Geisel sabia e autorizava a execução sumária de opositores durante a ditadura militar.
Para o ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade, o documento funcionaria como uma "bala de prata", um "último prego no caixão de Geisel", que confirma as conclusões do grupo de trabalho, que investigou violações de direitos humanos na ditadura, entre 2012 e 2014.
"Claro que foi um feito jornalístico importantíssimo, não vou diminuir isso, absolutamente. Mas quem estabeleceu a cadeia de comando estando diretamente no gabinete do presidente e do ministério da Guerra fomos nós", afirma. "Ali está perfeitamente demonstrado que não era abuso, não era excesso, mas era uma ação coordenada por parte do presidente da República. O presidente era informado de tudo."
Revelado pelo professor Matias Spektor, da Fundação Getulio Vargas (FGV), o memorando de 11 de abril de 1974 era assinado por William Egan Colby, então diretor da CIA, e narrava uma reunião no Centro de Inteligência do Exército entre Geisel, João Batista Figueiredo (então chefe do Serviço Nacional de Informações), e dois generais.
Destinado a Henry Kissinger, então secretário de Estado dos EUA, o documento reproduz fala do general Milton Tavares de Souza, que cita o assassinato de 104 pessoas consideradas "subversivas perigosas" pelo Estado brasileiro em 1973.
"Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que deve-se tomar muito cuidado para se assegurar que apenas subversivos perigosos sejam executados", diz o documento, que aponta que todas as execuções deveriam ter o consentimento do general Figueiredo, que ocupou a cadeira de Geisel de 1979 a 1985.
Leia os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - O memorando da CIA que aponta que Geisel sabia da execução de 104 pessoas pelo Estado na ditadura surpreende o senhor?
Paulo Sergio Pinheiro - Não é surpresa para mim essa fala do general Geisel. Porque se você pegar o depoimento que ele deu para o Centro de Pesquisa e Documentação da FGV do Rio, antes de morrer, verá que ele aprova a tortura. Pensava-se que ele fosse contra, havia expectativas sobre ele. O outro ponto é que, se você pegar o relatório da CNV, não há essa declaração específica, mas nós colocamos Geisel junto a todos os outros generais como responsáveis (pelas torturas e execuções). Para você ter uma ideia, todos os grandes chefes do DOI-Codi (centro de repressão do Exército) eram lotados no gabinete do ministro da Guerra. Nós atribuímos responsabilidades em três graus, e no primeiro grau estão os generais.
Agora, é formidável, um documento autêntico pelos detalhes e personagens, uma falta de compostura total. Eles dizem: 'matem só os subversivos, hein?', 'quero ser avisado', 'consulta o Figueiredo'. É realmente um estrago extraordinário. Mas estrago maior nós já tínhamos feito na Comissão Nacional da Verdade, sem querer parecer pretensioso.
BBC Brasil - A Comissão da Verdade havia identificado este documento específico? Teve acesso a esta série de memorandos e telegramas?
Pinheiro - Não, não me lembro. Amanhã vamos ter uma conversa, não existe mais a Comissão, mas amanhã vamos nos encontrar para comentar. Destes documentos, especificamente, eu não me lembro. Recebemos alguns documentos que não estavam classificados e foram todos usados.
BBC Brasil - Para o professor Matias Spektor, que trouxe o documento à tona, esta seria "a evidência mais direta do envolvimento da cúpula do regime (Médici, Geisel e Figueiredo) com a política de assassinatos". O senhor concorda?
Pinheiro - Não é. Absolutamente. Tudo o que nós corrigimos de práticas, por exemplo da guerrilha do Araguaia, é detalhadíssimo. Acho que é um documento importante para liquidar a imagem do general, o Geisel. Claro que foi um feito jornalístico importantíssimo, não vou diminuir isso, absolutamente. Mas quem estabeleceu a cadeia de comando estando diretamente no gabinete do presidente e do ministério da Guerra fomos nós. Se você for lá no relatório, verá que tivemos condições de estabelecer as cadeias de comando, que foi algo dificílimo. Ali está perfeitamente demonstrado que não era abuso, não era excesso, mas era uma ação coordenada por parte do presidente da República. O presidente era informado de tudo.
Vou te contar uma história. Eu trabalhei no arquivo do presidente Arthur Bernardes (presidente brasileiro entre 1922 e 1926). Você acredita que o Arthur Bernardes recebia as transcrições dos telefonemas dos membros da oposição? Era muito fácil censurar porque tudo era por telefonia. Então, se isso ocorreu na Primeira República, na ditadura, evidentemente, foi com muito mais ênfase. O Arthur Bernardes não mandava matar, mas coordenava toda a repressão diretamente, por escuta e tudo isso.
Tudo isso já estava totalmente esclarecido. Agora, evidentemente, uma bala de prata como essa é importante.
BBC Brasil - A revelação gerou críticas sobre possíveis falhas no trabalho investigativo da CNV.
Pinheiro - Isso é de uma estupidez sesquipedal. Há uma frase na abertura de Tristes Trópicos, do Claude Levi-Strauss, que eu até coloquei na minha tese de doutorado, em que ele diz: "É uma pena que eu vou lamentar por não ter visto o que eu poderia ter visto neste momento". Quer dizer, quem vem depois descobre sempre uma porção de coisas.
BBC Brasil - Nas redes, houve quem chegasse a falar na necessidade de formação de uma nova Comissão da Verdade…
Pinheiro - Se quiserem formar uma nova Comissão da Verdade, podem formar. Agora é uma alegação absolutamente estúpida essa de 'Ah, não descobriram esta folhinha, então todo o trabalho é uma porcaria'. Nem leram os volumes.
Como não sou o único responsável, acho que o relatório, comparado às 42 comissões da verdade que conheço no mundo, está perfeitamente na mesma categoria. As pessoas precisam ler o relatório antes de dizer bobagem.
BBC Brasil - Como a revelação afeta a imagem histórica do ex-presidente Geisel?
Pinheiro - É o último prego do caixão. Na verdade, todos os atentados que foram cometidos no governo Geisel estão terrivelmente fundamentados e a Comissão da Verdade estabeleceu que ele estava informado sobre tudo o que acontecia. Nenhuma missão decisiva de eliminação podia ser feita sem o aval dele. Este documento somente vem a corroborar isso. Agora, como está causando um enorme barulho, é bom porque liquida de vez essa cultura melíflua, ou simpática ao governo.
Isso não é uma mancha em um currículo maravilhoso. Isso é só uma pequeníssima confirmação do que a Comissão da Verdade já tinha estabelecido.
BBC Brasil - Como descreveria o interesse e a participação dos EUA na ditadura militar brasileira?
Pinheiro - Está estabelecido e bem documentado pelos historiadores o envolvimento (dos EUA) em 1964. Eles mandaram Vernon Walters, que era um exibicionista. Falava português com menos sotaque que eu. Era um gentleman, uma figura muito curiosa, e participou da conspiração de 1964, muito antes de (o golpe) ter sido realizado.
Depois, eu acho que a CIA seguir o Brasil é uma coisa normal. Continua seguindo até hoje. Se você pegar o WikiLeaks, as minhas declarações estão sendo gravadas neste momento. Nenhuma novidade. Mas não foram os EUA que comandaram o governo brasileiro depois de 1964. Havia uma proximidade, lembra-se do Juracy Magalhães (primeiro embaixador brasileiro em Washington depois de 1964) dizendo que "O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil"?
Mas você se dá conta que, logo depois, no próprio governo Geisel, havia uma política externa independente, que era na linha do Santiago Dantas (Ministro das Relações Exteriores de Jango). O Brasil foi o primeiro país, logo depois da União Soviética, a reconhecer Angola. Foi o primeiro. A situação é mais complexa.
BBC Brasil - Como vê o legado da CNV, quase quatro anos depois do seu encerramento?
Pinheiro - Desastre mesmo é este governo ter jogado no lixo o relatório da Comissão da Verdade. O último ato da presidenta Dilma Rousseff foi criar um "follow up" para o seguimento das recomendações do relatório. E este governo não fez absolutamente nada, nem vai fazer. Ele nem se manifestou.
Na medida em que tem uma política de deixar dar voz novamente aos militares, este governo é responsável por se ter abandonado tudo o que se descobriu na Comissão.
BBC Brasil - Como vê a presença de militares no gabinete de Temer e a convocação de militares para intervirem na segurança pública do Rio?
Pinheiro - Isso é de uma excrescência. Pela primeira vez, desde 1985, ocorreram duas coisas no Brasil. Uma: os homicídios praticados por soldados contra civis voltaram à competência da Justiça militar. Algo que tinha sido derrubado no governo de Fernando Henrique. Outra: o comandante do Exército, que primeiro teve aquele sonho de que não queria uma Comissão da Verdade, resolveu fazer um tuíte sobre impunidade na véspera do julgamento do habeas corpus (do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva).
Comandante do Exército não é para falar, ele falou e não aconteceu nada. E a cereja do bolo é essa intervenção federal demagógica no Rio de Janeiro, onde também pela primeira vez, desde 1985, o secretário de segurança é um general do Exército. Há um retrocesso em dar voz aos militares e evidentemente este governo não vai reagir a este documento, nem à Comissão da Verdade.
Segundo os documentos recém-divulgados, logo após o golpe de 1964, o embaixador americano no Rio de Janeiro, Abraham Lincoln Gordon, dizia a superiores no Departamento de Estado americano que a ordem democrática seria restabelecida em breve. Ele justificava o golpe dizendo que a deposição de Jango evitou um derramamento de sangue no Brasil. Anos depois, as trocas de mensagens passaram a expressar desconforto nos EUA em relação a torturas, execuções e violações de direitos humanos, que tornavam difícil o apoio ao regime brasileiro perante a comunidade internacional.
BBC Brasil - Os EUA realmente achavam que a democracia seria reestabelecida? Os americanos foram inocentes em relação aos generais?
Pinheiro - Acho que sim. O caso brasileiro não é o único. O (Henry) Kissinger (secretário de Estado dos EUA entre 1973 e 1977) está envolvido em sangue no golpe contra Salvador Allende, no Chile.
Os paranóicos têm inimigos reais. Mas o Brasil é importante demais para ser dominado pelos Estados Unidos. Eu conheci o embaixador Gordon na época, não era um (Jair) Bolsonaro, absolutamente. Era um professor universitário que virou embaixador. Políticos e embaixadores mudam de perspectiva.




Jungmann: documentos da CIA não afetam prestígio das Forças Armadas
Ministro da Segurança Pública defendeu militares após divulgação de relatório da agência norte-americana sobre execuções no governo Geisel



POLÍTICA
MICHAEL MELO/METRÓPOLES

AGÊNCIA ESTADO
11/05/2018 17:46 , atualizado em 11/05/2018 18:51

O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, disse nesta sexta-feira (11/5) que a divulgação de documentos da CIA de 1974, acusando o ex-presidente Ernesto Geisel de ter endossado a execução de presos políticos durante a ditadura militar, não afeta o “prestígio” das Forças Armadas.

Segundo Jungmann, o governo ainda não teve acesso ao documento de forma oficial, mas antecipou que alguma medida deve ser tomada.

“O governo não tem conhecimento desses documentos, não estamos desconsiderando [o documento da CIA], mas precisamos ter acesso de forma oficial. O prestígio das Forças Armadas permanece nos mesmos níveis. As Forças Armadas são um ativo democrático, isso não é tocado por uma reportagem”, afirmou.

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A polêmica se deu após a divulgação de um memorando escrito em abril de 1974 por William Colby, então diretor da Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos, no qual ele afirma que o ex-presidente Ernesto Geisel (1974-1979) decidiu manter a política de “execução sumária” de opositores do regime militar praticada pelos órgãos de segurança durante a presidência de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).

Ex-ministro da Defesa, Jungmann foi evasivo, no entanto, quando questionado sobre quais ações efetivamente devem ser tomadas pelo governo brasileiro. “Não tivemos acesso a documentos oficiais. Não é minha área, não é decisão minha. Alguma medida deve ser tomada, mas não é da minha área. Não sou mais ministro da Defesa, quem deve tomar essa decisão são responsáveis pela área”, complementou.

As declarações foram dadas durante coletiva de imprensa, no Ministério da Justiça, para o lançamento da Operação Tiradentes II – força-tarefa de 24 horas de todas as forças militares estaduais para ações de segurança pública. Por conta disso, estava presente também o secretário nacional de Segurança Pública, general Santos Cruz, que relacionou a divulgação às “eleições” e “interesses políticos”.

“Tem de ler com bastante profundidade esse documento e não ficar só na manchete, né? Este ano é um ano eleitoral, uma eleição que vem com pesquisas… Foram publicadas várias notícias de um número maior de militares participando nessa próxima eleição”, comentou. “Então, tem tudo isso aí. Tem que ver também interesses políticos nesse tipo de divulgação, o contexto político”, afirmou o general.

Documento era confidencial
O Departamento de Estado americano tirou do memorando a classificação de confidencial em 2015, ao lado de outros 404 documentos envolvendo oito países da América do Sul. Eles cobrem o período entre 1973 e 1976, durante as presidências dos republicanos Richard Nixon e Gerald Ford. O relatório em questão foi descoberto pelo pesquisador Matias Spektor, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV). O comunicado tem o número 99 e é da gestão Nixon.

O assunto do documento é descrito como “decisão do presidente brasileiro, Ernesto Geisel, de continuar a execução sumária de perigosos subversivos sob certas condições”. O primeiro parágrafo do memorando, com sete linhas, não foi “desclassificado” pelo Departamento de Estado. É provável que ali estivesse a descrição sobre quem seria a fonte da informação repassada por Colby a Kissinger.








Jungmann: documentos da CIA não afetam prestígio das Forças Armadas




Roda Viva | Raul Jungmann | 14/05/2018

O Roda Viva vai entrevistar o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, que vai falar sobre a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, além do combate à violência e criminalidade nos demais estados. Na bancada de entrevistados estão Chico Otavio, repórter do Jornal O Globo; José Júnior, fundador do Afroreggae; Ilona Szabó, diretora do Instituto Igarapé e especialista em segurança pública; e João Paulo Charleaux, repórter especial do Nexo Jornal


O pálido ponto azul (Pale Blues Dot) de Carl Sagan Legendado pt-br







Referências
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https://uploads.metropoles.com/wp-content/uploads/2018/02/28084355/raul.jpg
https://www.metropoles.com/brasil/politica-br/jungmann-documentos-da-cia-nao-afetam-prestigio-das-forcas-armadas
https://youtu.be/8PXgc2RXIiQ
https://youtu.be/msEfe5pIkU0
https://www.youtube.com/watch?v=msEfe5pIkU0
https://youtu.be/SJh3HRiH8ug

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