quinta-feira, 20 de outubro de 2016

"ledo e ivo engano"?



“Os homens não morrem de doenças : morrem de morte”. Ledo Ivo


“Na virada da primeira década do século XXI, nossa legislação processual penal permanece atrelada à codificação elaborada no longínquo ano de 1941, o nosso incansável Código de Processo Penal.” Eugênio Pacelli Curso de Processo Penal




“O choro de Graciliano ficou como uma lembrança marcante, porque já trazia a saudade da vida. Eu senti ali que, por mais que ele dissesse que odiava a vida, ele, na verdade, amava viver. O que matou Graciliano foi um câncer no pulmão. Era um fumante de cigarros Selma. Só escrevia bebendo cachaça. Jorge de Lima também morreu de câncer no pulmão, mas nunca fumou.”




O que significa a expressão "ledo e ivo engano"?


E GILDO MARÇAL BRANDÃO (Mata Grande, 17 de fevereiro de 1949 — São Sebastião, 15 de fevereiro de 2010)


E GRACILIANO RAMOS (Quebrangulo, 27 de outubro de1892— Rio de Janeiro, 20 de março de 1953)


E DRA. NISE DA SILVEIRA (Maceió, 15 de fevereiro de 1905 — Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1999)


ALAGOAS, ALAGOAS, OS SEUS VERDADEIROS FILHOS VEM DE MARÇOS, RAMAGENS E SELVAS.

MAS SÃO BRANDOS, GRACIOSOS E NICE


Nice é um termo da língua inglesa que tem vários significados, dependendo do contexto em que é empregado. Nice (pronuncia-se nais) é um adjetivo que qualifica aquilo que é bom, bonito, lindo, belo. Ex.: What a nice story! Que bela história!


NISE É NOME DE UMA MULHER VALENTE

PORÉM GRACIOSA E BRANDA.


Gildo Marçal Bezerra Brandão (1949-2010). um analista do pensamento Brasileiro





‘Se você procurar a palavra “ledo” nos dicionários (Aurélio, Houaiss, Michaelis, Caldas Aulete, etc.), encontrará a seguinte definição: “risonho, contente, alegre, jubiloso, prazenteiro; que revela ou sente alegria, júbilo, felicidade”.

Existe até o substantivo “ledice”, que indica a qualidade de “ledo”, significando alegria, contentamento, prazer, júbilo.

O Aurélio traz, para exemplificar o uso de “ledo”, uma frase do poeta romântico Gonçalves Dias (1823-1864. Morreu novo. Era doente, tratava-se na Europa. Em viagem de volta, o navio naufragou, já na costa brasileira. Somente ele morreu. Em estado agonizante, foi esquecido em seu leito. É o autor do famoso poema “Canção do Exílio”): “Já mimosas as flores desabrocham, / Já mais ledos os pássaros gorjeiam”.

“Ledo” vem do latim “laetu/laetus”, que significa “alegre, contente, feliz”. Os dicionários só trazem esse sentido de “ledo”.

Você já viu, na atualidade e na linguagem usual, a palavra “ledo”? Acredito que não. O adjetivo “ledo”, sozinho, com o sentido original, empregado mais na linguagem poética, não é usado na língua moderna. Ou seja, tornou-se um arcaísmo (palavra arcaica, antiga, desusada).

Mas você já viu/ouviu a expressão “ledo engano”? Creio que sim. Ela existe na língua desde muito tempo e continua presente no português atual.

E como ligar o adjetivo “ledo” (com o significado apresentado) ao substantivo “engano”, para formar a expressão? Qual é o sentido de “ledo engano”? Engano alegre, contente, feliz? Não é exatamente isso...

O sentido usual quer passar uma outra idéia: a de ingenuidade; simplicidade/simploriedade; despercebimento; excesso de confiança; crença de boa-fé, sem visão crítica; falta de informação por parte de quem está enganado quanto a alguma coisa (propagandas, produtos, fatos, ideologias, acontecimentos, conhecimento, etc.). Jogue a expressão no Google e você encontrará muitos textos sobre vários assuntos trazendo exatamente essa idéia.

O colega que usou o sintagma explicou: trata-se de um engano inocente, bobo, pueril. Foi isso que ele quis dizer. E é isso que “ledo engano” significa.

A expressão pode ter nascido de uma passagem de Camões, em Os Lusíadas, Canto III, estrofe 120. Essa passagem é usada pelo Dicionário Caldas Aulete como exemplo de uso do adjetivo “ledo” e pelo Dicionário Aurélio (o eletrônico) como exemplo da expressão “ledo engano”.

Espero que ajude'
Maya
MAYALLL · 8 anos atrás


‘Usa-se a expressão ledo e ivo engano por conta de um outro cronista amigo do autor Lêdo
Costumava o autor fazer essa brincadeira com o seu amigo, quando queria dizer que aquilo que dizia era um engano’
marcia · 2 anos atrás





GENETON MORAES NETO: O Brasil não conhece Ledo Ivo tanto quanto o poeta merece. Ledo Ivo morreu sem ter sido lido como deveria ser.
Por Enock Cavalcanti em Educação e Cultura | Gente que faz | Nação brasileira - 3/01/2013 21:24



Ledo Ivo - muito lembrado na hora de se falar em "ledo e ivo engano", foi um lobo solitário. O “Brasil real”, aquele que passa ao largo dos salões acadêmicos, não conhece Ledo Ivo tanto quanto o poeta merece, avalia Geneton de Moraes Neto. Dificilmente o Lobo seria reconhecido na rua. Não é lido tanto quanto deveria ser.


…E o grande poeta João Cabral deu de presente ao amigo Lêdo Ivo um epitáfio “prévio”: “…O silêncio de quando as hélices param no ar”
por Geneton Moraes Neto
EM SEU BLOG DOSSIE GERAL – BLOG DAS CONFISSÕES
A morte foi encontrar o poeta Lêdo Ivo na Espanha. Aqui, uma longa entrevista que fiz com o poeta, faz dez anos. Bem humorado, dizia que recebera do grande poeta João Cabral de Melo Neto um “presente” : um epitáfio prévio, em forma de versos. João Cabral previa o dia em que Ledo Ivo encontraria “o silêncio de quando as hélices param no ar “. É destino de todos ( anos depois, eu faria, para a Globonews, na sede da Academia Brasileira de Letras, uma entrevista em que Lêdo Ivo recordava outro momento marcante da convivência com João Cabral: a exemplo do que dissera um crítico, o autor de “Morte e Vida Severina” achava que, se Lêdo Ivo tivesse morrido cedo, poderia ter se transformado numa espécie de Rimbaud brasileiro, um daqueles poetas que viram lenda ao sairem de cena ainda jovens. Mas Lêdo Ivo dava a graças a Deus por ter vivido tanto tempo: preferia a vida à arte. A entrevista vai ser reprisada neste domingo, às 17:05, pela Globonews). A íntegra da primeira entrevista que fiz com o poeta:
Caçadores de belos versos,tremei de arrependimento : quem nunca leu um poema de Ledo Ivo, por preguiça, desinformação ou enfado, deve se penitenciar deste crime de lesa-literatura o mais rapidamente possível.
Um exemplo ? É difícil encontrar uma declaração de princípios tão bela quanto “A Queimada” :
“Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.
Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.
Destrua os poemas inacabados, os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita”.
O que o velho lobo terá a dizer a um repórter forasteiro que for procurá-lo no covil ? Aos cartógrafos empenhados em mapear as rotas da poesia brasileira neste início de século, diga-se que o lobo vive num apartamento do sétimo andar de um prédio da rua Fernando Ferrari, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Ao contrário do que os versos podem fazer supor,o homem não é uma fera de garras afiadas.
Ei-lo : sentado numa poltrona da sala, o lobo Ledo vai fazer, a pedido do repórter,uma expedição ao País da Memória diante do gravador ligado. O cenário que circunda o Covil do Lobo é um convite à inspiração. Quando quer descansar a retina das mazelas do mundo, o lobo Ledo precisa caminhar apenas cinco passos. É a distância entre a sala e a extremidade da varanda deste apartamento. Lá fora, a beleza escandalosa de um céu sem nuvens pinta de azul a vista da praia de Botafogo.
A localização do apartamento é invejável. Parece ter sido escolhida a dedo por um poeta. Uma confidência lítero-hidráulica : do banheiro do apartamento do lobo é possível vislumbrar a imagem do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara. Não é para qualquer um.
As lembranças dos ídolos que povoam os corredores do Museu das Admirações de poeta vão se sucedendo, aos borbotões : com os gestos agitados de quem fala para uma platéia invisível, o pequenino Ledo Ivo reconstitui, com frases precisas, momentos marcantes da convivência com Carlos Drummond de Andrade,Graciliano Ramos,Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, gente que virou verbete obrigatório nas enciclopédias.
Justiça se faça : Ledo Ivo já colheu as glórias daquele país que Ariano Suassuna chama de “o Brasil oficial” : a Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe, por unanimidade, a cadeira número 10, no não tão distante ano de 1986. Mas o “Brasil real”, aquele que passa ao largo dos salões acadêmicos, não conhece Ledo Ivo tanto quanto o poeta merece. Dificilmente o Lobo seria reconhecido na rua. Não é lido tanto quanto deveria ser.
O Ledo Ivo que responde com entusiasmo ao precário questionário do repórter é um homem afável. O poeta que desponta nas entrelinhas dos versos é um lobo solitário, um ermitão que prefere ver a humanidade à distância. A ode à solidão – que ele já escrevera nos versos definitivos do poema “A Queimada” – repete-se no não menos belo “A Passagem” :
“Que me deixem passar – eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar, exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por seu eu diferente ou indesejado
mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho
e passarei sozinho”.
Ledo Ivo vai alinhando as frases com a precisão de um ourives e a rapidez de uma metralhadora giratória. É incapaz de fazer concessões a vulgaridades gramaticais na hora de construir uma sentença. O lobo Ledo aparentemente concede à linguagem falada o mesmo cuidado que devota à linguagem escrita. O Português agradece, comovido. O poeta já confessou que sente abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como “de maneiras que….”. Se alguém cometer o sacrilégio de misturar “tu” com “você” diante do lobo, certamente escapará de uma admoestação, porque o homem é afável, mas cairá vinte pontos no conceito do poeta.
Tradutor de Rimbaud e Dostoiévski, o lobo Ledo carrega, pelas décadas afora, as marcas da infância em Maceió :
“Na tarde de domingo, volto ao cemitério velho de Maceió
onde os meus mortos jamais terminam de morrer
de suas mortes tuberculosas e cancerosas
que atravessam as maresias e as constelações
com as suas tosses e gemidos e imprecações
e escarros escuros
e em silêncio os intimo a voltar a esta vida
em que desde a infância eles viviam lentamente
com a amargura dos dias longos colada às suas existências
monótonas.
(…) Digo aos meus mortos : Levantai-vos,
voltai a este dia inacabado
que precisa de vós,de vossa tosse persistente e de vossos gestos enfadados
e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió.
Retornai aos sonhos insípidos
e às janelas abertas sobre o mormaço. Na tarde de domingo,entre os mausoléus
que parecem suspensos pelo vento
no mar azul
o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão.
Não adianta chamá-los.No lugar em que estão,não há retorno
Apenas nomes em lápides. Apenas nomes. E o barulho do mar”.
—————
Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira vão entrar em cena agora como verbetes vivos da imaginária enciclopédia do Lobo Ledo.
Gravando !
PRIMEIRA ESTAÇÃO : O DURÃO GRACILIANO RAMOS CHORA AO SE DESPEDIR DA VIDA
GMN : A imagem de Graciliano Ramos, como homem seco e intratável,corresponde à verdade ?
Ledo Ivo : “Graciliano Ramos era rústico e intratável. Nascemos no mesmo estado. Quando menino, como primeiro da turma no grupo escolar, fui apresentado a Graciliano, na época secretário de Educação. Pôs a mão carinhosamente na minha cabeça. Quando ele publicou “Vidas Secas”, eu, ”menino prodígio” em Maceió, escrevi, em 1938, um artigo sobre o livro. Aquilo passou. Quando vim para o Rio, fazer vestibular de Direito, minha mãe me disse “vá visitar Heloísa” – a mulher do Graciliano Ramos, àquela altura, aos cinquenta anos de idade, uma figura importante na literatura brasileira. Durante nossa conversa, ele abriu uma gaveta e disse : “Quando publiquei “Vidas Secas” em Alagoas, só uma pessoa falou do meu livro : um menino de 14 anos...”.
A relação de Graciliano Ramos com Alagoas era de amor e ódio, porque ele tinha saído do Estado de cabeça raspada, jogado no porão de um navio. É curiosíssimo como duas pessoas tão diferentes como eu e Graciliano Ramos puderam se relacionar. Devo ter aprendido com ele muitas coisas, como, por exemplo, a correção lingüística que, dizem, existe em minha prosa.
Graciliano Ramos era, sim, uma pessoa rústica. Em toda a literatura brasileira, ele só tinha três, quatro admirações, além de Machado de Assis, a quem considerava um negro metido a inglês : José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em poesia, admirava Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por ordem do Partido Comunista (risos).
Notei, na casa de Graciliano Ramos, um livro de poesia autografado, fechado e intocado. Toda vez que eu ia à casa de Graciliano, dizia a ele : “Você deveria abrir esse livro ! “. E ele : “Já falei com Heloísa várias vezes para abrir esse livro, mas essa mulher…” (risos) .
Era como se competisse à Heloísa Ramos a função de abrir o livro. Se não me engano, era um volume das poesias completas de Augusto Frederico Schmidt”.
GMN : De toda essa convivência com Graciliano Ramos, a melhor herança foi a obsessão com a correção gramatical ?
Ledo Ivo: “A herança – pungente – é ver que a glória de Graciliano é uma glória póstuma. O que aprendi com Graciliano Ramos foi ter fidelidade ao ofício de escritor. Quem era Graciliano Ramos quando convivi com ele ? Um grande escritor, mas ainda não plenamente reconhecido – essa é que é a verdade. Os livros que ele lançara estavam esgotados. José Olympio não reeditava. Em conversas íntimas, Graciliano chamava José Olympio de “esse filho da puta – que vive editando Lourival Fontes e Getúlio Vargas...” (N: Lourival Fontes era o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda durante a ditadura Vargas) . O que eu via ali, em Graciliano, era a amargura de um homem que foi tirado do ninho natal – Alagoas. Note-se que três livros de Graciliano foram escritos em Alagoas : “Caetés”, “São Bernardo” e “Angústia” . Se ele não tivesse saído de Alagoas, ficaria como uma coisa misteriosa. Por quê? Por que será que em um pequeno Estado,como Alagoas, um sujeito escreveu três grandes romances ? Depois é que veio a experiência carcerária – a única coisa que o Rio, a metrópole, deu a ele. Graciliano vivia de pequenos “bicos literários”,vivia corrigindo textos alheios. Trabalhava como revisor.
Qual foi, então, a grande impressão que Graciliano Ramos me deu ? A fidelidade ao ofício, algo que se viu também em Machado de Assis. São escritores que não esperavam nenhuma recompensa, porque a própria obra seria a recompensa. Graciliano não pensava em Academia, não pensava em prêmios literários, não pensava em glória. Eu trabalhava em jornal naquela época. Jamais Graciliano Ramos ou José Lins do Rego me pediram que publicasse uma nota sobre eles”.
GMN : O desleixo com a glória imediata foi, então, uma atitude que o senhor herdou de Graciliano Ramos ?
Ledo Ivo : “Uma característica de Graciliano Ramos -que me orgulha- é a pobreza. Era um escritor que andava de ônibus. Vivia-se num Brasil diferente. Naquele tempo, só Carlos Drummond de Andrade tinha um carro – oficial. Os outros eram Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima. Eram os três escritores que tinham carro ! Um negócio impressionante, porque todo mundo andava de bonde ou de ônibus. Não havia feriado. A José Olympio ficava aberta aos sábados até seis horas da tarde. Era um mundo diferente, o da vida literária, marcada pela existência de suplementos literários.
Mas havia, em Graciliano Ramos, um detalhe que me impressionava : o problema da formação literária. Eu ficava impressionado com o fato de que a formação literária de Graciliano Ramos era – de certa maneira – muito reduzida. Baseava-se nos brasileiros Machado de Assis e Aluísio Azevedo – um autor de quem ele gostava -no português Eça de Queiroz e nos russos Tolstói, Dostoievski e Gorki. Com esse pequeno mundo de leitor, Graciliano Ramos fez uma uma obra grandiosa. Nunca leu Marcel Proust, por exemplo. Quando eu perguntava por que, ele dizia : “Não leio veados ! “.
Quando o visitei pela última vez, no hospital, ele chorou, porque sabia que ia morrer. Enquanto chorava, falava - e muito – sobre a mãe. O hospital ficava aqui ao lado, onde hoje é este edifício (Ledo aponta para fora do apartamento). Aquele foi nosso último encontro, porque eu estava de partida para Paris. Fui me despedir. Graciliano estava esquálido. De vez em quando, falava coisas desconexas. Contava que a mãe, quando casou, levou as bonecas para casa – um negócio curioso.
O choro de Graciliano ficou como uma lembrança marcante, porque já trazia a saudade da vida. Eu senti ali que, por mais que ele dissesse que odiava a vida, ele, na verdade, amava viver. O que matou Graciliano foi um câncer no pulmão. Era um fumante de cigarros Selma. Só escrevia bebendo cachaça. Jorge de Lima também morreu de câncer no pulmão, mas nunca fumou.
Os homens não morrem de doenças : morrem de morte”.
GMN : O senhor escreveu em suas memórias : “Vivo escrevendo, mas o trágico é que escrever não é viver”. Com que freqüência, então, o senhor tem a sensação de estar substituindo a vida pela escrita ?
Ledo Ivo: “É um drama comum a todo e qualquer escritor este sentimento de que estamos vivendo, sim, mas essa vida se destina somente a acumular experiências para a obra literária. Já a quase totalidade das pessoas se limita a viver, porque não dispõe de linguagem. Trago um mistério inicial em minha biografia : por que logo eu, numa família de onze, revelou a vocação e o destino para a escrita, numa família que não tinha pendores literários ? Sempre tenho a impressão de que toda a vida de um escritor é estuário onde se acumula a matéria que se transformará em obra literária. O escritor é, então, uma pessoa condenada não a viver, mas a escrever.
Fausto Cunha – grande crítico, que notou, em minha procedência literária, a influência de poetas malditos como Rimbaud, Verlaine e Baudelaire – me disse : “O grande erro de sua vida é que você não morreu aos vinte anos. Se tivesse morrido moço, teria deixado “Ode e Elegia”, “As Imaginações”, e “Acontecimento do Soneto”. Então, seria um poeta como Castro Alves ou Casemiro de Abreu !.Vida longa atrapalha a biografia !”.
João Cabral me disse a mesma coisa. Eu respondi : “Prefiro ser o Victor Hugo das Alagoas – o poeta que vive até os oitenta anos !”. Prefiro o mistério dos poetas que, como Drummond e Manuel Bandeira, tiveram uma vida longa e uma obra igualmente longa”.
GMN : Ariano Suassuna – que foi homenageado no carnaval aqui no Rio – disse que já tinha recebido a homenagem do “Brasil oficial”, ao entrar para a Academia Brasileira de Letras e estava recebendo ali, no sambódromo, a homenagem do que ele chama de “Brasil Real”. O senhor – que já foi homenageado pelo “Brasil Oficial” ao ser recebido por unanimidade na Academia Brasileira de Letras – sente falta do reconhecimento do “Brasil Real”, já que não é tão conhecido como poeta como deveria ?
Ledo Ivo: “O poeta inglês John Mansfield diz que já viu o azarão no jóquei ganhar o prêmio, já viu flor brotar da pedra, já viu coisas amáveis feitas por homens de rosto feio. “Eu também espero” – diz ele. Confesso que o problema do reconhecimento vasto não me preocupa. A vida literária se faz pela diversidade e pela multiplicidade. Não se sabe se o escritor de pouco público de hoje será o escritor de grande público de amanhã.
Um escritor pode ser obscuro e desconhecido hoje e famoso e glorioso amanhã. Você pode também estar dentro da literatura e um dia ser expulso! São coisas que não me preocupam. O que me preocupa é a criação literária. Já que sou uma criatura dotada de linguagem, quero me exprimir. Mas sei que uma obra só se completa com a existência do outro. Há sessenta anos estou esperando por esse leitor. Um dia ele haverá de aparecer”.
GMN : O poema “A Queimada” – aquele que fala do lobo no covil – é uma declaração de princípios de que o escritor deve ser, no fim das contas, um solitário ?
Ledo Ivo: “O escritor deve ser um solitário solidário. A verdade, como digo no poema, não pode ser dita”.
GMN : O senhor reclama daqueles escritores que só brilham em congressos...
Ledo Ivo: “Oswald de Andrade – de quem fui muito amigo até brigarmos – me procurou, magoado, porque tinha sido expulso do Partido Comunista. Os comunistas, então, não o deixaram participar do Congresso dos Escritores de São Paulo. Eu disse a ele: “É besteira ! . Nietzsche nunca participou de um congresso de escritores” (risos)…
GMN: Por que o senhor diz que detesta escritores que consideram a criação poética “um suplício” ?
Ledo Ivo: “Tenho horror desses camaradas que passam o tempo todo dizendo que gemem e suam na hora de escrever. A minha criação literária é uma felicidade. Quando escrevo, parece que as coisas já vêm prontas, organizadas subconscientemente. Pensam que “capino” o meu texto. Mas o meu texto vem espontaneamente. Não tenho nenhuma simpatia por escritores que cortam. A minha simpatia maior é pelos escritores que acrescentam !.
João Cabral uma vez me disse que passava noites acordado, com angústia. Eu dizia “Você só diz que passa noites acordado para ver se me causa inveja, mas não causa não!”.
GMN : Ao contrário do que dizia Carlos Drummond de Andrade, escrever não é “cortar palavras”, mas acrescentar?
Ledo Ivo: “Um escritor francês disse que o bom escritor é aquele que “enterra uma palavra por dia”. Para mim, o bom escritor é o que desenterra uma palavra por dia ! . Porque o escritor lida com um patrimônio lingüístico. De vez em quando o brasileiro ressuscita palavras esquecidas”.
GMN : Por que afinal de contas o senhor não inclui em seus livros o tão citado poema sobre o Recife ?
Ledo Ivo: Em primeiro lugar, porque os alagoanos protestariam. Eu tinha dezesseis anos quando escrevi o poema :

“Amar mulheres, várias
amar cidade, só uma – Recife.
E assim mesmo com as suas pontes
E os seus rios que cantam
E seus jardins leves como sonâmbulos
E suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau”

O poema reflete a descoberta do Recife por um alagoano. Porque Recife tem um lado cosmopolita – que me impressionou muito. O meu pai era pernambucano. A família Ivo é pernambucana. Eu era considerado meio pernambucano por ser ligado ao grupo do crítico Willy Lewin, nos anos quarenta. Recife foi a cidade de minha primeira formação literária. Fazíamos poemas nas mesas do Lafayette, numa época de boemia. O poema sobre o Recife ficou desaparecido até 1947, quando chegou às mãos de Mauro Mota – que o publicou no Diário de Pernambuco (ou terá sido no Jornal do Commercio). O destino de um poema é curioso. A gente escreve um poema; ele ganha vida própria, começa a circular.
Guardo a lembrança de um conselho que Joaquim Cardozo me deu : ele dizia que eu deveria ser um poeta alagoano, assim como ele era um poeta pernambucano. O sentimento do berço tinha grande importância para ele”.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, O GRANDE POETA SECRETO, ENTRA EM CENA
GMN : Qual é a grande lembrança que o senhor traz da convivência com Carlos Drummond de Andrade ?
Ledo Ivo: “O que me impressionou em Drummond, já no primeiro encontro, foi um certo “fechamento” interior. Não se entregava. Era como se vivesse insulado em si mesmo. Há em Drummond algo que é “intransmissível”. Tive essa sensação de intransmissibilidade.
Eu levei meus primeiros poemas para Drummond, no gabinete em que ele trabalhava, no prédio do Ministério da Educação, no centro do Rio. Depois que leu, ele até chamou a atenção de outros escritores para mim. Em seguida, vieram as rusgas, porque havia divisões políticas naquele tempo.
A coisa mais impressionante que Drummond me disse foi num de nossos últimos encontros. Um certo poeta brasileiro – de quem não quero dizer o nome – proclamou-se herdeiro de Drummond. Quando me encontrei com ele, disse: “Como é que vai o herdeiro?” . E ele : “O herdeiro de um poeta é o poeta diferente do modelo. O meu herdeiro será um poeta inteiramente diferente de mim : é esta a lição da poesia”.
O herdeiro de Olavo Bilac foi Mário de Andrade. Os herdeiros são os diferentes. São até os adversos : não são os assemelhados. É a grande lição de Drummond que ficou em mim : ele não espera ter um clone como herdeiro. (risos) O que Drummond esperava era o “anti-clone”.
GMN : Nesse primeiro encontro, o senhor – que viria a se considerar um lobo no poema “A Queimada” – teve a sensação de que o Drummond era o “urso polar”, como ele disse que era num dos poemas ?
Ledo Ivo: “Tive essa sensação. Drummond tinha uma vida amorosa muito escondida – que depois, infelizmente, foi violada pela imprensa. Eu via, em Drummond, um grande poeta secreto. Naquela época, 1940, Drummond não tinha a notoriedade que ganhou depois. O próprio Manuel Bandeira pensava que o grande poeta brasileiro daquela época fosse Augusto Frederico Schmidt. Porque o Schmidt enrolava todo mundo (risos). Schmidt até pensou em fazer um poema sobre a descoberta do Brasil, mas depois Drummond veio com A Rosa do Povo e acabou com a festa”.

“Sou apenas um homem.
Um homem pequenino à beira de um rio.
Vejo as águas que passam e não as compreendo.
Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.
Vi que amanheceu porque os galos cantaram.
Como poderia compreender-te, América ?
É muito difícil.
Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.
O rosto denuncia certa experiência.
A mão escreveu tanto – e não sabe contar !
A boca também não sabe.
Os olhos sabem – e calam-se”
(Trecho de “América”, poema do livro “A Rosa do Povo”/Carlos Drummond de Andrade)

GMN : O que ficou da amizade com Manuel Bandeira ?
Ledo Ivo: “Minha ligação com Manuel Bandeira foi profunda. De todos os poetas, talvez o que mais me tenha marcado e ensinado foi Manuel Bandeira. Quando eu era menino, mandei poemas para ele. Recebi de volta um cartãozinho em que ele tocou em um ponto que ainda hoje permanece na poesia: “Há muita magia verbal em seus poemas”.
Depois percebi que, para mim, a operação poética é como se fosse um encantamento da linguagem – uma magia. Sou um poeta que acha que a poesia é o uso supremo da linguagem. Bandeira fez esta descoberta em meu momento inicial. Deu-me lições perenes : por exemplo, a de que o poeta deve ser um intelectual culto. Só a cultura tem condições de abrir caminhos. Ao poeta, não basta apenas ter talento e vocação. Por que o poeta deve ser realmente um homem culto ? Porque a poesia é um sistema milenar de expressão. É preciso conhecer os mestres. A criação poética não é, portanto, um problema só de sensibilidade. É um problema de cultura. Somente o vasto conhecimento da poesia e da literatura é que permite ao poeta exprimir-se.
A fidelidade à literatura deve ser o emblema do escritor. Devemos continuar segurando o estandarte. Vivemos um tempo de mudanças. Somos uma civilização de massas, uma civilização eletrônica, uma civilização consumista. Tudo alterou a posição do escritor e do poeta no Brasil.
Já não temos aqueles poetas populares de que Drummond foi o último grande exemplo. O poeta vive hoje em uma época de anonimato. Os ícones são diferentes, os gurus são outros. A linguagem literária hoje compete com a linguagem eletrônica, o CD-Rom, o cinema, o disco . Mas, há alguma coisa que só a poesia tem condições de dizer. A poesia, então, existirá sempre, como linguagem específica, porque só ela pode dizer, sobre a condição humana, algo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira. O cinema e a televisão lidam de uma maneira diferente”.
GMN : O poeta, então, deve se resignar a ser anônimo, nesse mundo dominado pela fama e pela mídia eletrônica?
Ledo Ivo: “A função do poeta na sociedade é escrever poemas.A notoriedade é secundária”.
GMN : O senhor tem esta sensação de deslocamento ?
Ledo Ivo: “Pelo contrário ! Para mim, seria inconcebível ter aparecido antes ou ter aparecido depois. Como poeta, surgi no momento certo.Tenho um grande sentimento da minha contemporaneidade.O mundo atual habita os meus poemas.A função do poeta é,também,celebrar o mundo em que vive. Não tenho nostalgia pelo passado. Não gostaria de ter nascido no passado,assim como não gostaria de ter nascido no futuro”.
GMN : Do que o senhor ouviu de João Cabral de Melo Neto, qual foi a grande lição ?
Ledo Ivo: “João Cabral me deu a lição da diferença entre os poetas. Cada poeta é diferente. As estéticas dos poetas são até inconcebíveis. Como são diferentes os caminhos para fazer a mesma coisa ! . O que mais me impressiona em João Cabral é ele ser saudado sempre como “o poeta da razão”, no Brasil. Para mim, João Cabral de Melo Neto é o poeta da “anti-razão”, o poeta da obsessão, o poeta das coisas ocultas,o poeta das coisas sibilinas, herméticas. A poesia que ele deixou é complexa, mas se abre para o grande acesso popular, o que é curioso.
Uma vez, João Cabral me disse: “Nós estamos fazendo uma obra literária. Procuramos fazer uma obra literária o maior possível. De repente, lá em Nova Iguaçu , a essa hora, anonimamente, alguém pode estar fazendo a obra com que nós sonhamos”.
GMN : Para o senhor – que se considera “um homem de muitas perguntas e quase nenhuma resposta” – qual é a grande pergunta, a grande perplexidade que até hoje o atormenta ?
Ledo Ivo: “A perplexidade é estar no mundo – com todas essas perguntas que se acumulam; o fato de ser transitório; a existência e não-existência de Deus; o problema da condição humana. Vivo num mundo em que quase não há resposta. Não sei onde começo e onde termino. Sequer sei se existo, no sentido de ter uma existência nítida, com fronteiras definidas. Talvez o meu mundo seja o mundo da ambigüidade.
Drummond chamou a minha poesia de “múltipla”. É uma frase que ilumina mais uma existência poética do que muitos rodapés. Quando publiquei “Confissões de um Poeta”, Hélio Pellegrino me telefonou para dizer que ficou impressionado com o clima de procura que há em todo o livro. Como era psicanalista e poeta, Hélio Pellegrino disse que minha descoberta estava exatamente nessa procura.
Vivo nessa perpétua indecisão. O que me impressiona é que essa procura tenha durado tanto; não tenha acabado ainda”.
GMN : Há em seus textos uma certa obsessão com a finitude. Qual foi o primeiro espanto que o senhor teve diante da morte?
Ledo Ivo: “Venho de uma família numerosa. Tenho um irmão que morreu, o chamado “anjinho”, aquele que morre novo. Outro irmão meu, chamado Éber, morreu aos oito anos. Numa família nordestina, numerosa, a morte vive sempre rodeando as pessoas. Quando menino, eu gostava de visitar cemitérios. Mas censuro a morte ! Como sou uma criatura do aqui e do agora, fico impressionado com a morte, porque ela faz com que a gente já não esteja aqui”.
Talvez venha da infância o sentimento de que a vida é provisória e instantânea. É um relâmpago. Além de tudo, há o mistério da existência : “por que será que uns morrem cedo, outros morrem tarde e outros não morrem nunca ? “.
GMN : O senhor faz, em um de seus textos, uma referência a uma caminhada solitária pelas alamedas do Cemitério São João Batista. O que é que o senhor estava fazendo no cemitério ?
Ledo Ivo: “Devo ter ido me despedir de um amigo. Não fui para visitar o cemitério. O engraçado é que João Cabral escreveu o meu epitáfio em versos que ele nunca incluiu em livro. O que João queria era fazer um livro só de epitáfios de amigos. Terminou não fazendo.
João foi um grande amigo meu, mas tínhamos temperamentos diferentes. Enquanto ele ia para um lugar, eu ia para outro. Nunca nos encontramos – nem esteticamente. Dizia que eu falava muito; achava que só a morte é que me reduziria ao silêncio.
O epitáfio que João Cabral criou para mim é este :

“Aqui repousa
Livre de todas as palavras
Ledo Ivo,
Poeta,
Na paz reencontrada
de antes de falar
E em silêncio, o silêncio
de quando as hélices
param no ar “.


Um comentário
João disse:
quinta-feira, 3rd janeiro 2013 as 23:37 - Ip: 177.4.181.254
Grande, como é grande, porque um poeta de qualidade sempre é. Nem a morte é limite para as asas da poesia. Ou, como Manoel de Barros, em “O fotógrafo”, ironizou Maiakoviski, a poesia é como nuvem: nela não se põe calças, muito menos as apertadas.
Quem não entendeu que leia Manoel de Barros, que leia Ledo Ivo e Maiakoviski.





E GILDO MARÇAL BRANDÃO (Mata Grande, 17 de fevereiro de 1949 — São Sebastião, 15 de fevereiro de 2010)


E GRACILIANO RAMOS (Quebrangulo, 27 de outubro de1892— Rio de Janeiro, 20 de março de 1953)


E DRA. NISE DA SILVEIRA (Maceió, 15 de fevereiro de 1905 — Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1999)


ALAGOAS, ALAGOAS, OS SEUS VERDADEIROS FILHOS VEM DE MARÇOS, RAMAGENS E SELVAS.

MAS SÃO BRANDOS, GRACIOSOS E NICE


Nice é um termo da língua inglesa que tem vários significados, dependendo do contexto em que é empregado. Nice (pronuncia-se nais) é um adjetivo que qualifica aquilo que é bom, bonito, lindo, belo. Ex.: What a nice story! Que bela história!


NISE É NOME DE UMA MULHER VALENTE

PORÉM GRACIOSA E BRANDA.




Elide Rugai Bastos


Falar de um amigo que nos deixou é muito penoso, sobretudo quando fomos parceiros de trabalho durante muitos anos e empreendemos, com orientandos e ex-orientandos, uma investigação em conjunto. Continuamos a dialogar com ele e a endereçar-lhe perguntas diante das dúvidas e dos embates; e, agora, como a resposta não se faz pronta como sempre o foi, assalta-nos a perplexidade. A ausência se faz sentir mais fortemente quando voltamos a reler seus textos, tantas vezes discutidos e que fundamentaram nossa reflexão. A morte inesperada de Gildo Marçal Brandão deixou um grande vazio entre nós.
O diálogo que nos aproximou e permitiu trabalho conjugado tem seu eixo na reflexão sobre o pensamento político-social brasileiro e se explicita principalmente em um projeto temático em desenvolvimento. O projeto Linhagens do Pensamento Político-Social Brasileiro recebeu o nome do último livro de Gildo e reúne pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Suas hipóteses estão ancoradas direta ou indiretamente nas provocações levantadas nesse texto.
Embora pareça, à primeira vista, não haver continuidade entre a pesquisa desenvolvida sobre a gênese e o papel político da esquerda brasileira, que resultou no livro A Esquerda Positiva: As Duas Almas do Partido Comunista (1920-1960), publicado em 1997, e o resultado das investigações seguintes, há uma relação intrínseca entre as duas formulações. Gildo várias vezes lembrou que aquele amplo estudo deixou um saldo de hipóteses, argumentos, reflexões sobre o modo de tratar a relação entre ideias e processos políticos. Esse conjunto de questões o levou a pensá-las em outros contextos, em outras configurações históricas. Assim, a temática da organização do poder, que o desafiara desde sempre, fazendo-se presente nos textos anteriores àquele livro, encontrou outro campo de desenvolvimento: o pensamento político brasileiro. Dessa forma, as categorias intelectuais e as formulações políticas implicadas na construção do Estado nacional no século XIX passaram a ser o objetivo de suas preocupações. A seguir, buscou compreender outros momentos dessa edificação, ou, como se referia, tomou o fio de outra meada. Ou seja, buscou, na história das ideias que os brasileiros pensaram ou aclimataram, a via de acesso para a compreensão da sociedade que construíram. O centro de interesse, como expressa no memorial para seu concurso de titularidade, são as relações entre teoria política e história das ideias, entre visões de mundo e instituições políticas, entre o mundo das ideias e o mundo da ação política.
O passo seguinte consistiu na difícil elaboração da abordagem desse objeto. Partindo do princípio de que a construção da Nação e a do Estado são momentos de um longo processo, formula as hipóteses metodológicas que constituirão pontos de partida analíticos sobre os quais repousa a pesquisa do pensamento brasileiro. O desenho desse procedimento é explicitado em Linhagens do Pensamento Político Brasileiro, publicado em 2007, que tem por base sua livre-docência defendida em 2004, no qual a sugestão fundamental é a afirmação de serem as ideias forças sociopolíticas. Em decorrência, aborda o pensamento e as ciências sociais como componentes internos das práticas e das instituições; esses componentes constituem ainda conjunto de referências que servirão de apoio aos embates políticos.
Ao afirmar a presença de linhagens no pensamento político brasileiro, Gildo não pressupõe a existência de uma linearidade ou de um traço evolutivo que unifica as ideias. Supõe continuidades e rupturas entre elas. Afirma não existirem matrizes ideológicas transtemporais. Desse modo, procura equilibrar duas formas de compreensão do pensamento: de um lado os elementos teóricos fundantes das ideias; de outro, o contexto histórico em que são gestadas, desenvolvidas, modificadas e aplicadas às situações concretas. A partir dessa difícil combinação, aponta as "afinidades eletivas" existentes entre autores que, por vezes, nem mesmo se dão conta desse fato. Tais encontros ocorrem tanto a partir de uma polissemia de conteúdos aos quais se aplicam os mesmos conceitos quanto de uma aparente multiplicidade de termos que remetem a uma mesma conotação. Assim, Gildo propõe um método para abordar tanto os temas quanto os autores brasileiros.
Sem negar seus "hábitos de leitura sedimentados" - para lembrar expressão de Jameson -, pois declara sempre sua dívida para com Hegel, coloca-se na posição do analista que se vê diante do objeto pela primeira vez. Suas perguntas sobre a temática e sobre os intérpretes são sempre novas. Trata-se de uma atitude constitutiva. Assumo a tentação de lhe aplicar alguns versos de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa): "Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do Mundo".
Vale lembrar que a questão do método foi uma preocupação constante da reflexão de Gildo. Duas décadas antes da publicação de sua livre-docência lembrava que "a questão de método é uma questão política. De outro modo, poderia ser supérflua ou se arriscar a permanecer formal - apesar de possíveis intenções contrárias - quando desligada e incontaminada pelas análises concretas de situações concretas" (Brandão, 1977:154). Dessa ótica, ao estudar o pensamento, afasta-se de uma leitura meramente descritiva, de uma análise que se atenha somente ao discurso e da consideração das ideias desligadas do contexto no qual são produzidas ou retomadas.
A possibilidade de estabelecer a conexão ideias/instituições políticas se dá, em sua formulação, através da pergunta: é possível captar historicamente a formação dos programas políticos das grandes correntes ideológicas do país? A busca de resposta à indagação impeliu-o a identificar e a descrever as principais "formas de pensamento" e as "famílias intelectuais" que, a partir da segunda metade do século XIX, dominaram o pensamento político brasileiro, bem como a verificar como essas correntes responderam aos desafios colocados pela sociedade e pela política. A gênese, a estrutura e as transformações de cada "família intelectual" - por hipótese, os "idealistas orgânicos", "idealistas institucionais", "pensamento radical de classe média" e "materialistas históricos", tomando emprestadas categorias cunhadas por Oliveira Vianna e Antonio Candido - são pesquisadas para indicar suas continuidades, metamorfoses e pseudometamorfoses. A análise tem por objeto tanto o conteúdo substantivo das ideias quanto as formas de pensar subjacentes, isto é, "as estruturas mentais e categorias teóricas a partir das quais a realidade é percebida, a experiência elaborada e a ação política organizada" (id., 2009:57). Assim, volta ao clássico problema das relações forma e conteúdo que o preocupava desde aquele artigo de 1977.
Contrariando grande parte das interpretações sobre o pensamento brasileiro, Gildo demonstra que a vida ideológica brasileira não é aleatória, e que suas principais correntes não são fenômenos conjunturais. Mostra a continuidade existente entre as formulações dos denominados "intérpretes do Brasil" e as análises resultantes da pesquisa acadêmica institucionalizada. Em outros termos, nenhuma inovação intelectual parte de um espaço desabitado pelo conhecimento.
Na segunda parte de Linhagens do Pensamento Político Brasileiro, reflete sobre a teoria política a partir da periferia. Desafiado pela pergunta "por que pensar o Brasil?", Gildo primeiramente dá uma resposta aparentemente simples: "Porque se não o fizermos ninguém o fará". Contudo, o argumento ganha força em seu desdobramento. Lembrando que, embora nossos autores possam ser vistos como menores em face dos grandes intelectuais das ciências sociais, ainda assim abrem a possibilidade de transformar a fraqueza em vantagem, pois a análise da parte pode iluminar o todo. É a mesma estratégia usada por Gramsci: ao debater a questão meridional, busca apontar antes as fraquezas do sistema do que os problemas exclusivos da região sul da Itália; pensa a emancipação do sul como um momento necessário da emancipação da nação. Segundo Gildo, olhar o mundo da perspectiva da periferia pode lançar luz, a partir de um novo ângulo, sobre a natureza e a evolução da cultura, do capitalismo e da política mundiais: "Uma vez que não se pode pensar a nação nos limites da nação, não é possível pensar o Brasil sem situá-lo no mundo. Mas a maneira de fazê-lo torna possível - ou não - pensar o próprio mundo da perspectiva da periferia" (2007:142). Embora se trate de um método de análise e da avaliação de seus efeitos, a discussão é mais ampla. Trata-se de refletir sobre o papel dos intelectuais nos países periféricos.
Lembra que o quadro histórico do atraso, no qual as inúmeras tentativas "de domar nossa selvagem democracia" em uma sociedade rebelde a reduzi-la ao jogo das instituições, produz e reproduz o protagonismo dos intelectuais. Pensar um país em que a burguesia não enfrentou a tarefa de incorporar seus subalternos e a intelectualidade ora se propõe "ir ao povo" ou "dar voz aos que não têm voz", ora se julga investida de um mandato em uma "advocacia gratuita" das classes sociais é a difícil temática que Gildo se propõe a deslindar.
Pelas razões expostas, pelo objetivo a ser alcançado e pelo método escolhido, fica clara sua preocupação com a fragmentação do conhecimento, sua crítica a todas as leituras parciais e sua recusa à utilização de fórmulas feitas. Só assim, de acordo com sua perspectiva, será possível reconstituir as linhas de força do pensamento político brasileiro e os processos reais por ele interpelados, provocados ou dirigidos.
Um ponto importante na análise proposta é a abordagem das crises. Nesses momentos, os paradigmas revelam suas potencialidades cognitivas e também tornam claras suas fragilidades. Na crise, as tensões se explicitam, as explicações rotinizadas perdem seu poder, e as análises são postas em outro patamar. Ou seja, a crise se apresenta em um duplo sentido. De um lado é componente da conjuntura em que as ideias emergem ou são retomadas; de outro, ganha um sentido heurístico, abrindo novas portas à reflexão.
Até o momento falei de teoria e método nos trabalhos de Gildo. Falo agora de seu comportamento diante do objeto de pesquisa. É interessante relembrar que, tanto em suas falas quanto em seus textos, raras vezes empregava o termo "concluindo". Preferia usar as expressões "tudo somado" ou, mais contundentemente, "feitas as contas". Não era apenas um modo de se expressar. Tratava-se de uma atitude diante do conhecimento e das ideias. Significava: a partir dos dados apresentados e da argumentação desenvolvida, estamos diante de novos elementos que abrem possibilidades a outras direções do pensamento. Ou seja, fizemos um balanço para, a partir dele, iniciarmos, nós ou outros, diferente etapa de investigação. É essa posição diante da vida, da política, do pensamento, dos conflitos que permite a todos que o conheceram reconhecer nele a presença de duas qualidades raramente associadas: era capaz de discutir e de lutar firmemente (e até ferozmente) por suas ideias e, ao mesmo tempo, respeitar a posição dos outros e admitir a pluralidade das opiniões.
Contribuições teórico-metodológicas, atitude impecável diante da pesquisa e valorização do trabalho coletivo são alguns pontos que destaquei como parte da herança que nos legou. No entanto, existem muitíssimas outras razões para lamentar o vazio que sua personalidade firme deixou. Sei que nem de longe consegui exprimir em palavras a admiração que sinto por Gildo e os laços de amizade que nos uniram.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, Gildo Marçal. (1977), "Totalidade e Determinação Econômica". Temas de Ciências Humanas, nº 1.         [ Links ]
______. (2007), Linhagens do Pensamento Político Brasileiro. São Paulo, Hucitec.         [ Links ]
______. (2009), Memorial de Atividades. Apresentado no concurso de titularidade do Departamento de Ciência Política, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]


(Recebido para publicação em maio de 2010)








Gildo Marçal Brandão


Enviado em 11 de ago de 2011
O jornalista e cientista político Gildo Marçal Brandão conta porque aceitou, em 1978, o desafio de dirigir a redação de Voz da Unidade, o primeiro jornal do PCB distribuído legalmente em décadas. Dias depois do depoimento, Gildo faleceu. Registramos aqui a nossa homenagem.




Entrevista - Ledo Ivo (poeta) 1/2







Entrevista - Ledo Ivo (poeta) 2/2




Imagem Peninsular de Lêdo Ivo



“Na virada da primeira década do século XXI, nossa legislação processual penal permanece atrelada à codificação elaborada no longínquo ano de 1941, o nosso incansável Código de Processo Penal.”

“Evidentemente, de lá para cá muito foi alterado. Não fosse isso, e certamente ainda estaríamos nas trevas de uma cultura confessadamente autoritária. Mas continuamos a aguardar uma reforma mais atualizada com os novos sopros da pós-modernidade.”

“Nosso Código é de 1941, o que, por si só, já explica o elevado grau da superação de seu conteúdo originário.”

“A Ló, Pedro Ivo, Isabela e Gabriel, por todas as razões.”


Eugênio Pacelli Curso de Processo Penal 20ª edição revista e atualizada Editora Atlas Ltda 2016

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