terça-feira, 13 de junho de 2017

DO GRANDE MEDO QUE PASSOU O AUTOR NO REINO DE QUEDÁ

- Nem que nos dês quanto dinheiro há em Malaca, porque se tal fizermos nos mandará el-rei cortar as cabeças.

7. DO GRANDE MEDO QUE PASSOU O AUTOR NO REINO DE QUEDÁ


Vindo de Malaca, Fernão Mendes Pinto desembarcou na cidade de Quedá, na costa de Samatra. Viaja ao serviço de Pero de Faria, capitão de Malaca. Acompanha-o um mouro, chamado Coja Ale, que é administrador do capital investido nesta viagem pelo mesmo capitão, sendo Fernão Mendes o encarregado da parte diplomática e oficial.
Neste tempo que aqui chegámos estava el-rei celebrando, com grande aparato e pompa fúnebre de tangeres, bailos, gritas e de muitos pobres a que dava de comer, as exéquias da morte de seu pai, que ele matara às punhaladas para se casar com sua mãe, que estava já prenhe dele. E por evitar as murmurações que sobre este horrendo e nefandíssimo ca$o havia no povo, mandou lançar pregão que so pena de gravíssimas mortes ninguém falasse no que já era feito. Por razão do qual nos disseram aí que por outro modo de tirania tinha já mortos os principais senhores do reino e outra grande soma de mercadores, cujas fazendas mandou que fossem tomadas para o fisco, o que lhe importou mais de dous contos d'ouro. E com isto era já neste tempo que aqui cheguei tamanho o medo em todo o povo, que não havia pessoa que ousasse soltar palavra pela boca.
E porque este mouro Coja Ale que vinha comigo era de sua natureza solto da língua e muito atrevido em falar o que lhe vinha à vontade, parecendo-lhe que por ser estrangeiro e com nome de feitor do capitão de Malaca poderia ter mais liberdade para isso que os naturais, e que o rei lho não acoimaria {1} a ele como fazia aos seus, sendo um dia convidado doutro mouro que se dava por seu parente, mercador estrangeiro natural de Patane, parece ser, segundo me despois contaram, que estando eles no meio do banquete, já bem fartos, vieram os convidados a falar neste feito tão publicamente que ao rei, pelas muitas escutas {2} que nisso trazia, lhe deram logo rebate.
O qual sabendo o que passava, mandou cercar a casa dos convidados e tomando-os a todos, que eram dezassete, lhos trouxeram atados. Ele em os vendo, sem lhes guardar mais ordem de justiça, nem os querer ouvir de sua boa ou má razão, os mandou matar a todos com ua morte cruelíssima, a que eles chamam de gregoge, que foi serrarem-nos vivos pelos pés e pelas mãos e pelos pescoços, e por derradeiro pelos peitos até o fio do lombo, como os eu vi despois a todos.
E temendo-se el-rei que pudesse o capitão de Malaca tomar mal mandar-lhe ele matar o seu feitor na volta dos condenados, e que por isso lhe mandasse lançar mão por algua fazenda sua que lá tinha em Malaca, me mandou logo naquela noite seguinte chamar ao jurupango {3} onde então estava dormindo, sem até àquela hora eu saber algua cousa do que passava. E chegando eu já despois da meia-noite ao primeiro terreiro das casas, vi nele muita gente armada com treçados {4} e cofos {5} e lanças, a qual vista, sendo para mim cousa assaz nova, me pôs em muito grande confusão. E suspeitando eu que poderia ser algua traição das que já em outros tempos nesta terra houve, me quisera logo tornar, o que os que me levavam não consentiram dizendo que não houvesse medo de cousa que visse, porque aquilo era gente que el-rei mandava para fora a prender um ladrão, da qual resposta confesso que não fiquei satisfeito.
E começando eu já neste tempo a tartamelear, sem poder quase pronunciar palavra que se me entendesse, lhes pidi assi como pude que me deixassem tornar ao jurupango em busca de uas chaves que me lá ficaram por esquecimento, e que lhes daria por isso quarenta cruzados, logo, em ouro. A que eles todos sete responderam:
- Nem que nos dês quanto dinheiro há em Malaca, porque se tal fizermos nos mandará el-rei cortar as cabeças.
Neste tempo me cercaram já outros quinze ou vinte daqueles armados, e me tiveram todos fechado no meio; até que a menhã começou a esclarecer, que fizeram saber a el-rei que estava eu ali. O qual me mandou logo entrar, e só Deus sabe como o pobre de mim então ia, que era mais morto que vivo.
E chegando ao outro terreiro de dentro, o achei em cima de um alifante, acompanhado de mais de cem homens, afora a gente da guarda, que era em muito mor quantidade. O qual quando me viu da maneira que vinha, me disse por duas vezes:
- Jangão tacor, não hajas medo, vem para cá, e saberás o para que te mandei chamar.
E, acenando com a mão, fez afastar dez ou doze daqueles que ali estavam, e a mim me acenou que olhasse para ali. Eu então, olhando para onde ele me acenou, vi jazer de bruços no chão muitos corpos mortos, todos metidos num charco de sangue, um dos quais conheci que era o mouro Coja Ale, feitor do capitão, que eu trouxera comigo. Da qual vista fiquei tão pasmado e confuso que, como um homem desatinado, me arremessei aos pés do alifante em que el-rei estava, e lhe disse chorando:
- Peço-te, senhor, que antes me tomes por teu cativo que mandares-me matar como a esses que aí jazem! Porque te juro à lei de cristão que o não mereço. E lembro-te que sou sobrinho do capitão de Malaca, que te dará por mim quanto dinheiro quiseres, e aí tens o jurupango com muita fazenda, que também podes tomar, se fores servido.
A que ele respondeu:
- Valha-me Deus! Como? Tão mau homem sou eu que isso faça? Não hajas medo de cousa nenhua, assenta-te e descansarás, que bem vejo que estás afrontado, e despois que estiveres mais em ti te direi o por que mandei matar esse mouro que trouxeste contigo. Porque se fora português ou cristão, eu te juro em minha lei que o não fizera, inda que me matara um filho.
Então me mandou trazer Ua panela com água, de que bebi ua grande quantidade, e me mandou também abanar com um abano, em que se gastou mais de ua grande hora. E conhecendo ele então que estava eu já fora do sobressalto, e que podia responder a propósito, me disse:
- Muito bem sei, português, que já te diriam como os dias passados mata ra eu meu pai, o qual fiz porque sabia que me queria ele matar a mim, por mexericos que homens maus lhe fizeram, certificando-lhe que minha mãe era prenhe de mim, cousa que eu nunca imaginei. Mas já que com tanta sem-razão ele tinha criado isto, e por isso tinha determinado de me dar a morte, quis-lha eu dar primeiro a ele, e sabe Deus quanto contra minha vontade, porque sempre lhe fui muito bom filho: entanto, que por minha mãe não ficar como ficam outras muitas viúvas pobres e desamparadas, a tomei por mulher, e enjeitei outras muitas com que dantes fui cometido, assi em Patane, como em Berdio, Tanauçarim, Siaca, Jambé e Andraguiré, irmãs e filhas de reis, com que me puderam dar muito dote. E por evitar murmurações de maldizentes que falam sem medo quanto lhe vem à boca, mandei lançar pregão que ninguém falasse mais neste caso. E porque esse teu mouro que aí jaz, ontem, estando bêbado, em companhia de outros cães tais como ele, disse de mim tantos males que hei vergonha de tos dizer, dizendo publicamente em altas vozes que eu era porco e pior que porco, e minha mãe cadela saída, me foi forçado por minha honra mandar fazer justiça dele e de essoutros perros tão maus como ele. Pelo que te rogo muito, como amigo, que te não pareça mal isto que fiz, porque te afirmo que me magoaras muito nisso. E se porventura cuidas que o fiz para tomar a fazenda do capitão de Malaca, crê de mim que nunca tal imaginei, e assi lho podes certificar'com verdade, porque assi te juro em minha lei, porque sempre fui muito amigo de Portugueses, e assi o serei enquanto viver.
Eu então ficando algum tanto mais desassombrado, conquanto não estava ainda de todo em mim, lhe respondi que Sua Alteza em mandar matar aquele mouro fizera muito grande amizade ao capitão de Malaca seu irmão, porque lhe tinha roubado toda sua fazenda, e a mim por isso já por duas vezes me quisera matar com peçonha, só por lhe eu não poder dizer as emburilhadas {6} que tinha feitas. Porque era tão mau perro que continuamente andava bêbado, falando quanto lhe vinha à vontade, como cão que ladrava a quantos via passar pela rua.
Desta minha resposta, assi tosca e sem saber o que dizia, ficou el-rei tão satisfeito e contente que chamando-me para junto de si me disse:
- Certo que nessa tua resposta conheço eu seres muito bom homem, e muito meu amigo, porque de o seres te vem não te parecerem mal as minhas cousas, como a esses perros cães que aí jazem.
E tirando da cinta um cris que trazia guarnecido d'ouro, mo deu, e ua carta para Pero de Faria de muito ruins desculpas do que tinha feito.
E despidindo-me então dele pelo milhor modo que pude, e com lhe dizer que havia ali de estar dez ou doze dias, me vim logo embarcar. E tanto que fui dentro ao jurupango, sem esperar mais um momento, larguei a amarra por mão e me fiz à vela muito depressa, parecendo-me ainda que vinha toda a terra após mim, pelo grande medo e risco da morte em que me vira havia tão poucas horas.
FERNÃO MENDES PINTO (c. 1510-1583 | PortugaI)

Eram tantas e tão extravagantes as peripécias deste autor para o imaginário da época que seus contemporâneos só o chamavam de "Fernão Mentes Pinto". Autor de um único livro, e um livro único no gênero - Peregrinações (1614), perto do qual as narrativas de Marco Polo parecem inocentes -, Mendes Pinto conta suas extraordinárias viagens pela índia, Arábia, Etiópia, China, Tartárea e ilhas do Pacífico. Há quem afirme que ele estava com o primeiro grupo de jesuítas que chegou ao Japão. O português de Fernão Mendes Pinto só é legível devido à transposição integral para o português moderno, feita por Adolfo Casais Monteiro, em 7952 (Imprensa Nacional, Lisboa, 7983), e por Antônio José Saraiva (Publicações EuropaAmérica, Lisboa, 7958). Optamos por usar a transcrição de Saraiva, por ser de mais fácil leitura para nós, brasileiros. (Os velhos relatos de aventuras desta época, passando por Robert Louis Stevenson e Rafael Sabatini, alguns séculos mais tarde, são pioneiros no que se chamaria depois de literatura de massa, incluindo aí o policial.)








Os cem melhores contos de crime e mistério da literatura universal / organização Flávio Moreira da Costa. – Rio de Janeiro: Ediouro, 2002





Referência

Os cem melhores contos de crime e mistério da literatura universal / organização Flávio Moreira da Costa. – Rio de Janeiro: Ediouro, 2002

file:///C:/Users/User/Desktop/Os%20100%20Melhores%20Contos%20de%20Crime%20e%20Mist%C3%A9rio%20da%20Literatura%20Universal%20-%20Fl%C3%A1vio%20Moreira%20Da%20Costa%20(3).pdf


https://www.google.com.br/search?q=FERN%C3%83O+MENDES+PINTO+(c.+1510-1583+%7C+PortugaI)&newwindow=1&rlz=1C1PRFB_enBR559BR559&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiZipv916_UAhWIPpAKHYtgB7kQ_AUICygC&biw=1067&bih=513#imgrc=fYsiz-eiQyD6xM:
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