- Nem que nos dês quanto dinheiro há em Malaca, porque se tal fizermos nos mandará el-rei cortar as cabeças.
7. DO GRANDE MEDO QUE PASSOU O AUTOR NO REINO DE QUEDÁ
7. DO GRANDE MEDO QUE PASSOU O AUTOR NO REINO DE QUEDÁ
Vindo
de Malaca, Fernão Mendes Pinto desembarcou na cidade de Quedá, na costa de
Samatra. Viaja ao serviço de Pero de Faria, capitão de Malaca. Acompanha-o um
mouro, chamado Coja Ale, que é administrador do capital investido nesta viagem
pelo mesmo capitão, sendo Fernão Mendes o encarregado da parte diplomática e
oficial.
Neste
tempo que aqui chegámos estava el-rei celebrando, com grande aparato e pompa
fúnebre de tangeres, bailos, gritas e de muitos pobres a que dava de comer, as
exéquias da morte de seu pai, que ele matara às punhaladas para se casar com
sua mãe, que estava já prenhe dele. E por evitar as murmurações que sobre este
horrendo e nefandíssimo ca$o havia no povo, mandou lançar pregão que so pena de
gravíssimas mortes ninguém falasse no que já era feito. Por razão do qual nos
disseram aí que por outro modo de tirania tinha já mortos os principais
senhores do reino e outra grande soma de mercadores, cujas fazendas mandou que
fossem tomadas para o fisco, o que lhe importou mais de dous contos d'ouro. E
com isto era já neste tempo que aqui cheguei tamanho o medo em todo o povo, que
não havia pessoa que ousasse soltar palavra pela boca.
E
porque este mouro Coja Ale que vinha comigo era de sua natureza solto da língua
e muito atrevido em falar o que lhe vinha à vontade, parecendo-lhe que por ser
estrangeiro e com nome de feitor do capitão de Malaca poderia ter mais
liberdade para isso que os naturais, e que o rei lho não acoimaria {1} a ele
como fazia aos seus, sendo um dia convidado doutro mouro que se dava por seu
parente, mercador estrangeiro natural de Patane, parece ser, segundo me despois
contaram, que estando eles no meio do banquete, já bem fartos, vieram os
convidados a falar neste feito tão publicamente que ao rei, pelas muitas
escutas {2} que nisso trazia, lhe deram logo rebate.
O
qual sabendo o que passava, mandou cercar a casa dos convidados e tomando-os a
todos, que eram dezassete, lhos trouxeram atados. Ele em os vendo, sem lhes
guardar mais ordem de justiça, nem os querer ouvir de sua boa ou má razão, os
mandou matar a todos com ua morte cruelíssima, a que eles chamam de gregoge,
que foi serrarem-nos vivos pelos pés e pelas mãos e pelos pescoços, e por
derradeiro pelos peitos até o fio do lombo, como os eu vi despois a todos.
E
temendo-se el-rei que pudesse o capitão de Malaca tomar mal mandar-lhe ele
matar o seu feitor na volta dos condenados, e que por isso lhe mandasse lançar mão
por algua fazenda sua que lá tinha em Malaca, me mandou logo naquela noite
seguinte chamar ao jurupango {3} onde então estava dormindo, sem até àquela
hora eu saber algua cousa do que passava. E chegando eu já despois da
meia-noite ao primeiro terreiro das casas, vi nele muita gente armada com
treçados {4} e cofos {5} e lanças, a qual vista, sendo para mim cousa assaz
nova, me pôs em muito grande confusão. E suspeitando eu que poderia ser algua
traição das que já em outros tempos nesta terra houve, me quisera logo tornar,
o que os que me levavam não consentiram dizendo que não houvesse medo de cousa
que visse, porque aquilo era gente que el-rei mandava para fora a prender um
ladrão, da qual resposta confesso que não fiquei satisfeito.
E
começando eu já neste tempo a tartamelear, sem poder quase pronunciar palavra
que se me entendesse, lhes pidi assi como pude que me deixassem tornar ao
jurupango em busca de uas chaves que me lá ficaram por esquecimento, e que lhes
daria por isso quarenta cruzados, logo, em ouro. A que eles todos sete
responderam:
-
Nem que nos dês quanto dinheiro há em Malaca, porque se tal fizermos nos
mandará el-rei cortar as cabeças.
Neste
tempo me cercaram já outros quinze ou vinte daqueles armados, e me tiveram
todos fechado no meio; até que a menhã começou a esclarecer, que fizeram saber
a el-rei que estava eu ali. O qual me mandou logo entrar, e só Deus sabe como o
pobre de mim então ia, que era mais morto que vivo.
E
chegando ao outro terreiro de dentro, o achei em cima de um alifante,
acompanhado de mais de cem homens, afora a gente da guarda, que era em muito
mor quantidade. O qual quando me viu da maneira que vinha, me disse por duas
vezes:
-
Jangão tacor, não hajas medo, vem para cá, e saberás o para que te mandei
chamar.
E,
acenando com a mão, fez afastar dez ou doze daqueles que ali estavam, e a mim
me acenou que olhasse para ali. Eu então, olhando para onde ele me acenou, vi
jazer de bruços no chão muitos corpos mortos, todos metidos num charco de
sangue, um dos quais conheci que era o mouro Coja Ale, feitor do capitão, que
eu trouxera comigo. Da qual vista fiquei tão pasmado e confuso que, como um
homem desatinado, me arremessei aos pés do alifante em que el-rei estava, e lhe
disse chorando:
-
Peço-te, senhor, que antes me tomes por teu cativo que mandares-me matar como a
esses que aí jazem! Porque te juro à lei de cristão que o não mereço. E
lembro-te que sou sobrinho do capitão de Malaca, que te dará por mim quanto
dinheiro quiseres, e aí tens o jurupango com muita fazenda, que também podes
tomar, se fores servido.
A
que ele respondeu:
-
Valha-me Deus! Como? Tão mau homem sou eu que isso faça? Não hajas medo de
cousa nenhua, assenta-te e descansarás, que bem vejo que estás afrontado, e
despois que estiveres mais em ti te direi o por que mandei matar esse mouro que
trouxeste contigo. Porque se fora português ou cristão, eu te juro em minha lei
que o não fizera, inda que me matara um filho.
Então
me mandou trazer Ua panela com água, de que bebi ua grande quantidade, e me
mandou também abanar com um abano, em que se gastou mais de ua grande hora. E
conhecendo ele então que estava eu já fora do sobressalto, e que podia
responder a propósito, me disse:
-
Muito bem sei, português, que já te diriam como os dias passados mata ra eu meu
pai, o qual fiz porque sabia que me queria ele matar a mim, por mexericos que
homens maus lhe fizeram, certificando-lhe que minha mãe era prenhe de mim,
cousa que eu nunca imaginei. Mas já que com tanta sem-razão ele tinha criado
isto, e por isso tinha determinado de me dar a morte, quis-lha eu dar primeiro
a ele, e sabe Deus quanto contra minha vontade, porque sempre lhe fui muito bom
filho: entanto, que por minha mãe não ficar como ficam outras muitas viúvas
pobres e desamparadas, a tomei por mulher, e enjeitei outras muitas com que
dantes fui cometido, assi em Patane, como em Berdio, Tanauçarim, Siaca, Jambé e
Andraguiré, irmãs e filhas de reis, com que me puderam dar muito dote. E por
evitar murmurações de maldizentes que falam sem medo quanto lhe vem à boca,
mandei lançar pregão que ninguém falasse mais neste caso. E porque esse teu
mouro que aí jaz, ontem, estando bêbado, em companhia de outros cães tais como
ele, disse de mim tantos males que hei vergonha de tos dizer, dizendo
publicamente em altas vozes que eu era porco e pior que porco, e minha mãe
cadela saída, me foi forçado por minha honra mandar fazer justiça dele e de
essoutros perros tão maus como ele. Pelo que te rogo muito, como amigo, que te
não pareça mal isto que fiz, porque te afirmo que me magoaras muito nisso. E se
porventura cuidas que o fiz para tomar a fazenda do capitão de Malaca, crê de
mim que nunca tal imaginei, e assi lho podes certificar'com verdade, porque
assi te juro em minha lei, porque sempre fui muito amigo de Portugueses, e assi
o serei enquanto viver.
Eu
então ficando algum tanto mais desassombrado, conquanto não estava ainda de
todo em mim, lhe respondi que Sua Alteza em mandar matar aquele mouro fizera
muito grande amizade ao capitão de Malaca seu irmão, porque lhe tinha roubado
toda sua fazenda, e a mim por isso já por duas vezes me quisera matar com
peçonha, só por lhe eu não poder dizer as emburilhadas {6} que tinha feitas.
Porque era tão mau perro que continuamente andava bêbado, falando quanto lhe
vinha à vontade, como cão que ladrava a quantos via passar pela rua.
Desta
minha resposta, assi tosca e sem saber o que dizia, ficou el-rei tão satisfeito
e contente que chamando-me para junto de si me disse:
-
Certo que nessa tua resposta conheço eu seres muito bom homem, e muito meu
amigo, porque de o seres te vem não te parecerem mal as minhas cousas, como a
esses perros cães que aí jazem.
E
tirando da cinta um cris que trazia guarnecido d'ouro, mo deu, e ua carta para
Pero de Faria de muito ruins desculpas do que tinha feito.
E
despidindo-me então dele pelo milhor modo que pude, e com lhe dizer que havia
ali de estar dez ou doze dias, me vim logo embarcar. E tanto que fui dentro ao
jurupango, sem esperar mais um momento, larguei a amarra por mão e me fiz à
vela muito depressa, parecendo-me ainda que vinha toda a terra após mim, pelo
grande medo e risco da morte em que me vira havia tão poucas horas.
FERNÃO MENDES PINTO (c. 1510-1583 | PortugaI)
FERNÃO MENDES PINTO (c. 1510-1583 | PortugaI)
Eram tantas e tão extravagantes as
peripécias deste autor para o imaginário da época que seus contemporâneos só o
chamavam de "Fernão Mentes Pinto". Autor de um único livro, e um
livro único no gênero - Peregrinações (1614), perto do qual as narrativas de
Marco Polo parecem inocentes -, Mendes Pinto conta suas extraordinárias viagens
pela índia, Arábia, Etiópia, China, Tartárea e ilhas do Pacífico. Há quem
afirme que ele estava com o primeiro grupo de jesuítas que chegou ao Japão. O
português de Fernão Mendes Pinto só é legível devido à transposição integral
para o português moderno, feita por Adolfo Casais Monteiro, em 7952 (Imprensa
Nacional, Lisboa, 7983), e por Antônio José Saraiva (Publicações EuropaAmérica,
Lisboa, 7958). Optamos por usar a transcrição de Saraiva, por ser de mais fácil
leitura para nós, brasileiros. (Os velhos relatos de aventuras desta época,
passando por Robert Louis Stevenson e Rafael Sabatini, alguns séculos mais
tarde, são pioneiros no que se chamaria depois de literatura de massa,
incluindo aí o policial.)
Os cem melhores contos de crime e
mistério da literatura universal / organização Flávio Moreira da Costa. – Rio
de Janeiro: Ediouro, 2002
Referência
Os
cem melhores contos de crime e mistério da literatura universal / organização
Flávio Moreira da Costa. – Rio de Janeiro: Ediouro, 2002
file:///C:/Users/User/Desktop/Os%20100%20Melhores%20Contos%20de%20Crime%20e%20Mist%C3%A9rio%20da%20Literatura%20Universal%20-%20Fl%C3%A1vio%20Moreira%20Da%20Costa%20(3).pdf
https://www.google.com.br/search?q=FERN%C3%83O+MENDES+PINTO+(c.+1510-1583+%7C+PortugaI)&newwindow=1&rlz=1C1PRFB_enBR559BR559&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiZipv916_UAhWIPpAKHYtgB7kQ_AUICygC&biw=1067&bih=513#imgrc=fYsiz-eiQyD6xM:
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