O pensamento crítico emerge do deserto antes de alcançar a praça
Peter Hudleston propôs um sistema de classificação visual de dobras (Fig. 11.3).
Em rochas compostas por múltiplas camadas, as dobras podem repetir-se com forma similar na direção do traço axial (Fig. 11.2A-C). Essas dobras são denominadas harmônicas. Se as dobras diferirem em comprimento de onda ou forma ao longo do traço axial, ou se desaparecerem nessa direção, elas são consideradas dobras desarmônicas.
Dobras de Classe
Há frases que funcionam como pequenas máquinas de desmontar mundos. O fragmento que me serve de ponto de partida — “Soçobrou. Só, sobrou. Consciência. Só, com, ciência. Mediando. Medi, ando. Trabalho com capital. Com capital trabalho.” — condensa, em poucas sílabas, a passagem de uma existência inteira.
Em “soçobrou”, vemos o naufrágio; em “só, sobrou”, vemos o sobrevivente. A consciência que aí desponta nasce, antes de tudo, no isolamento. O texto sabe disso, e por isso dobra a palavra: só, com, ciência. É a ciência que ilumina, mas também separa.
A seguir, surge a figura do mediador — mediando, medi, ando. Quem mede, anda; quem anda, perde o centro. A mediação é sempre um deslocamento: aproxima duas margens enquanto suspende o mediador no vão.
A dobra final é a mais contundente: trabalho com capital / com capital trabalho. A inversão sintática representa a inversão de classe. O antigo líder de trabalhadores, que outrora media para defender o labor frente ao capital, termina mediando do lado oposto, agora investido de um capital que o distancia de sua origem. Já não é trabalhador: é figura usada pelo que foi, adaptada ao que passou a ser.
Essa metamorfose — mais estrutural que moral — revela que a biografia política não se escreve em linha reta, mas em torções sucessivas. A linguagem expõe o destino: as palavras se dobram, o sujeito também. No fim, o rio não muda; quem muda é quem o atravessa.
E é justamente na economia extrema desse texto que se inscreve sua força: cada vírgula é uma fronteira, cada inversão uma biografia. Porque, no mundo contemporâneo, a vida com o capital já não é apenas condição de trabalho — é condição de classe, condição de linguagem, condição de travessia.
Vídeo — Reflexão visual sobre deformações, resistência e travessia.
Rochedo — Beth Carvalho
Letra completa disponível aqui
Está mais pra chorar do que sorrir
Está mais pra perder do que ganhar
Está mais pra sofrer que se alegrar
Está mais para lá do que pra cá
Amigo, esta vida não tá boa
O sufoco vem à proa
Desse barco que é a vida
E nessa briga da maré contra o rochedo
Sou marisco e tenho medo
De não ter uma saída
Composição de Noca da Portela / Zé do Maranhão

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