domingo, 6 de novembro de 2022

O Homem que Era Quinta-feira

*** – G. K. Chesterton ********************************************* CAPÍTULO 1 OS DOIS POETAS DE SAFFRON PARK O arrabalde de Saffron Park, rubro e esfarrapado como uma nuvem ao pôr do Sol, ficava a poente de Londres. Todo de tijolo vermelho, construído sem plano, tinha um perfil fantástico. Fora o grande rasgo de um construtor especulativo, besuntado de arte, que atribuía às suas construções, umas vezes, o estilo "isabelino", outras vezes o do tempo da rainha Ana, parecendo confundir as duas soberanas. Nunca ali se produzira verdadeiramente arte, mas consideravam-no, e com alguma justiça, uma colónia artística. As suas pretensões a centro intelectual seriam talvez um pouco vagas, mas ninguém poderia negar que era um sítio agradável. Quem via pela primeira vez as suas estranhas casas vermelhas não podia deixar de pensar que as pessoas que lá se acomodavam deviam ser um pouco fora do comum. E quando travava conhecimento com elas não ficava desiludido. O local não era desagradável, era mesmo perfeito, desde que não se encarasse como uma decepção, mas sim como um sonho. Os habitantes não seriam "artistas"; o conjunto, no entanto, era artístico. Aquele rapaz, de longa cabeleira cor de cenoura e rosto impudente, talvez não fosse um poeta, mas era decerto um poema. E esse velho respeitável, de barba branca e desleixada, e chapéu também branco e desleixado - esse venerável charlatão não seria, na verdade, um filósofo, mas pelo menos provocava filosofia. E aquele cientista, careca como um ovo e de pescoço de ave, comprido e nu, não tinha direito algum aos seus ares científicos: nunca descobrira nada em biologia; mas que ser poderia descobrir mais singular do que ele próprio? Só havia uma maneira justa de encarar tudo aquilo: era não o considerar como oficina de artistas, mas sim como uma obra de arte, acabada e frágil. Quem se embebia na sua atmosfera social sentia-se logo em plena comédia. Ao cair da noite, quando os extravagantes telhados se recortavam escuros no crepúsculo e toda aquela louca aldeia parecia tão isolada como uma nuvem à deriva, experimentava-se mais a atracção da irrealidade; principalmente nas muitas noites de festejos locais, quando os jardinzinhos estavam profusamente iluminados e as grandes lanternas chinesas brilhavam suspensas de minúsculas árvores, parecendo frutos selvagens e monstruosos; e muito em particular numa célebre noite, ainda vagamente lembrada no sítio, da qual o poeta ruivo foi o herói. Mas nem por sombras tinha sido a única de que ele fora o herói. Em muitas outras noites, quem passasse pelo jardinzinho das traseiras de sua casa poderia ouvi-lo, em voz alta e didáctica, ditando a lei aos homens e especialmente às mulheres. A atitude destas, em tais casos, era deveras um dos paradoxos do sítio. A maior parte pertencia à espécie vulgarmente chamada das emancipadas, que protesta contra a supremacia masculina. No entanto, essas mulheres modernas lisonjeavam um homem como qualquer outra mulher o não faria - ouviam-no enquanto ele falava. E Lucian Gregory, o poeta ruivo, merecia, na verdade, ser ouvido; ainda que fosse só para depois nos rirmos. Defendia a velha teoria da indisciplina da arte e da arte da indisciplina, com tal frescura e audácia que, de momento, agradava. O seu aspecto extravagante, na verdade cultivado por ele o mais possível, ajudava-o muito. Tinha o cabelo vermelho-escuro apartado ao meio, como uma mulher, caindo em vaporosos caracóis, de virgem pré-rafaelita. Porém, desta angélica moldura projectava-se inesperadamente um rosto largo e brutal, de queixo espetado e com ar de desprezo gaiato. Este conjunto excitava e amarfanhava os nervos daquela população de neuróticos. Parecia uma blasfémia viva, um cruzamento de anjo com chimpanzé. Aquela noite, se não for lá relembrada por mais nada, sê-lo-á pelo estranho pôr do Sol. Parecia o fim do Mundo. Todo o céu estava coberto de uma plumagem quase palpável e dir-se-ia que essas penas nos roçavam a cara. Na maior parte eram cinzentas, com os mais estranhos tons de violeta e de malva, de cor-de-rosa e de verde-pálido; mas para ocidente o conjunto tornava-se indescritível, transparente e vivo, e as últimas penas incandescentes escondiam o Sol como coisa preciosa. Tudo aquilo estava perto demais da terra para significar outra coisa que não fosse um segredo violento; o próprio firmamento parecia ser um segredo, e exprimia aquela esplêndida pequenez que é a essência do bairrismo. Até o céu parecia pequeno. Algumas pessoas lembrar-se-ão, quanto mais não seja por causa do céu opressivo, outras porém recordá-la-ão por ter coincidido com o aparecimento do segundo poeta de Saffron Park. O revolucionário da cabeleira vermelha reinara sem rival por muito tempo, mas a sua hegemonia terminou subitamente naquela noite. O novo poeta, que se apresentou com o nome de Gabriel Syme, era um mortal, com ar muito tímido, de barba loira pontiaguda e cabelo amarelo-claro. Mas depressa se generalizou a impressão de que não era tão tímido como parecia. Evidenciou-se logo de entrada por discordar de Gregory, o poeta estabelecido, acerca de toda a natureza da poesia. Dizia que ele, Syme, era um poeta cumpridor da lei, um poeta de ordem, mais ainda, um poeta da respeitabilidade. Por isso todo o Saffron Park o olhou como se tivesse caído nesse instante daquele céu incrível. E de facto o poeta anarquista Lucian Gregory relacionou os dois sucessos. - Pode muito bem ser - disse no seu tom lírico pode muito bem ser que, numa tal noite de nuvens e cores diabólicas, venha à terra semelhante portento, um poeta respeitável. Você diz ser um poeta obediente à lei, eu digo que é uma contradição viva. Só me espanta que não tenha havido cometas e tremores de terra na noite em que você apareceu neste jardim. O homem dos tímidos olhos azuis e da barba loira, pontiaguda, suportou esta trovoada com certa submissão solene. Rosamond, irmã de Gregory e terceiro elemento do grupo, de tranças, ruivas como o irmão, mas de face mais doce, riu-se com aquele misto de admiração e desacordo que tinha habitualmente para com o oráculo da família. Gregory resumiu gritando com eloquente bom-humor: - Um artista é um anarquista.As duas palavras equivalem-se. Um anarquista é um artista. O homem que atira uma bomba é artista, porque prefere a tudo um momento culminante. Sente que o brilhar de uma chama e um belo estrondo valem muito mais que os corpos desfigurados de meros polícias. Um artista desrespeita todos os governos, suprime todas as convenções. Um poeta só na desordem se sente bem. Se não fosse assim, o metropolitano seria a coisa mais poética do Mundo. - E é - retorquiu Syme. - Tolices! - exclamou Gregory, que era muito racional quando outro qualquer tentava paradoxos. - Por que razão todos os passageiros dos comboios têm um ar triste e cansado, tão triste e tão cansado? Vou dizer-lhe: é porque sabem que o comboio vai direito ao seu destino, é porque sabem que chegarão à estação para que tomaram bilhete. E porque sabem que a estação a seguir a Sloane Square será Vitória e nenhuma outra senão Vitória. Oli, que alegria louca! Oh, como brilhariam os seus olhos e como as suas almas voltariam ao Paraíso se a próxima estação fosse, inexplicavel mente, Baker Street! - Quem não é poeta é você - replicou Syme. - Se o que diz dos passageiros for verdade é porque são tão prosaicos como a sua poesia. Atingir o alvo, eis a coisa rara e estranha; 10 falhá-lo é reles e vulgar. Achamos épico que um homem atinja com uma seta um pássaro distante. Não será também épico atingir uma estação distante com uma máquina? O caos é enfadonho porque nele o comboio podia, de facto, ir parar a qualquer parte, a Baker Street ou a Bagdad. Mas o homem é um mágico, e a sua magia está nisto: diz Vitória, e eis que é Vitória! Fique-se com os seus livros de mera prosa e poesia, e deixe-me ler, chorando de orgulho, um guia dos caminhos de ferro. Fique com o seu Byron, que comemora as derrotas do homem, e dê-me Bradshaw, que comemora as suas vitórias. A mim Bradshaw, digo eu! - Tem de se ir embora? - perguntou Gregory, sarcasticamente. -Digo-lhe - continuou Syme, com paixão - que cada vez que chega um comboio sinto como se ele tivesse passado através de baterias de sitiantes, e que o homem ganhou uma batalha contra o caos. Você diz desdenhosamente que quando se deixa Sloane Square se tem de chegar a Vitória. Digo-lhe que se poderiam fazer mil coisas diferentes, e ao chegar tenho a sensação de ter escapado por pouco. Quando oiço o revisor gritar " Vitória!", dou à palavra o seu sentido. Para mim é o grito de um arauto anunciando a conquista. Para mim é de facto "Vitória", a vitória de Adão. Gregory abanou lentamente a cabeça e sorriu. - Mesmo assim, nós, os poetas, perguntamos sempre: e que é a Vitória, afinal? Você pensa que Vitória é como a Nova Jerusalém. Nós sabemos que a Nova Jerusalém apenas será como Vitória. Sim, até nas ruas do céu o poeta estará descontente. O poeta está sempre revoltado. Syme começou a irritar-se. - Lá estamos outra vez! Que há de poético em ser-se revoltado? É como se dissesse que estar enjoado é poético. Adoecer é uma revolta. Há ocasiões em que tanto estar doente como estar revoltado é lógico, mas diabos me levem se percebo por que é isso poético. A revolta, em abstracto, é revoltante. E apenas um vómito. 11 Ao ouvir esta palavra tão desagradável, a rapariga franziu a testa, mas Syme estava entusiasmado demais para lhe prestar atenção. - Poético é as coisas correrem direitas. Por exemplo, as nossas digestões decorrendo silenciosa e religiosamente certas, eis o fundamento de toda a poesia. Sim, a coisa mais poética, mais poética do que as flores, mais poética do que as estrelas, a coisa mais poética deste mundo, é não estar doente. - Realmente, os exemplos que você escolhe - escarneceu Gregory. - Perdão, esqueci-me que tínhamos abolido todas as convenções. Gregory corou. - Você não espera que eu, neste jardim, revolucione a sociedade? Syme fitou-o nos olhos e sorriu suavemente. - Não, mas acho que se o seu anarquismo fosse sincero era precisamente isso que faria. Os grandes olhos de touro de Gregory fuzilaram como os de um leão furioso, e a sua juba vermelha, por assim dizer, quase se ergueu. - Você pensa então - disse em tom ameaçador - que o meu anarquismo não é sincero? - Perdão! - O meu anarquismo é ou não sincero? - gritou Gregory, de punhos fechados. - Oh, meu caro! - fez Syme, e afastou-se. Foi surpreendido, mas com agrado, que viu Rosamond Gregory acompanhá-lo. - Sr. Syme, as pessoas que falam como o senhor e o meu irmão são sinceras no que dizem, a maior parte das vezes? É sincero no que diz agora? Syme sorriu. - E você? - Que quer dizer? - perguntou ela muito séria. - Minha querida Miss Gregory, há muitas espécies de 12 sinceridade e de hipocrisia. Quando lhe passam o saleiro e diz "muito obrigada", é sincera? Não é. Quando diz "o Mundo é redondo", é sincera? Não. é uma verdade, mas você não a diz com consciência. Ora, um homem como o seu irmão por vezes encontra uma coisa em que é sincero. Pode ser apenas meia verdade, um quarto de verdade, um décimo de verdade, mas acontece-lhe dizer mais do que quer à força de o pretender. Ela fitava-o, e sobre a sua face, grave e atenta, baixara a sombra daquela responsabilidade irreflectida que existe no fundo da mais frívola mulher, o instinto maternal, que é velho como o Mundo. - Então, ele é de facto um anarquista? - Só no sentido que lhe dei, ou se prefere, nessa falta de sentido. Ela carregou o sobrolho e disse abruptamente. - Mas não seria capaz de atirar bombas ou fazer coisa que o valha? Syme soltou uma grande gargalhada que pareceu excessiva para a sua figura esguia e correcta. - Não, meu Deus! Isso tem de ser feito anonimamente. Ela própria sorriu, pensando com prazer ao mesmo tempo no ridículo e na segurança de Gregory. Syme foi com ela até um banco, ao canto do jardim, e continuou a despejar as suas opiniões. Porque era sincero e, apesar dos seus ares su- perficiais, no fundo um humilde. E é sempre o humilde que fala de mais, o orgulhoso está constantemente a observar-se. Defendeu a respeitabilidade com violênciale exagero, apaixonou-se no elogio do arranjo e do asseio. A sua volta havia sempre um cheiro a violetas. Ouviu vagamente, por momentos, um harmónio a tocar, em qualquer rua distante, e pareceu-lhe que as suas palavras seguiam, audazes, uma música vinda dos fins do Mundo. Esteve a falar e a olhar para a rapariga; julgou, apenas por alguns minutos, que ela o escutava com cara divertida; depois levantou-se, achando que num lugar daqueles os grupos de13 viam misturar-se, mas notou com surpresa que o jardim estava deserto. Todos tinham partido há muito, e ele fez o mesmo, dando uma desculpa apressada. Foi-se com a sensação de que bebera champanhe e lhe subira à cabeça, o que mais tarde não conseguiu explicar. A rapariga não tomou parte alguma nos estranhos acontecimentos que se seguiram, não tornou mesmo a vê-la antes do fim desta história. E no entanto, inexpli cavel mente, ela continuou a aparecer-lhe, como um motivo musical, através de todas as loucas aventuras que se seguiram e a auréola do seu estranho cabelo perpassava como um traço vermelho nessas escuras e imprecisas cenas nocturnas. Porque o que se seguiu era tão incrível que podia muito bem ter sido um sonho. Quando Syme chegou à rua, iluminada pelas estrelas, encontrou-a momentaneamente deserta, mas sentiu (sem saber bem porquê) que aquele silêncio tinha vida. Mesmo em frente da porta estava um candeeiro, cuja luz punha reflexos na folhagem que ali se debruça sobre a paliçada. Meio metro atrás do candeeiro estava um vulto, quase tão rígido e imóvel como ele. Tinha chapéu alto e casaco preto; a cara, escondida na sombra, não se distinguia. Apenas uma franja de cabelo, cor de brasa, e também qualquer coisa de agressivo na atitude, denunciavam o poeta Gregory. Parecia um espadachim, de arma em punho, à espera do adversário. Cumprimentou um pouco secamente, e Syme correspondeu com mais cortesia. - Estava à sua espera - disse Gregory. - Pode dar-me duas palavras? - Decerto. Sobre o quê? - perguntou Syme, um tanto admirado. Gregory apontou com a bengala para o candeeiro, depois para a árvore. - Sobre isto e sobre aquilo. Acerca da ordem e acerca da anarquia. Ali está a sua preciosa ordem, aquele candeeiro de ferro, feio e estéril, e aqui está a anarquia, rica, viva, fértil; eis a anarquia, magnífica, em ouro e verde. 14 -- No entanto - retorquiu Syme pacientemente - você, neste momento, vê a,árvore porque o candeeiro a ilumina. Admirar-me-ia muito se conseguisse ver o candeeiro à luz da árvore. - E depois de fazer uma pausa: - Mas não me diga que esteve aqui à espera, no escuro, só para recomeçar a nossa discussão. - - Não! gritou Gregory numa voz que se ouviu em toda a rua. Não estou aqui para recomeçar a discussão, mas sim para a acabar de uma vez para sempre. Fez-se de novo silêncio, e Syme, que continuava a não perceber nada do que se passava, esperou, instintivamente, por qualquer coisa de sério. Gregory começou, em voz pausada e com um sorriso desconcertante: - Sr. Syme - disse -, o senhor fez esta noite uma coisa muito extraordinária. Fez o que nenhum outro homem tinha, até hoje, conseguido. - Deveras? - Quer dizer, já houve alguém que o conseguiu (se bem me lembro), o capitão de um navio em Southend. O senhor irritou-me. - Lamento muito - retorquiu Syme gravemente. - Receio que a minha ira e o seu insulto sejam demasiado graves para se poderem apagar com desculpas. Nem com um duelo, nem mesmo que eu o matasse. Mas há uma forma de apagar o insulto, e é essa que escolho. Vou provar, possivelmente com o sacrificio da minha vida e da minha honra, que se enganou no que disse. - Mas que disse eu? - Que o meu anarquismo não é sério. - Há graus de seriedade - replicou Syme. - Nunca duvidei de que fosse absolutamente sincero no sentido de ter pensado que valia a pena dizer o que disse, de ter pensado que um paradoxo pudesse despertar os homens para uma verdade abandonada. Gregory fitou-o dolorosamente. 15 - E é apenas nesse sentido que me julga sério? Pensa que sou umflâneur, que por vezes diz uma verdade. Não me julga sério num sentido mais profundo, mais violento? Syme bateu de rijo com a bengala nas pedras da rua. - Sério! - gritou. - Meu Deus! Será séria esta rua? Serão sérias estas malditas lanternas chinesas? Será séria toda esta bambochata? Chega-se aqui, diz-se uma porção de baboseiras e também coisas acertadas, à mistura, mas eu teria em muito pouca conta quem não tivesse na vida nada mais sério do que todo este paleio, alguma coisa mais séria, seja religião ou apenas bebedeira. - Muito bem - disse Gregory, num tom misterioso vai ver coisa mais séria do que religião ou bebedeira. Syme ficou à espera, com o seu ar habitual de complacência, que Gregory recomeçasse. - Falou mesmo agora em religião. Na verdade tem alguma? - Oh! - exclamou Syme, sorrindo abertamente. Nós agora somos todos católicos. - Então posso pedir-lhe que jure, por quaisquer deuses ou santos da sua religião, que não revelará a ninguém, e especialmente à Polícia, o que lhe vou dizer. Jurará? Se fizer essa terrível abnegação, se consentir em mortificar a alma com um voto que nunca deveria ter feito e com o conhecimento daquilo em que nem deveria ter sonhado, prometo-lhe em troca... - Que me promete em troca? - Prometo-lhe uma noite muito divertida. Syme tirou subitamente o chapéu. - A sua oferta é demasiado idiota para ser rejeitada. Você disse que um poeta é sempre um anarquista. Não concordo; mas espero ao menos que seja sempre um desportista. Permita-me agora jurar-lhe aqui como cristã o e prometer-lhe, como bom camarada e irmão de arte, que não relatarei à Polícia nada, seja o que for. E agora, de que se trata? - Acho melhor - disse Gregory placidamente - tomarmos uma carruagem. 16 Soltou dois assobios estridentes e apareceu, aos solavancos, uma carruagem, em que os dois entraram silenciosamente. Gregory deu a morada de uma taberna obscura na margem do rio, junto a Chiswick. A carruagem partiu, e aqueles dois entes fantásticos deixaram a sua cidade fantástica. 17 CAPíTULO II O SEGREDO DE GABRIEL SYME A carruagem parou defronte de uma cervejaria, muito suja e suspeita. Gregory fez entrar rapidamente o companheiro. Sentaram-se a uma mesa de madeira, cheia de nódoas e com uma perna partida, numa espécie de salão-bar abafado e sombrio. O cubículo era tão pequeno e escuro que, do criado que os atendeu, pouco mais se distinguia do que um vulto gordo e barbado. - Vai uma ceiazinha? - perguntou Gregory amavelmente. - O patê de foie-gras não é grande coisa aqui, mas aconselho a caça. Syme ficou impávido, julgando que o outro gracejava. Respondeu, aceitando o jogo, com indiferença polida. - Traga-me mayonnaise de lagosta. Com espanto indescritível, o criado apenas disse: "Vem já", e afastou-se, com toda a aparência de a ir buscar. - E quanto a bebidas? - recomeçou Gregory, no mesmo tom descuidado. - Eu já jantei, por isso tomo só um creme de menthe. Mas o champanhe da casa é de confiança. Comece ao menos por meia garrafa de Porrimery. - Muito obrigado! - disse o impávido Syme. - Você é muito amável. Seguiram-se tentativas de conversa, um tanto desorganizadas, que o aparecimento da lagosta cortou, como um raio. 18 Syme provou-a, achou-a óptima, e começou a comer avidamente. - Perdoe-me que esteja a apreciar a comida com tão pouca discrição - disse, sorrindo, a Gregory. - Poucas vezes tenho a sorte de ter sonhos destes, Nunca me aconteceu um pesadelo transformar-se numa lagosta; em regra sucede o contrário. - Posso garantir-lhe que não sonha, pelo contrário, aproxima-se do momento mais sensacional da sua vida. Aí vem o seu champanhe. Concordo que há uma leve desproporção, digamos assim, entre o interior deste esplêndido hotel e o seu exterior, simples e sem pretensões. Mas tudo isto representa a nossa modéstia, somos os homens mais modestos que https://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/o_homem_que_era_quinta_feira__g_k_chesterton_.pdf ****************************************************************************************************
*** Vikidia Robinson Crusoé - Vikidia, l'encyclopédie des 8-13 ans *** Sexta-feira: Indígena canibal que teve sua vida salva por Robinson, sendo escravizado por ele. Com o tempo, a relação dos dois acaba sendo mais de amizade do que de servidão, e Sexta-feira acaba dando sua vida para salvar seu amo das flechas de uma tribo indígena que os atacou perto do Brasil. ***
*** The Man who was Thursday *** O HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA Texto integral EDITORES ASSOCIADOS TITULO ORIGINAL The Man Who Was Thursday TRADUÇÃO DE DOMINGOS AROUCA CAPA DE VIVALDO GRAÇA ESTA EDIÇÃO UNIBOLSO FOI REALIZADA POR ACORDO COM A PORTUCÁLIA EDITORA, LDA. ******************************************************* Poucos escritores de sua época foram tão grandes quanto ele ( e não só por ter sido gordo e muito alto) OS 100 MELHORES CONTOS DE CRIME E MISTÉRIO DA LITERATURA UNIVERSAL Literatura inglesa - G. K. Chesterton - O Homem na GaleriaLiteratura inglesa - G. K. Chesterton - O Homem na Galeria O HOMEM DO CORREDOR Dois homens apareceram simultaneamente nas duas extremidades de uma espécie de corredor ao lado do Teatro Apoio nos Adelphi. A claridade da tarde nas ruas era bastante intensa e opalescente. O corredor era relativamente comprido e escuro, de modo que cada homem podia ver o outro apenas como uma simples silhueta preta na outra ponta. Não obstante, cada um reconheceu o outro, mesmo naquele esboço escuro, pois eram ambos de aspecto magnífico e se odiavam mutuamente. O corredor coberto abria-se numa extremidade para uma das ruas íngremes dos Adelphi, e na outra para um terraço que dava para o rio colorido pelo poente. Um lado do corredor era um muro vazio, pois o edifício que sustentava era um antigo e fracassado restaurante do teatro, agora fechado. O outro lado do corredor tinha duas portas, uma em cada extremidade. Nenhuma delas era o que se costuma chamar de porta dos artistas; eram uma espécie de portas de artistas especiais e particulares, usadas só por artistas especiais e, nesse caso, pelo ator ou atriz principais na peça shakespeariana do dia. Pessoas dessa importância gostam muitas vezes de ter essas entradas e saídas particulares, para se encontrar com amigos ou evitá-los. Os dois homens em questão eram certamente dois desses amigos, homens que evidentemente conheciam as portas e sabiam que estavam abertas, pois cada um se aproximava da porta da extremidade superior com igual determinação e confiança, mas não com igual rapidez. Como o homem que andava mais depressa era o que vinha do outro lado do túnel, ambos chegaram quase ao mesmo tempo diante da porta secreta dos artistas. Saudaram-se um ao outro com urbanidade e esperaram até que um deles, o visitante de andar mais apressado que parecia ter menos paciência, bateu na porta. Nisso e em tudo o mais, cada homem era o oposto do outro e nenhum poderia ser chamado de inferior. Particularmente, eram ambos simpáticos, capazes e populares Como pessoas públicas, pertenciam ambos às primeiras categorias sociais. Mas tudo em torno deles, desde sua glória até a boa aparência, era de uma espécie diversa e incompatível. Sir Wilson Seymour era o tipo de homem cuja importância é conhecida por toda pessoa bem-informada. Quanto mais nos aprofundarmos nos círculos de organização ou profissionais, mais freqüentemente encontraremos Sir Wilson Seymour. Era o único homem inteligente de vinte comissões de ignorantes — sobre toda sorte de assuntos, desde a reforma da Real Academia até o projeto de bimetalismo para a Grã-Bretanha. Sobretudo nas artes, era onipotente. Era tão singular, que não se sabia ao certo se era um grande aristocrata que esposara a arte, ou um grande artista que os aristocratas haviam esposado. Ninguém poderia conversar com Sir Wilson Seymour por cinco minutos, sem verificar que tinha sido dominado por ele pelo resto da vida. ***
*** Retrato de homem 1623-1624 Óleo sobre tela 55,5 x 38 cm Museu do Prado, Madrid Sua aparência era "distinta", precisamente no mesmo sentido; era ao mesmo tempo convencional e singular. A moda não poderia encontrar nenhuma falha em sua cartola de seda; não obstante, era diferente do chapéu de qualquer outra pessoa — um pouco mais alta, talvez, e acrescentava algo à sua altura natural. Sua figura alta e elegante tinha uma ligeira inclinação, mas parecia o contrário de um fraco. Seu cabelo era grisalho, mas não parecia velho; usava-o mais comprido do que o comum e, no entanto, não parecia efeminado; era ondulado, mas não parecia crespo. Sua barba, cuidadosamente aparada, conferia-lhe uma aparência mais viril e militante do que o contrário, como acontece com os velhos almirantes de Velasquez, cujos retratos pretos pendiam em sua casa. Suas luvas cinza eram de um matiz mais azulado, sua bengala de punho prateado mais comprida, enfim, distinguiam-se das dezenas de luvas e bengalas agitadas e exibidas nos teatros e restaurantes. O outro homem não era tão alto, mas, por outro lado, não impressionava ninguém por ser baixo, mas simplesmente por seu vigor e simpatia. Seu cabelo era ondulado também, mas abundante e cortado rente numa cabeça vigorosa e maciça — a espécie de cabeça com que se quebra uma porta, como dizia Chaucer da cabeça de Miller. Seu bigode militar e sua postura refletiam o soldado, mas tinha um par daqueles olhos azuis peculiarmente francos e penetrantes mais comuns em marinheiros. Seu rosto era ligeiramente quadrado, seu queixo era quadrado, seus ombros eram quadrados e até seu paletó era quadrado. Na verdade, na rude escola da caricatura então corrente, Mr. Max Beerbohm tinha-o representado como uma proposição no quarto livro de Euclides. Pois era também um homem público, embora com uma espécie de sucesso completamente diferente. Não seria preciso viver na melhor sociedade para ouvir falar do capitão Cutler, do cerco de Hong-Kong e da grande marcha através da China. Não se podia deixar de ouvir falar dele, onde quer que se estivesse. Seu retrato estava em todo cartaz; seus mapas e batalhas em todo papel ilustrado; canções em sua honra eram ouvidos em salas de música populares ou em todo o realejo. Sua fama, embora provavelmente mais temporária, era dez vezes mais ampla, popular e espontânea do que a do outro cavalheiro. Em milhares de lares ingleses era um herói da Inglaterra, um Nélson. Não obstante, na Inglaterra, tinha poder infinitamente menor do que Sir Wilson. A porta lhes foi aberta por um criado ou "camareiro" idoso, cuja face e figura decadentes, paletó e calças pretas já desbotados contrastavam estranhamente com o interior resplandecente do camarim da grande atriz. Era revestido de espelhos em cada ângulo de refração, de modo que pareciam centenas de facetas de um imenso diamante, como se fosse possível penetrar num diamante. Os demais aspectos do luxo, flores, almofadas coloridas, sobras de roupa de palco, eram multiplicados pelos espelhos até a loucura das Mil e Uma Noites, e dançavam e mudavam de lugar constantemente quando o criado vacilante virava um espelho para fora ou contra a parede. Ambos trataram o esquálido camareiro pelo nome, chamando-o de Parkinson, e perguntaram pela senhora como Miss Aurora Rome. Parkinson respondeu que estava no quarto, mas que iria chamá-la. Uma sombra passou pelos olhos de ambos os visitantes; é que o outro quarto era o quarto particular do grande ator com quem Miss Aurora estava representando, e ela era a espécie de pessoa que não desperta admiração sem despertar o ciúme. Mas, meio minuto depois, a porta interna se abriu e ela entrou, como sempre fazia, mesmo na vida privada, de um modo que o próprio silêncio parecia ser uma explosão de aplausos, e de aplausos bem merecidos. Usava um estranho vestido, de cetim verde e azul-pavão, de brilho metálico, desses que fazem o deleite de crianças e de estetas, e seus cabelos castanho-escuros emolduravam um daqueles rostos mágicos, perigosos para todo homem, especialmente para adolescentes e homens que começam a envelhecer. Com seu colega, o grande ator americano. Isidoro Bruno, estava apresentando uma interpretação particularmente poética e fantástica de Sonho de Uma Noite de Verão, em que os papéis principais eram de Oberon e Titânia, ou em outras palavras, de Bruno e dela própria. Em meio a um cenário exótico e sonhador e entre danças místicas, a veste verde, como asas brilhantes de besouro, expressava toda a ilusória individualidade de uma rainha de fadas. Mas quando pessoalmente confrontada com o que ainda restava da luz do dia, via-se apenas o rosto da mulher. Cumprimentou a ambos os visitantes com o sorriso brilhante e desconcertante, que mantinha tantos homens à mesma distância perigosa dela. Recebeu algumas flores de Cutler, que eram tão tropicais e difíceis como suas vitórias e outra espécie de presente de Sir Wilson Seymour, por ele oferecido mais tarde e com certa negligência. Pois era contra sua educação demonstrar impetuosidade e contra sua convencional falta de convenção oferecer coisas tão óbvias como flores. Escolhera uma bagatela, como disse, mas uma bagatela original: era um antigo punhal grego da Época Miceneana, que poderia bem ter sido usado no tempo de Teseu e de Hipólita. Era de bronze como todas as armas heróicas, mas, fato curioso, suficientemente afiado para furar alguém. Chamara-lhe a atenção sua forma de folha; era tão perfeita como um vaso grego. Se fosse de algum interesse de Miss Rome ou pudesse ser útil em algum lugar da peça, esperava que ela... A porta interna abriu-se violentamente e um vulto enorme assomou no batente; contrastava mais com Seymour do que o próprio capitão Cutler. Com quase dois metros de altura e com músculos e força mais do que teatrais, Isidore Bruno, vestido de suntuosa pele de leopardo e com as roupas marrom-douradas de Oberon, parecia um deus bárbaro. Firmava-se numa espécie de lança de caçador, que no palco dava a impressão de um bastão leve e prateado, mas que naquele pequeno quarto relativamente cheio parecia uma lança antiga e ameaçadora. Seus olhos vivos e pretos agitavam-se como um vulcão; seu rosto bronzeado, simpático como era, exibia naquele momento uma combinação de malares salientes com uma série de dentes brancos, que lembravam certas conjeturas americanas sobre sua origem nas plantações do Sul. Aurora — começou, com aquela voz profunda como um tambor de paixão que comovera tantos públicos — você... Parou, indeciso, porque uma sexta figura surgira subitamente à entrada da porta — uma figura tão incongruente no cenário, que chegava a ser cômica. Era um homem baixo, usando um uniforme preto do clero secular romano, que se assemelhava (sobretudo na presença de pessoas como Bruno e Aurora) a um Noé de madeira saído de uma arca. Não parecia, entretanto, ter consciência de qualquer contraste, e disse com pachorrenta urbanidade: Acho que Miss Rome me mandou chamar. Um arguto observador teria notado que a temperatura emocional havia subido com uma interrupção tão pouco emocional. O despreendimento de um celibatário profissional parecia revelar aos outros que estavam em torno da mulher como um anel de rivais amorosos; do mesmo modo um estranho que chega molhado pela geada achará que um quarto é como uma fornalha. A presença do homem que não se incomodava com a atriz aumentou a sensação de Miss Rome de que todos estavam apaixonados por ela, e cada um de um modo mais ou menos perigoso: o ator com todo o apetite de uma criança selvagem e corrompida; o soldado com todo o egoísmo simples de um homem mais voluntarioso do que inteligente; Sir Wilson com aquela concentração empedernida com que velhos hedonistas se apegam a um hobby; e até o abjeto Parkinson, que a tinha conhecido antes de seus triunfos, e que a seguia pelo quarto com os olhos ou com os pés, com o fascínio silencioso de um cão. Uma pessoa perspicaz poderia, também, ter notado uma coisa ainda mais estranha. O homem que parecia um Noé de madeira preta (não era totalmente destituído de espírito) o notou com muito divertimento, mas contido. Era evidente que a grande Aurora, embora não fosse indiferente à admiração do outro sexo, queria ver-se livre de todos os homens que a cortejavam e ficar a sós com o homem que não a cortejava, pelo menos não naquele sentido; pois o pequeno padre a admirava e apreciava mesmo a firme diplomacia feminina com que se desincumbia de sua tarefa. O padrezinho acompanhava, como uma campanha napoleônica, a rápida precisão de sua política de banir todos sem expulsar nenhum. Bruno, o grande ator, era tão infantil que foi fácil mandá-lo embora, amuado, batendo a porta. Cutler, o oficial inglês, era um paquiderme para idéias, mas meticuloso quanto a comportamentos. Ignoraria qualquer insinuação, mas preferia morrer a ignorar uma ordem definida de uma senhora. Quanto ao velho Seymour, tinha de ser tratado diferentemente; teria de ser o último a sair. A única maneira de afastá-lo era apelar para a confiança de um velho amigo, fazê-lo participar do segredo do jogo. O padre admirou, realmente, Miss Rome quando ela realizou todos esses três objetivos numa ação precisa. Dirigiu-se ao Capitão Cutler e disse com sua maneira encantadora: — Aceito com toda gratidão estas flores, porque devem ser suas flores favoritas. Mas não estarão completas, sabe, sem a minha flor favorita. Se for àquela loja de flores na esquina e me trouxer alguns lírios-do-vale, então ficarão maravilhosas! O primeiro objeto de sua diplomacia, a saída do irado Bruno, foi imediatamente alcançado. Ele já havia entregue sua lança, num estilo senhoril, como um cetro, ao lamentável Parkinson, e já ia ocupar uma das poltronas como um trono. Mas diante desse pedido aberto a seu rival, brilhou em seus olhos cor de opala toda a insolência sensível do escravo; agitou seus enormes punhos morenos por um instante e, em seguida, precipitando-se pela porta aberta, desapareceu em seus aposentos. Enquanto isso, o experimento de Miss Rome de mobilizar o Exército Britânico não tinha resultado tão simples como lhe parecera provável. Cutler realmente se tinha levantado e se encaminhava para a porta, sem chapéu, como se tivesse recebido uma ordem de comando. Mas talvez algo ostentosamente elegante na lânguida figura de Seymour encostada junto a um dos espelhos o levou a parar um pouco à entrada, olhando de um lado para outro como um bulldog aturdido. — Preciso mostrar o caminho àquele tolo — disse Aurora num sussurro a Seymour, e correu para o limiar da porta para apressar a saída do visitante. Seymour parecia estar ouvindo, tão elegante e inconsciente era sua postura, e pareceu aliviado quando ouviu Aurora dar algumas instruções em voz alta ao capitão e, em seguida, voltar-se bruscamente e sair correndo pelo corredor na direção da outra extremidade, que dava para o terraço sobre o Tâmisa. Um segundo ou dois depois a fisionomia de Seymour tomou novamente uma expressão sombria. Um homem na sua posição tem muitos rivais e lembrou-se de que na outra extremidade do corredor estava a entrada para o camarim particular de Bruno. Não perdeu sua dignidade; disse algumas palavras gentis ao padre Brown sobre o renascimento da arquitetura bizantina na Catedral de Westminster e, em seguida, muito naturalmente, dirigiu-se à extremidade superior do corredor. Padre Brown e Parkinson ficaram sozinhos e nenhum dos dois era pessoa que gostasse de perder tempo com palavras supérfluas. O camareiro caminhava pelo quarto, arrumando de novo os espelhos. Seu casaco e calças pretas descoradas pareciam ainda mais ridículas, uma vez que ainda segurava a festiva e delicada lança do rei Oberon. Toda vez que puxava um novo espelho, uma nova figura preta do padre Brown aparecia; o absurdo camarim de espelhos estava cheio de padres Browns, de cabeça para baixo, no ar como anjos, dando saltos como acrobatas, dando as costas para os outros como pessoas mal-educadas. O padre parecia insensível a esse bando de testemunhas, mas seguia Parkinson com uma atenção displicente até que este entrou com sua lança absurda no quarto de Bruno. Entregou-se então a meditações abstratas, o que de seu feitio — calculando os ângulos dos espelhos, os ângulos de cada retração, o ângulo em que cada um se ajustava na parede... quando ouviu um grito alto mas estrangulado. Levantou-se de um salto e prestou ouvidos. No mesmo instante, Sir Wilson Seymour irrompeu no camarim, branco como fera. Quem é aquele homem no corredor? — perguntou. Onde está aquele punhal? Antes que o padre Brown pudesse virar-se em suas botas pesadas, Seymour começou a remexer o quarto à procura da arma. E antes que a pudesse achar ou a outra qualquer, ouviu-se do lado de fora o trepidar de passos rápidos e o rosto quadrado de Cutler apareceu no vão da porta, segurando, ainda, grotescamente um ramo de lírios-de-vale. Que é que há? — exclamou. — Quem é aquele sujeito no corredor? Algumas de suas trapaças? Minhas trapaças! — sibilou seu rival pálido, e dando um passo na sua direção. No mesmo instante em que tudo isso acontecia, o padre dirigiu-se ao alto do corredor, olhou para baixo e tomou imediatamente a direção do que viu. Os dois outros homens deixaram de lado sua briga e se precipitaram atrás dele, com Cutler a gritar: Que vai fazer? Quem é o senhor? Chamo-me Brown — disse o padre, tristemente, ao se curvar sobre algo e se aprumar de novo. — Miss Rome me mandou chamar e vim logo que pude. Cheguei tarde demais. Os três homens olharam para baixo e num deles pelo menos a vida morreu naquela última luz da tarde, que entrava ao longo do corredor como um caminho de ouro, no meio do qual jazia Aurora Rome brilhando com suas roupas cintilantes, com seu rosto sem vida virado para cima. Suas vestes tinham sido rasgadas como numa luta, deixando o ombro direito desnudado, mas era do outro lado a ferida de onde escorria sangue. A faca de bronze jazia cintilante, a mais ou menos um metro de distância. Houve um silêncio profundo durante algum tempo, que lhes permitiu ouvir ao longe, na Charing Cross, a risada de uma florista e alguém assobiando, furiosamente, para um táxi numa daquelas ruas transversais à Stand. O capitão, então, com um movimento tão súbito que poderia ter sido paixão ou fingimento, agarrou Sir Wilson Seymour pela garganta. Seymour o encarou firmemente sem resistência ou medo. Não precisa matar-me — disse numa voz quase insensível. — Eu o farei por minhas próprias mãos. As mãos do capitão hesitaram e caíram; e o outro acrescentou com a mesma gélida frieza: Se achar que não terei coragem dc o fazer com aquela faca, posso fazê-lo num mês, com bebidas. A bebida não me serve, disse Cutler, mas derramarei sangue por isso antes de morrer. Não o seu, mas acho que sei de quem. E antes que os outros pudessem pensar no que queria dizer, ele apanhou o punhal do chão, correu para a outra porta na extremidade do corredor, abriu-a impetuosamente, deparando com Bruno em seu camarim. Nesse ínterim, o velho Parkinson saiu à porta, em seu passo vacilante e viu de relance o cadáver no corredor. Veio tremendo na sua direção e o contemplou ternamente com o rosto convulsionado; em seguida, afastou-se ainda tremendo c entrou de novo no camarim sentando-se subitamente numa das poltronas ricamente recobertas de almofadas. Padre Brown correu imediatamente para o seu lado, sem pensar em Cutler e no ator colossal, embora no quarto já ressoassem os golpes que trocavam, agora em luta pela faca. Seymour, que tinha um pouco de senso prático, estava chamando a polícia no fim do corredor. Quando a polícia chegou foi para separar os dois homens de uma luta brutal. E, após o interrogatório de praxe, prendeu Isidore Bruno sob a acusação de assassinato, levantada contra ele por seu furioso rival. A idéia de que o grande herói nacional do dia havia prendido um malfeitor com suas próprias mãos tinha sem dúvida seu valor para a polícia, que não é desprovida de espírito jornalístico. Trataram Cutler com certa atenção e solenidade e lhe mostraram que tinha um pequeno talho na mão. Quando Cutler o havia acuado contra a cadeira e a mesa inclinada, Bruno voltara o punhal para fora de sua mão ferindo-o exatamente abaixo do punho. A ferida era, realmente, pequena, mas até ser retirado do quarto, o preso semi-selvagem olhava o sangue a escorrer com um sorriso firme. Parece um canibal, não parece? — disse o delegado confidencialmente a Cutler. Cutler não deu qualquer resposta, mas disse bruscamente um instante depois: Precisamos cuidar... da morta... E perdeu a voz. Dos dois mortos! — Era a voz do padre do outro lado do quarto. — Esse pobre coitado morreu quando cheguei perto dele. E ficou olhando para o velho Parkinson, sentado em desordem na poltrona suntuosa. Pagara também seu tributo, não sem eloqüência, à mulher que tinha morrido. O silêncio foi rompido primeiro por Cutler, tocado por uma rude ternura. Eu gostaria de ser ele — disse roucamente. — Lembro-me de que gostava mais do que ninguém de segui-la para onde quer que ela... Ela era seu ar, ele morreu asfixiado. Está realmente morto. Nós todos estamos mortos — disse Seymour numa voz estranha, olhando pela rua abaixo. Despediram-se do padre Brown na esquina da rua, com algumas desculpas ao acaso por qualquer indelicadeza que pudessem ter demonstrado. Ambas as faces, além de pálidas e trágicas, eram também misteriosas. A mente do pequeno padre se agitava como um viveiro de coelhos de pensamentos absurdos que saltavam rápidos demais para se poder captá-los. Teve a idéia passageira de que estava certo da dor que exprimiam, mas não tão certo da inocência deles. É melhor irmos andando — disse Seymour pesadamente. — Fizemos tudo ao nosso alcance para ajudar. Os senhores compreenderão meus motivos — perguntou o padre calmamente — se disser que fizeram tudo que puderam para prejudicar? Ambos se espantaram como se tivessem culpa e Cutler disse asperamente: Prejudicar a quem? Aos senhores mesmos — respondeu o padre. — Não aumentaria suas dificuldades se não fosse justiça comum adverti-los. Os senhores fizeram tudo que puderam para se enforcarem, se este ator for absolvido. Certamente me citarão; serei obrigado a dizer que depois que o grito foi ouvido, cada um dos senhores entrou correndo no camarim em estado de agitação e começaram a brigar por causa de um punhal. Tanto quanto possam valer minhas palavras sob juramento, ambos poderiam tê-lo feito. Vocês se prejudicaram com isso. Além do mais o capitão acabou se ferindo com a faca. Eu? — exclamou o capitão com desprezo. — Um arranhão insignificante. Que sangrou — disse o padre, assentindo com a cabeça. — Sabemos que há sangue no bronze agora. E, assim, nunca saberemos se havia sangue nele antes. Fêz-se silêncio. Em seguida Seymour falou, com uma ênfase inteiramente alheia ao seu tom diário. Mas eu vi um homem no corredor. Eu sei que o senhor viu — respondeu o clérigo com um rosto de pedra — como também o capitão Cutler. É isto que parece tão improvável. Antes que um ou outro pudesse compreender o suficiente para responder, o padre Brown desculpou-se polidamente e saiu saltitando pela rua com seu guarda-chuva surrado e velho. Da maneira como são dirigidos os jornais modernos, as notícias mais honestas e mais importantes são as notícias policiais. Se é verdade que no século XX se tem dedicado mais espaço ao crime do que à política, é pela simples razão de que o assassinato é um assunto mais sério. Mas ainda assim, isso não explicaria facilmente a esmagadora onipresença e o detalhe amplamente divulgado do "Casa Bruno" ou do "Mistério do Corredor" na imprensa de Londres e das províncias. Tão generalizada era a excitação, que durante algumas semanas a imprensa realmente disse a verdade; e as reportagens sobre os inquéritos e acareações, embora intermináveis, e até intoleráveis, eram pelo menos dignas de crédito. A verdadeira razão, naturalmente, era a coincidência das pessoas. A vítima era uma atriz popular; o acusado era um ator popular e tinha sido apanhado em flagrante, por assim dizer, pelo soldado mais popular da estação patriótica. Naquelas circunstâncias extraordinárias a imprensa se fixava na probidade e na precisão; e o resto dessa questão singular pode ser praticamente retirado das atas do julgamento de Bruno. O julgamento foi presidido pelo juiz Monkhouse, um daqueles que são escarnecidos como juízes chistosos, mas que, geralmente, são muito mais sérios do que os juízes sérios, pois sua leviandade vem de uma viva impaciência com a solenidade profissional enquanto o juiz sério é realmente cheio de frivolidade, porque cheio de vaidade. Sendo todos os protagonistas de importância mundana, os advogados estavam bem equilibrados. O promotor da Coroa era Sir Walter Cowdray, advogado violento, mas sério, daquela espécie que sabe como se mostrar inglês e digno de confiança, e como ser retórico sem relutância. O réu foi defendido por Mr. Patrick Butler, que era erroneamente tomado por simples flâneur por aqueles que interpretavam mal seu caráter irlandês ou que não tinham sido interrogados por ele. A prova médico-legal não envolvia contradições; o médico que Seymour tinha chamado ao local, concordara com o eminente cirurgião que mais tarde examinara o corpo. Aurora Rome tinha sido apunhalada com algum instrumento cortante, como uma faca ou punhal; um instrumento pelo menos, de lâmina curta. O ferimento tinha sido exatamente sobre o coração e ela morrera instantaneamente. No momento em que o primeiro médico a examinou, ela não teria morrido há mais de vinte minutos. Por conseguinte, quando o padre Brown a encontrou deveria estar morta há pouco mais de três minutos. Certas provas policiais colhidas posteriormente diziam respeito principalmente à presença ou ausência de qualquer sinal de luta; a única sugestão disso era o vestido rasgado no ombro, o que não parecia ajustar-se muito bem com a direção e a finalidade do golpe. Quando esses detalhes foram oferecidos, embora não explicados, foi convocada a primeira das importantes testemunhas. Sir Wilson Seymour provou, como o fazia em tudo mais, que não só tinha agido bem, mas também com perfeição. Embora fosse mais homem público do que o juiz, procurou inteligentemente eclipsar-se diante da justiça do Rei; e embora todos olhassem para ele como olhariam para o Primeiro-Ministro ou para o Arcebispo de Canterbury, não poderia dizer nada a respeito de sua participação no caso a não ser como cidadão particular, com o destaque de um nome. Era também agradavelmente lúcido, como o era nas comissões. Tinha sido chamado por Miss Rome ao teatro; ali encontrara o capitão Cutler, tendo o réu estado com eles por alguns minutos voltando a seguir para seu próprio camarim; chegara em seguida um padre católico, que perguntara por miss Rome e dissera chamar-se Brown. Miss Rome tinha acabado de sair do teatro pela porta do corredor, para mandar o capitão Cutler a uma floricultura, onde deveria! comprar mais algumas flores. A testemunha tinha ficado na sala, trocando algumas palavras com o padre. Ouvira, então, distintamente, a voz da falecida, depois de mandar Cutler à floricultura, dar uma risada e sair correndo pelo corredor na direção da outra extremidade, onde ficava o camarim do réu. Levado por ociosa curiosidade pelos rápidos movimentos de seus amigos, tinha ele próprio saído para a ponta do corredor e olhado na direção da porta do réu. Vira algo no corredor? Sim, tinha visto algo no corredor. Sir Walter Cowdry deixou passar um intervalo impressionante, durante o qual a testemunha abaixou a vista e, apesar de toda sua serenidade, parecia estar mais pálida do que habitualmente. Em seguida, o advogado perguntou em voz baixa, que ao mesmo tempo parecia compassiva e insinuante: O senhor o viu distintamente? Sir Wilson Seymour, embora excitado, tinha a cabeça no lugar. Distintamente quanto ao contorno, mas muito vagamente quanto a seus detalhes. O corredor é tão comprido, que qualquer pessoa no meio dele parece muito escura contra a luz da outra extremidade. — A testemunha mais uma vez abaixou os olhos serenos e acrescentou: — Já havia notado o fato antes, quando o capitão Cutler entrou primeiro no corredor. Fez-se silêncio e o juiz inclinou-se para frente fazendo uma observação. Então -— disse Sir Walter pacientemente —, com que se parecia o contorno? Parecia-se, por exemplo, com a figura da mulher assassinada? De modo algum — respondeu Seymour calmamente. O que lhe parecia então? Tive a impressão — respondeu a testemunha — de ver um homem alto. Todo o tribunal mantinha os olhos fixos na sua pena, ou no cabo de seu guarda-chuva, ou no seu livro, ou em suas botas ou em qualquer coisa que por acaso estivesse olhando. Pareciam estar desviando- o olhar do réu por uma força principal; mas percebiam sua figura no banco dos réus e a percebiam como gigantesca. Alto como era, Bruno estava à vista, parecia tornar-se cada vez mais alto quando todos os olhares se tinham desviado dele. Cowdray voltava ao seu lugar com seu rosto solene, alisando sua toga de seda preta e seus bigodes brancos e sedosos. Sir Wilson deixava a tribuna de testemunhas, depois de alguns detalhes finais com referência aos quais havia muitas outras testemunhas, quando o advogado de defesa levantou-se de um salto e o deteve. Um momento, apenas — disse Mr. Butler, que era uma pessoa de olhar rude, sobrancelhas ruivas e uma expressão de semi-sonolência. Poderia dizer à Sua Excelência como viu que era um homem? Um leve e delicado sorriso pareceu passar pelo rosto de Seymour. Acho que foi o teste vulgar das calças — disse. — Quando vi a luz do dia entre as pernas compridas tive certeza de que se tratava, afinal de contas, de um homem. Os olhos sonolentos de Butler abriram-se tão repentinamente como uma explosão silenciosa. Afinal de contas! — repetiu calmamente. — Então o senhor pensou inicialmente que fosse uma mulher? Seymour mostrou-se perturbado pela primeira vez. Não é uma questão de importância — disse, mas se Sua Excelência quer a minha opinião, eu a darei, naturalmente. Havia algo na coisa que não era exatamente de mulher e, não obstante, não era também de homem; as curvas eram de certo modo diferentes. E tinha algo que se parecia com cabelos compridos. Obrigado, disse Mr. Butler, e sentou-se imediatamente, como se tivesse conseguido o que queria. O capitão Cutler foi uma testemunha muito menos plausível e serena do que Sir Wilson, mas seu relato dos acidentes iniciais foi praticamente o mesmo. Descreveu a volta de Bruno à seu camarim, sua missão de ir comprar lírios-do-vale, sua volta à extremidade superior do corredor, o que viu no corredor, sua suspeita de Seymour e sua luta com Bruno. Mas podia oferecer muito pouca luz a respeito da silhueta escura que ele e Seymour haviam visto. Perguntado sobre a silhueta, disse que não era crítico de arte, como óbvia alusão de escárnio a Seymour. Perguntado se era homem ou mulher, disse que lhe pareceu mais uma fera, com um olhar feroz para o réu. Mas o homem estava sinceramente tomado de tristeza, de modo que Cowdray dispensou-o rapidamente de confirmar fatos que já estavam por demais esclarecidos. O advogado de defesa foi também breve em seu interrogatório, embora (como fosse de seu costume), mesmo sendo breve levasse muito tempo com siso. O senhor usou uma expressão um tanto curiosa — disse, olhando para Cutler sonolentamente. — O que entende ao dizer que parecia mais uma fera do que um homem ou uma mulher? Cutler pareceu seriamente agitado. Talvez eu não devesse ter dito isso, mas como o animal tinha ombros enormes e encurvados como um chimpanzé, e cerdas saiam de sua cabeça como de um porco... Mr. Butler cortou sua curiosa impaciência no meio. Não importa se seu cabelo se parecia com o cabelo de um porco. Seria o cabelo de uma mulher? De mulher? — exclamou o soldado. — Pelo amor de Deus, nunca! A última testemunha disse que era, comentou o advogado, propositalmente. E a figura teria aquelas curvas serpenteantes e semi-femininas às quais se fez eloqüente alusão? Não? Nenhuma forma feminina? A figura, se bem o entendi, tinha antes uma forma pesada e quadrada. Sim, como se caminhasse inclinada para a frente, disse Cutler, com voz rouca e um tanto fraca. Obrigado — disse Mr. Butler e sentou-se de repente pela segunda vez. A terceira testemunha convocada por Sir Walter Cowdray era um padre católico, tão pequenino, comparado com os outros, que sua cabeça mal se via acima da tribuna, de modo que parecia o interrogatório de uma criança. Mas, infelizmente, Sir Walter tinha de certo modo metido em sua cabeça (em grande parte por algumas ramificações da religião de sua família) que o padre Brown estava do lado do réu, porque o réu era mau e estrangeiro, e quase preto. Por conseguinte, interrompia o padre Brown, rispidamente, toda vez que ele queria explicar alguma coisa; disse-lhe que respondesse apenas sim ou não e se limitasse a contar os fatos sem elocubrações jesuíticas. Quando padre Brown começou, com sua simplicidade, a dizer quem ele pensava fosse o homem do corredor, o advogado de acusação protestou dizendo que não lhe interessavam suas teorias. Uma sombra escura foi vista no corredor. E o senhor diz que viu a sombra escura. Então, que forma tinha? Padre Brown piscava os olhos como se estivesse sendo repreendido. Mas desde muito conhecera a natureza literal da obediência. A forma — respondeu — era baixa e grossa, mas tinha duas projeções altas, afiadas e curvas de cada lado da cabeça, semelhantes a chifres, e... Oh! o demônio de chifres, sem dúvida — exclamou Cowdray, assentando-se com alegria triunfante. — Foi o demônio que veio comer os protestantes. Não — disse o padre impassível. — Eu sei quem era. Todos no tribunal tinham sido levados a pensar em certa monstruosidade irracional, mas real. Tinham esquecido a figura no banco dos réus e pensavam apenas na figura do corredor. E a figura do corredor, descrita por três homens capazes e respeitáveis que a tinham visto, era um variado pesadelo: um a chamou de mulher, o outro de fera, e o outro de demônio... O juiz olhava para o padre com os olhos firmes e penetrantes. O senhor é uma testemunha sui generis — disse ele. — Percebo, porém, em suas palavras que está tentando dizer a verdade. Então, quem era o homem que o senhor viu no corredor? Era eu mesmo — respondeu padre Brown. Butler levantou-se calmamente e disse com serenidade: O senhor me permite interrogá-lo? E, em seguida, sem parar, fez a Brown a pergunta aparentemente desconexa: O senhor ouviu falar da faca; sabe que os peritos dizem que o crime foi cometido com uma lâmina curta? Uma lâmina curta — repetiu o padre Brown, assentindo solenemente como um mocho — mas de cabo muito comprido. Antes que o auditório pudesse livrar-se da idéia de que o padre se tinha realmente visto cometendo o crime com uma faca curta de cabo comprido (o que parecia de certo modo tornar a coisa mais horrível), ele se apressou a explicar. Quero dizer que os punhais não são as únicas armas com lâminas curtas. As lanças têm lâminas curtas. E lanças são presas na ponta do aço do mesmo modo que os punhais, se são daquela espécie de lança de fantasia que se usa nos teatros; como a lança com que o pobre e velho Parkinson matou sua esposa, exatamente quando ela mandou chamar-me para resolver seus problemas familiares... só que cheguei tarde demais. Que Deus me perdoe! Mas ele morreu penitente... morreu precisamente de arrependimento. Não pôde suportar o que fizera. A impressão geral no tribunal era de que o pequeno padre, que continuava tagarelando, teria ficado louco na tribuna. Mas o juiz o encarava ainda com os olhos vivos e cheios de interesse; e o advogado de defesa continuou seu interrogatório imperturbável. Se Parkinson fez isso com aquela lança de fantasia — disse Butler — deve tê-la atirado de, digamos, quatro metros. Como o senhor explica sinais de luta, como o vestido rasgado no ombro? Ele passara a tratar a testemunha como um simples perito, mas ninguém notara a diferença. O vestido da pobre senhora estava rasgado — disse a testemunha — porque se prendeu num painel que escorregou exatamente atrás dela. Debatia-se para se livrar do painel quando Parkinson saiu do quarto do réu e investiu com a lança. Painel? — perguntou o advogado num tom de curiosidade. Era um espelho do outro lado, explicou padre Brown. Quando eu estava no camarim notei que alguns desses espelhos refletiam para dentro do corredor. O silêncio abateu-se novamente sobre a sala e, desta vez, foi quebrado pelo juiz. Então o senhor quer dizer que quando olhou para o corredor, o homem que viu era o senhor mesmo refletido no espelho? Sim, Excelência, era isso que estava tentando dizer — respondeu Brown, mas me perguntaram sobre a forma... Nossos chapéus se parecem com chifres e assim, eu.. . O juiz inclinou-se para frente, com seus olhos ainda mais brilhantes e disse num tom especialmente distinto: O senhor quer dizer realmente que quando Sir Wilson Seymour viu as mencionadas curvas femininas, o cabelo de mulher e as calças de homem, o que ele viu era o próprio? Sir Wilson Seymour? Sim, Excelência — respondeu padre Brown. E quer dizer que quando o capitão Cutler viu aquele chimpanzé de ombros largos e encurvados e de cabelos como cerdas de porco, o que estava vendo era a sua própria imagem? Sim, Excelência. O juiz recostou-se em sua cadeira com uma expressão em que era difícil distinguir o cinismo e a admiração. E o senhor nos pode dizer como pôde reconhecer sua própria figura num espelho, quando duas pessoas distintas não o puderam? Padre Brown pestanejou mais penosamente do que antes e, em seguida, gaguejou: Realmente, Excelência, não sei... a menos que... talvez, seja porque não olho para ela muitas vezes. https://bibliotecasemlimites.comunidades.net/a-sabedoria-do-padre-brown-gkchesterton **************** *** SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO - William Shakespeare (resumo) Professora Isa Nov **************************************

Nenhum comentário:

Postar um comentário