sábado, 6 de fevereiro de 2021

LÁ NO MORRO

AVISTEI-O subindo o morro. Mamãe estava junto ao fogareiro. Corri alarmado para avisá-la: “Papai envém aí”. Ela me espetou os olhos apagados e os lábios se moveram lentamente. Não disse nada. Papai atravessou a porta em silêncio e ao invés de chutar o tamborete arredou-o de leve. Observou-me num relance. Depois olhou mamãe que estava de costas, e deixou-se cair no tamborete. A cabeça pendeu sobre o caixote como se se tivesse desprendido do corpo. Não exalava cachaça, desta vez. Surpreendi-me avançando na sua direção. Parei perto do caixote com as pernas trêmulas, e antes que eu percebesse meus dedos já tocavam o ombro de papai. Mamãe permanecia imóvel junto ao fogareiro, como se esperasse que a mão pesada a atingisse a qualquer momento. Angustiava-me um sentimento doloroso por papai: era como se o estivesse descobrindo sob a camada de violência, e agora ali restasse não apenas meu pai, mas a própria criatura humana na sua dimensão essencial e indestrutível. Olhei para mamãe. E gritei-lhe desesperadamente “Mamãe!” sem que ao menos tivesse necessidade de abrir a boca. Afinal mamãe se voltou com o prato de comida e viu minha mão pousada no ombro de papai. Colocou o prato no caixote, perto da cabeça de papai. Ele continuou quieto, a respiração funda e descompassada. Mamãe acendeu a lamparina, e a claridade arredou as primeiras sombras da tarde para os cantos do cômodo. Em seguida, mamãe preparou a minha marmita e por último o seu prato e ambos nos sentamos, eu no chão e ela no outro tamborete. O arfar intenso de papai doía no silêncio. Olhei mamãe. Mamãe me olhou e disse: – Come. Depois fitou papai, de esguelha, e levou até à boca uma pequena porção de arroz. Mas teve logo que deixar o garfo de lado para conter o acesso de tosse com a mão. Papai então levantou a cabeça, encarou-a com os lábios abertos. Seu rosto estava molhado de suor. Abaixou os olhos para mim, fungando, e deixou a cabeça pender novamente sobre o caixote. Ouvimos passos no quintal. Três homens saltaram dentro do barraco e um deles arrancou a cortina que dividia o cômodo. Antes que o coração me socasse o peito e mamãe imobilizasse o garfo e papai erguesse a cabeça, tiraram-no do tamborete, torcendo-lhe os braços. Papai não tentou reagir, sequer parecia surpreso. Era como se já estivesse esperando aquele momento. Nem ao menos olhou para os homens que o subjugavam. Fitava apenas mamãe, imóvel e fria do outro lado do caixote. Um dos homens levantou o punho e bateu-lhe seguidamente na cara. Com a boca ensangüentada, recebia as pancadas sem tirar os olhos de mamãe. Levaram-no, os braços presos às costas. Os socos continuavam no quintal e eram mais nítidos quando pegavam na cara de papai. As batidas foram-se distanciando. Mamãe estava com a cabeça quase dentro do prato e as lágrimas escorrendo de seu rosto pingavam sobre o resto da comida. A marmita ainda tremia em minhas mãos e eu comecei a vomitar. Wander Piroli – 1952 http://books.google.com.br/books?id=m26oZjgr9tAC&lpg=PP1&hl=pt-BR&pg=PP1#v=onepage&q&f=false *** *** WANDER PIROLI (1931 - / Brasil) *** Jornalista e contista mineiro, Wander Piroli é autor de uma obra pequena porém consistente, que inclui A Mãe e o Filho da Mãe, O Menino e o Pinto do Meninso, Os Rios Morrem de Sede (Prêmio Jabuti em 19777), A Máquina de Fazer Amor. Com o conto Os Camaradas e este Lá no Morro - em que a violência da grande cidade e de suas autoridade policiais é vista pelos olhos de um garoto - ele participou de Contos de Repressão (Ed. Record, 1987), a antologia da abertura política organizada por Fábio Lucas. *** https://mdfranceschi.tumblr.com/post/53133191915 *** *** Cenas da favela: as melhores histórias da periferia brasileira ***
*** O mundo da favela pelos olhos da literatura nem sempre é o mesmo das páginas de jornal. *** https://books.google.com.br/books/content?id=m26oZjgr9tAC&printsec=frontcover&img=1&zoom=1&imgtk=AFLRE702vZ_XzBZqGb8WzP7mqKz8cU7qzKAWwopzy3LMAbAhsexqlZlOPaXF7dSUIm-6axfrMZNN9sU4NRDsFHvGLrquP905nz4yIZDEUbGL9AHhAFKlKaSl8hwZwLQTJyLlcp9j2C2T *** Alberto Mussa *** Geração Editorial, 2007 - 228 páginas *** 'Cenas da favela' é uma antologia de textos literários que traz contos, poemas e trechos de romances de arrepiar, mas também histórias comoventes e singelas, sobre o universo das favelas brasileiras. Nelson de Oliveira, escritor premiado com o Casa de las Américas, reuniu textos de 24 autores de diversas gerações, de Carlos Drummond de Andrade e Rubem Fonseca a Paulo Lins e Marçal Aquino, entre outros. Cenas de homens e mulheres em situação-limite. Solidão, crueldade, humor, sexo, lirismo. Algumas destas cenas são de arrepiar - drogas, tiros, massacres. Mas há também cenas ternas, singelas - amores, canções, pequenos atos de heroísmo. O mundo da favela pelos olhos da literatura nem sempre é o mesmo das páginas de jornal. Os autores são - Alberto Mussa, Antônio Fraga, Carlos Drummond de Andrade, Carolina Maria de Jesus, Cecília Prada, Chico Lopes, Fernando Bonassi, Ferréz, João Antônio, João Anzanello Carrascoza, João Batista Melo, João Paulo Cuenca, Joca Reiners Terron, Luís Marra, Luiz Ruffato, Lygia Fagundes Telles, Marçal Aquino, Marcelino Freire, Nelson de Oliveira, Paulo Lins, Ronaldo Bressane, Rubem Fonseca, Sérgio Fantini Wander Piroli. *** https://books.google.com.br/books?id=m26oZjgr9tAC&lpg=PP1&hl=pt-BR&pg=PP1#v=onepage&q&f=false *** *** Lá no Morro *** Funfo de Quintal *** https://youtu.be/zA2uGTOETDI Lá no morro quando eu olho pra baixo } Acho a cidade uma beleza } E quando estou na cidade que eu olho pra cima } Fico contemplando a natureza } Lá no meu barracão Quando chove é uma agonia Carrego o colchão e coloco a bacia A nega reclama mas ela me ama Pois sabe que eu sou seu melhor companheiro E assim vou vivendo alegre e contente Lá no meu salão Composição: Almir Baixinho / Dona Fia / Marujo *** https://www.letras.mus.br/fundo-de-quintal/46080/ *** ***

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