terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Black Stories e a literatura policial

A DONDOCA *** Uma condessa se encantava tanto com sua beleza que acreditava que as jovens dariam de tudo para ter um dia de belez com spa com ela ***
*** Figura1. Carta “A dondoca” do jogo Black Stories: crimes reais *** https://www.ufjf.br/darandina/files/2019/11/Artigo-Juliana-Bellini-Meireles.pdf *** *** OS ASSASSINATOS DA RUA MORGUE *** UMA TRADUÇÃO GAMIFICADA DA OBRA DE EDGAR ALLAN POE *** Juliana Bellini Meireles1 *** RESUMO: Este artigo propõe uma tradução intersemiótica do conto “Os Assassinatos da Rua Morgue”, de Edgar Allan Poe. Considerando teorias literárias acerca da recepção, este trabalho apresenta uma carta inspirada na linha de jogos Black Stories, utilizando o leitor como skopos, e explicando o processo tradutório. O objetivo é propor uma tradução que conversa diretamente com a literatura policial, explorando o papel de detetive assumido pelo leitor em uma mídia diferente. *** Palavras-chave: Literatura Policial; Edgar Allan Poe; Tradução; Jogos; Leitor *** ABSTRACT: This paper proposes an intersemiotic translation of “The Murders in Rue Morgue”, by Edgar Allan Poe. Considering some literary theories about reception, it presents a card based on the “Black Stories” game series, using the reader as skopos, then explaining the translation procedures. The objective is proposing a translation that converses with police literature, exploring the role of detective assumed by the reader on different media. *** Key-Words: Police Literature; Edgar Allan Poe; Translation; Games; Reader *** https://www.ufjf.br/darandina/files/2019/11/Artigo-Juliana-Bellini-Meireles.pdf *** Ele só queria fazer a barba, mas teve que fugir...Algum tempo depois, mãe e filha foram encontradas mortas numa rua de Paris. *** ASSASSINATOS NA RUA MORGUE ***
Quais as canções que cantavam as Sereias ou que nome Aquiles adotou quando se escondeu entre as mulheres são questões que, embora intri gantes, não se acham além de toda a conjec tu ra. *** Sir Thomas Browne *** As características mentais geralmente denominadas analíticas são, em si mesmas, pouco suscetíveis a uma análise. Podemos apreciá-las somente através de seus efeitos. Sabemos delas, entre outras coisas, que quando possuídas em grau incomum, sempre são, para seu possuidor, uma fonte do mais vivo prazer. Assim como o homem robusto vibra em sua força e habilidade física, dedicando-se com entusiasmo aos exercícios que põem seus músculos em ação, assim o analista se glorifi ca naquela atividade moral que desembaraça e deslinda. Encontra prazer até mesmo nas ocupações mais triviais que lhe permi tam exercer seus talentos. Ama os enigmas, os paradoxos e os hieróglifos; exibe, na solução de cada mis tério, um grau de acurácia que parece sobrenatural às pessoas de compreensão mais ordinária. Seus resultados, ainda que obtidos através da própria alma e essência do método, apresentam, de fato, todo o aspecto da intuição. A faculdade da resolução de problemas possivelmente é muito fortalecida pelo estudo das matemáticas, especialmente pelo mais elevado de seus ramos, o qual, injustamente, apenas em função de suas operações de revisão dos fatos, vem sendo chamado de análise, como se fosse somente isso. Todavia, calcular não é o mesmo que analisar. Um enxadrista, por exemplo, calcula sempre, sem se esforçar por efetuar análises. Segue-se que o jogo de xadrez, em seus efeitos sobre o caráter mental, é em grande parte mal compreendido. Não me disponho agora a escrever um tratado, mas estou simplesmente prefaciando uma narrativa um tanto peculiar através de observações bastante casuais; aproveitarei a ocasião, portanto, para afi rmar que os poderes mais altos do intelecto refl exivo são exercitados de forma mais decidida e mais útil através do humilde jogo de damas do que pela frivolidade elaborada do xadrez. Neste último, em que as peças têm movimentos diferentes e bizarros, com valores os mais diversos e variados, aquilo que é somente complexo provoca o engano (um erro bastante comum) de parecer profundo. O que entra principalmente no jogo é a atenção. Se falhar por um momento, o jogador se distrai e comete um erro para seu prejuízo ou derrota fi nal. Uma vez que os movimentos possíveis não somente são numerosos como labirínticos, a possibilidade de ocorrência de tais distrações é multiplicada; em nove casos em dez, o vencedor não é o jogador mais inteligente, mas sim o mais concentrado. No jogo de damas, ao contrário, em que os movimentos são sempre os mesmos e existe muito pouca variação, as probabilidades de um movimento inadvertido são diminuídas e a mera atenção fi ca relativamente fora do jogo, as vantagens obtidas por qualquer um dos parceiros são conseguidas através de maior perspicácia. Para sermos menos abstratos, vamos supor um jogo em que as peças sejam reduzidas a quatro damas e no qual, naturalmente, não se espere qualquer distração. É óbvio que aqui a vitória pode ser decidida (uma vez que os adversários têm peças absolutamente iguais) somente através de algum movimento muito recherché1 , resultado de um grande esforço intelectual. Sem possuir mais recursos do que ele, o analista se lança no espírito de seu oponente, identifi ca-se com ele e, com alguma freqüência, observa de relance o único método (algumas vezes absurdamente simples) através do qual pode seduzi-lo a cometer um erro ou apressar-se a fazer um cálculo errado. ***** 1. Pesquisado, elaborado, sofisticado. Em francês no original. (N.T.) ***** O jogo de whist vem sendo notado há muito tempo pela infl uência que exerce sobre o que é denominado o poder de cálculo; homens com intelectos de primeira ordem aparentemente sentem um prazer inexplicável através desta diversão, ao mesmo tempo que desprezam o xadrez por sua frivolidade. Não há dúvida que nenhum jogo de natureza semelhante exige tanto da faculdade de análise. O melhor jogador de xadrez da Cristandade pode não ser nada mais que o melhor enxadrista; porém a profi ciência no whist implica uma capacidade de sucesso em todos os empreendimentos mais importantes nos quais uma mente disputa com outra. Quando uso o termo “profi ciência”, indico aquela perfeição no exercício do jogo que inclui um entendimento de todas as fontes de que uma vantagem legítima pode ser derivada. Estas são não apenas múltiplas como multiformes, e freqüentemente se encontram em recessos da mente totalmente inacessíveis para a compreensão das pessoas comuns. Observar atentamente signifi ca lembrar distintamente; deste modo, o enxadrista concentrado vai se dar muito bem no whist; ao mesmo tempo que as regras de Hoyle (que se baseiam no próprio mecanismo do jogo) são em geral sufi cientemente compreensíveis.2 Deste modo, a posse de uma memória retentiva e a capacidade de proceder “conforme o livro” são as qualidades geralmente consideradas sufi cientes para se ser um bom jogador. Mas é nas questões que vão além dos limites impostos pelas regras que se evidencia a habilidade do analista. Em silêncio, ele realiza uma série de observações e inferências. Talvez seus companheiros façam o mesmo; a diferença na quantidade de informações que assim são obtidas não se baseia tanto na validade da inferência como na qualidade da observação. O conhecimento necessário é o do quê deve ser observado. Nosso jogador perito não estabelece limites para si próprio; nem ao menos, considerando que o jogo é o objetivo, ele rejeita deduções a partir de coisas totalmente externas ao jogo. Ele examina a fi sionomia de seu parceiro de dupla e a compara cuidadosamente com os rostos de cada um de seus oponentes. Ele considera o modo de classifi car as cartas em cada mão; muitas vezes conta trunfo a trunfo e fi gura por fi gura, através dos olhares lançados pelos portadores uns sobre os outros. Ele nota cada variação na expressão dos semblantes à medida que o jogo se desenrola, reunindo um tesouro de pensamentos a partir das diferenças de expressão de certeza, de surpresa, de triunfo ou de derrota. A partir da maneira como é vencida uma vaza ele julga se a pessoa vencedora pode ganhar outra em seguida ou não. Ele reconhece o que é jogado para iludir o adversário através do jeito com que a carta é jogada sobre a mesa. Uma palavra casual ou inadvertida; a queda acidental ou a virada de uma carta, com a ansie dade ou desimportância associada à sua ocultação; a contagem das vazas, na ordem de seu aparecimento; o embaraço, a hesitação, a ansiedade ou a trepidação – tudo fornece à sua percepção aparentemente intuiti va indicações do verdadeiro estado do jogo. Depois que as duas ou três primeiras mãos foram jogadas, ele está em pleno controle do valor das cartas que cada jogador possui e, a partir daí, descarta as suas com uma precisão de propósito tão absoluta como se o resto dos participantes estivesse jogando a descoberto. O poder analítico não deve ser confundido com a simples engenhosidade; porque, embora o analista seja necessariamente engenhoso, um homem de engenho muitas vezes é perceptivelmente incapaz em análise pura. O poder construtivo, ou capacidade de combinação, através do qual a engenhosidade é em geral manifesta e para o qual a frenologia (acredito que erroneamente) designou um órgão cerebral separado, supondo que seja uma qualidade primitiva, tem sido com muita freqüência encontrado em pes soas cuja capacidade intelectual em outras áreas se aproxima da idiotia, um fato que já atraiu observação geral entre os escritores e os moralistas. Entre a engenho sidade e a qualidade analítica existe uma diferença muito maior, sem a menor dúvida, daquela existente entre a fantasia e a imaginação, porém de um caráter muito estritamente análogo. Pode ser comprovado na prática que os engenhosos são sempre fanta siosos, enquanto os realmente imaginativos sempre se demonstram analíticos. A narrativa que se segue provavelmente se torna rá mais clara para o leitor, se tomar em consideração os comentários e as afi rmações que acabo de expor. Quando residi em Paris durante a primavera e parte do verão de 18—, travei conhecimento com um Monsieur C. Auguste Dupin. Este jovem cavalheiro pertencia a uma excelente – de fato, ilustre – família, porém, através de uma série de eventos inesperados, havia sido reduzido a uma tal pobreza que a energia de seu caráter sucumbiu perante ela e desis tiu de enfrentar o mundo ou preocupar-se em recu perar sua for tuna. Por cortesia de seus credores, permane cia em sua posse uma pequena parte de seu patrimônio; com esta renda e mantendo rigorosa economia, ele conseguia obter as necessidades básicas da vida, sem se preocupar com suas superfl uidades. De fato, os livros eram seu único luxo; e, em Paris, é fácil consegui-los. Nosso primeiro encontro foi em uma biblioteca obscura na rua Montmartre, em que o acidente de que ambos estávamos em busca do mesmo volume muito raro e notável fez com que entrássemos em contato e estabelecêssemos uma comunhão de interesses mais íntima. Encon tramo-nos vezes sem conta. Eu estava profundamente interessado na pequena história de sua família que ele me detalhava com toda aquela ingenuidade que um francês demonstra quando o assunto é ele mesmo ou alguma coisa de seu interesse pes soal. Fiquei espantadís simo, também, com a vasta ex tensão de suas leituras; e, acima de tudo, minha alma foi despertada pelo fervor ardente e ao mesmo tempo pela vívida originalidade de sua imaginação. Estando em Paris a fi m de realizar certos objetivos que não vêm ao caso expor, senti que a sociedade de um homem assim seria um tesouro inestimável, e confi ei-lhe esta impressão com toda a franqueza. Finalmente, decidimos morar na mesma casa enquanto durasse minha permanência naquela cidade; uma vez que minhas circunstâncias materiais eram um pouco menos difíceis que as dele, foi-me permitido incorrer nas despesas necessárias para alugar e mobiliar, em um estilo que agradasse à melancolia bastante fantástica de nossos temperamentos tão semelhantes, uma mansão grotesca e maltratada pelo tempo, deserta há muito tempo, devido a superstições que não nos interessa ram muito e ao fato de que estava a meio caminho de desabar, localizada em uma parte remota e um tanto desolada do Faubourg St.-Germain. Se a rotina de nossa vida neste lugar fosse conhecida do mundo, teríamos sido encarados como dois loucos – ainda que talvez nos considerassem como dois loucos mansos. Nossa reclusão era perfeita. Não recebíamos nenhum visitante. De fato, a localização de nosso retiro tinha sido mantida cuidadosamente em segredo de meus antigos amigos e associados; e já faziam muitos anos desde que Dupin tinha cessado de ter relações de amizade ou mesmo de ser conhecido em Paris. Existíamos somente para nós mesmos. Por uma exacerbação da fantasia de meu amigo (de que mais posso chamá-la?), ele se achava enamorado da Noite, apenas pelo prazer de gozá-la; e eu mesmo recaí nesta situação bizarra, do mesmo modo que partilhei de todas as suas outras peculiaridades, entregando-me a seus caprichos ardentes com um per feito abandono. A divindade negra não queria habitar conosco sempre, mas podíamos fi ngir-lhe a presen ça. Assim que os primeiros sinais da aurora surgiam, fechávamos todos os postigos maciços de nosso velho edifício e acendíamos alguns círios que, embora fortemente perfumados, projetavam apenas os raios de luz mais débeis e merencó rios. Sob esta fraca luminosidade, ocupávamos nossas almas em sonhos – lendo, escrevendo ou conversando –, até que o relógio nos advertia da chegada da verdadeira Escuridão. Era então que saíamos às ruas, lado a lado, continuan do nossa discussão dos tópicos do dia; ou simplesmen te vagabundeando sem destino até alta madrugada, procurando, entre as luzes e sombras turbulentas da populosa cidade, aquele infi nito de excitação mental que somente a observação tranqüila pode conceder. Era nessas ocasiões que eu não podia deixar de notar e admirar (embora já estivesse preparado, por suas afi rmações variadas e inteligentes observações, a esperar por ela) uma habilidade analítica peculiar em Dupin. Ele parecia, também, ansiar por ela e extrair o maior prazer em exercitá-la – ou, talvez mais exatamente, em exibi-la – e não hesitava em confessar o prazer que experimentava. Ele se gabava, com uma risadinha baixa e discreta, de que podia ler as intenções e pensamentos da maioria dos homens, como se tivessem janelas no peito; e tinha o costume de acompanhar estas assertivas com provas diretas e bastante assombrosas do seu conhecimento íntimo de meus sentimentos. Nestes momentos, seu aspecto era frígido e abstraído; seus olhos mostravam uma expressão vazia; e sua voz, geralmente ostentando um belo timbre de tenor, subia para um trêmulo que teria parecido resultado de atrevimento e petulância se não fosse pela deliberação e completa distinção com que era enunciada. Ao observá-lo quando se achava nesta disposição, muitas vezes me recordava meditativamente da velha fi losofi a da alma bipartida e me divertia a fantasiar a existência de um duplo Dupin – o criativo e o investigador. Mas não se suponha, a partir do que acabei de relatar, que estou detalhando algum mistério ou escre vendo algum romance. O que eu descobri no meu amigo francês foi meramente o resultado de uma inte ligência superexcita da ou, talvez, até mesmo doentia. Mas quanto ao caráter de suas observações durante o período que está sendo descrito, um exemplo demonstrará melhor a idéia. Uma noite, estávamos passeando por uma rua comprida e suja, nas proximidades do Palais Royal. Estando ambos, aparentemente, imersos em pensamentos, nenhum de nós tinha proferido uma sílaba por, no mínimo, quinze minutos. Repentinamente, Dupin proferiu estas palavras: – Ele é um camarada muito baixinho, é verdade: serviria bem melhor para o Théâtre des Variétés. – Não resta dúvida – respondi distraidamente, sem observar a princípio (por encontrar-me profunda mente absorvido em refl exões) a maneira extraordiná ria com que meu interlocutor tinha entrado justamente no espírito de minha meditação. No instante seguinte, percebi o que ha via acontecido e meu espanto foi profundo. – Dupin – disse eu, gravemente –, isto vai além de minha compreen são. Não hesito em dizer que estou assombrado e difi cilmente posso acreditar na evidência de meus sentidos. Como foi possível que você soubesse que eu estava pensando em...? – fi z uma pausa neste ponto, como para me convencer além de toda dúvida de que ele realmente sabia em quem eu estivera pensando. – Em Chantilly, naturalmente – disse ele. – Por que fez uma pausa? Você estava observando para si próprio que sua fi gura diminuta não era adequada para papéis trágicos. Fora precisamente este o assunto de minhas refl exões. Chantilly tinha sido, quondam3 , um sapateiro re mendão da rua St.-Denis que havia pego a febre do palco e fora tentado a representar o papel de Xerxes, na tragédia de mesmo nome, de Crébillon, tendo sido notoriamente satirizado por seus esforços através de panfl etos anônimos. – Explique-me, por amor de Deus – exclamei –, o método, se é que houve um método, por meio do qual você foi capaz de ler meus pensamentos dessa forma. De fato, eu estava muito mais impressionado do que me dispunha a admitir. – Foi o vendedor de frutas – replicou meu amigo – que o levou à conclusão de que o sapateiro-remendão não tinha altura sufi ciente para o papel de Xerxes et id genus omne. 4 ***** 2. Edmund Hoyle escreveu A Short Treatise on Whist (Um curto tratado sobre o Whist) em 1742. (N.T.) *** 3. Em um certo momento, outrora, antigamente. Em latim no original. (N.T.) 4. E todos os de seu gênero. Em latim no original. (N.T.) ***** – O vendedor de frutas! Agora mesmo não entendi nada! Não conheço nenhum fruteiro! – O homem que veio correndo em sua direção quando entramos nesta rua, deve ter sido há uns quinze minutos. Lembrei-me então que, de fato, um vendedor de frutas, carregando na cabeça um grande cesto cheio de maçãs, quase tinha me derrubado por acidente, quando dobramos da rua C—— para a avenida em que estávamos agora; mas não havia a menor possibilidade de associar esse fato a meus pensamentos sobre Chantilly. Mas Dupin não era absolutamente dado a charlatânerie. – Eu vou explicar – disse ele. – Para que você possa compreender mais claramente, vamos primeiro retraçar o curso de suas meditações, desde o momento em que eu lhe falei até nosso rencontre com o quitandeiro que acabei de mencionar. Os elos maiores da cadeia são os seguintes; Chantilly, Órion, Dr. Nichols, Epicuro, Estereo tomia, os paralelepípedos da rua e o vendedor de frutas. Há poucas pessoas que não tenham, em determinado período de suas vidas, se divertido a tentar retraçar as etapas através das quais conclusões parti culares de suas próprias mentes possam ter sido atingidas. Essa ocupação muitas vezes é cheia de interesse; e aquele que tenta realizá-la pela primeira vez pode fi car assombrado pela distância aparentemente ilimitada e incoerente entre o ponto de partida e o objetivo alcançado. Imagine-se então meu pasmo, minha estupefação ao escutar o francês emitir aquelas sentenças que recém havia pronunciado, especialmente depois que não pude deixar de reconhecer que havia falado a verdade, ponto por ponto. Ele continuou: – Estávamos falando sobre cavalos, se me lembro corretamente, um instante antes de dobrarmos a esquina da rua C——. Foi este o último assunto que discutimos. No momento em que entramos nesta rua, um quitandeiro, com um cesto grande na cabeça, passando rapidamente por nós, empurrou-o sobre uma pilha de paralelepípedos colocada junto ao ponto em que o pavimento está sendo consertado. Você pisou em uma das pedras soltas, escorregou, distendeu levemente o tornozelo, fi cou incomodado e de mau humor por alguns instantes, resmungou umas poucas palavras, voltou-se para olhar a pilha e então pros seguiu em completo silêncio. Eu não estava prestando atenção particular ao que você fazia, porém a observa ção vem se tornando para mim, nos últimos anos, uma espécie de necessidade, como se fosse uma segunda natureza. Bem, você continuou com os olhos fi ncados no chão – olhando, com uma expressão aborrecida, para os buracos e valas do pavimento (foi assim que eu percebi que ainda estava pensando nas pedras), até que chegamos àquela viela chamada Lamartine, que foi pavimentada, como uma experiên cia, com aqueles blocos que se superpõem e são re bi tados uns aos outros. Aqui seu rosto se iluminou; e per cebendo um certo movimento em seus lábios, não pude duvidar de que tenha pronunciado a palavra “estereo to mia”, um termo que estão aplicando muito afetadamente a essa espécie de pavimento. Nesse mesmo momento, eu soube que você não poderia ter di to a si pró prio “estereoto mia”, sem ser levado a pensar na “ato mia” e assim nas teorias de Epicuro;5 e uma vez que, ao discutirmos este assunto há relativamente pou co tempo, eu lhe mencionei que de forma singular, em bora não estivesse despertando muita atenção, as adi vinhações vagas daquele nobre grego estavam sendo agora confi rmadas pela recente cosmogo nia nebu lar, proposta pelo dr. Nichols, senti que você não pode ria evitar de erguer os olhos para a grande ne bulosa de Órion, e fi quei esperando que você fi zes se isso. De fato, você olhou; e agora eu tinha plena certe za de que tinha seguido corretamente seus pas sos.6 Porém, na quela amarga crítica feita a Chantilly, que apareceu no Musée de ontem, o satirista fez algumas alusões des gra cio sas à mudança de nome do sapa teiro, de pois que colocou os coturnos de um ator de tragédias e citou um verso em latim sobre o qual conversamos com freqüência. Refi ro-me à linha: Per didit an ti quum litera prima sonum.7. Eu já lhe havia dito que es ta citação referia-se a Órion, porque antigamente era escrito Úrion; devido à questão que debatemos em torno desta explicação, tinha certeza de que você não teria podido esquecê-la. Estava claro, portanto, que você não poderia deixar de combinar as idéias de Órion e Chantilly. Que você realmente as combinou, eu percebi pelo sorriso que passou por seus lábios. Você estava pensando na imolação do pobre sapateiro. Até aquele momento, você estava andando meio ca bisbaixo; mas, nesse momento, esticou-se de modo a mos trar sua plena estatura. Tive então certeza de que estava refl etindo sobre a fi gura minúscula de Chan tilly. Foi nesse ponto que interrompi suas meditações para observar que, de fato, ele era um sujeito muito pequeno, quero dizer, Chan tilly – e que ele teria muito mais sucesso no Théâtre des Variétés. Pouco tempo depois disso, estávamos olhando uma edição vespertina da Gazette des Tribunaux, quando o seguinte parágrafo atraiu nossa atenção: “EXTRAORDINÁRIOS ASSASSINATOS – Esta madruga da, por volta das três horas da manhã, os habitantes do Quartier St.- Roch foram acordados do sono por uma sucessão de gritos terríveis que partiam, apa ren te mente, do quarto andar de uma casa na rua Mor gue cujas únicas moradoras conhecidas eram uma certa Ma dame L’Espa naye e sua fi lha, Made moiselle Camille L’Espanaye. Depois de algum atraso, ocasio na do pela tentativa infrutífera de obter admissão da ma neira usual, o portão de entrada foi rebentado com um pé-de-cabra e oito ou dez dos vizinhos entraram, acom panhados por dois gendarmes. A essa altura, os gri tos já haviam cessado; porém, enquanto o grupo cor ria pelo primeiro lance de escadas, duas ou mais vo zes grosseiras, aparentemente discutindo fu rio sa mente, foram distingui das, parecendo provir da parte su perior da casa. Quando o grupo chegou ao segundo patamar, também estes sons haviam cessado e tudo per manecia em perfeito silêncio. As pessoas se espalharam e correram de peça em peça. Ao chegarem a um amplo quarto na parte dos fundos do quarto andar (cuja porta foi forçada, porque estava trancada com a cha ve do lado de dentro), apresentouse um espetácu lo que encheu a todos os presentes não tanto de horror como de estupefação. “O apartamento estava na mais completa desordem – o mobiliário quebrado e os pedaços jogados em todas as direções. Quase no centro do quarto havia um estrado para suportar um leito, mas a cama fora tirada de cima dele e jogada no meio do assoalho do aposento. Sobre uma cadeira, havia uma navalha manchada de sangue. Na lareira havia duas ou três mechas longas e espessas de cabelo humano grisalho, também cobertas de sangue, que pareciam ter sido arrancadas pela raiz. Em diversos locais do assoalho foram encontrados quatro napoleões,8 um brinco de topázio, três colheres grandes de prata, três colheres menores de métal d’Alger e duas bolsas, contendo quase quatro mil francos em ouro. As gavetas de uma cômoda, ainda colocada em um dos cantos da sala, estavam abertas e tinham sido aparentemente revistadas, embora muitos artigos de vestuário ainda permanecessem dentro delas. Um pequeno cofre de ferro foi descoberto no chão, embaixo da cama (não embaixo do estrado), no lugar aonde esta tinha sido atirada. Estava aberto, com a chave ainda na porta. Continha apenas algumas cartas velhas e outros papéis de pouca importância. “Não foi encontrado sinal de Madame L’Espa naye; mas tendo sido observada uma quantidade des u sada de fuligem na lareira, a chaminé foi pesqui sada, e o cadáver da fi lha (coisa horrível de se relatar!), de cabeça para baixo, foi puxado dali; tinha si do empurrado para cima, através da abertura estrei ta da chaminé, por uma distância considerável. O corpo ainda estava bastante quente. Quando foi examinado, encontraram-se muitas escoriações, sem dú vida ocasionadas pela violência com que foi empurrado chaminé acima e pelo esforço necessário para retirá-lo. No rosto, foram achados muitos arranhões fundos, e no pescoço, hematomas escuros, com sinais profundos de unhas, indicando que a defunta tinha sido estrangulada. “Após uma investigação completa de cada porção da casa, sem novas descobertas, o grupo entrou em um pequeno pátio calçado, que fi ca na parte de trás do edifício, onde jazia o corpo da velha senhora, com a garganta cortada a tal ponto que, ao tentarem erguer o cadáver, a cabeça caiu no chão. Tanto o corpo como a cabeça estavam terrivelmente mutilados; o primeiro a um ponto que mal retinha qualquer semelhança com um corpo humano. “Para este horrível mistério não existe ainda, segundo acreditamos, a menor pista.” O jornal do dia seguinte trazia os seguintes detalhes adicionais: “A tragédia da rua Morgue. Muitos indivíduos foram examinados com relação a este caso tão extraordinário e assustador (A palavra affaire (caso) ainda não tinha na França esta leveza de signifi cado que transmite a nós.), mas ainda nada transpirou que pudesse lançar alguma luz sobre ele. Transcrevemos abaixo todos os testemunhos materiais obtidos. “Pauline Dubourg, lavadeira, depôs que conhece ambas as falecidas há três anos, período em que lavou-lhes as roupas. A velha senhora e sua fi lha pa reciam manter muito boas relações e serem muito afeiçoadas uma à outra. Pagavam com regularidade. Não podia dizer qual era sua renda ou meio de sustento. Achava que Madame L’Espanaye ganhava a vida como cartomante. Segundo diziam, tinha dinheiro guardado. Nunca encontrou qualquer pessoa de fora quando ia buscar as roupas para lavar ou as trazia de volta à casa. Tinha certeza de que não tinham empregadas. Parece que não havia mobília em qualquer parte do edifício, exceto no quarto andar. “Pierre Moreau, vendedor de cigarros e de fu mo, depõe que habitualmente vendia pequenas quantidades de tabaco e de rapé a Madame L’Espa naye e que a atendia há uns quatro anos. Tinha nascido no bairro e sempre residira por lá. A falecida e sua fi lha moravam há mais de seis anos na casa em que os ca dáveres tinham sido encontrados. Anteriormente, fora ocupada por um joalheiro, que sublocava os an dares superiores para várias pessoas. A casa era de pro priedade de Madame L’Espanaye. Ela fi cou descontente com a maneira como o imóvel era maltratado pelo seu inquilino e mudouse para lá, recusando-se a alugar quaisquer aposentos. A velha senhora tinha um comportamento meio infantil. A testemunha tinha avistado a fi lha umas cinco ou seis vezes no decorrer daqueles seis anos. As duas viviam uma vida muito retraída – o povo dizia que tinham dinheiro. Também tinha ouvido alguns dos vizinhos comentarem que Madame L’Espanaye lia o futuro das pessoas – mas não acreditava nisso. Mesmo porque nunca tinha visto ninguém entrar na casa, exceto a velha senhora e sua fi lha, um carregador uma vez ou duas e um médico, umas oito ou dez vezes. “Muitas outras pessoas, na maioria vizinhos, apresentaram evidências no mesmo sentido. Não se falou de ninguém que freqüentasse a casa. Não se sabia se Madame L’Espanaye e sua fi lha tinham parentes vivos. Os postigos das janelas da frente raramente eram abertos. Os postigos do fundo permaneciam sempre fechados, com a exceção daqueles de uma grande sala dos fundos do quarto andar. A casa era boa e sólida – não era muito antiga. “Isidore Musèt, gendarme, depõe que foi chamado à casa por volta das três da manhã e encontrou umas vinte ou trinta pessoas diante do portão, esforçando-se para entrar. Finalmente forçou a porta com uma baioneta – não foi com um pé-de-cabra. Teve pouca difi culdade para abrir, porque era um portão de duas folhas e não estava trancado nem em cima nem embaixo. Os gritos continuavam enquanto o portão estava sendo arrombado – mas cessaram subi tamente. Pareciam os gritos de uma pessoa (ou pessoas) em grande agonia – eram altos e prolongados, não eram curtos e rápidos. A testemunha subiu as escadas à frente de todos. Quando chegou ao primeiro patamar, escutou duas vozes discutindo alta e furiosamente – uma das vozes era rouca e zangada, a outra muito mais aguda – uma voz muito estranha. Conseguiu distinguir algumas das palavras emitidas pela pri meira voz, que era de um francês. Tinha certeza de que não era uma voz de mulher. Tinha distinguido as palavras sacré e diable. A voz mais aguda era de um estrangeiro. Não tinha certeza se era uma voz de homem ou de mulher. Não havia entendido nada do que dissera, mas acreditava que falava em espanhol. O estado do apartamento e dos corpos foi descrito pela testemunha conforme relatamos ontem. “Henri Duval, um vizinho, fabricante de objetos de prata, depõe que participava do primeiro grupo que entrou na casa. Em geral, corrobora o testemunho de Musèt. Logo depois que forçaram a porta, fecharam-na por dentro, para impedir a entrada da multidão, que se reuniu muito depressa, não obstan te o adiantado da hora. A voz aguda, segundo pensa esta testemunha, era de um italiano. Tem certeza de que não era de um francês. Não tinha certeza se era voz de homem. Poderia ser de mulher. A testemunha não sabia falar a língua italiana. Não pôde distinguir as palavras, mas pela entonação estava convencido de que a pessoa falava em italiano. Conhecera Mada me L’Espanaye e sua fi lha. Tinha conversado muitas vezes com ambas. Tinha certeza de que a voz aguda não pertencia a nenhuma das falecidas. “——— Odenheimer, proprietário de um restau rante. A testemunha apresentou-se voluntariamente para testemunhar. Como não falava francês, foi examinada por meio de um intérprete. É nascida em Amsterdam. Estava passando pela casa por ocasião dos gritos. Duraram por vários minutos – provavelmente dez. Eram longos e altos, muito terríveis e apa vorantes. Foi um dos que entrou no edifício. Cor ro borou a evidência prévia em todos os respeitos, exceto um. Tem certeza de que a voz mais aguda era de um homem e que este era francês. Não conseguiu entender as palavras proferidas. Eram altas e rápidas, desiguais, emitidas aparentemente tanto com medo quanto com raiva. A voz era áspera, muito mais áspera do que aguda. Não poderia realmente classi fi cá-la como aguda. A voz mais grossa disse repetidamente sacré, diable e uma única vez, mon Dieu. 9 “Jules Mignaud, banqueiro, da fi rma Mignaud et Fils, sediada na rua Deloraine. É o sócio mais ve lho da fi rma. Madame L’Espanaye tinha algumas propriedades. Tinha aberto uma conta em sua casa bancá ria na primavera do ano de **** (oito anos antes). Fa zia freqüentes depósitos de pequenas somas. Nunca havia sacado nada até o terceiro dia antes de sua mor te, quando retirou pessoalmente a soma de 4.000 francos. Esta soma foi paga em moedas de ouro e um ama nuense a acompanhou até em casa com o dinheiro. “Adolphe Le Bon, amanuense da fi rma Mignaud et Fils, depõe que, no dia em questão, por volta do meio-dia, acompanhou Madame L’Espanaye até sua residência com os 4.000 francos guardados em duas bolsas. Assim que a porta foi aberta, Mademoiselle L’Espanaye apareceu e tomou de suas mãos uma das bolsas, enquanto a velha senhora segurava a outra. Ele então cumprimentou-as com uma curvatura e saiu. Não viu nenhuma pessoa na rua nessa ocasião. É uma rua lateral, solitária e muito pouco trafegada. “William Bird, alfaiate, depõe que era uma das pessoas que entraram na casa. É de nacionalidade inglesa. Mora em Paris há dois anos. Foi um dos pri mei ros a subir as escadas. Escutou as vozes em discus são. A voz grave e zangada era de um francês. Entendeu várias palavras, mas não lembra mais de todas. Escutou distintamente sacré e mon Dieu. Por um momento, escutou um som que parecia o de várias pessoas lutando, como se o chão estivesse sendo arranhado e pisoteado. A voz aguda era muito alta, bem mais alta que a voz grave. Tem certeza de que não era a voz de um inglês. Parecia mais ser a voz de um ale mão. Poderia ser uma voz de mulher. A testemunha não fala alemão. “Quatro das testemunhas acima, tendo sido re con vocadas, depuseram que a porta do quarto em que foi encontrado o corpo de Mademoiselle L’Espa naye estava trancada por dentro quando o grupo chegou até lá. Tudo se encontrava agora em perfeito silêncio – não havia gemidos, nem ruídos de qualquer tipo. Ao forçarem a porta, não viram ninguém. As janelas, tanto da sala da frente como do quarto dos fundos, estavam com os postigos fechados e fi rmemente tran cadas por dentro. Uma porta entre as duas peças estava fechada, porém não trancada. A porta que dava da sala da frente para o corredor de acesso estava tran cada, com a chave do lado de dentro. Uma pequena pe ça na parte da frente da casa, no quarto andar e jun to às escadas, estava aberta, com a porta escancara da. Esta peça estava atopetada de camas velhas, caixas e coisas assim. Todos os objetos foram cuidadosa mente removidos e examinados. Não houve uma pole gada em qualquer lugar da casa que não fosse objeto de uma pesquisa cuidadosa. Limpa-chaminés foram feitos subir e descer pelas chaminés. A casa tinha quatro andares, com águas-furtadas (mansardes). Um alçapão no forro tinha sido pregado com toda a segurança; não dava a impressão de ter sido aberto durante anos. O tempo decorrido entre o som das vozes discutindo e o arrombamento da porta da sala foi declarado de maneiras variadas pelas testemunhas. Alguns declararam que se haviam passado uns três minutos, outros chegaram a cinco. A porta foi aberta com muita difi culdade. “Alfonzo Garcio, agente funerário, depõe que re side na rua Morgue. É de naturalidade espanhola. Per tencia ao grupo que entrou na casa. Mas não subiu escadas acima. É um homem nervoso e estava apreen sivo com relação às possíveis conseqüências da agita ção. Escutou as vozes discutindo. A voz mais grave era de alguém falando em francês. Não pôde com preender o que estava sendo dito. A voz aguda perten cia a alguém falando em inglês. Neste ponto, tem certe za absoluta. Não fala o idioma inglês, mas julga pela en tonação. “Alberto Montani, confeiteiro, depõe que se achava entre os primeiros que subiram as escadas. Escutou as vozes mencionadas. A voz grave e violenta falava em francês. Conseguiu perceber diversas palavras. A pessoa que falava parecia estar repreendendo. Não conseguiu entender as palavras proferidas pela voz aguda. Falava rápido e de maneira desparelha. Mas acha que as palavras eram em russo. Corrobora o testemunho geral. É italiano. Nunca conversou com um natural da Rússia. “Diversas testemunhas, ao serem reconvocadas, testemunharam que as chaminés de todas as peças do quarto andar eram estreitas demais para admitir a passagem de um ser humano. Por “limpa-chaminés” queriam dizer escovas cilíndricas de limpeza, do tipo que são empregadas por aqueles que limpam chaminés para retirar o acúmulo de fuligem. Estes escovões foram passados para cima e para baixo de cada saída de lareira e de cada cano de ventilação exis tente na casa. Não existe uma porta dos fundos pela qual alguém pudesse haver descido enquanto os salvadores subiam as escadas. O corpo de Made moiselle L’Espanaye estava tão fi rmemente entalado na chaminé que não pôde ser descido até que cinco ou seis pessoas unissem suas forças para puxá-lo. “Paul Dumas, médico, depõe que foi chamado para examinar os corpos mais ou menos quando o dia clareava. Nessa ocasião, ambos estavam deitados sobre a cobertura de estopa do estrado da cama, no mesmo quarto em que Mademoiselle L’Espanaye fora encontrada. O cadáver da jovem estava muito machucado e arranhado. O fato de ter sido empurrado chaminé acima poderia perfeitamente causar essa aparência. A garganta estava muito machucada. Havia diversos arranhões profundos logo abaixo do queixo, juntamente com uma série de marcas lívidas que eram, evidentemente, as impressões deixadas por dedos. O rosto estava arroxeado de uma forma apavorante e os olhos saltavam das órbitas. A língua tinha sido parcial mente mordida. Um grande hematoma foi descoberto sobre o estômago, produzido, aparentemente, pela pressão de um joelho. Na opinião de M. Dumas,10 Mademoiselle L’Espanaye tinha sido estrangulada até morrer por uma pessoa ou pessoas desconhecidas. O cadáver da mãe estava horrivelmente mutilado. Todos os ossos da perna e do braço direitos estavam mais ou menos esmagados. A tíbia esquerda tinha sido partida em mais de um lugar, do mesmo modo que todas as costelas do lado esquerdo. O corpo inteiro estava terrivelmente marcado e arroxeado. Não era possível afi rmar como os ferimentos haviam sido infligidos. Um porrete pesado de madeira ou uma barra larga de ferro, uma cadeira, qualquer arma grande, pesada e contundente teria produzido tais resultados, se fosse brandida pelas mãos de um homem muito robusto. Nenhuma mulher poderia ter desferido aquele tipo de golpe com qualquer arma. A cabeça da falecida, quando foi vista pela testemunha, estava inteiramente separada do corpo e os ossos também se achavam em grande parte esmagados. A garganta havia sido evidentemente cortada com algum instrumento muito afi a do – provavelmente uma navalha. “Alexandre Etienne, cirurgião, foi convocado com M. Dumas para examinar os corpos. Corroborou o testemunho e as opiniões de M. Dumas. “Nada mais de importância foi descoberto, em bora diversas outras pessoas fossem interrogadas. Um assassinato tão misterioso e intrigante em todos os seus detalhes jamais foi cometido antes em Paris, se é que realmente houve um assassinato. A polícia está inteiramente confusa, uma ocorrência pouco comum em casos desta natureza. Não há, entretanto, a sombra de uma pista.” A edição vespertina do jornal declarava que a maior excitação ainda perdurava no Quartier St.-Roch, que os aposentos do prédio tinham sido novamente examinados e novos exames das testemunhas realiza dos, tudo sem o menor resultado. Um pós-escrito, en tretanto, mencionava que Adolphe Le Bon tinha si do preso e encarcerado, embora nada parecesse in criminá-lo, além dos fatos que já foram detalhados. Dupin pareceu-me singularmente interessado no progresso das investigações, ou pelo menos foi o que julguei a partir de suas ações, porque não fez o menor comentário. Foi somente depois que a prisão de Le Bon foi anunciada que ele pediu minha opinião sobre os assassinatos. Eu somente podia concordar com toda Paris ao considerá-los um mistério insolúvel. Não via maneira através da qual fosse possível identifi car o assassino. – Não podemos julgar os meios – disse Dupin – a partir de um exame tão superficial. A polícia parisiense, que é tão exaltada por sua argúcia, é esperta, mas nada mais do que isto. Não existe método em seus procedimentos, além do método sugerido pela inspiração do momento. Desfi lam uma série de medidas tomadas a fi m de satisfazer ao público; mas não é infreqüente que estas sejam tão mal adaptadas ao objetivo proposto, que nos recordam a frase famosa de Monsieur Jourdain, que mandou buscar seu robe-de-chambre – pour mieux entendre la musique. 11 Os resultados que eles obtêm não deixam de surpreender com uma certa freqüência, mas na maior parte são obtidos por simples diligência e grande atividade. Quando faltam estas atividades, seus esquemas falham. Vidocq, por exemplo,12 além de saber adivinhar, era um homem perseverante. Porém, desprovido de um pensamento educado, ele errava continuamente pela própria intensidade de suas investigações. Prejudicava a própria visão por segurar os objetos perto demais. Podia ver assim, quem sabe, um ou dois pontos com clareza extraordinária, mas seu procedimento o levava necessariamente a perder a visão do conjunto. Porque existe uma coisa que podemos chamar de excesso de profundidade. A verdade não se encontra sempre no fundo de um poço. De fato, no que se refere aos conhecimentos mais importantes, acredito que seja invariavelmente superfi cial. A profundidade acha-se nos vales em que a buscamos e não no topo das montanhas, onde a verdade é encontrada. Os modos e fontes deste tipo de erro são bem tipifi cados pela contemplação dos corpos celestiais. Olhar uma estrela de relance, observá-la pelo canto dos olhos, voltando para ela as porções laterais da retina (mais suscetível às fracas sensações luminosas que a parte central) signifi ca percebê-la distintamente – é assim que apreciamos melhor o seu brilho – um brilho que vai se enfraquecendo na proporção em que voltamos a visão diretamente sobre ele. De fato, um número maior de raios cai sobre o olho neste último caso, porém, no anterior, existe a capacidade de compreensão mais refi nada. ***** 5. Atomia, a teoria de que o Universo é formado por pequenas partículas, foi um termo introduzido em 159l. Mas não se atribui a Epicuro. Este fi lósofo grego, 341-270 a. C., ensinava que o prazer era o máximo bem, referindose à cultura do espírito e à prática da virtude. A falsa interpretação ligou o termo à busca dos prazeres materiais. Foi Demócrito (460-370 a. C.) que considerou a matéria composta por uma infi nidade de átomos, ao passo que preconizava a busca da felicidade pela moderação dos desejos. (N.T.) *** 6. Órion ou Orionte foi um caçador de grande beleza, morto por Diana e transformado na grande constelação localizada no equador celeste, que pode ser vista igualmente nos dois hemisférios. A nebulosa de Órion foi avistada pela primeira vez em 1659 e contém seis grandes estrelas encerradas em uma vasta luminosidade. (N.T.) 7. “Perdeu, desde a antigüidade, o som da primeira letra.” Em latim no original. (N.T.) *** 8. Moeda francesa de prata no valor de cinco francos. Mais adiante, o Metal de Argel referido é a alpaca, também chamado de Metal Branco, usado para talheres e objetos de arte. (N.T.) *** 9. “Sagrado” (no sentido blasfemo de “maldito”), “diabo” e “meu Deus”. Em francês no original. (N.T.) *** 10. A inicial “M” que aparece no texto várias vezes antes de sobrenomes franceses é simplesmente abreviatura de “Monsieur”. (N.T.) *** 11. M. Jourdain é o principal personagem de O burguês gentilho mem de Molière (Jean-Baptiste Poquelin, 1622-1673), negociante enriquecido que se demonstra cada vez mais ridículo em seu desejo de elevar-se socialmente. Na cena em questão, ele manda buscar seu roupão “para escutar melhor a música”. (N.T.) 12. François Vidocq, 1775-1857, ex-condenado a trabalhos forçados, chegou a ser chefe de polícia de Paris. Suas Memórias inspiraram o personagem Vautrin, de Honoré de Balzac, 1799-1850. (N.T.) *** https://www.lpm.com.br/artigosnoticias/arquivos/trilogia_poe_assassinatos.pdf

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