quarta-feira, 5 de março de 2025

Do Sertão ao Capital: Cem Anos de Mudança e Contradição

------------ Charge Contextualizada: (Descrição para um chargista) A imagem mostra um fazendeiro de 1930 montado em um burro, segurando um saco de café, olhando para um empresário de 2025 dirigindo um carro elétrico, segurando um tablet com gráficos financeiros. O fazendeiro pergunta: "E o mercado, patrão?" ao que o empresário responde: "Flutua conforme os algoritmos!". Ao fundo, um bar chamado "Brahma’s" permanece intacto, atravessando as décadas. ----------- Citação de Economia Política: "A história de toda sociedade até hoje existente é a história das lutas de classes." — Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (1848) Há poucos dias, também, eu estava jantando no Palace Hotel quando entrou o Brown com a noiva, a tal moça dos recitativos. Ela veio falar comigo e a primeira coisa que me disse foi isto: “Então, é verdade que o Jerônimo vai mudar de vida, resolveu mesmo ficar fazendeiro no sertão, não quer saber mais do Rio?” Enfim, agora estou puxando os fios de toda essa meada. Você quer o dinheiro para fazer alguma burrada. Jerônimo, deixe de mania de agricultura e fazenda. Isso não é para você. Trate de fazer muito repouso e de ficar bom logo, para acabar o curso de Engenharia e ir aos Estados Unidos aperfeiçoar-se. Guarde o dinheiro para o futuro. O Brasil de hoje já não é o mesmo do meu tempo, nem para o açúcar, nem para o café, nem para nada! Ando enjoado dos negócios, qualquer dia liquido tudo e meto o que apurar em apólices do Governo. Enquanto isso, além das fronteiras desse nosso país tropical, a América atravessa um novo ciclo de transformações. De Roosevelt a Trump, os caminhos do capital moldaram nações, destruíram impérios e reformularam alianças. O livre mercado, antes promessa de prosperidade, agora se vê pressionado por nacionalismos, crises ambientais e disputas tecnológicas. Terminando, peço-lhe que não faça asneiras em matéria de terrenos no sertão. Não compre fazenda nenhuma. O mato é bom para caboclo. Você anda muito entusiasmado com a roça, mas é coisa passageira, tenho certeza. Você é rapaz da cidade. "Sua verdadeira fazenda, afinal de contas, é o bar da Brahma" – como com muita razão me disse a moça dos recitativos. A história se repete, ainda que com novos protagonistas. O ciclo econômico que impulsionou o sonho americano se refaz em promessas políticas, enquanto os povos tentam decifrar se o futuro será um novo New Deal ou apenas mais um capítulo de incerteza. Muitos abraços nos primos, a quem me recomendo com gratidão, e para você todo o afeto do seu pai saudoso. Joaquim. _________________________________________________________________________________________________________ -----------
------------ "Há poucos dias, também, eu estava jantando no Palace Hotel quando entrou o Brown com a noiva, a tal moça dos recitativos. Ela veio falar comigo e a primeira coisa que me disse foi isto: “Então, é verdade que o Jerônimo vai mudar de vida, resolveu mesmo ficar fazendeiro no sertão, não quer saber mais do Rio?” Enfim, agora estou puxando os fios de toda essa meada. Você quer o dinheiro para fazer alguma burrada. Jerônimo, deixe de mania de agricultura e fazenda. Isso não é para você. Trate de fazer muito repouso e de ficar bom logo, para acabar o curso de Engenharia e ir aos Estados Unidos aperfeiçoar-se. Guarde o dinheiro para o futuro. Sigo hoje para São Paulo a fim de estudar a praça. Talvez funde lá uma filial; depende. Pernambuco vai fazer um convênio com os usineiros fluminenses e espera-se que o mercado melhore. Também, se piorar, que leve logo a breca! O Brasil de hoje já não é o mesmo do meu tempo, nem para o açúcar, nem para o café, nem para nada! Ando enjoado dos negó- cios, qualquer dia liquido tudo e meto o que apurar em apólices do Governo. Terminando, peço-lhe que não faça asneiras em matéria de terrenos no sertão. Não compre fazenda nenhuma. O mato é bom para caboclo. Você anda muito entusiasmado com a roça, mas é coisa passageira, tenho certeza. Você é rapaz da cidade. "Sua verdadeira fazenda, afinal de contas, é o bar da Brahma" – como com muita razão me disse a moça dos recitativos. Acho que o Brown não é marido para ela. Muitos abraços nos primos, a quem me recomendo com gratidão, e para você todo o afeto do seu pai saudoso. Joaquim." Marselha, outubro de 1930. Ribeiro Couto Cabocla Edições de Ouro Haia, Verão de 1937 _________________________________________________________________________________________________________ ------------
------------ quarta-feira, 5 de março de 2025 De Roosevelt a Trump - Luiz Gonzaga Belluzzo Valor Econômico Os eflúvios protecionistas são escoltados pela súcia de super-ricos que se empenham no projeto de apropriação privada das instituições do Estado No Congresso do Partido Democrata, em 1936, Franklin D. Roosevelt discursou sobre as ameaças da oligarquia financeira para a sociedade: “Era natural e talvez humano que os príncipes privilegiados dessa nova dinastia econômica, sedentos por poder, tentem alcançar o controle do próprio governo. Eles criaram um novo despotismo e o embrulharam nos vestidos de sanções legais. Em seu serviço, novos mercenários procuraram regimentar o povo, seu trabalho e sua propriedade.” Mais adiante Roosevelt fulminou: “Novos impérios foram construídos a partir do controle das forças materiais. Mediante o novo uso das corporações, dos bancos e da riqueza financeira, da nova maquinaria da indústria e da agricultura, do trabalho e do capital – nada disso sonhado pelos fundadores da pátria –, a estrutura da vida moderna foi totalmente convertida ao serviço da nova realeza. Não havia lugar nos seios da nova nobreza para abrigar os milhares de pequenos negócios e comerciantes que desejavam fazer um uso sadio do sistema americano de livre-iniciativa e busca do lucro.” O espaço econômico internacional, na posteridade da Segunda Guerra Mundial, foi construído a partir do projeto de integração entre as economias nacionais proposto pelo Estado americano na reunião de Bretton Woods. A concepção da ordem internacional nascida das ideias do New Deal imaginava erigir um sistema monetário-financeiro capaz de estimular o desenvolvimento do comércio entre as nações. Isso seria feito dentro de regras monetárias que garantissem a confiança na moeda-reserva, sem o ajustamento deflacionário dos balanços de pagamentos, mas, antes, permitindo o abastecimento adequado da liquidez às transações em expansão. Tratava-se, portanto, de erigir um ambiente econômico internacional destinado a propiciar um amplo raio de manobra para as políticas nacionais de desenvolvimento, industrialização e progresso social. “A América vai ser grande outra vez” ou “Vamos devolver os empregos aos americanos”. Em suas arengas eleitoreiras, Trump prometia impor tarifas sobre produtos chineses, mexicanos canadenses e europeus além de promover a volta das empresas americanas (des)localizadas em plagas não americanas. Os eflúvios protecionistas são escoltados pela súcia de super-ricos que se empenham no projeto de apropriação privada das instituições do Estado. Em seus movimentos, Donald Trump e Elon Musk realizam os propósitos da democradura. Ao responder à governadora do Maine que invocava a lei e os tribunais para se defender das ameaças do presidente desvairado, Trump expressou com clareza sua cumplicidade com a democradura. “Eu sou a lei.”, disparou o alucinado. Diante dessa declaração, irromperam forças do passado que recordaram o dito do rei da França Luis XIV, L’Etat c’est Moi. Argumenta o historiador Herberth Rowen da Duke University: o Estado não poderia ser propriedade privada do Rei, pois o termo "privado" aplicado à propriedade representa uma negação do caráter público, e o problema diz respeito à propriedade do poder público. O rei francês sempre foi visto na teoria política e jurídica como o titular de um cargo, isto é, como o destinatário da função delegada e da autoridade, enquanto a "propriedade" era inerente, era própria, não delegada. Como então o cargo e a propriedade poderiam coexistir na mesma instituição? A frase de Luis XIV estava fundada nas concepções do Estado Absolutista. Seguimos com a história. Ainda antes da Segunda Guerra Mundial, em carta a um amigo, Wilhelm Röpke, um dos corifeus do liberalismo autoritário, desvelou a incompatibilidade entre seu ideário e a democracia geral e irrestrita. “É possível que minha opinião sobre um ‘Estado forte’ (um governo que governa) seja ainda ‘mais fascista’, porque eu realmente gostaria de ver todas as decisões de política econômica concentradas nas mãos de um Estado vigoroso e totalmente independente e não fragilizado pelas forças pluralistas de natureza corporativista... Estou procurando a força do Estado na intensidade e não na abrangência de sua política econômica. (...)Compartilho a opinião de que as velhas fórmulas da democracia parlamentar demonstraram sua futilidade. As pessoas precisam se acostumar com o fato de que há também uma democracia presidencial, autoritária, sim, e até mesmo – horribile dictum – uma democracia ditatorial.” Em 1942, Röpke revisitou as categorias Dominium e Imperium. Dominium significa “dominância sobre as coisas”, Imperium significa “dominância sobre os homens”. Ele diz: “Imperium e Dominium estão separados no mundo do liberalismo clássico”. Já o trumpismo deve manter a convergência entre essas duas esferas, o que corresponde à visão de um “governo duplo”: haveria um mundo de economia e da propriedade, coexistindo com outro mundo, o dos espaços jurídico-políticos onde vivem e padecem os homens de carne e osso. Corey Robin, em artigo sobre as afinidades entre Nietzsche e Hayek, afirma que o economista austríaco admite a necessidade das “decisões de uma elite governante” com antidoto às trapalhadas da malta ignara. Nas páginas do famoso livro The Road to Serfdom, Hayek escreve: “O empregador e o indivíduo independente estão empenhados em definir e redefinir seu plano de vida, enquanto os trabalhadores cuidam, em grande medida, de se adaptar a uma situação dada”. Ao trabalhador de Hayek faltam responsabilidade, iniciativa, curiosidade e ambição. É um perdedor. Por isso, nos escritos político-jurídicos, Hayek não hesita em escolher o liberalismo diante dos riscos da democracia. “Há um conflito irreconciliável entre democracia e capitalismo – não se trata da democracia como tal, mas de determinadas formas de organização democrática... Agora tornou-se indiscutível que os poderes da maioria são ilimitados e que governos com poderes ilimitados devem servir às maiorias e aos interesses especiais de grupos econômicos. Há boas razões para preferir um governo democrático limitado, mas devo confessar que prefiro um governo não democrático, limitado pela lei, a um governo democrático ilimitado (e, portanto, essencialmente sem lei).” _________________________________________________________________________________________________________ -------------- Epitáfio: Aqui jaz o sonho de um Brasil próspero, enterrado entre ciclos de promessas e crises. Que os vivos saibam ler o passado antes de apostar no futuro. ---------- Canção que abarca a transição de 1930 a 2025: "Construção" – Chico Buarque ------------ Construção Chico Buarque Amou daquela vez como se fosse a última Beijou sua mulher como se fosse a última E cada filho seu como se fosse o único E atravessou a rua com seu passo tímido Subiu a construção como se fosse máquina Ergueu no patamar quatro paredes sólidas Tijolo com tijolo num desenho mágico Seus olhos embotados de cimento e lágrima Sentou pra descansar como se fosse sábado Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago Dançou e gargalhou como se ouvisse música E tropeçou no céu como se fosse um bêbado E flutuou no ar como se fosse um pássaro E se acabou no chão feito um pacote flácido Agonizou no meio do passeio público Morreu na contramão atrapalhando o tráfego Amou daquela vez como se fosse o último Beijou sua mulher como se fosse a única E cada filho seu como se fosse o pródigo E atravessou a rua com seu passo bêbado Subiu a construção como se fosse sólido Ergueu no patamar quatro paredes mágicas Tijolo com tijolo num desenho lógico Seus olhos embotados de cimento e tráfego Sentou pra descansar como se fosse um príncipe Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo Bebeu e soluçou como se fosse máquina Dançou e gargalhou como se fosse o próximo E tropeçou no céu como se ouvisse música E flutuou no ar como se fosse sábado E se acabou no chão feito um pacote tímido Agonizou no meio do passeio náufrago Morreu na contramão atrapalhando o público Amou daquela vez como se fosse máquina Beijou sua mulher como se fosse lógico Ergueu no patamar quatro paredes flácidas Sentou pra descansar como se fosse um pássaro E flutuou no ar como se fosse um príncipe E se acabou no chão feito um pacote bêbado Morreu na contramão atrapalhando o sábado Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir A certidão pra nascer, a concessão pra sorrir Por me deixar respirar, por me deixar existir Deus lhe pague Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir Pela fumaça desgraça que a gente tem que tossir Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair Deus lhe pague Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir Deus lhe pague Composição: Chico Buarque. _________________________________________________________________________________________________________

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