Capítulo XXIV
Joaquim Maria Machado de Assis
Memórias
Póstumas de Brás Cubas
Fiquei prostrado. E
contudo era eu, nesse tempo, um fiel compêndio de trivialidade e presunção.
Jamais o problema da vida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse dia
me debruçara sobre o abismo do Inexplicável; faltava-me o essencial, que é o
estímulo, a vertigem...
Para lhes dizer a verdade toda, eu reflectia as
opiniões de um cabeleireiro, que achei em Modena, e que se distinguia por não
as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada que fosse
a operação do toucado, não enfadava nunca; ele intercalava as penteadelas com
muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... Não tinha outra
filosofia. Nem eu. Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma;
mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como
tratei o latim: embolsei três versos de Virgílio, dous de Horácio, uma dúzia de
locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como
tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as cousas a fraseologia, a
casca, a ornamentação...
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe
exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira
virtude de um defuncto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos
interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a
disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que
faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os
outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame,
que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na
morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir
fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se,
desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em
suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem
estranhos; não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial,
perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se
não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá
do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como
o desdém dos finados.
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