domingo, 4 de janeiro de 2015

Uma epifania em Minha Formação de Joaquim Nabuco como Feitio de Oração, nas Noites do Norte


Estive envolvido na campanha da Abolição e durante dez anos procurei extrair de tudo, da história, da ciência, da religião, da vida, um filtro que seduzisse a dinastia; vi os escravos em todas as condições imagináveis; mil vezes li a Cabana do Pai Tomás, no original da dor vivida e sangrando; no entanto a escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava. (Nabuco Minha Formação).
Mais: foi responsável pela passagem – de um modo um tanto que epifânico – entre o desconhecer e o conhecer da “natureza da escravidão”, como se naquele momento o modo como a criança percebia o mundo tivesse sido subtraído e a realidade da vida adulta se instalasse por definitivo em seu espírito. (ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA: Joaquim Nabuco e Graça Aranha.  Entre a palavra e a ação: apontamentos para uma correspondência)


Foi, como tantos outros, um filho em revolta contra o Pai. Um filho contra o Pai, por avidez de “impressões novas”. Também um filho revelado contra a Santa Madre Igreja – talvez pela mesma avidez de idéias novas. Mais: foi um americano libertário revoltado contra o apego, - por alguns críticos considerado simples expressão de transoceanismo, de muitos dos brasileiros daqueles dias à Europa materna. Esse apego, à Europa materna, segundo o imaturo Nabuco de vinte anos, deveria ser substituído pela admiração pelos fraternais Estados Unidos: a Europa era “velha”; a América (isto é: os Estados Unidos), “jovem”. (Gilberto Freyre Introdução)




Em sua autobiografia, publicada quando tinha 50 anos e viveria aproximadamente mais uma década, Joaquim Nabuco faz o acerto de contas do seu permanente conflito, que beirou a contradição, entre o dionisíaco e o apolíneo, características conviventes de uma vida marcada por mutações além de suas circunstâncias.

Seu conterrâneo Gilberto Freyre, na Apresentação citada, critica, mas prenhe de reconhecimento, vê o Brasil de que Joaquim Nabuco apresenta em Minha Formação uma síntese em que se aglutinam a autobiografia e a história nacional.

Um transpernambucano, Caetano Veloso Brasileiro da Bahia, sonoriza aquela instituição nacional, a escravidão, que permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte, nas próprias palavras de Nabuco.



Um jovem transamericano, Velho Noel Rosa Carioca da Vila, deu sequência ao desvelamento da cultura brasileira pouco tempo depois da passagem por terras brasilianas de seu par Joaquim Nabuco.  Foi também capaz de apreender, num momento elevado de nossa história nacional, inserida à roda do mundo, na eterna luta do velho contra o novo, que O cinema falado é o grande culpado da transformação Dessa gente que sente que um barracão prende mais que o xadrez Tudo aquilo que o malandro pronuncia Com voz macia é brasileiro, já passou de português.

É minha opinião que a recusa em toque - da nacionalidade das elites - aponta para o Estado brasileiro, visto, porém, não como qualquer Estado-nação moderno, mas como a metrópole (governo) da sociedade, sua colônia original. Trata-se de um Estado aqui, como se sabe, ocupado pela lógica doméstico-familial. Quer me parecer, portanto, que a recusa do “Feitio” aqui tem como mira exatamente esse Estado ambíguo e clientelizador do povo, com o qual de forma alguma, pois, parece se comprazer. 

Mas ao mesmo tempo que o “Feitio” recusa irrisivamente, ele postula. Postula a unidade e, assim, o cancelamento da contradição conflitual. Para ele, essa é uma invenção da nacionalidade das estrelas. Qual o “coração” do “Feitio”, no entanto?  Coração que busca apagar o conflito e o escárnio (veja Y), na direção da súplica amorosa-religiosa (conforme Z), eleita como origem e teleologia do Brasil (samba)? O coração do “Feitio” – desejo uma vez mais dizer - é cortesão e estóico. Ele é triste e sorri da tristeza elegantemente: ele é carioca. O Brasil do “Feitio” - audível até hoje no botequim ou no show, recital ou colóquio, no Rio de Janeiro ou em Jiparaná - então parece sim dilemático. Não tanto, porém, como se indeciso entre o moderno e o tradicional - polaridade que, aliás, esmeradamente tanto busca apagar -, mas como postulante de uma unidade outra, que até agora não parece ter “dado certo” mas que, certamente, “ já passou de português”.

Letra I
Quem acha vive se perdendo
Por isso agora eu vou me defendendo
Da dor tão cruel desta saudade
Que por infelicidade
Meu pobre peito invade
II
Por isso agora
Lá na Penha vou mandar
Minha morena pra cantar
Com satisfação
E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba
Em feitio de oração
III
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia
IV
O samba na realidade
Não vem do morro nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração
(A “origem do samba” como invenção do Brasil
(por que as canções tem música?) Rafael José de Menezes  Bastos)





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