Vivemos momentos de conflitos e mudanças que nos remetem ao
século XV. Já naquele momento foram buscadas respostas nos séc. VI e V a.C. Assim,
começaremos por revisitar Sófocles através do trecho final de um artigo que é
transcrito a seguir. Recomenda-se, para aquele que deseje aprofundar seus
entendimentos, recorrer às Referências ali elencadas.
Abaixo segue o trecho final do artigo Conflitos do “velho” e do “novo”
Todos estes fatos reconhecidos revelam o conflito do rei
tebano que encontra as respostas para os seus questionamentos que até o momento
o atormentava. Mas, o conhecimento revela-se ainda mais doloroso a Édipo do que
o conflito provocado pelos seus questionamentos. A busca pelo conhecimento
esclarece a Édipo a “verdade” sobre sua origem e sua culpa no assassinato de
Laio, causando, assim, toda a dor e sofrimento. Por isso, Tirésias considera o
conhecimento algo terrível: “Pobre de mim! Como é terrível a sapiência/ quando quem
sabe não consegue aproveitá-la” (Sófocles, 1990c, p. 34, vv. 377-378).
Mas, a dor
que esse conhecimento proporciona é algo purificador, pelo qual o homem deve
passar para encontrar a solução dos conflitos vividos nesse momento de
transição:
CORIFEU
Vede
bem, habitantes de Tebas, meus concidadãos!
Esse
é Édipo, decifrador de enigmas famosos;
ele
foi um senhor poderoso e por certo o invejastes
em
seus dias passados de prosperidade invulgar.
Em
que abismo de imensa desdita ele agora caiu!
Sendo
assim, até o dia fatal de cerrarmos os olhos
não
devemos dizer que um mortal foi feliz de
verdade
antes
dele cruzar as fronteiras da vida inconstante
sem
jamais ter provado o sabor de quaisquer
sofrimento
(Sófocles, 1990c, p. 96, vv. 1801-1810).
Não
obstante, para Sófocles, o homem é mais que um ser sofredor. A dor é
constituinte básico da sua natureza, que o torna ainda mais forte diante dos conflitos:
“[...] de fato, os sofrimentos/ a longa convivência e meu altivo espírito/ me
ensinam a ser paciente...” (Sófocles, 1990b, p. 103, vv. 1-8). É pela dor que o
homem se liberta das culpas e sofrimentos, purifica-se dos crimes e faltas cometidas
e alcança as virtudes mais elevadas, tornando-o um homem “melhor”.
Considerações finais
O homem responsável
por seu atos
A reflexão
filosófica, no período clássico, ajudou o homem a se libertar da dependência da
crença nos mitos e da
submissão ao “destino” que acreditava já fixado e contra o qual não se podia
lutar. Mas, o conhecimento, o uso da razão pelo homem, não eliminou de todo a
crença nos deuses: a religião grega e a crença do homem nela continuavam existindo,
mesmo na forma de organização social da cidade-Estado: “Foi Apolo! Foi sim, meus
amigos!/ Foi Apolo o autor de meus males,/ de meus males terríveis; foi ele!”
(Sófocles, 1990c, p. 88, vv. 1576-758).
O conhecimento racional e o uso da reflexão possibilitaram tirar a
responsabilidade atribuída aos deuses
por tudo que acontecia na vida do homem, e fez
com que este assumisse as responsabilidades por suas ações: “[...] mas fui eu
quem vazou meus olhos./ Mais ninguém. Fui eu mesmo, o infeliz!” (Sófocles,
1990c, p. 88, vv. 1579-1580).
Os delitos
cometidos pelo homem da polis passaram a ser de sua responsabilidade. Esses
delitos, considerados ações conscientes do homem, faziam com que este
respondesse por seus atos e fosse julgado por eles.
Antígona é
a personificação desse homem. A condenação da heroína é causada por um ato individual,
e ela é julgada individualmente por isso, recebendo sozinha a condenação, que
não mais se estendia a toda sua família como acontecia anteriormente na
comunidade gentílica: “[...] é por tua vontade e decisão/ que tu, apenas tu
entres os mortos/ descerás a região das sombras” (Sófocles, 1990a, p. 231, vv.
917-919).
No entanto,
mesmo que os crimes fossem cometidos involuntariamente por um ato passional, ou
mesmo por um ato inconsciente, num momento de ódio ou violência, esse homem
tinha consciência de que a responsabilidade do feito era sua, e não de um
“destino”, deus, ou maldição. Assim, também, como sabia que as consequências e
as penalidades que seguiam a tal ação faltosa também eram suas:
CREONTE
Erros
cruéis de uma alma desalmada!
Vede,
Mortais, o matador e o morto,
do
mesmo sangue! Ai! Infeliz de mim
por
minhas decisões irrefletidas!
Ah!
Filho meu! Levou-te, inda imaturo,
tão
prematura morte – ai! Ai de mim! –
Por
minhas irreflexões, não pela tua! (Sófocles,
1990a,
p. 148, vv. 1404-1410).
A partir do
momento em que assumiu a culpa pelas suas faltas, o homem passou a necessitar
de uma forma de justiça específica que julgasse seus atos, sua voluntariedade,
seus desvios de conduta. Assim, ao assumir a responsabilidade por suas faltas, o
homem não devia mais sofrer as penalidades que, segundo a tradição, eram
impostas pelos deuses, mesmo por seus atos involuntários, por serem determinados
pelo destino:
ÉDIPO
[...]
Mas, não quero que me atribuam como crimes
nem
esse casamento nem o assassínio
de
um pai, que me lanças ao rosto sem cessar,
insultando-me
ainda com rudes ultrajes.
Responde
apenas uma pergunta minha:
se
alguém aparecesse aqui nesse momento
e tentasse matar-te – a ti,
Creonte, o justo - ,
quererias saber se quem te
ameaçava
era
teu pai, ou antes o castigarias?
Penso
que por amor à vida punirias
teu
agressor sem maiores indagações
quanto
a teu pleno direito de eliminá-lo (Sófocles,
1990b,
p. 157, vv. 1143-1154).
Sófocles
esclareceu que o cidadão da pólis, responsável por suas ações e por seus
crimes, tinha que ser submisso e devia ser julgado pelas leis da cidade, porque
estas leis eram elaboradas por esse mesmo cidadão, para manter a ordem e para
julgar ações e a responsabilidade dos atos humanos que pudessem vir a por em
risco a manutenção da estrutura social organizada da cidade-Estado: “[...] Mas
se ele tem a idéia/ de impor-nos novas leis, tratá-lo-ei de acordo/ com suas
próprias leis, e não com quaisquer outra (Sófocles, 1990b, p. 154, vv. 1038-1040).
Mas, mesmo diante da evidência dos seus crimes, o homem da cidade-Estado não
precisava assumir as penalidades que lhe fossem impostas, sem antes expor sua
defesa, como permitia a própria lei da pólis democrática na qual estava
inserido:
CREONTE
[...]
Procede, então, como lhe parecer melhor;
digo
que embora minha causa seja justa
o
fato de estar longe de minha cidade
deixa-me
fraco; mas, apesar da velhice,
reagirei
a quaisquer atos contra mim (Sófocles,
1990b,
p. 156, vv. 1100-1104).
Sófocles
pretendia, em sua obra, mostrar que a submissão à crença no destino e às “leis
divinas” perdera sua função na pólis e foram substituídas definitivamente pela
racionalidade e pelas “leis escritas”.
As suas
personagens apresentam, nas suas peças, a influência das emoções e das ações
humanas diante da nova forma de organização social, e também demonstram como o
homem buscava no conhecimento, soluções para o conflito vivido diante da sua
postura de assumir-se enquanto ser responsável por seus atos e seu futuro,
tendo como mediador a racionalidade para guiar suas ações e as leis da pólis
que serviam para manter a organização social.
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