sexta-feira, 24 de julho de 2015

Revoluções no Brasil e em Portugal.

Suas Sinistras.

MonteCastelo

Renato Russo (com legenda)




Amor é fogo que arde sem se ver ...

de Luís Vaz de Camões


Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor? 




Caetano Veloso


Antonio Candido indica 10 livros para conhecer o Brasil


“(...) A América Latina, Males de origem (1905), de Manuel Bonfim.  Manuel Bonfim não tinha a envergadura de Oliveira Lima, monarquista e conservador, mas tinha pendores socialistas que lhe permitiram desmascarar o panorama da desigualdade e da opressão no Brasil (e em toda a América Latina) (...)”.
“(...) Caio Prado Júnior engasta a organização política e social, com articulação muito coerente, que privilegia a dimensão material. (...)”
“(...) Mas já que é preciso fazer uma escolha, opto pelo livro fundamental de Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil (1974). É uma obra de escrita densa e raciocínio cerrado, construída sobre o cruzamento da dimensão histórica com os tipos sociais, para caracterizar uma nova modalidade de liderança econômica e política. (...)”




“Resumo: Uma qualidade dos produtores de saber e ciência é a honestidade intelectual, uma virtude que, em princípio, é abarcada ordinariamente por um estoque reduzido do campo em questão. Cumprindo papéis possivelmente comparáveis, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes pautaram-se por trajetórias intelectualmente honestas, e não menos, por uma virtuosidade particular a um leque diminuto da espécie: a tentação criadora. Duas obras, A Revolução Brasileira, de Prado, e A Revolução Burguesa no Brasil, de autoria de Florestan, foram objetos de múltiplas análises. Efetivamente, as retomamos porque melhor do que quaisquer outras traduzem esse impulso criativo. Por fim, projetamos examinar as concepções de Revolução em Caio Prado e Florestan dialogando com a visão marxista clássica.
 Palavras-chave: Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, revolução brasileira, revolução burguesa;”




CARLOS NELSON COUTINHO
Prof. da UFRJ
Trabalho apresentado no Encontro Anual da ANPOCS, outubro de 1988, em Águas de São Pedro, SP, GT – Movimentos e Partidos de Esquerda.
‘(...) Contudo, no final do apêndice que escreveu em 1977 para A revolução brasileira, parece esboçar-se - ainda que só embrionariamente - uma formulação que situa Caio Prado para além do horizonte da Terceira Internacional. Definindo corretamente a democracia como "participação efetiva dos governados na ação e no comportamento do governo”, ele conclui que "uma democracia só para a burguesia e os aspirantes a burguês (•••) não é realizável: /a democracia/ ou será de todos ou de ninguém32• Se tivesse desenvolvido essa formulação, ele teria definido corretamente as tarefas atuais da "revolução brasileira": somente através da plena realização da democracia - que não é um valor burguês, mas sim “de todos" - é que chegaremos ao socialismo. Caio Prado, como vimos, foi um notável precursor dos marxistas que hoje buscam entender o caráter "não clássico" da transição para o capitalismo no Brasil. Ele talvez possa também ser visto, ainda que cum grano salis, como um estimulador dos que se empenham atualmente em pensar de modo novo o vínculo estrutural entre socialismo e democracia. Parece-me inegável que, sem a obra de Caio Prado, a interpretação marxista do Brasil seria hoje substancialmente mais pobre.
32. Caio Prado Jr., A revolução brasileira, cit., p. 267. (...)’


A revolução burguesa no Brasil

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“(...) O livro A revolução burguesa no Brasil encerra o ciclo de interpretações gerais do país. Mas, forneceu, ao mesmo tempo, as balizas para uma série de estudos pontuais posteriores que abordaram tópicos decisivos como a resistência dos “de baixo” antes e durante a emergência das classes, as alterações do estatuto das nações no sistema-mundo ou as rupturas no padrão de acumulação no capitalismo. (...)”


A esquerda e seu déficit

Por Luiz Sérgio Henriques
19 Julho 2015 | 03h 00
“Compreensível, do ponto de vista pessoal, que a presidente da República, em momentos de crise, recorde situações-limite como a da tortura nos anos de chumbo. Vistas as coisas assim, não importa ter havido, por parte de frações significativas da esquerda, a opção ultrarradical pela “virtude reguladora das armas” em seguida ao golpe de 1964. Uma vez postos sob a guarda do Estado, aqueles militantes – ou quaisquer outros, em qualquer circunstância –, ao serem torturados, passaram a encarnar a dignidade e a inteireza humana, deixando aos carrascos a infamante marca da desumanidade.

Num contexto de liberdades, porém, a recordação obsessiva da situação-limite perde vigor argumentativo e vira exemplo de “ideia fora do lugar”. Confundir a informação arrancada em circunstâncias escabrosas com métodos de desarticulação de sistemas criminosos de poder só é possível caso, ao mesmo tempo, se cancele o virtuoso percurso que permitiu a uma ex-presa política se tornar por duas vezes, pelo voto, a primeira mandatária de uma grande nação redemocratizada.

Mas pode haver método até mesmo em ideias desarranjadas, considerando, para constatar tal desarranjo, que hoje não há ninguém, fora grupos exóticos, que apele a exércitos imaginários para resolver dramas políticos. Não há lugar para bravatas e, tudo somado, os mecanismos racional-legais reúnem suficiente grau de consenso para agir segundo a própria lógica, investigando e punindo seja quem for. E as vivandeiras de quartel estão condenadas ao destino de quem não tem mais soldados para ofertar sua mercadoria nem conta com a guerra fria para ganhar um mínimo de credibilidade.
Mesmo assim, o método existe e pode ser que tenha contribuído para produzir, nas novas condições de liberdade, a reiteração de um déficit histórico de nossa esquerda.

Recapitulemos. No nascimento do PT esteve presente, sem dúvida, uma intensa movimentação da sociedade civil, com a arregimentação do sindicalismo lulista de resultados, dos remanescentes da extrema-esquerda derrotada e da difusa rede do catolicismo popular, com suas instâncias de solidarismo estranhas aos mecanismos de mercado.
Anunciava-se uma “revolução social”, um inédito protagonismo das massas capaz de refundar o País – e a refundação, nesta narrativa, se daria a partir da eleição do primeiro presidente de origem operária, não da Constituição de 1988. Em outras palavras, e contra todas as evidências, o “social” pretendia se desassociar do “político”.

Pouco antes, nos anos de chumbo, os diferentes grupos esquerdistas demoraram para perceber – e talvez só o tenham percebido pragmaticamente, sem a devida revisão teórica – que a chave para a derrota do regime consistia na aliança com o centro político, este último definido segundo o “discurso burguês”. Foram imensas as resistências a participar do jogo eleitoral, a assimilar os termos da anistia e a participar do colégio eleitoral que, há pouco mais de 30 anos, inaugurou a Nova República e sepultou as chances de reatualização civil da autocracia militar.

Aquele centro tinha, então, nome e cara: tratava-se do MDB e, depois, PMDB, à frente Ulysses e Tancredo, com o reforço do extenso grupo de senadores eleitos em 1974 e dos governadores da safra de 1982, como Montoro e o próprio Tancredo. Negar este centro, e dele se cindir ruidosamente, foi a base do crescimento do PT originário, mesmo quando essa negação implicava riscos não desprezíveis, como, por exemplo, no impeachment de Collor e na sustentação do governo Itamar, por sinal um dos quadros que ganharam projeção nacional nas históricas eleições de 1974.

Sempre houve algo de antipolítica nos lances que cercaram a ascensão do novo partido. Os tais “300 picaretas” do Congresso foram uma espécie de senha para a ação institucional do petismo. Não por acaso, e independentemente do declínio “ideológico” do PMDB após a realização de seu programa básico – a redemocratização –, recusar a aliança com o partido de centro, em 2003, esteve na raiz das práticas de cooptação das pequenas legendas que redundariam, poucos anos mais adiante, na Ação Penal (AP) 470. E, ainda recentemente, na transição do primeiro para o conturbado segundo mandato da presidente Dilma, a malograda aventura da criação de novo partido governista, isolando o próprio vice da chapa vitoriosa, foi tramada em gabinetes vizinhos ao da presidente Dilma. “Picaretas”, evidentemente, compram-se e vendem-se, partidos fazem-se e desfazem-se a preço de fim de feira: eis os pressupostos do exercício pedestre de dominação dos demais partidos por parte do ator mais organizado.

Catar os cacos desse sistema de partidos, agora quase todo enredado no esquema petista desde os anos Lula, não será a última nem a mais fácil tarefa daqui por diante. Das oposições (ainda?) não se pode esperar muito: de fato, não têm sabido ir além da “política dos políticos”, para usar a expressão de Marco Aurélio Nogueira, e responder na sociedade ao desafio trazido por um partido como o PT.

Quanto ao PT, uma das linhas de fuga poderá ser o cultivo da nostalgia das origens e o retorno ao “movimentismo”, de acordo com experiências que, em outros países, diagnosticam uma “crise orgânica (revolucionária) do capitalismo”. Confirmada a hipótese de uma “frente de esquerda”, com Lula à frente dos movimentos sociais a brandir um anticapitalismo retórico, dificilmente se tratará de um giro expansivo capaz de convencer, com os recursos da democracia, atores e áreas além da esquerda. Ao contrário, estará se repetindo o estágio de menoridade que já impediu ou retardou a contribuição ao País de parte das forças populares, deixando de lado, para os fins de nossa argumentação, atos de heroísmo individual em situações extremas.

*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil site: www.gramsci.org



Nenhum silêncio é inocente nessa hora

Um golpe não é feito para premiar os que tinham a análise política mais correta da história. Defender Lula hoje é defender a democracia.

Por: Saul Leblon 
17/07/2015 00:00 - Copyleft


“A insólita abertura de um inquérito contra Lula por suspeita de ‘usar sua influência no exterior para promover empresas brasileiras’ -- leia-se, para promover encomendas, empregos, serviços e renda no Brasil-- coloca um Rubicão para o campo progressista brasileiro.

O silencio equivale ao suicídio.

Movimentos populares, lideranças sociais e partidos progressistas sabem a que vem e a quem serve a iniciativa cabulosa de um promotor que responde pelo nome de Valtan Timbó.

Timbó, a planta, atordoa o cardume e facilita a sua captura pelos indígenas.

O timbó político excretado pelos interesses associados a esse inquérito fará o mesmo com o cardume das forças progressistas.

Exceto se nadarem rápido para além das águas onde o entorpecimento e o sectarismo formam um sumidouro sem volta.

Quem critica-com razão, como tem criticado Carta Maior-- a letargia do governo e do PT diante do passo de ganso da Liga dos Golpistas não deve alimentar ilusões.

A omissão diante de mais esse ensaio de golpe não consagrará espaço à ‘verdadeira esquerda’ na liderança progressista.

O que estamos vivendo é o oposto, um acelerado assalto ao espaço político da resistência democrática.

Com todas as virtudes e defeitos listáveis, Lula é hoje uma espécie de esteio simbólico dos avanços acumulados na luta pela construção de uma verdadeira democracia social no país.

Decepá-lo a machadadas de descrédito e suspeição-como tem sido feito-- até arrancá-lo do chão das possibilidades eleitorais do futuro é o plano acalentado pela Liga Golpista desde 2005.

Uma década de diuturno labor nessa tarefa atinge agora seu momento de decisão.

Para os dois polos da disputa.

Se o conservadorismo tiver sucesso não será apenas o esteio que virá abaixo.

Com ele todo um entorno histórico será aplastado. Impiedosamente.  Como se fez após a derrubada de Jango, no Brasil; de Allende, no Chile; de Torres, na Bolívia...

Essa é a dinâmica em curso.

Significa que as ambiguidades e hesitações petistas estão acima de críticas, avanços e confrontações?

Ao contrário.

Mais que nunca é necessário abordá-las no idioma da camaradagem crítica, em adequados ambientes de debate, entre os quais não se inclui a mídia conservadora.

A autocrítica e a superação dos erros cometidos é crucial para o campo progressista superar a encruzilhada de erros e hesitações angustiantes.

Mas cada crise tem uma contradição central.

Ignorar essa hierarquia ou ombreá-la em importância às demais costuma ser devastador, não importam as boas intenções avocadas no caminho.

Um golpe não é feito para premiar os que tinham a análise política mais correta da história.

Tampouco a dialética dura das transformações se assemelha à maciez da mecânica hidráulica.

O longo amanhecer de uma sociedade mais justa é um labirinto de contradições, uma geringonça que emperra e se arrasta, desperdiça energia, cospe parafusos e patina.

Para surgir um 'Lula' desse emaranhado tem que sacudir muito a geringonça imperfeita e remendada.

Greves, levantes, porradas, descaminhos etc.

Dói. Demora. Leva décadas -- às vezes séculos.

Uma liderança como a de Lula, feita de muitos ao seu redor --'uma quadrilha', diz o jogral do Brasil aos cacos - constitui um patrimônio inestimável na vida de uma nação.

Mesmo assim, é só o começo; fica longe do resolvido.

A cada avanço, não regredir já é um feito.

Não regredir hoje requer a convergência do campo progressista para enfrentar uma coalizão que farejou o espaço aberto pela transição de ciclo econômico-erroneamente conduzida pelo governo do PT-- e vislumbrou o espaço para o golpe tantas vezes adiado.

Insista-se, diante do timbó que entorpece as águas da razão: o golpe não é contra Lula ou contra o PT.

O golpe é contra a respiração social e econômica de um povo.

O povo brasileiro.

Cinquenta, sessenta milhões passaram a sorver ares de consumo e cidadania após 11 anos de governos progressistas no país.

Formam uma espécie de pré-sal de possibilidades emancipadoras.

A exemplo das reservas de petróleo, estão agora na alça de mira do programa de asfixia da Liga dos Golpistas, diante do qual a equivocada condução do ajuste atual é um salgadinho de aperitivo.

Como evitar que essa riqueza venha a se perder no socavão do futuro sofregamente escavado pelos aécios, moros, cunhas, marinhos, frias, civitas, timbós e assemelhados ao longo dos últimos meses?

Como impedir o desfecho da espiral que agora atinge a dinâmica de um tornado político?

Não é fácil.

Mas, sobretudo, não se deve confundir a natureza dessa dificuldade.

personificá-la em quadros petistas na desastrosa suposição de que a virulência conservadora contra eles abrirá espaços à emergência dos ‘consequentes’, repita-se, é o suicídio.

O silêncio dos inocentes é um maçarico nesse paiol.

Nunca é demais repetir: o Brasil vive o esgotamento de uma piracema histórica impulsionada pelos grandes levantes operários do ABC paulista, nos anos 70/80.

Na longa caminhada pela desconcentração do poder econômico e político chegou-se agora a um pedral divisor.

Há duas opções: saltar e avançar em um novo estirão ou regredir com o risco de perder inclusive o que já se conquistou.

Ao final de uma piracema, a 'rodada' dos cardumes exauridos leva uma parte à morte; outra se deixa arrastar por correntezas incontroláveis; um pedaço sucumbe ou se entrega a predadores ferozes.

Lula é a presa cobiçada por sua liderança capaz de unificar parte expressiva do cardume brasileiro para vencer o pedral.

Ele precisa querer dar o salto.

E os que se avocam a sua esquerda devem reconhecer que sendo ele arrebatado pelos predadores, o cardume enfrentará um redil regressivo de consequências devastadoras.

Está em jogo o passo seguinte de um longo ciclo de desenvolvimento da sociedade brasileira.

Quem irá conduzi-lo; que pacto de forças; quem terá a prerrogativa de responder as perguntas do desenvolvimento que o conservadorismo terceiriza aos mercados: desenvolvimento para quem; desenvolvimento como e desenvolvimento para quê?

A contradição principal --de novo, a principal-- não é o ajuste incluído nesse percurso.

Ajustes terão que ser feitos e isso tem sido reiteradamente detalhado neste espaço.

O flanco anterior mais grave, porém, que ora condiciona o método, o rumo e as salvaguardas dessa travessia pode ser sintetizado num flanco matriz: o distanciamento orgânico entre ‘a presa cobiçada nesse momento’ e seu imenso entorno popular.

É esse distanciamento – que tem na ausência de uma mídia pluralista, um nó górdio-- que o ajuste em curso espelha ao mesmo tempo em que age para aprofundá-lo.

E é ele também que explica o alvoroço dos timbós, a sofreguidão dos tucanos, dos operadores da riqueza financeira, dos colunistas isentos, de todos, enfim, que farejarem a chance do bote final, capaz de derrotar de vez a piracema progressista brasileira.

O risco é palpável; mas não sem incertezas.

O ciclo de inclusão iniciado em 2003 foi tão expressivo que, mesmo sob uma cortina de fogo cerrada como essa Lula ainda figura como o nome que ameaça a ambição conservadora de voltar ao poder pelo voto.

Então é preciso liquidar essa fatura, late o canil midiático.

Logo agora, na janela de oportunidade entre o vácuo orgânico criado em torno da presa e a hesitação dos movimentos populares, partidos e lideranças sociais em compor uma frente capaz de defender o que ele representa-com a condicionalidade dos avanços sem os quais o conjunto submergirá.

Ah, mas Lula fez lobby por empresas brasileiras no exterior...

Sim. E nisso o senador Roberto Requião foi definitivo enquanto os progressistas balbuciam evasivas ou ruminam silencio obsequioso:

‘Criticam o Lula por trabalhar a favor de empresas brasileiras; elogiam o Serra por querer entregar nosso petróleo a empresas estrangeiras’, disparou o bravo parlamentar.

O país precisa de uma macroeconomia mais consistente que a de Levy?

Por certo.

'O trade-off é mais liberalismo em troca de mais redistribuição', como sibilam senhores elegantes de gravata italiana?

Menos Estado em troca de mais distribuição?

Pergunte-lhes onde foi que isso aconteceu.

Vai acontecer agora na Grécia, adicionalmente coagida a um novo ciclo de ‘reformas liberalizantes’?

Há trinta anos que o capitalismo não se faz outra coisa a não ser desregular mercados urbi et orbi.

Então por que o motor da economia mundial engazopou e não pega nem com o tranco de liquidez de trilhões de dólares despejados pelo Fed e, agora, pelo tardio BCE?

O que falta para lubrificar a engrenagem emperrada?

Falta o que o Brasil tem, mas a boa ‘ciência’ dos sábios tucanos e dos economistas de banco -- com a subserviência do bravo jornalismo econômico -- acha indispensável liquidar: mercado de massa, horizonte de demanda, distribuição de renda, de bens, de infraestrutura e de poder político.

A desmonte do mundo do trabalho e a destruição do pleno emprego em todo o planeta, desde os anos 80 -- agora vendida aqui como o clorofórmio capaz de combater as impurezas da macroeconomia lulopopulista-- explicam por que essa é a mais longa, frágil e incerta convalescença de todas as crises capitalistas, desde 1929.

O imenso areal movediço é feito de mão de obra subempregada, trabalhadores em tempo parcial, dezenas de milhões de famílias endividadas, governos de rombos fiscais ingovernáveis, outros tantos milhões de lares sem condições sequer de prover o próprio sustento.

É para essa a eficiência estratégica que a Liga dos Golpistas quer conduzir o Brasil.

Uma peça do enredo ameaça o coice final do cavalo agalopado.

O estorvo é Lula.

A liderança que o seu nome evoca, a resistência que sua voz convoca, a capacidade de aglutinação que a sua presença histórica adiciona...

Defender essa possibilidade hoje é defender a democracia.

Nenhum silêncio é inocente nessa hora.”



 

Chico Buarque canta a Revolução dos Cravos: uma lição de História.




Cunhal e a luta em defesa do papel de vanguarda do PCP

José Paulo Netto
23 Jan.13Destaques
“Publicamos hoje o primeiro de um conjunto de artigos que se inserem na comemoração do centenário de Álvaro Cunhal. Em texto inédito, José Paulo Netto* estuda a trajectória do histórico dirigente revolucionário, a sua luta intransigente e permanente contra os desvios de direita e o oportunismo burguês no seio do movimento comunista e do próprio PCP, o seu papel central no desenvolvimento de uma teoria da revolução portuguesa.
O Partido Comunista Português (PCP) foi fundado em 1921. Obrigado à clandestinidade na sequência do golpe militar (1926) de Gomes da Costa, que abriu o caminho para a ditadura de Salazar, o partido foi reorganizado por Bento Gonçalves (1902-1942), seu primeiro secretário-geral, assassinado pelo salazarismo no campo de concentração do Tarrafal.
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Na história do PCP, a figura de Álvaro Cunhal é absolutamente central. De fato, o PCP que se constituiu como a força mais importante na longa resistência democrática ao regime fascista de Salazar e na vanguarda mais consequente do processo da “Revolução dos Cravos” (25 de abril de 1974) foi construído por um coletivo em que a liderança de Cunhal emergiu e se consolidou por décadas, sem quaisquer contestações por parte da militância de base – esta reconheceu no secretário-geral de 1961 a 1992 (depois, tornou-se Presidente do Conselho Nacional do PCP) a coragem pessoal, a firmeza ideológica e a qualificação teórica que, enfim, tornaram-no o próprio símbolo do comunismo lusitano. Compreende-se, pois, que o Comitê Central do PCP tenha agendado para 2013, ano do centenário de nascimento de Cunhal, uma série de eventos e atividades para evocar o notável “filho adotivo do proletariado português”.
A luta por um partido marxista-leninista
Toda a vida de Cunhal – nascido a 10 de novembro de 1913 e falecido a 13 de junho de 2005 (pouco depois da morte de outro grande nome da “Revolução dos Cravos”, o general Vasco Gonçalves, aos 84 anos) – foi dedicada ao PCP, no qual ingressou, como líder estudantil, nos inícios dos anos 1930.
Articulador da juventude comunista, Cunhal integra a direção do PCP a partir de 1936. Passa com ímpar dignidade pelas prisões fascistas em 1937 e 1940. Entre 1940 e 1941, protagoniza um novo processo de reorganização do PCP: tratou-se mesmo de uma autêntica refundação do partido, no marco da qual se constituiu um sólido núcleo dirigente e se estabeleceu a estrutura clandestina que o fascismo salazarista jamais pôde destruir. Foi Cunhal cérebro e mãos desse processo: teórico e militante, sua intervenção intelectual e sua corajosa prática política conferiram nova dinâmica ao PCP, tornado desde então, na mais estrita acepção, um partido marxista-leninista. Por isto, já em meados da década de 1940 seus camaradas reconheciam o caráter singular da personalidade do líder que se afirmava – caráter em que se conjugavam a qualificação teórica e o talento organizativo.
Preso em 1949, transformou seu processo judicial em tribuna anti-fascista.
Condenado, passou 11 anos nos cárceres salazaristas, dos quais 8 em isolamento – mas encontrou meios e modos de estudar e desenvolver suas concepções teóricas e aperfeiçoar seus dotes artísticos (no desenho e na ficção literária). A 3 de janeiro de 1960, em espetacular fuga coletiva organizada pelo PCP, escapou do Forte de Peniche – e, após algum tempo na clandestinidade, rumou para o exílio (URSS, França).
Exilado até a “Revolução dos Cravos”, teve condições de aprofundar sua análise da realidade de seu país – realmente, elaborou o que se pode designar como uma teoria da revolução portuguesa – e, no interior do partido (cujo Comitê Central elegeu-o para a secretaria geral em 1961) e no movimento comunista internacional, consagrou-se como o líder inconteste da resistência ao salazarismo. Após a derrubada da ditadura fascista, participou como ministro em vários dos governos provisórios da instauração democrática e o povo português conferiu-lhe seguidos mandatos parlamentares.
No curso dessas décadas, Cunhal travou um incessante combate em defesa do caráter marxista-leninista do seu partido. A luta no plano político-ideológico para preservar e consolidar o papel de vanguarda do PCP foi, para ele, uma luta sem quartel.
E uma luta em duas frentes: contra os equívocos provindos de “desvios de direita” contra as tentações aventureiras advindas de “desvios de esquerda”. Exemplifiquemos essa luta com um dos seus mais relevantes capítulos, o do combate aos “desvios de direita”.
A crítica radical ao “desvio de direita”
Já no IV Congresso do PCP, realizado em 1946, Cunhal – à base da certeira compreensão de que a ditadura portuguesa era uma forma particular e específica de regime fascista – defendera para a derrubada do salazarismo o recurso a um “levantamento nacional”. No curto prazo, porém, o partido deslizou para um posicionamento (posteriormente designado como “política de transição”) que secundarizava o empenho para organizar o “levantamento nacional”.

Na passagem dos anos 1940 aos 1950, o partido foi profundamente golpeado pela repressão – entre tais golpes conta-se a “queda” da casa do Luso (25 de março de 1949), quando Cunhal, Militão Ribeiro e Sofia Ferreira, membros do secretariado da direção central, são feitos prisioneiros. A duras penas, o PCP recupera-se desses golpes em meados da década de 1950. Mas, a partir de 1956, o partido ruma novamente para posições similares às da “política de transição”, com uma orientação que se vê reforçada pelo seu V Congresso (1957). Tal orientação, que se manterá até 1960 (quando, recordemos, Cunhal e alguns companheiros evadem-se da prisão e podem intervir na vida partidária), trará graves prejuízos ao PCP e à resistência democrática portuguesa.
Com efeito, a linha política traçada no V Congresso – já antecipada por um documento do Comitê Central de maio de 1956 – abandona completamente a estratégia do “levantamento nacional”, proposta e defendida por Cunhal há uma década: ela se vê substituída por uma orientação que prega uma “solução pacífica” para o fim do salazarismo. Esta orientação – que, embora contestada por alguns dirigentes e muitos militantes de base, manteve-se até 1960 – deixou o partido a reboque da oposição liberal-burguesa e mesmo das dissidências que afetaram o bloco de poder salazarista na crise de 1958-1959 (na sequência da candidatura de Humberto Delgado à presidência da República). Afirmando que o regime experimentava um intenso e irreversível processo de “desagregação”, o PCP apostava no “afastamento de Salazar” mediante uma “solução pacífica”, pendulando entre a via eleitoral e a via de um golpe militar. Para apressar tal “solução”, o partido acenava com uma “greve geral pacífica” que nunca preparou.
Com a precipitação efetiva das lutas de classes e a movimentação autônoma do proletariado urbano e rural (especialmente no Alentejo), a orientação da direção do PCP não teve como resultado somente a perda da influência do PCP no jogo político: desarmou amplamente o seu aparelho clandestino frente às respostas repressivas do regime à crise que este experimenta em 1958-1959 – novamente, a PIDE assestou duros golpes no partido.
Isolado na prisão de Peniche, Cunhal (que sequer foi informado do encaminhamento do V Congresso) esteve à margem dessa orientação da qual discordava por inteiro. Logo que se evadiu, atuou intensamente – no plano ideológico e no plano organizativo – para revertê-la radicalmente. Já num texto de dezembro de 1960 (“A tendência anarco-liberal na organização do trabalho de direção”) indicava as causas do fracasso da direção do PCP no nível da organização clandestina. Mas é no texto divulgado em março de 1961 – “O desvio de direita nos anos 1956/1959 (elementos de estudo)” – que Cunhal analisa, frontal e profundamente, os danos ocasionados pela orientação oficial vigente desde 1957.
Cunhal começa por indicar que a adoção da “solução pacífica” pela direção do PCP fundava-se numa transplantação mecânica – completamente equivocada – para a realidade portuguesa das teses oriundas do XX Congresso do PCUS (1956) acerca da possibilidade da “via pacífica” da transição ao socialismo. Cunhal argumenta que tais teses são válidas para muitos países, mas não para Portugal: tais teses, enquanto dizem respeito à transição ao socialismo, são estranhas à problemática portuguesa, uma vez que, no contexto lusitano, a questão real é outra – em Portugal, não se tratava de transitar para o socialismo: tratava-se de derrubar a ditadura fascista e conquistar as liberdades políticas. Nestas condições, a proposta da “solução pacífica” tanto revela um mimetismo servil às teses do XX Congresso do PCUS quanto a incapacidade para analisar a realidade portuguesa, a qual se afirmava querer transformar.
A incapacidade para operar “a análise concreta da realidade concreta” (tal como Lenin caracterizava o marxismo) – que, neste caso, mostra a ignorância do carácter fascista do regime salazarista – leva o PCP a substituir o caminho revolucionário para a conquista da democracia política (o “levantamento nacional”) por um arremedo oportunista, o “afastamento de Salazar” (exatamente a “solução pacífica”). Esta substituição retira do partido a condição de vanguarda e dirigente, desarma a militância proletária (urbana e rural) e enfraquece a resistência democrática: processando-se a “desagregação” da ditadura, o partido passa a jogar em ilusões legalistas e constitucionais (sob um regime fascista!) e/ou no golpe militar. Para Cunhal, a “desagregação” deve ser levada em conta, mas ele afirma contundentemente que “um regime não cai pela sua desagregação […], mas pela ação revolucionária das massas”.
Se se toma a “desagregação” como o principal elemento para a derrota da ditadura fascista (e esta era a posição da direção do PCP), a iniciativa revolucionária das massas é marginalizada e os comunistas passam a desempenhar um papel secundário e lateral na luta pela democracia. Ao longo do seu texto, Cunhal demonstra que reside precisamente neste desvio de direita – consistente em assumir e difundir ilusões legalistas sob o fascismo e em confiar em alternativas golpistas – a causa das derrotas políticas e orgânicas sofridas pelo partido nos anos 1956/1959 (e o demonstra com o exame de inúmeros fatos da conjuntura portuguesa imediatamente anterior e posterior à “farsa eleitoral” de 1958, assim como da documentação do PCP). Na sua análise, aliás, Cunhal não desconecta a atuação política do partido da estrutura organizacional que a implementa: a orientação política que confia na “desagregação” conduz ao “culto da espontaneidade” e este fragiliza o partido na sua relação positiva com a sociedade e em seu confronto com as forças da repressão – donde o “liberalismo”, a “falta de vigilância” e a “facilidade na promoção de quadros” que tiveram curso na estrutura clandestina do PCP daqueles anos.
Em síntese, Cunhal indica que a efetiva redução da influência do PCP naqueles anos – bem como muito de suas perdas orgânicas –, sob a orientação da “solução pacífica” (ultrapassado o partido pela ação combativa das massas trabalhadoras), estava intimamente ligada à incapacidade da direção para apreender o movimento social real que se desenvolvia sob a aparência imediata da sociedade portuguesa. Todo o seu argumento demonstra que os principais problemas político-ideológicos que então afetaram o PCP deitavam raízes na inépcia teórica dos dirigentes que conduziam o partido no rumo à “solução pacífica” (de fato, no rumo da direitização).

A conclusão do seu argumento é cristalina:

Se queremos que o Partido desempenhe o papel determinante que lhe cabe na luta pela liberdade política, temos de expurgar do Partido as concepções direitistas e oportunistas, que criaram fortes raízes a partir de 1956.
Não se trata de uma tarefa fácil. As concepções direitistas e oportunistas foram a «linha» oficial do Partido durante vários anos, foi dentro delas que se formaram militantes, enraizaram-se na maneira de ver as coisas e em hábitos de trabalho, e não será fácil varrê-las dum momento para o outro. Para varrê-las do Partido, impõe-se um combate amplo, aberto, enérgico e persistente, contra o desvio de direita que predominou nos anos 1956-59, impõe-se que exponhamos ao sol da crítica as suas raízes ideológicas, impõe-se que saibamos não apenas ganhar a concordância dos militantes, mas esclarecê-los e convencê-los.

Logo que saiu da prisão, Cunhal dedicou-se intensivamente, com outros camaradas, à tarefa que não julgava fácil. Rapidamente, já em meados dos anos 1960, seu combate resultou exitoso: no VI Congresso (1965), sob sua liderança inconteste, o PCP superou o “desvio de direita”, reatualizou a tese do “levantamento nacional” e retomou a sua vocação – ser a vanguarda do proletariado português. O informe de Cunhal a este congresso (Rumo à vitória ) deu nova orientação à política do PCP, preparando-o adequadamente para os confrontos decisivos que derivaram na derrubada do regime fascista e na instauração democrática.
Líder político, teórico e homem da cultura
O peso de Cunhal na história do PCP é indiscutível e imenso: sua intervenção organizativa imprimiu-lhe o caráter marxista-leninista na verdadeira refundação (“reorganização”) de 1940/1941; seu combate político-ideológico aos desvios direitistas e esquerdistas nos anos 1960 garantiu que o partido se livrasse do oportunismo e recusasse o aventureirismo; sob sua liderança, o PCP qualificou-se como a principal força da resistência democrática e, depois do 25 de Abril, como a expressão das mais profundas aspirações nacionais e democráticas. Com a sua atividade política apoiando-se no reconhecimento do protagonismo das massas trabalhadoras e em sólidas convicções teóricas, adquiridas e desenvolvidas em contínuos estudo e pesquisa, Cunhal nada teve em comum com ocupantes de secretaria-geral burocratizados e rotineiros.
Dissemos já que Cunhal desenvolveu uma teoria da revolução portuguesa – e a afirmativa não é gratuita. No conjunto de escritos de Cunhal, a pesquisa da realidade portuguesa é constante – envolvendo da investigação histórica (As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média) a análises contemporâneas (Contribuição para o estudo da questão agrária). No citado Rumo à vitória… encontra-se a síntese de anos de estudo e da sua teoria de revolução portuguesa.
Mas Cunhal foi também um intelectual sofisticado – prova-o a sua excelente tradução de O rei Lear, de Shakespeare. Foi, de fato, um homem do mundo da cultura.

Artista plástico, produziu uma notável série de gravuras. Suas reflexões estéticas estão explicitadas em A arte, o artista e a sociedade. A sua obra de ficção, marcada pelo neo-realismo, é significativa: Até amanhã, camaradas, Cinco dias, cinco noites, A estrela de seis pontas, Um risco na areia, A casa de Eulália, Fronteiras, Sala 3 e outros contos e Lutas e vidas. Um conto.
A rica e polifacética obra/personalidade de Álvaro Cunhal, como se vê, desborda amplamente a dimensão estritamente política. As comemorações do seu centenário de nascimento seguramente também destacarão, para além da sua liderança, a magnitude da sua contribuição à cultura.
*José Paulo Netto é um destacado pensador marxista brasileiro. Doutor em Serviço Social, professor emérito da ESS da UFRJ e autor, entre outras publicações, de “Ditadura e Serviço Social - Uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64”, “Capitalismo Monopolista e Serviço Social”, “Crise do Socialismo e Ofensiva Neoliberal” e “Democracia e transição socialista”. Militante do PCB, foi preso pela ditadura militar. Esteve exilado em Portugal durante vários anos. É o Presidente do Instituto Caio Prado Jr. (ICP).”
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“1 NE: “Rumo à vitória” é um relatório ao CC. O relatório ao VI Congresso é um outro documento, embora desenvolva, naturalmente, uma linha idêntica. É neste relatório que são pela primeira vez formulados os pontos da Revolução Democrática e Nacional (7 pontos no Relatório, 8 no Programa aprovado pelo Congresso).”



Última entrevista de Vasco Gonçalves

por Viriato Teles [*]

.“Entre 18 de Junho de 1974 e 12 de Setembro de 1975, foi o Primeiro-Ministro de Portugal, e esse foi o tempo mais gratificante da sua vida. Aos 452 dias iluminados que então viveu, mais de dez mil horas quase todas vividas de olhos abertos, juntem-se-lhe todos os outros e as noites e as madrugadas acesas que fizeram o ano e meio da Revolução. Vasco Gonçalves sorri quando fala desse período, e não é um sorriso de dor ou de saudade: é o riso sereno de quem cumpriu o seu destino e está feliz por com isso ter contribuído para melhorar o destino dos outros. 

Vasco, o Companheiro Vasco, foi o único ocupante do Palácio de São Bento a quem o povo concedeu o gosto de tratar pelo nome próprio. Os adversários e os inimigos vingaram-se, inventando o gonçalvismo – tentanto resumir num homem aquilo que para eles era a fonte de todos os medos, mas que mal ou bem nascia dos mais puros anseios de um povo que, pela primeira vez na história recente, tinha como chefe do Governo um homem que o escutava e, mais importante, o compreendia. 

.Por esse tempo, Lisboa era um centro de conspirações e um ninho de espiões como já não havia desde a II Guerra Mundial. Longe, em Washington e em Moscovo, os senhores do mundo sentiam-se incomodados com este homem que falava como quem ama. Por razões diferentes mas concatenantes, Brejnev e Kissinger estavam preocupados com o futuro político deste país esquecido à beira-Atlântico. Esquecido, mas fundamental por razões geo-estratégicas, já que fica a meio do eixo que ligava e separava as capitais dos dois impérios. 

Depois do 11 de Março de 1975, Vasco Gonçalves foi o centro de todas as atenções: daqueles que o admiravam, como daqueles que o temiam. Durante o PREC, Vasco e a Revolução foram uma e a mesma coisa. A queda do V Governo Provisório, dois meses antes de Novembro, foi o prenúncio de que a Revolução estava a chegar ao fim: "Vasco voltará", garantiam, então, os seus seguidores mais crédulos. Vasco não voltou, claro. Pela simples razão de que não chegou nunca a partir: ficou aqui, entre os seus. Certamente magoado por não ter tido todo o tempo que merecia, mas ainda assim feliz por ter vivido o que viveu. E o certo é que, nesse tempo, as pessoas eram felizes – mesmo as que não gostavam dele. E, isso, ninguém lhe pode tirar.
Viriato Teles: – Saudades de Abril, General Vasco Gonçalves? 

Vasco Gonçalves: – Tenho, naturalmente, saudades de Abril. Mas saudades saudáveis, não nostálgicas ou melancólicas. Saudades que animam a luta pelo futuro. 

VT: – "Não imagino como seria a minha vida se não tivesse participado no 25 de Abril". São palavras suas. Como é a sensação de estar não apenas a viver a História mas também a transformá-la? 

VG: – Uma grande alegria de estar a participar activamente, com o nosso povo, com os militares, num processo de transformação profunda, estrutural, da nossa sociedade a caminho da justiça social, da libertação do homem, do socialismo. 

VT: – Há quem diga que o 25 de Abril nasceu como golpe de Estado e só quando o povo saiu à rua se deu a revolução. Está de acordo? 

VG: – No dia 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas derrubou o governo fascista-colonialista. Nesse mesmo dia, apoiando o golpe militar, desencadeou-se um espontâneo e vigoroso movimento popular e nacional. O impulso das massas populares e dos trabalhadores, exigindo um empenhamento social e político mais alargado e profundo do que o inicialmente previsto pelo Movimento das Forças Armadas, fez com que a relação de forças dentro do Movimento fosse favorável aos militares que mais se identificavam com as aspirações, as reivindicações, os interesses populares, e imprimiu uma dimensão revolucionária ao golpe militar. 

VT: – Há uma frase sua – no 
livro que fez com Maria Manuela Cruzeiro – a propósito do Programa do MFA, em cuja redacção participou: "Considerei que o Programa era muito interessante, uma vez que tinha sido elaborado por militares e estava nitidamente mais avançado do que o pensamento comum da generalidade dos militares". Quem o ouvir falar, até pode pensar que o senhor não tem grande apreço pelas qualidades intelectuais dos militares. É verdade? 

VG: – Essa dedução é errada. Do conteúdo em que se insere essa passagem da entrevista conclui-se, facilmente, que "pensamento" se refere a pensamento político, e não a pensamento tomado em sentido intelectual ou de desenvolvimento intelectual. Os militares eram sistematicamente educados e endoutrinados com o objectivo de afastar o seu pensamento das questões políticas e de os fazer aceitar como nacional e patriota a política do Estado Novo, ditatorial, da qual as Forças Armadas eram o último e decisivo sustentáculo. A Guerra Colonial foi para a grande parte dos oficiais do Quadro Permanente uma verdadeira escola de educação política, uma escola de consciencialização política, de percepção e de conhecimento das relações económico-sociais que conduziam à guerra que o governo fascista-colonialista fazia aos movimentos de libertação anti-colonialista e que arrastava o país para a grave situação em que se encontrava. Ora, o Programa reflectia essa consciencialização política, adquirida em grande parte com a guerra, pelos militares mais esclarecidos, que dirigiam o Movimento. 

VT: – Já ouvi algumas pessoas dizerem que, a princípio, desconfiaram do 25 de Abril por ser "uma coisa de militares". A verdade é que, por regra, quando os militares tomam o poder não é por boas razões. O que é que fez a diferença em Portugal? 

VG: – O facto de as Forças Armadas terem sido o principal sustentáculo do governo fascista-colonialista, durante 48 anos, o conhecimento do mal estar generalizado existente nas Forças Armadas, provocado pela continuação da Guerra Colonial sem solução à vista, o conhecimento de que elementos da ultra-direita, entre os quais Kaúlza de Arriaga, descontentes com o governo pelo rumo que a guerra tomava, se movimentavam politicamente, terão levado a que houvesse esses temores. Mas essa movimentação política da ultra-direita foi, desde logo, contrariada e desmascarada, no seio das Forças Armadas pelo movimento de oficiais em processo de formação o qual pretendia que fosse alcançada uma solução política para a Guerra Colonial. 

VT: – Durante os seus governos, Portugal conheceu modificações extraordinárias: nacionalizaram-se os bancos e as principais indústrias, fizeram-se as campanhas de alfabetização, garantiram-se os principais direitos dos trabalhadores, avançou a reforma agrária… Pode dizer-se que o essencial das "promessas de Abril" se desenvolveu durante os seus governos. Na altura teve consciência plena da dimensão da mudança que estava a protagonizar? 

VG: – Tive. De facto, ao longo do processo histórico da Revolução de Abril foi surgindo, nas suas linhas gerais, um modelo de transição pacífica, democrático e pluralista para a democracia e o socialismo. Este modelo foi sendo elaborado, na prática, nas condições políticas, sociais, económicas e culturais do nosso país, fortemente determinadas pela aliança Povo-MFA, na dinâmica de uma acesa luta de classes, no contexto da crise económica capitalista de 1973-75 e das relações internacionais caracterizadas pela Guerra Fria. Sem dúvida que tive consciência da mudança que se estava a verificar, na qual participava, empenhadamente, como membro do Movimento das Forças Armadas, no contexto da aliança Povo-MFA. 

VT: – Depois de uma viagem a Cuba, Otelo Saraiva de Carvalho teve uma das suas declarações mais famosas, ao dizer que podia ser "o Fidel de Castro da Europa". O General Vasco Gonçalves alguma vez pensou em algo semelhante? 

VG: – Não. 

VT: – Por falar em Cuba: acredita que os cubanos vão conseguir resistir aos apetites norte-americanos? 

VG: – Acredito. O êxito da resistência depende de numerosos factores objectivos e subjectivos, nacionais e internacionais, das correlações de forças que se vão verificando a nível nacional. Entre esses factores se destacam o patriotismo, a coesão, a consciência política, a vontade e a determinação do povo cubano, a construção real, apesar dos tremendos condicionalismos impostos pelo imperialismo norte-americano, de 45 anos, de uma sociedade que tem por objectivo, fundamental, a justiça social e a equidade. Cuba é um exemplo, para todos nós, de que é possível resistir ao imperialismo norte-americano. 

VT: – A meu ver, a sobrevivência até aos nossos dias do regime cubano deve-se não apenas às condições geopolíticas – já que Cuba conhece como ninguém o significado da palavra imperialismo – mas também ao facto de ali se ter desenvolvido um "socialismo latino", de características próprias. Nós, em 74-75, também pensávamos que era possível uma "via original" para o socialismo. Hoje, ainda acredita nisso?

VG: – A Revolução de Abril instaurou um regime de amplas liberdades, garantias e direitos políticos, cívicos, culturais, sindicais e laborais; destruiu as bases do capitalismo monopolista de estado e dos grupos económicos monopolistas; nacionalizou a banca e as companhias de seguros, os sectores básicos da produção, as principais empresas de transportes e comunicações, criando um sector público de peso determinante na nossa economia, na regulação do mercado e no comércio externo; realizou a Reforma Agrária com a supressão do latifúndio, dando origem à constituição de unidades colectivas de produção constituídas e dirigidas por trabalhadores assalariados rurais, trabalhadores sem terra e pequenos e médios proprietários rurais; aprovou uma nova lei de arrendamento rural, e devolveu aos povos os terrenos baldios; melhorou e dignificou substancialmente as condições de vida dos trabalhadores em geral e das mais vastas camadas da população; promoveu transformações progressistas no ensino, e um extraordinário aumento da frequência escolar; aprovou a criação do Serviço Nacional de Saúde, e desenvolveu a cultura e o desporto populares. As conquistas democráticas alcançadas, nomeadamente no período mais criativo da Revolução, entre o 11 de Março e a queda do V Governo Provisório, foram todas consagradas na Constituição da República de 1976. A Constituição é filha da Revolução. As conquistas de Abril eram o caminho para o futuro de Portugal. Elas continuam, hoje, a ser devidamente analisadas, ponderadas, adaptadas e ajustadas, um objectivo para esse futuro, face às novas realidades do nosso país e do mundo. Uma missão da OCDE que esteve entre nós de 15 a 20 de Dezembro de 1975, composta por três professores do Departamento de Economia do Instituto de Tecnologia de Massachussets afirmou no seu relatório que "no princípio de 1976 a economia portuguesa está surpreendentemente saudável". A política económica que foi posta em prática, numa situação com as características da situação revolucionária que vivemos, naturalmente agitada e de grandes contradições sociais, no contexto da crise capitalista de 1973-75, a maior do pós-guerra, mostrou-se, pois, adequada. Penso que, nas suas linhas estruturais, definidoras, o ordenamento económico-social constitucional, de 1976, era correcto. Foram, precisamente, as mudanças estruturais, as nacionalizações, a reforma agrária, a participação dos trabalhadores, os aumentos salariais, a intervenção do Estado nas empresas em dificuldades que salvaram a nossa economia do colapso. Foi a falta do cumprimento, do ordenamento económico-social constitucional, foi a política neoliberal globalizadora, deliberadamente destrutiva desse ordenamento (privatizações, destruição da reforma agrária, cerceamento dos direitos dos trabalhadores, submissão às directivas da União Europeia, mercantilização da saúde, do ensino, da segurança social, etc.) que conduziram á presente situação. A mudança da correlação de forças políticas e sociais, civis e militares fez que não fossem consolidadas as conquistas da Revolução, e foi a origem dum processo contra-revolucionário que decorre há cerca de 28 anos. A mudança da correlação de forças teve múltiplas causas, entre as quais são de salientar: o agravamento da luta de classes; as divisões profundas dentro da esquerda do MFA; a persistência da ideologia burguesa e pequeno-burguesa entre a maioria dos militares e dos trabalhadores; os resultados das eleições para a Assembleia Constituinte. A Revolução de Abril terá sido, na Europa Ocidental, e depois da Comuna de Paris, a maior ofensiva contra o capitalismo. Penso que os sectores revolucionários da nossa população, civis e militares fizeram o que lhes foi possível fazer, dentro dos objectivos do Programa das Forças Armadas, e tendo em vista a correlação de forças existente no momento. 

VT: – Na altura em que foi primeiro-ministro, teve a noção das movimentações de bastidores da diplomacia internacional no sentido de, de algum modo, traçar um rumo para a revolução portuguesa que fosse ao encontro dos vários interesses mundiais? 

VG: – Sim. 

VT: – Pergunto isto porque fui amigo do Francisco Costa Gomes Jr. – o filho, já falecido, do Marechal Costa Gomes – que uma vez me contou alguns pormenores muito curiosos da visita do pai, enquanto Presidente da República, a Moscovo. Ao que parece, terá havido uma pressão clara de Brejnev no sentido de Portugal abandonar a via socialista, que seria um projecto contrário à política de "coexistência pacífica" acordada tacitamente entre as duas super-potências. Soube disso? 

VG: – Soube, sim, da opinião dos soviéticos. 

VT: – E qual foi a sua reacção? 

VG: – Essas opiniões dos soviéticos não tiveram influência nas nossas decisões. Não foram novidade para nós, que fazíamos ideia das relações de força a nível internacional, e da existência da guerra-fria, a que já fiz referência quando falei do processo histórico do 25 de Abril. 

VT: – Dos líderes mundiais que conheceu nessa altura, havia algum em quem verdadeiramente confiasse? 

VG: – Conheci, fugazmente, um número reduzido de dirigentes de países da NATO, por ocasião de uma reunião, de chefes de Estado e de Governo, em Bruxelas. Naturalmente, não podia confiar em ninguém. 

VT: – Calculo que se mantenha atento ao que vai acontecendo pelo mundo. Concorda que estamos numa fase preocupante de retrocesso social e político a nível global? 

VG: – O modo de produção capitalista, em consequência da sua própria essência, das leis do seu desenvolvimento, das condições necessárias à sua reprodução e perpetuação, conduziu à globalização neoliberal. Esta política, comandada pelos Estados Unidos da América, sustentada pela sua força militar e dos seus poderosos aliados da NATO, embora com contradições internas e externas, procura impor-se a todo o mundo. Será possível que a acção consciente e organizada dos trabalhadores e dos povos seja capaz de criar condições para pôr fim a esta ofensiva global do capital e substituir a sociedade capitalista por uma sociedade mais justa, a socialista? Ao contrário do que pode parecer, o capitalismo está em crise. Mas a crise do capitalismo, hoje, é estrutural e não conjuntural. Por isso, o sistema procura impor a todo o mundo a globalização neoliberal, como fase final e definitiva da sua evolução história. Contudo o capitalismo não é reformável, porque as relações sociais em que se baseia e sem as quais não pode sobreviver, são intrinsecamente contraditórias, injustas e de exploração do homem. O novo imperialismo planetário necessita do controlo dos recursos naturais e das guerras "preventivas" e de "intervenção humanitária" para garantir a sua dominação e superar as suas fraquezas económicas intrínsecas. O capitalismo necessita da guerra, da fome e da miséria para milhares de milhões de pessoas. Com a guerra e a destruição do ambiente, põe em perigo a própria sobrevivência da humanidade. Por isso, se coloca, hoje, no horizonte histórico do homem, a necessidade de travar a actual ofensiva do capitalismo neoliberal e de o substituir por um a sociedade orientada para a construção do socialismo. Por estas razões se coloca, hoje, na perspectiva histórica do homem a alternativa "socialismo ou barbárie". Como diz o filósofo húngaro-britânico Istvan Meszaros: "A terceira fase, potencialmente a mais mortal, do imperialismo hegemónico global, que corresponde à profunda crise estrutural do sistema do capital no plano militar e político não nos deixa espaço para tranquilidade ou certeza. Pelo contrário, lança uma nuvem escura sobre o futuro, caso os desafios históricos postos diante do movimento socialista não sejam enfrentados com sucesso enquanto ainda há tempo. Por isso, o século à nossa frente deverá ser o século do 'socialismo ou barbárie'." 

VT: – A implosão da União Soviética surpreendeu-o? 

VG: – Sim. 

VT: – Como vê a conversão dos russos ao capitalismo? 

VG: – Penso que a palavra "conversão" não é a mais adequada à mudança que houve e há na Rússia. O movimento socialista sofreu uma muito grave derrota. Contudo, o grande desafio histórico do futuro continua a ser a superação do capitalismo pelo socialismo. 

VT: – Que leitura faz da reeleição de George W. Bush como presidente dos EUA? 

VG: – Penso que se vai acentuar a política de dominação planetária da mais forte potência militar que jamais existiu sobre a terra. Ao mesmo tempo estão surgindo em todo o mundo movimentos contra a guerra e de resistência anti-imperialista cuja frente principal se localiza no Médio Oriente e na Ásia Central, no Iraque, no Afeganistão, na Palestina. Esta resistência tem contrariado os planos do governo norte-americano de futuras agressões à Síria e ao Irão. 

VT: – Diz-se que "o poder corrompe e que o poder absoluto corrompe absolutamente". O senhor general, que passou pelo poder e deixou uma marca tão funda na história deste país, acha que é mesmo assim? 

VG: – Não. O poder em si não corrompe. Os homens é que se corrompem ou são corrompidos. Devemos ter presente a existência duma sociedade de diferentes classes sociais, algumas das quais, com interesses antagónicos entre si, interesses incompatíveis. Tenhamos presente a luta de classes, a posição dos indivíduos em relação aos interesses de classe, e em relação à honra, à dignidade, ao patriotismo, à consciência política e social. Todas estas são condições objectivas e subjectivas que influem no comportamento dos indivíduos que ocupam posições no âmbito do poder político. 

VT: – Trinta anos passados sobre o Verão Quente, sente que cumpriu o seu dever? 

VG: – Sim. Cumpri o meu dever para com o nosso povo e para com o Movimento das Forças Armadas. 

VT: – Como reage quando ouve falar do "gonçalvismo"? Existiu tal coisa? 

VG: – No livro de Carlos Coutinho, Companheiro Vasco , nas páginas 45 a 57, essa questão está tratada extensamente. Da página 45 e em resposta a uma pergunta idêntica à sua, passo a citar: "O gonçalvismo foi inventado para se utilizar o anti-gonçalvismo, como uma arma da guerra psicológica, como uma arma da tenaz luta, política e ideológica, que a burguesia portuguesa trava contra as classes trabalhadoras e seus aliados objectivos e potenciais, no sentido de bloquear o processo revolucionário, recuperando-o para o capitalismo. O anti-gonçalvismo, do ponto de vista da guerra psicológica e da luta ideológica, é um contraditório conjunto de mentiras, calúnias e invenções relativas às acções desenvolvidas no período mais criador da revolução. É a deturpação total da política dos II, III, IV e V Governos Provisórios, em particular do IV e V. Do ponto de vista político (o anti-gonçalvismo) é um conjunto de acções cujo objectivo é a recuperação capitalista". 

VT: – Se pudesse voltar atrás, o que é que fazia de diferente? Alguma vez se arrependeu? 

VG: – Penso que nas suas linhas gerais, definidoras, o ordenamento constitucional de 1976, que consagra as conquistas democráticas alcançadas no período mais criador da revolução, era correcto. Foi a falta do seu cumprimento, a política deliberadamente destruidora desse ordenamento, coberta por sucessivas revisões constitucionais que conduziu à situação actual. Mas devemos reconhecer que não houve base de apoio social e político para garantir o cumprimento do ordenamento constitucional, o que tem permitido as sucessivas revisões constitucionais que alteraram, profundamente, a organização económico-social institucionalizada na Constituição de 1976. Nas suas linhas mestras, definidoras, não voltaria portanto, atrás em matéria de conquistas democráticas e revolucionárias. 

VT: – No seu discurso de tomada de posse como primeiro-ministro, em 74, citou Almeida Garrett, dizendo que a liberdade só se aprende com a prática. O que lhe ensinou a prática da liberdade? 

VG: – A liberdade não se define ou não se consubstancia, apenas, nos direitos políticos, no direito de poder falar livremente, no direito de opinar e contestar ou de se organizar colectivamente sem ser preso. A liberdade não existe de per si. São necessárias estruturas políticas, económicas, sociais, culturais que garantam o exercício das liberdades consagradas na Constituição. O desemprego, a miséria, a fome, a falta de instrução, a falta de habitação, as relações sociais de exploração são contrários ao exercício livre da liberdade. Porque a liberdade não diz respeito, apenas, à liberdade política. Mesmo esta tem condicionamentos económicos e sociais, culturais e até, ambientais. Por exemplo, o novo código de trabalho, as novas leis aprovadas em 2004 nos domínios da segurança social, da saúde, da educação, do arrendamento urbano, limitam claramente as condições de vida das pessoas, a sua formação e independência material e espiritual, a sua formação cultural, o acesso à justiça social. Têm uma influência decisiva sobre a igualdade de oportunidades, condição indispensável para o exercício das liberdades. Outro exemplo: o domínio dos meios de comunicação social de maior difusão pelo sistema do capital. A desinformação deliberada influencia negativamente a formação cultural, a formação da consciência social e política dos cidadãos, e, consequentemente, o exercício do direito à liberdade. 

VT: – O mundo unipolarizou-se, os valores inverteram-se. Ainda há algo porque valha a pena lutar? 

VG: – A resposta a esta pergunta está em grande parte contida no que lhe disse há pouco. Devo acrescentar: a ciência e a tecnologia são utilizadas, sistematicamente, permanentemente, como meios para a superação da crise estrutural do sistema do capital, com consequências dramáticas para o meio ambiente, colocando em risco a própria continuidade da vida humana na terra, tal como se conhecem hoje. Um recente e extenso estudo sobre as consequências da subida geral da temperatura no planeta mostra que a mudança de clima nos próximos 50 anos conduzirá à extinção de um quarto dos animais e plantas terrestres. A perda de uma em cada dez espécies de plantas e animais já é irreversível devido ao aquecimento global provocado pelos gases já descarregados na atmosfera. A gravidade da situação é tal que a revolução científico-técnica não pode adiar indefinidamente a explosão das contradições antagónicas e insanáveis do sistema. Impõe-se, pois, a luta contra o neo-liberalismo e contra as guerras que o mesmo desencadeia. Nestas condições tão difíceis e tão exigentes para cada um de nós, a missão que se põe às forças democráticas e progressistas no nosso país (como no mundo) é o trabalho empenhado, denodado, persistente, quotidiano, inteligente, pela consciencialização política e social do nosso povo para a efectiva participação na construção do seu próprio futuro. As lutas nacionais não devem ser desligadas das acções internacionais. Só a luta sobre a base de problemas concretos, procurando mobilizar consciências e corações, estimular a disponibilidade para a acção ao longo da qual se promoverá a participação e a intervenção populares em todos os domínios da vida da sociedade, poderá conduzir o homem a que seja sujeito do seu próprio futuro. Há algo porque vale a pena lutar. 

VT: – Está disponível para participar num novo 25 de Abril? 

VG: – Muitas vezes se faz essa pergunta, de há quase 30 anos para cá. As condições históricas, objectivas e subjectivas, as situações são irrepetíveis. A pergunta significa, para mim, se continuo confiante no valor, na capacidade transformadora, das ideias do 25 de Abril, uma vez tomadas pelo nosso povo. Continuo. Penso que os caminhos de Abril continuam bem actuais para a construção duma sociedade de justiça social no nosso país. “

_________ 
“[*] Esta entrevista faz parte do livro "Contas à Vida – Histórias do Tempo que passa", de Viriato Teles ( 
http://viriatoteles.com.sapo.pt ) a publicar na segunda quinzena de Julho pela Editora Sete Caminhos.” 

“Este artigo encontra-se em 
http://resistir.info/ .”

Otelo Saraiva: Temendo pelo futuro da democraciaem Portugal

publicado em 27 de abril de 2014 às 14:16
http://www.viomundo.com.br/wp-content/uploads/2014/04/otelo.jpeg
“Comandante da Revolução dos Cravos teme retrocesso político no mundo

‘O movimento que derrubou a ditadura salazarista completa 40 anos em Portugal, mas o coronel Otelo Saraiva de Carvalho é pessimista em relação ao futuro
Por Lúcia Rodrigues

O homem que, ao lado do capitão Salgueiro Maia, fez ruir uma ditadura de 48 anos em Portugal, não se considera um herói. Embora conte com orgulho que ainda hoje, 40 anos após a Revolução dos Cravos, como ficou conhecido o episódio liderado por ele e que depôs o salazarismo em 25 de abril de 1974, seja parado na rua por populares, que o abraçam para agradecer o ato de valentia.
Os ideais de Abril mantêm-se naquela geração que sofreu a ditadura fascista e que sentiu o sopro da liberdade com o 25 de Abril. Eu todos os dias tenho o reflexo disso em gente anônima que me expressa seu carinho. Esses ideais mantêm-se vivos.”
Mas o coronel Otelo Saraiva de Carvalho, major à época da Revolução, teme que quatro décadas depois do Movimento das Forças Armadas (MFA) ter derrubado o arbítrio, Portugal possa vir a sofrer um retrocesso político e social. Ele considera que a crise econômica, imposta pelo capital financeiro, que atinge a Europa e o país, em particular, possa conduzir a um fechamento do regime.
“A situação é dramática e pode agravar-se. A brutal austeridade imposta pelo governo e pela Troika (FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu) tem gerado desemprego altíssimo e empobrecimento generalizado. A crise econômica abateu-se sobre os cidadãos. O governo busca (corta) dinheiro nos salários, nas pensões (aposentadorias), aumenta impostos… Os reformados (aposentados) estão sendo despojados de suas pensões, mas eles é que têm sustentado os filhos desempregados, os netos”, alerta.
Ele não esconde a frustração pelo rumo que o país tomou. “Nós (revolucionários) tínhamos esperança de que os avanços para a classe menos favorecida prosseguissem, mas 40 anos depois, vemos que a situação sofreu um retrocesso enormíssimo. Há mais de dois milhões de portugueses em estado de pobreza. Para nós isso é um desgosto enorme, é o fim de um sonho, o óbito do 25 de Abril.”
Otelo explica que a elite é quem ganha com a miséria do povo. “O mais dramático é verificar que essa situação permite que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. A dívida pública portuguesa é muito grande, acho que está na casa dos 125% do PIB. Há economistas que consideram que não será possível pagá-la, mesmo vivendo sob austeridade durante décadas.”
A situação é caótica e o euro é visto por ele como um dos elementos que contribuíram para a derrocada do poder econômico dos portugueses. Moeda valorizada para os padrões de consumo do país, só pode ser emitida pelo Banco Central Europeu sob o comando da Alemanha, que não tem interesse em alterar a situação. “Há economistas que advogam a necessidade de sair do euro e retornar a moeda própria. O euro seria uma coisa bonita, uma moeda única para a Europa, mas Portugal não tem capacidade para exportar seus produtos confrontando-os com os da Alemanha, França”, adverte.
Futuro sombrio
“O mundo caminha para que em um prazo de 10, 20 anos, sejamos inspecionados em qualquer parte, e convencidos de que isso é para nossa segurança. É assustador”, critica ao se referir ao controle exercido sobre o cidadão e às revelações feitas por Edward Snowden de monitoramento realizado pela CIA, a agência de espionagem estadunidense.
Ele considera que a democracia corre sérios riscos. “Eu vejo essa possibilidade e vejo com grande angustia. Poderá ser uma reação violenta. Julgo que pode ser possível pelo desespero. Mesmo o governo a dizer que esta a melhorar, se a austeridade (aperto do cinto) continuar, vai haver surtos e os aparelhos de repressão vão se intensificar. A situação está a agravar-se. Julgo que o governo montou uma rede de informadores. Escutas telefônicas (sem o consentimento judicial) existem, apesar de ilegais.”
O comandante Otelo é um militar atípico. Revolucionário convicto, ao invés da hierarquia, considera que a democracia direta, em que a população reunida em assembleias populares define seu destino, é o melhor modelo político de governo.
O líder da Revolução de Abril entende que o mundo é dividido em classes sociais. Apesar de não ter sido leitor de Marx, Engels e Lenin, o coronel considera que aprendeu a ser de esquerda na prática. Ele afirma, no entanto, que concorda com os conceitos marxistas. A luta de classes é um deles. “Para mim, ser de esquerda é ter uma preocupação muito grande para que toda a ação política seja orientada para elevar ao máximo o nível econômico, social e cultural do povo.”
Na juventude Otelo queria ser ator, mas foi impedido pelo pai. Acabou se convertendo em protagonista da história de seu país. Apesar de continuar a acreditar e a defender o poder popular é pessimista em relação ao futuro. “Ditaduras ainda são possíveis. A estratégia (adotada) é a do empobrecimento de milhões.” Ele não descarta a possibilidade de uma terceira guerra mundial. “O capitalismo precisa disso. Os recursos não comportam todo mundo, aí se eliminam pessoas”, ressalta.
Quarenta anos após a revolução que derrubou uma das ditaduras mais brutais do século 20, Portugal está novamente nas mãos da direita, embora bem mais moderada do que salazarista. O PSD, o Partido Social Democrata, comanda os principais postos do país. Dirige a Presidência da República, tem o cargo de primeiro ministro e o de presidente da Assembleia da República, uma espécie de presidência do Congresso Nacional.
A aplicação de políticas econômicas neoliberais pelo Partido Socialista, que sempre alternou o poder com o partido da direita, foi decisiva para que o PSD fizesse barba, cabelo e bigode, como se costuma falar em linguagem popular. “A população estava farta do Partido Socialista e deu maioria absoluta a coligação do PSD. Esse era o sonho do Sá Carneiro (político fundador do PSD, que morreu em um acidente aéreo em 1980), que se concretizou”, lamenta.
 Brasil
O coronel Otelo defende a punição dos torturadores brasileiros que atuaram na ditadura militar. “Crime é crime, não interessa a profissão que exerce.” Ele também crítica a violência policial que executa negros e pobres nas periferias atualmente. “É uma ação criminosa. Me espanta que isso ainda persista, depois da presidência do Lula, da Dilma, que foi uma mulher de armas, uma guerrilheira.” ‘


Castro Alves
Poesias Coligidas
A Eugênia Câmara 

Quando nas praças s'eleva 
Do Povo a sublime voz... 
Um raio ilumina a treva 
O Cristo assombra o algoz... 

Que o gigante da calçada 
De pé sobre a barrica 
Desgrenhado, enorme, nu 
Em Roma é catão ou Mário, 

É Jesus sobre o Cálvario, 
É Garibaldi ou Kosshut. 

A praça! A praça é do povo 
Como o céu é do condor 
É o antro onde a liberdade 
Cria águias em seu calor! 

Senhor!... pois quereis a praça? 
Desgraçada a populaça 
Só tem a rua seu... 
Ninguém vos rouba os castelos 

Tendes palácios tão belos... 
Deixai a terra ao Anteu. 

Na tortura, na fogueira... 
Nas tocas da inquisição 
Chiava o ferro na carne 
Porém gritava a aflição. 
Pois bem...nest'hora poluta 

Nós bebemos a cicuta 
Sufocados no estertor; 
Deixai-nos soltar um grito 
Que topando no infinito 

Talvez desperte o Senhor. 

A palavra! Vós roubais-la 
Aos lábios da multidão 
Dizeis, senhores, à lava 
Que não rompa do vulcão. 
Mas qu'infâmia! Ai, velha Roma, 
Ai cidade de Vendoma, 
Ai mundos de cem heróis, 
Dizei, cidades de pedra, 
Onde a liberdade medra 
Do porvir aos arrebóis. 

Dizei, quando a voz dos Gracos 
Tapou a destra da lei? 
Onde a toga tribunícia 
Foi calcada aos pés do rei? 
Fala, soberba Inglaterra, 
Do sul ao teu pobre irmão; 
Dos teus tribunos que é feito? 
Tu guarda-os no largo peito 
Não no lodo da prisão. 
No entanto em sombras tremendas 
Descansa extinta a nação 
Fria e treda como o morto. 
E vós, que sentis-lhes os pulso 
Apenas tremer convulso 
Nas extremas contorções... 
Não deixais que o filho louco 
Grite "oh! Mãe, descansa um pouco 
Sobre os nossos corações". 

Mas embalde... Que o direito 
Não é pasto de punhal. 
Nem a patas de cavalos 
Se faz um crime legal... 
Ah! Não há muitos setembros, 
Da plebe doem os membros 
No chicote do poder, 
E o momento é malfadado 
Quando o povo ensangüentado 
Diz: já não posso sofrer. 

Pois bem! Nós que caminhamos 
Do futuro para a luz, 
Nós que o Calvário escalamos 
Levando nos ombros a cruz, 
Que do presente no escuro 
Só temos fé no futuro, 
Como alvorada do bem, 
Como Laocoonte esmagado 
Morreremos coroado 
Erguendo os olhos além. 

Irmão da terra da América, 
Filhos do solo da cruz, 
Erguei as frontes altivas, 
Bebei torrentes de luz... 
Ai! Soberba populaça, 
Dos nossos velhos Catões, 
Lançai um protesto, ó povo, 
Protesto que o mundo novo 
Manda aos tronos e às nações.



Working Class Hero

Jonhn Lennon
http://www.vagalume.com.br/john-lennon/working-class-hero-traducao.html


Três Apitos

Noel Rosa