domingo, 29 de dezembro de 2019

O ano que demarrou uma década





demarrar
 (de.ma.r.rar)
v.
1. Romper as amarras; avançar, desenvolver-se
[F.: Do fr. démarrer.]









domingo, 29 de dezembro de 2019
Vera Magalhães - 2013, o ano que mudou a década
- O Estado de S. Paulo

Jornadas de junho foram prenúncio do tsunami que viria em seguida, com a Lava Jato

“Infelizmente assinei a lei que criou a delação premiada.” O sincericídio foi cometido por Dilma Rousseff durante palestra proferida em Londres em 5 de maio de 2018, dois anos depois de ser apeada da Presidência da República. A síntese dos anos 10 do século 21 no Brasil é, também, a da ascensão e queda da primeira mulher a ser eleita e reeleita presidente do País, justamente no ano inaugural da década. E o ano da virada entre uma coisa e outra foi justamente aquele em que Dilma assinou a lei pela qual viria a se lamentar: 2013, quando pegamos o desvio que nos trouxe até aqui.

As chamadas "jornadas de junho" explodiram, sem que houvesse qualquer aviso prévio, aparentemente por um motivo banal: o aumento de R$ 0,20 no preço das passagens de ônibus em São Paulo. Dilma estava, então, no auge de sua popularidade. Em abril, tinha 65% de avaliação ótima ou boa, segundo o Datafolha. As eleições do ano seguinte eram consideradas um passeio pelo entorno da petista, então ainda vista como uma gerentona que havia feito uma “faxina” no próprio governo, afastando sem hesitar ministros acusados de desvios e promovendo uma limpeza na Petrobrás.

Os protestos se alastraram pelo País como um rastilho de pólvora, levando milhões às ruas com uma pauta difusa, em que começava a aparecer uma insatisfação geral com os políticos, os serviços públicos e de má qualidade e a corrupção. A lei das delações, sancionada por Dilma em agosto, foi uma tentativa do Congresso e da presidente de “limpar a barra” com os que foram às ruas, e, curiosamente, viria a ser peça-chave no outro fato definidor da década: a Lava Jato.

Surgido em 2014 a partir de outro fato aparentemente banal – a apuração de lavagem de dinheiro por doleiros num posto de gasolina em Brasília –, o petrolão quase custou a reeleição de Dilma, que nunca havia se recuperado da traulitada dos protestos. Mas graças a doses cavalares de empulhação marqueteira, ela venceu no fio da navalha, numa eleição que já mostrava o eleitorado cindido entre os que ainda apoiavam o PT e os que passavam a manifestar verdadeira ojeriza ao partido e a Lula e seus postes.

Dali para o impeachment o caminho foi vertiginoso, com as revelações atordoantes da Lava Jato mostrando um esquema profissional de pilhagem do Estado tendo como forças motrizes os partidos, PT à frente, empreiteiras e dirigentes de estatais. Nada ficou de pé depois da operação: o antes imbatível Lula foi condenado em duas instâncias e passou um ano e meio preso em Curitiba; Dilma foi apeada do cargo; seu algoz, Eduardo Cunha, está preso até hoje; seu adversário em 2014, Aécio Neves, também foi flagrado em traficâncias e virou um deputado apagado; o substituto de Dilma na Presidência, Michel Temer, enfrentou três denúncias por corrupção no cargo, e escapou das três graças a um intensivão de fisiologia com o Congresso. Grandes empresários, antes intocáveis, foram em cana.

Das ruínas da política, emergiu Jair Bolsonaro, com um discurso calculado para ser a alternativa a tudo isso que provocava engulhos no eleitorado estarrecido. E é nesse ponto que chegamos ao fim da década, com a sociedade entrincheirada nos extremos e um governo que, nascido da negação de tudo, tem à frente um presidente com claro pendor autoritário e que mistura religião e culto à personalidade ao mesmo tempo em que emergem preocupantes indícios de ligação de sua família com práticas da velhíssima política e com grupos milicianos.

A década de 10 vai chegando ao fim, mas os ecos daquele 2013 em que tudo virou do avesso ainda vão ser sentidos ao longo dos anos 20. Apertemos os cintos e respiremos fundo.






domingo, 29 de dezembro de 2019
Era da polarização: Hegemonia das ruas, redes e da antipolítica
Bolsonarismo e lulismo alimentam-se mutuamente, e confronto dessas forças extremadas vai dominar a política por muito tempo, ao lado do enfraquecimento dos partidos.

Jerônimo Teixeira | O Estado de S. Paulo

“Pela primeira vez não vamos ter um candidato de direita na campanha”, celebrava o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em um evento no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um ano antes da eleição que consagraria Dilma Rousseff como sua sucessora. “Não é fantástico isso? Vocês querem conquista melhor do que numa campanha neste País a gente não ter nenhum candidato de direita?” Ficava implícito que o candidato tucano em 2010, José Serra, não era de direita.

Lula nem sempre seria tão generoso com o PSDB: em um comício pela reeleição de Dilma na campanha de 2014, chegou a comparar os tucanos aos nazistas e a Herodes. A retórica petista mais costumeira tentava caracterizar o PSDB como o completo oposto dos governos de Lula e Dilma – era o partido da elite que não gostava de ver pobre em aeroportos e faculdades.

Lula mostrou-se mais razoável nas declarações que deu no Ipea em 2009: de fato, PT e PSDB têm óbvias diferenças, mas não são antípodas ideológicos. A ideia de que a ausência da direita em um pleito presidencial seja algo desejável, de outro lado, embute um nítido componente autoritário: Lula afirmava, em essência, que a democracia mais saudável é aquela em que só um campo político está representado. E agora a tal direita que esteve ausente nas eleições de 2010 chegou ao poder na sua versão mais agressiva: Jair Bolsonaro. Essa virada de um extremo ao outro define a trajetória política brasileira na década que se encerra.

Já se dizia que o País saiu dividido do pleito de 2014, quando Dilma reelegeu-se no segundo turno com uma estreita vantagem de cerca de 3,5 milhões de votos em relação a Aécio Neves. Mas a polarização só se tornou realmente abissal com a emergência recente de Bolsonaro.

Se durante o governo de Michel Temer o PT conseguira tornar corrente nos círculos de esquerda a ideia de que o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 fora um golpe, a revisão de conceitos tornou-se ainda mais selvagem sob Bolsonaro: o País de repente começou a discutir se o golpe de 1964 foi mesmo golpe, e se a ditadura que então se instaurou foi mesmo ditadura. Bolsonaro constitui uma ruptura drástica de consensos estabelecidos no debate público brasileiro. Sua eleição consagrou o fim de uma certa hegemonia cultural da esquerda, muito bem definida pelo crítico marxista Roberto Schwarz em um ensaio do final dos anos 1960.

A erosão dessa hegemonia começou justamente quando a maior força da esquerda, o PT, ocupou o poder: o partido “perde o charme” de força opositora, na definição do cientista político Fernando Schüler, do Insper. A debacle econômica do governo Dilma certamente contribuiu para o declínio da legenda, mas Schüler prefere enfatizar um processo mais estritamente político: “Lula criou uma narrativa excludente, do ‘nós contra eles’, do ‘nunca antes neste País’. E uma narrativa assim cria o seu oposto”, avalia. “Em uma sociedade aberta e complexa como o Brasil, se você tem uma carga ideológica pesada de um lado, você também vai ter alguma resposta do outro lado.”

A expressiva votação de Aécio em 2014 parecia qualificar os tucanos como porta-vozes das insatisfações com o projeto petista, mas a divulgação, em 2017, do comprometedor diálogo em que o político mineiro pede um empréstimo de R$ 2 milhões ao empresário Joesley Batista, da JBS, sepultou de vez suas ambições presidenciais. E o PSDB, pondera Schüler, sempre foi um “partido parlamentar”, sem quadros ou militância que pudessem encampar o antipetismo que fermentava nas ruas desde 2013.

Onda
O ano de 2013 foi fundamental na virada conservadora no Brasil. As manifestações que tomaram as ruas em junho começaram com movimentos minoritários da esquerda que protestavam contra o aumento da tarifa de transporte público em São Paulo, mas as massas que saíram às ruas naquele mês expressaram anseios mais variados. A bandeira do combate à corrupção também estava lá, antecipando uma corrente essencial do compósito de forças que viria a sustentar o governo Bolsonaro: o “lavajatismo”.

O jornalista Eugênio Bucci, professor da USP e autor de A Forma Bruta dos Protestos, observa que “explosões sociais” como as que se viram naquele ano comportam inquietações múltiplas. “Havia uma insatisfação com a corrupção, com a qualidade de serviços públicos, com a ausência de representação nas instituições políticas, com o distanciamento entre eleitores e seus representantes”, diz. E, sim, a direita que adiante constituiria a base mais fiel a Bolsonaro tomou impulso ali. Bucci, no entanto, rejeita a visão conspiracionista de que as chamadas “jornadas de junho” já fariam parte de uma estratégia de longo prazo da direita.

Acesso
Fernando Schüler observa que a comunicação rápida por Facebook, Twitter e WhatsApp “diminuiu o custo” da participação efetiva na política, trazendo mais pluralidade ideológica à democracia brasileira. Graças à destreza na elaboração de posts e memes, os arrivistas da direita podiam competir com as pesadas e burocráticas instituições de esquerda – centrais sindicais, por exemplo – na guerra de propaganda.

“As redes sociais baixaram a barreira de entrada na política”, concorda Pablo Ortellado, da USP, um estudioso dos impactos da internet na política. “Graças a elas, novos atores políticos conseguem se organizar, se comunicar e chamar manifestações de forma bem mais fácil.” A contrapartida dessa expansão é o reforço da tão propalada polarização política.

Figura do baixo clero do Congresso que ganhou proeminência por expressar sem pejo nem sutileza as opiniões mais extremadas, Bolsonaro conseguiu se alçar a representante do antipetismo e do combate à corrupção. Era, define Ortellado, o candidato “mais plausivelmente antissistêmico” em um momento no qual se fixara a noção de que os partidos tradicionais eram todos “farinha do mesmo saco”.

Eugênio Bucci acredita que, na esteira da Lava Jato, tornou-se comum um “discurso de criminalização da política” que favoreceu a ascensão de Bolsonaro. Mas PT, PMDB (hoje MDB) e PSDB tampouco souberam corrigir erros e se distanciar de escândalos bilionários como a corrupção na Petrobrás. Com Bolsonaro no poder, a Lava Jato chegou ao Ministério da Justiça, o liberalismo da Universidade de Chicago tomou conta da economia e o reacionarismo de Olavo de Carvalho configurou a retórica do Planalto. “Hoje temos um presidente que valoriza a família, respeita a vontade do seu povo, honra seus militares e acredita em Deus”, resumiu Bolsonaro na mensagem natalina divulgada pela TV.

Fiel a seu estilo, o presidente tem defendido cada um desses valores de forma confrontacional, sempre se batendo contra os governos “socialistas” que o antecederam. Sua postura hostil à imprensa, seu comportamento errático e imperial, sua exaltação de ditaduras de direita parecem representar um desafio constante à cultura democrática brasileira. Mas o governo Lula tampouco foi modelar: tentou expulsar do Brasil um jornalista estrangeiro – o americano Larry Rohter, então correspondente do jornal The New York Times – e mostrou-se sempre condescendente com ditaduras de esquerda (em 2016, quando da morte de Fidel Castro, Lula afirmou que o cubano foi “o maior homem do século 20”).

Polos
Em política, é claro, qualquer simetria entre lados opostos será sempre imperfeita, quando não enganosa, e o quanto cada lado atenta de fato contra a democracia é matéria aberta para debates renhidos. Eugênio Bucci diz que o governo Lula não é comparável ao governo Bolsonaro, que representaria, sim, uma ameaça real à democracia – ele cita a permanente ridicularização da imprensa e a insistência em medidas como o excludente de ilicitude para policiais (que a Câmara dos Deputados retirou do pacote anticrime) como evidências da vontade autoritária do presidente.

Fernando Schüler prefere ver a eleição de Bolsonaro como uma prova da pluralidade e da vitalidade da democracia brasileira, que, afinal, tem um governo de direita depois de um longo ciclo esquerdista.

Resta o fato indisputável de que a polarização tornou-se a dinâmica da política hoje. Bolsonarismo e lulismo alimentam-se mutuamente – Pablo Ortellado observa que, em resposta ao antipetismo radical hoje vigente, o PT tornou-se ainda mais centralizado em torno de Lula. “Antigamente, o PT ainda fazia de conta que tinha debates internos e prévias. Hoje em dia, eles (dirigentes do partido) nem disfarçam: dizem que estão à espera das decisões de Lula.” Pode-se supor que o confronto dessas forças extremadas vai dominar a política por muito tempo. Mas, claro, no início da década, ninguém imaginava que Jair Bolsonaro seria presidente.









2013, o ano em que tudo começou
Romance destrincha as sutilezas das relações que sobreviveram ao caos político e econômico de um Brasil polarizado
Por Cristovão Tezza - 21 jun 2019, 07h00



MANIFESTAÇÕES - Acima, estudantes protestam contra aumento de passagens; ao lado, o autor e jornalista Jerônimo Teixeira: rumos inesperados na política e além Léo Pinheiro/Futura Press/Folhapress - Antonio Milena/VEJA

Tratar da realidade política e social imediata, que é o duro trabalho do jornalismo diário na sua luta sempre incerta por desvendar objetivamente os fatos, não é tarefa fácil para a literatura, quando se aventura na área do registro realista. Especialmente no momento agudo que vive o Brasil, ao escolher essa pedreira fugaz como objeto haverá sempre o risco de o escritor resvalar para o meramente datado, o esquematismo político ou, pior ainda, o panfleto constrangedor e moralizante das boas intenções.
Foi o risco calculado que assumiu o gaúcho Jerônimo Teixeira, editor de VEJA, com o romance Os Dias da Crise, que tem como pano de fundo a crise brasileira a partir das célebres “jornadas de junho”, e como personagens figuras do mundo corporativo em queda. “O que se definiu em junho? Não me pergunte, não nos pergunte. Ninguém soube, ninguém sabe, ninguém jamais entendeu nada”, diz Alexandre, narrador e importante funcionário de uma empresa prestes a afundar. Tomando como epicentro narrativo as manifestações mais ou menos espontâneas de 2013 que ocuparam as ruas das cidades num fenômeno difuso e inesperado que acabou por provocar profundas transformações no universo político nacional, Alexandre faz uma radiografia ficcional da própria vida. Na inspeção estão as pessoas que gravitam em torno dele: colegas da empresa, o irmão e a cunhada, a ex-mulher, a nova namorada, a única filha — relações suscetíveis às divisões por vir.

“Não gosto de ler”, começa ele, dan­do já na primeira frase o tom irônico de sua linguagem, em que um medido mau humor avança em vários momentos para a graça mais escancarada da sátira, gênero que no entanto não definirá o livro. Ao longo do texto, que agarra o leitor do começo ao fim, permanece sempre uma discreta pungência no personagem que o impede de se entregar por completo ao conforto demolidor da crítica, ao puro cinismo ou mesmo à simples indiferença defensiva, esta marca do tempo, o que a epígrafe do livro, tirada de um conto de Dostoiévski, parece frisar: “Para mim tudo era indiferente”. Não era, o leitor descobrirá.
O olhar irônico se volta especialmente contra o ambiente de trabalho e suas figuras típicas, ridículas e recorrentes, a partir de duas presenças centrais: o novo CEO da empresa, Vladimir Eollo — referência tanto ao deus dos ventos da mitologia grega como a Lenin, que teria inspirado seu nome —, e o diretor de RH, também sugestivamente chamado de Raimundo Niquil, imerso no sigilo sinistro de suas planilhas de cortes e demissões. Eollo terá uma ideia de gênio, um novo e misterioso “Produto”, fabricado na China, que nos seus planos haverá de salvar a todos, e o fantasma de sua eficácia percorre o livro.








Entrevista com Jerônimo Teixeira sobre "Os Dias da Crise"


Ao vivo da redação do jornal O Estado de S. Paulo, o editor do Estado da Arte, Eduardo Wolf, entrevista Jerônimo Teixeira, autor do romance "Os Dias da Crise" (Companhia das Letras).





Referências

http://www.aulete.com.br/demarrar
http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/12/vera-magalhaes-2013-o-ano-que-mudou.html
http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/12/era-da-polarizacao-hegemonia-das-ruas.html
https://abrilveja.files.wordpress.com/2019/06/protestos-sao-paulo-2013-097.jpg.jpg?quality=70&strip=info&resize=680,453
https://veja.abril.com.br/entretenimento/2013-o-ano-em-que-tudo-comecou/
https://youtu.be/zOdJz1V75ms
https://www.youtube.com/watch?v=zOdJz1V75ms

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